“Eles usavam ratos, os colocando em uma espécie de funil, posicionando na região do ânus. Pegavam camundongos, pequenos, daqueles recém-nascidos, pra entrar. Imagina o estrago que ele fazia no intestino de uma pessoa”, falou ao Democratize a militante Lúcia Skromov, torturada pelo Coronel Ustra durante a ditadura militar
Lúcia Skromov foi presa pela primeira vez durante a ditadura em 1968, quando foi detida em uma passeata e levada para o Departamento de Ordem Política e Social, conhecido também como DOPS. Na época, ela era estudante de letras na USP e militava junto a movimentos estudantis.
Um ano depois, o militar de extrema direita, Emílio Médici, assume a presidência, a censura e a repressão passaram a ser ainda mais endurecidas. Nesse período surge a Operação Bandeirante (OBAN), um centro de informações e investigações que combatia toda e qualquer organização de esquerda. Essa entidade foi financiada por Henning Boilesen, que segundo Lúcia, foi o responsável por trazer técnicas de tortura praticadas por nazistas para o Brasil. Mais tarde, a OBAN ganhou um órgão complementar que pertencia diretamente ao Exército do Brasil, o Destacamento de Operações Internas (DOI-Codi).
A militante comunista fazia parte do sindicato dos bancários, em que lutou pela equiparação de direitos das mulheres dessa categoria.
Lúcia relata que quando o Banco do Brasil e o Banco do Estado passaram a admitir mulheres, elas recebiam um salário menor que o dos homens para exercer as mesmas funções. As mulheres então, passaram a ocupar espaços dentro dos sindicatos, e levantavam as bandeiras pela equiparação de direitos e contra a ditadura. Organizavam ações para panfletar nos bancos e emitiam boletins através do sindicato. Além disso, ela colaborava com núcleos de formação marxista que existiam dentro de fábricas na região do ABC e Diadema.
Isso ocorre em um período em que a repressão e a perseguição contra os militantes de esquerda fica ainda mais acirrada, e em 1973 Lúcia é presa pela segunda vez.
Ela foi detida na região da zona norte de São Paulo com mais três companheiros de luta. Dessa vez, foram levados para o DOI-Codi, que era comandando pelo Coronel Carlos Alberto Ustra, local que ficou conhecido como ‘’a casa dos horrores’’, por ser onde aconteciam inúmeros casos de tortura, dos mais variados tipos e lá permaneceu presa por um mês.
Lúcia conta que nessa época, as prisões já eram imensas, e os agentes torturadores passavam a ganhar recompensas por seus trabalhos. Ela cita Charles Chandler como um oficial do exército dos Estados Unidos que veio ao Brasil para ajudar a implementar novas técnicas de tortura.
‘’Ele [Charles Chandler] veio junto com Boilesen, para fazer com que o interrogatório fosse um método capaz de retirar informações. E não há medidas e nem limites para esse interrogatório’’ — afirma Lúcia.
Embora existam testemunhos de militantes e até de militares, de que Boilesen freqüentava o DOI-Codi para assistir e participar de sessões de tortura, o Coronel Brilhante Ustra sempre negou que isso tenha ocorrido.
Foto: Francisco Toledo/Democratize
Há também suspeitas de que Boilesen usava os carros da sua empresa, a Ultragás, para descobrir pontos de encontro de núcleos de esquerda.
’’A Ultragás colocava seus carros de venda estratégicamente em vários lugares da cidade em que eles suspeitavam que haviam pontos de encontro dos movimentos’’ — conta Lúcia.
Chandler e Boilesen foram mortos ainda na época da ditadura por militantes guerrilheiros de esquerda.
‘’Na verdade, a gente não pode nem usar a palavra executar, justiçaram o Boilesen, da mesma forma que justiçaram Chandler.’’ — diz Lúcia sobre as mortes do executivo e do militar que apoiaram o período ditatorial.
Texto por Mariana Lacerda Reportagem por Mariana Lacerda, Carol Nogueira e Francisco Toledo
(Observatório de Imprensa, 19/08/2014)A mulher serena na frente do homem inquieto. A repórter experiente perante a autoridade calejada. A entrevistadora firme ante o ministro gelatinoso. A profissional de imprensa olho no olho com sua fonte. Uma brasileira, presa e torturada na ditadura, frente a frente com o ministro da Defesa que hoje comanda o Exército que ontem, na ditadura, prendeu e torturou a mulher, a repórter, a jornalista, a brasileira que o questionava (leia abaixo o depoimento inédito de Míriam Leitão sobre as torturas que sofreu).
Esse dramático confronto de 22 minutos brilhou na tela da TV numa noite de quinta-feira, no final de junho de 2014, quando a jornalista Míriam Leitão, 61 anos, fez para a GloboNews uma notável entrevista com o ministro da Defesa, Celso Amorim, 72 anos. Viu-se então uma aula prática do melhor jornalismo, confrontando a convicção com a dúvida, a energia com a tibieza, o categórico com o evasivo, a verdade com a mentira. A repórter se agigantando num diálogo em que o ministro se apequenava, acuado, hesitante, gaguejante.
Míriam fez o que o resto da grande imprensa, acomodada e preguiçosa, não fez. Foi a Brasília ouvir o chefe civil dos militares, apenas nove dias após a entrega à Comissão Nacional da Verdade (CNV) de uma insossa, imprestável sindicância de quatro meses realizada pelos três comandantes das Forças Armadas (FFAA). Diante de questões objetivas com nomes, datas e locais de mortes e torturas apontadas pela CNV, os chefes da tropa responderam, num catatau de 455 páginas, que não registravam nenhum “desvio de finalidade” em sete centros militares do Exército, Marinha e Aeronáutica onde foram meticulosamente documentados casos de graves violações aos direitos humanos pelo regime militar de 1964-1985. Os oficiais-generais das três Armas simplesmente negaram a ocorrência de abusos até mesmo nos sangrentos DOI-CODI da Rua Tutoia, em São Paulo, e da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde a CNV já constatou pelo menos 81 mortes por tortura. Os comandantes esqueceram até dos 22 dias de suplício no DOI-CODI paulistano a que sobreviveu em 1970 uma guerrilheira chamada Dilma Rousseff, hoje casualmente presidente da República e, como tal, comandante-suprema dos generais que omitem a crua verdade sobre a ditadura das FFAA (ver “Quem mente? A presidente ou os generais?“).
Semblante sério, como recomendava o tema e exigia o embate, a jornalista entrou de sola na entrevista:
Míriam– Ministro, os militares disseram que não houve desvio de função, mas a resposta causou perplexidade…
Amorim – […] A CNV não perguntou se as pessoas foram torturadas. Ela focaliza muito na destinação dos imóveis. Com esta pergunta, a resposta também sinaliza uma resposta formal. Não houve, não há registro formal de desvio de funcionalidade…
Míriam– A CNV fez as perguntas erradas?
Amorim – Ela não fez as perguntas que ela não precisava fazer […] As FFAA não negam, nem comentam. Elas não contestam. Elas simplesmente não entram [no assunto]. Se um estabelecimento, militar ou outro qualquer, é usado para tortura, isso não é um ilícito administrativo. Isso é um crime […] Especificamente sobre as torturas, ela [CNV] não faz nenhuma pergunta, ela afirma. E as afirmações [da CNV] não são contestadas.
Míriam– Uma coisa é o DOI-CODI prender. Outra coisa é matar o preso.
Amorim – Isso é horrível. Não é um desvio de finalidade, é um crime. […] Se você disser que as respostas são formais, eu concordo. Até acho que elas são formais. Elas não são mentirosas, nem descumprem formalmente o que foi perguntado. Elas decepcionam quem…
Míriam– … elas omitem a questão principal, ministro. As pessoas foram mortas dentro de instalações militares, foram torturadas, e não foi para isso que se criaram essas instalações. Elas existem para defender o Brasil, não para torturar e matar brasileiros.
Amorim – Não há a menor dúvida. Tortura e morte é errado em qualquer lugar. Eu acho isso e a sociedade brasileira acha isso…
Míriam– Mas os seus comandados não acham. Como ministro da Defesa, o sr. é o comandante dos comandantes militares. O sr. não deveria levá-los a tomar uma decisão sobre isso? O que eles fizeram nessa sindicância foi tergiversar sobre a questão fundamental que se pergunta…
Amorim – Nós estamos completando uma transição, a última etapa da transição é o relatório da CNV. A CNV vai produzir um relatório final e todos terão que se posicionar diante dele. Quanto às respostas em si à CNV, elas atendem ao que foi perguntado formalmente. Não houve nenhuma pergunta, tipo “o sr. confirma que houve tortura e morte?”. Até porque eu sei que a resposta aí seria: “Todos os documentos da época [da ditadura] foram destruídos”.
Míriam– É o que eles dizem, aliás.
Amorim – Não houve nenhum esforço, nenhuma pretensão de negar os fatos…
Míriam– O jornalista Zuenir Ventura escreveu que, se [tortura e morte]não era desvio de função, então era norma. O que o sr. diz dessa conclusão?
Amorim – Acho que tortura e assassinato de uma pessoa indefesa é algo indefensável. Se isso era norma explícita, eu não… eu creio que não. Mas, implícita, talvez fosse. Infelizmente, era um governo ditatorial. Ninguém vai discutir isso. Você sabe muito bem: eu deixei meu cargo na Embrafilme porque autorizei a elaboração de um filme pago pela empresa em que a OBAN era o tema central.
Arte do convencimento
Amorim, sempre diplomata, não esclareceu bem aos telespectadores esse episódio que o dignifica e está relacionado à OBAN, a Operação Bandeirante, a repressão unificada em São Paulo que antecedeu em 1969 o DOI-CODI criado no ano seguinte. Ele não “deixou” o cargo, ele foi exonerado em abril de 1982 da presidência da Embrafilme, a estatal de cinema da ditadura, por pressão dos generais do governo Figueiredo, irritados com o temerário financiamento que a empresa concedeu ao cineasta Roberto Farias para produzir Pra Frente, Brasil. Era um filme de 105 minutos, estrelado por Reginaldo Faria, Natália do Valle e Antônio Fagundes retratando de forma contundente, pela primeira vez no cinema, os horrores da repressão sem limites. Os personagens eram calcados nos algozes da OBAN, no delegado do DOPS Sérgio Fleury e nos empresários que financiavam a tortura do regime. O ator Carlos Zara interpretou o sádico “Dr. Barreto”, o policial inspirado em Fleury, que havia torturado seu irmão, Ricardo Zaratini, um dos presos políticos trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick em 1969. O ator Paulo Porto encarnou o personagem inspirado no industrial Henning Boilesen que – como caixa da OBAN no meio empresarial e amigo do poderoso ministro Delfim Netto – foi executado por guerrilheiros em abril de 1971. Lançado em 1982, Pra Frente, Brasil ganhou cinco prêmios em festivais internacionais e, após uma arrojada exibição em Gramado, RS, conquistou o troféu de melhor filme do festival de cinema mais importante do país. Em seguida, foi censurado e retirado das salas de exibição. Só voltou a ser mostrado no início de 1983, liberado sem cortes.
Hoje comandante dos militares que no passado o expurgaram do serviço público, Celso Amorim agora tem bons motivos para medir a diferença no calendário.
Amorim – O Brasil precisa das FFAA. E os militares de hoje não são os militares de ontem. Nós precisamos dialogar com estes militares de hoje. Eles tem que saber separar o que foi o passado e o que é hoje. O 31 de março já não é mais comemorado…
Míriam– Mas eles mesmos não fazem esta separação, quando não admitem os erros do passado. Até para preservar a instituição [das FFAA], eles não deveriam fazer esta separação?
Amorim – Você quer minha opinião pessoal? Acho que devem [fazer a separação]. Mas, isso não se faz com uma ordem. Isso é uma mudança cultural. Porque, as ordens eles podem até obedecer. Isso é uma mudança cultural que vem aos poucos. Essa ordem depende do diálogo. Há outras concepções culturais das corporações. Como isso se concilia, é uma coisa complicada. Não vou entrar aqui numa discussão filosófica sobre culpas coletivas, ou culpas intergeracionais. O tempo vai fazer com que isso ocorra. O primeiro passo é eliminar as coisas oficiais, como as comemorações do 31 de março. Nunca ouvi de nenhum militar, pelo menos comigo, nunca ouvi nenhum defender a tortura, sob nenhum aspecto. Nenhum veio aqui e disse: “Ah, mas naquele caso tivemos que fazer isso…”. Nenhum. Nunca ouvi. Nem direta, nem indiretamente.
Míriam– E nem condenaram, também…
Amorim fecha os olhos, suspira, e não diz nada. É salvo pelo intervalo do programa de entrevista, aos 13’33’’. Na segunda parte, Amorim volta falando das coisas positivas que vê hoje na área militar.
Amorim – […] Como a criação do Estado Maior Conjunto das FFAA, subordinado diretamente ao Ministério da Defesa. Ou seja, o Ministro está na cadeia de comando, inclusive das operações militares. E temos um secretário-geral civil, no mesmo nível dos comandantes. Incluímos disciplinas de direitos humanos em todas as escolas militares. Os livros [das escolas militares] devem ser aprovados pelo MEC e fazem parte do currículo. Os colégios militares são excelentes. Você poderia me perguntar: “Mas, o sr. não pode dar uma ordem?” Posso, mas eu prefiro convencer. O convencimento tem mais durabilidade. Aprendi isso com a diplomacia. Acho que o convencimento é melhor do que uma ordem estrita.
Míriam – Em algum momento as FFAA vão se deixar convencer a pedir desculpas ao País pelos crimes cometidos na ditadura, para que eles não se repitam?
Amorim – Esta é uma questão complicada. Eu não sei… Acho que… talvez, talvez. Eu esperaria… Acho que o grande input para isso seria o próprio relatório da CNV, o tratamento que ele vai ter e como será recebido pela sociedade. Agora, você tem um conflito entre duas concepções. Uma, as FFAA de hoje pedindo desculpas pelo que não foi feito por elas? Não sei… Eu, como ministro das Relações Exteriores, se formos pedir desculpas por tudo que tenha sido feito pelo Itamaraty, inclusive no tempo da ditadura, talvez fosse complicado para mim… Acho melhor ir mudando, mudando a prática, e deixando aquilo que se deve ver e analisar para o Judiciário, o Congresso, a sociedade… Mas, não sei… Talvez fosse bom para eles [os militares]. Eu acho…
Gaguejando, vacilando, traindo suas dúvidas internas, Amorim revelou na GloboNews as incertezas existenciais que são antigas e comuns entre os sete homens que ocuparam o Ministério da Defesa desde sua criação, em junho de 1999, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Nascida 14 anos após a queda da ditadura, a pasta reproduzia a experiência de nações mais avançadas nos padrões democráticos. É a realização administrativa da constatação feita por um médico francês do século passado, Georges Clemenceau (1841-1929), o primeiro-ministro da França nos anos turbulentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que diagnosticou: “A guerra é uma coisa demasiadamente grave para ser confiada aos militares”. Para expurgar a arrogância natural de 21 anos de regime de exceção no Brasil, onde a voz da caserna com frequência se confundia com os rugidos mais assustadores da caverna autoritária, um Ministério da Defesa ocupado por um civil tinha, como primeira vantagem, tirar o intocadostatus ministerial das Forças Armadas habituadas ao cachimbo torto da hegemonia sobre a República e do arbítrio sobre todos.
Gritos e sussurros
Rebaixando os ministros militares ao nível de comandantes, sob o tacão de um civil na Defesa, o país imaginava se vacinar contra recidivas no delicado processo da regeneração democrática. O problema é que, em vez de Ministro da Defesa do Estado, cada um dos ocupantes do posto assumiu o equivocado papel de ministro da defesa dos comandantes militares. Desde o primeiro e mais fugaz, Élcio Alvarez, que durou meros sete meses no cargo, até o mais longevo, Nelson Jobim, que Lula legou a Dilma e sobreviveu no posto por longos 50 meses. Mais do que encarnar o papel de comandante civil do governo sobre os escalões militares, os ministros acabaram vestindo a farda de porta-vozes dos quartéis e seus chefes, tornando mais difícil o pleno reconhecimento das diferenças cruciais que existem entre os Exércitos da ditadura e da democracia – e que nem os comandantes sabem separar, como reconheceu Amorim para Míriam.
O atual ministro da Defesa, profissional do Itamaraty desde 1989, quando o país teve sua primeira eleição direta para presidente em três décadas, levou para o cargo as manhas da diplomacia, esquecido de que o tom acatado nos quartéis é a ordem gritada e peremptória, não o sussurro do lerdo convencimento ciciado nas missões diplomáticas. O que Amorim aprendeu com as luvas de pelica nos salões atapetados do Itamaraty não combina com os coturnos empoeirados dos campos de manobra dos generais. São áreas diferentes, são mundos separados. O ministro da Defesa, com ingenuidade, confessou na GloboNews que é um chefe que abdica de suas atribuições: em vez de mandar, como se faz e se espera na caserna, prefere convencer, como nem os diplomatas às vezes conseguem.
Militar, desde a academia, sabe que o ofício do soldado é obedecer, assim como a missão do comandante é comandar. O diplomata Amorim, com a muleta da “durabilidade”, prefere convencer. Nas praias da Normandia, nas areias de El Alamein, nas colinas de Waterloo, nas alturas de Monte Castelo, no estreito das Termópilas, no mar revolto de Midway, onde ecoaram algumas das batalhas épicas que todo oficial de Estado-Maior estuda nas aulas de tática e estratégia em combate na academia, os militares não esperavam ser convencidos para cumprir sua missão, para comandar e obedecer, para matar ou morrer. Se fossem esperar pelo moroso convencimento proposto por Amorim, os generais teriam perdido a batalha, a guerra, a vida e talvez a honra.
O general francês Charles De Gaulle (1890-1970), que não convencia mas sabia mandar, tinha esta áspera opinião sobre os colegas de carreira de Amorim: “Diplomatas são úteis apenas sob bom tempo. Assim que chove eles se afogam em cada gota”. O parlamentar inglês Henry Wotton (1568-1639), embora embaixador, era ainda mais cínico: “O diplomata é um cavalheiro honesto enviado ao exterior para mentir pelo bem de seu país”.
Agente da borrasca
Como o cavalheiro honesto que é, Amorim poderia dizer a verdade pelo bem do país começando por um único pedido de desculpas, na condição de ex-ministro das Relações Exteriores, por uma grave truculência cometida por seus polidos pares de diplomacia exatamente no tempo da ditadura: o Centro de Informações do Exterior (CIEx), o serviço secreto criado dentro do Itamaraty, no primeiro governo da ditadura, o do general Castelo Branco. Foi obra e engenho de um diplomata sempre útil e que sorvia cada gota da borrasca, Manoel Pio Correa Júnior (1918-2013), um anticomunista ferrenho que se notabilizou pela caça aos comunistas na carreira diplomática e pelo combate aos “vagabundos, bêbados e pederastas” que encontrou pelo caminho. Uma de suas vítimas mais notáveis foi o diplomata e compositor Vinícius de Moraes, cassado pelo AI-5. O poetinha brincava com os amigos: “Ei, eu sou o bêbado, viu?”.
Capitão R/2 da Cavalaria, o sóbrio Pio Correa vestia sobre o terno de diplomata a capa de agente da CIA, servindo na estação do Rio de Janeiro da agência de inteligência norte-americana, conforme revelou o ex-agente Phillip Agee na página 384 de seu livro de memórias, Por Dentro da Companhia (Edição Círculo do Livro, 1976). Ali, para constrangimento de Amorim e qualquer cavalheiro honesto, o homem da CIA no Uruguai relatou, no diário de Montevidéu datado de 17 de junho de 1964, menos de três meses após o golpe no Brasil:
[…] a base do Rio [da CIA] decidiu enviar mais dois de seus elementos para a embaixada do Brasil aqui – além do adido militar, coronel Câmara Sena. Um deles é um funcionário de carreira de alto nível do ministério das Relações Exteriores do Brasil, Manoel Pio Correa, que virá como embaixador; o outro é Lyle Fontoura, protegido de Pio Correa, que será o novo primeiro-secretário. Até o mês passado, Pio era embaixador do Brasil no México, onde, de acordo com o currículo enviado pela base [da CIA] do Rio, demonstrou muita eficiência nas tarefas operacionais para a base [da CIA] da Cidade do México. Contudo, como o México não reconheceu o novo governo militar do Brasil, Pio foi chamado de volta ao seu país e a base [da CIA] do Rio de Janeiro providenciou para que fosse nomeado para Montevidéu, que no momento é o ponto em ebulição da diplomacia brasileira. Assim que chegarem os novos elementos do corpo diplomático, Holman [Ned. P., chefe da CIA em Montevidéu] entrará em contato com Pio, enquanto O’Grady [Gerald, subchefe da CIA] se encarregará de entrevistar-se com Fontoura. De uma forma ou de outra, a base [da CIA] do Rio está decidida a elaborar operações contra os exilados, e – ao que parece – Pio é o homem indicado, pois tem perserverança suficiente para manter as pressões sobre o governo uruguaio.
Com a mão pesada da CIA, Pio Correa foi premiado pelo governo Castelo Branco justamente com a embaixada em Montevidéu, onde se concentravam os inimigos que acompanharam João Goulart e Leonel Brizola ao exílio. Lá, o agente duplo da CIA Pio Correa, com o braço forte do adido militar, o coronel Câmara Senna, outro serviçal da agência americana, começou a montar o seu CIEx, formado inicialmente por uma rede de contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia, fazendeiros e comerciantes que fechavam o cerco sobre as atividades de Jango e Brizola no Uruguai.
A bem sucedida experiência uruguaia o levou, como secretário executivo do chanceler Juracy Magalhães, a redigir e assinar a portaria ultrassecreta que criou o CIEx no governo Castelo Branco. Tão secreta que nem constava da estrutura formal do pudico Itamaraty. A existência do CIEx só seria confirmada em 2007, exatamente quando Amorim era o chanceler do segundo governo Lula. A constrangedora revelação coube à monumental série de reportagens produzida pelo repórter Cláudio Dantas Sequeira, do Correio Braziliense, revelando a ação repressiva da primeira agência criada sob o amparo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de seu criador, o general Golbery do Couto e Silva.
O repórter descobriu que, no início, o secreto CIEx foi camuflado como Assessoria de Documentação de Política Exterior, ou simplesmente ADOC, com verba secreta e subordinado à Secretaria Geral de Relações Exteriores. Dos primeiros anos da ditadura até 1975, funcionou dissimulado como seu criador na sala 410 do quarto andar do “Bolo de Noiva”, o Anexo I do Palácio do Itamaraty, em Brasília. Desmontado com a ditadura em 1985, o lugar hoje abriga a inofensiva Divisão de Promoção do Audiovisual. Vasculhando 20 mil páginas de documentos com 8 mil informes escondidos nos arquivos do CIEx, o repórter Sequeira apurou que, dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, os nomes de 64 das vítimas estavam lá, nas pastas secretas de Pio Correa. Atuando em linha com os adidos militares das embaixadas, a tropa civil dos adidos do CIEx de Pio Correa foi decisiva na atuação do Brasil na Operação Condor, o Mercosul da repressão que caçava e matava sob o mando e desmando dos generais do Cone Sul do continente.
Proposta indecente
Como chefe dos diplomatas, Amorim não lembrou de pedir desculpas pelo CIEx. Como chefe dos militares, Amorim chegou a pensar em um pedido de desculpas dos generais pelos 21 anos de ditadura. Foi o que ele fez em 18 de fevereiro passado, em seu gabinete no Ministério da Defesa, em Brasília, na audiência que concedeu aos seis comissários da Comissão Nacional da Verdade. O ministro se remexeu na cadeira, surpreso e incomodado com a entrega inesperada do requerimento da CNV, listando sete locais de tortura e morte administrados pelo Exército, Marinha e Aeronáutica. Ele reagiu com uma proposta inusitada, que desconcertou os comissários: ofereceu, em nome dos comandantes das FFAA, um pedido público de desculpas ao país pelos excessos cometidos em duas décadas de arbítrio. Em troca, Amorim pediu à CNV garantias de que não haveria a temida revisão da Lei de Anistia que a ditadura se autoconcedeu em 1979 no governo Figueiredo, para salvar a pele e a biografia dos torturadores até hoje impunes.
Os comissários reagiram na hora, com a altivez devida, rejeitando a proposta indecente de Amorim. Ela apenas retrata a preocupação crescente dos quartéis com uma provável recomendação de impacto no relatório final da CNV, a ser apresentado ao país em dezembro próximo. É cada vez mais forte a tendência na CNV para recomendar a revisão da anistia da ditadura, diante das pesadas evidências e contundentes provas documentais que se acumulam sobre abusos e violências cometidos pelo regime arbitrário de 1964. Aceitar os termos do Ministro da Defesa para o pedido de desculpas dos generais seria uma indesculpável barganha política que fere o bom-senso e a ética.
Seria coisa ainda pior, a transgressão de um mandamento pétreo proclamado pelo mestre maior de Amorim e seus colegas de carreira: “Um diplomata não serve a um regime e sim ao seu país”, ensinou o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco (1845-1912), o chanceler que atravessou quatro governos da nascente República, no início do Século 20, e ampliou o Brasil redesenhando suas fronteiras. Os generais de hoje devem pedir desculpas à Nação pelos erros cometidos pelos generais de ontem como um imperativo ético que demarca fronteiras morais e faz uma justa e sanitária separação entre o Exército da democracia, a que eles servem, e o Exército da ditadura, que eles deveriam repudiar para preservar a honra e a imagem histórica da corporação.
Amorim esqueceu de se desculpar na GloboNews pelo desonroso CIEx. Não recordou da ideia de um pedido de desculpas dos generais ao país. E, distraído, não lembrou da ficha da repórter que o entrevistava no seu gabinete. O ministro da Defesa, até pela autoridade do cargo, conhece os detalhes da biografia de Míriam Leitão que o Brasil desconhece. Amorim esqueceu que era entrevistado por uma sobrevivente da ditadura e das torturas que os generais sob seu comando agora negam, como negaram as torturas no DOI-CODI onde padeceu a guerrilheira da VAR-Palmares Dilma Rousseff.
O “doutor” e a jibóia
Míriam não integrava a luta armada, como Dilma. Nos idos de 1972, aos 19 anos, Míriam era uma militante da base estudantil do então clandestino PCdoB, que tentava derrubar em Vitória (ES) a mesma ditadura que mantinha Dilma no cárcere, em São Paulo (SP). “A gente apenas pichava muros, espalhava cartazes nos pontos de ônibus e nas cabines de orelhões. Lembro que um dia pichei ‘Viva a guerrilha do sul do Pará! Abaixo a ditadura!’ Um idealismo de jovens que acreditavam naquilo, que sabiam que era preciso resistir a tudo aquilo, até mesmo com um simples panfleto”, lembrou Míriam.
Mineira de Caratinga, filha de um pastor presbiteriano e de uma professora primária, sexto filho do casal (depois de três mulheres e dois homens) numa família de 12 irmãos, ela cursava o primeiro ano de História quando conseguiu um emprego na redação de uma rádio de Vitória, o que mudaria sua carreira para sempre. Estreava na profissão como repórter quando sentiu na carne o peso da repressão, sequestrada e presa durante três meses, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército em Vila Velha, onde foram encarceradas e torturadas cerca de 40 pessoas – a maioria estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo e um dos professores, o médico Vítor Buaiz, que fundou o PT, elegeu-se prefeito de Vitória em 1989 e sagrou-se governador do Estado em 1994.
Na primeira parte do livro Brasil: Nunca Mais, dedicado a “Castigo Cruel, Desumano e Degradante”, o Capítulo 2 fala sobre “Modos e instrumentos de tortura”. Na página 39 do trabalho, um resumo do projeto original em 12 volumes escrito por Ricardo Kotscho e Frei Betto, existem oito depoimentos de presos políticos torturados sob a rubrica “Insetos e Animais”.
O quarto depoimento, registrado no livro nº 674, volume 3, páginas 782v-783 do projetoBrasil: Nunca Mais, é a transcrição parcial do auto de qualificação e interrogatório de uma jornalista, então com 20 anos, chamada Míriam de Almeida Leitão Netto. Suas palavras:
[…] que, apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem qualquer alimentação;
[…] que as pessoas que procediam o interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada; […]
No livro de Kotscho e Betto havia outro depoimento, de um auxiliar de escritório de 31 anos, Dalton Godinho Pires, que em 1973, no volume 5 do livro n° 75, página 1224, revelou no seu interrogatório:
[…] havia também, em seu cubículo, a lhe fazer companhia, uma jiboia de nome Míriam […]
Não era uma piada. Era uma jiboia mesmo, um exemplar da boa constrictor, a segunda maior cobra do Brasil (só menor que a sucuri), que mede em média três metros de comprimento. O autor deste artigo lembrou desses dados e entrou em contato com Míriam Leitão para esclarecer melhor sua dramática passagem pelo quartel do Exército na praia de Piratininga, no bairro Prainha de Vila Velha, 12 quilômetros ao sul da capital capixaba. Míriam me contou:
“Fiquei presa ali, no 38º Batalhão. Os torturadores vieram de fora e, depois, sumiram. Eles trouxeram a cobra. Eu lembro que chamavam o pior dos torturadores, o dono da cobra, de Dr. Pablo.”
Dr. Pablo era o codinome de um dos mais truculentos oficiais do DOCI-CODI do II Exército, na Rua Barão de Mesquita, no bairro carioca da Tijuca: Paulo Malhães, coronel do Centro de Informações do Exército (CIE). Em março passado Malhães deu um aterrador depoimento à Comissão Nacional da Verdade, numa sessão no Rio com a presença da imprensa. Ali confessou ter arrancado as arcadas dentárias e cortado os dedos de presos mortos sob tortura para não permitir a identificação dos corpos desaparecidos. Um mês depois da confissão, Malhães foi encontrado morto em seu sítio, na Baixada Fluminense, aparentemente vítima de infarto após ter a casa invadida por três bandidos, que fugiram dali levando, entre outros artigos bizarros para um ladrão, três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel.
Dois anos antes, em junho de 2012, Malhães confirmou ser o dono da Míriam, a cobra que deslizou pela cela da aterrorizada Míriam no batalhão do Exército em Vila Velha. O coronel do CIE contou aos repórteres de O Globo Chico Otávio, Juliana del Piva e Marcelo Remígio que, na primeira metade da década de 1970, levou cinco filhotes de jacaré e uma jiboia para torturar os presos na carceragem do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do I Exército, na Barão de Mesquita, sede do DOI-CODI carioca, onde podem ter morrido 30 presos, segundo estimativas da CNV.
Malhães tinha atuado na “Casa Azul”, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia, instalado na antiga sede do DNER em Marabá, no sul do Pará. Ali, segundo levantamento da CNV, morreram 24 presos, 22 dos quais militantes do PCdoB, o mesmo partido pelo qual Míriam pichava muros e espalhava panfletos em Vitória antes do encontro dramático com a Míriam do Dr. Pablo. O coronel contou aos repórteres de O Globo:
“Eu estava um dia à beira de um rio, na região do Araguaia, quando senti a terra tremer. Descobri que estava sentado em cima de um ninho com filhotes de jacaré. Consegui pegar cinco, que batizei de Pata, Peta, Pita, Pota e Joãozinho. E ainda peguei uma jiboia de seis metros, que chamei de Míriam. Trouxe todos para o DOI-CODI, no Rio. Os filhotes de jacaré não mordiam. Só faziam tec-tec com a boca…”
O jornalista mineiro Dalton Godinho Pires, citado pelo Brasil: Nunca Mais, ficou quatro anos preso, mas gravou na pele e na memória os 90 dias de terror no PIC da Barão de Mesquita, graças à Míriam. Localizado em 2012 pelo repórter Chico Otávio, Pires lhe contou:
“Eles chegaram com um isopor enorme, apagaram a luz e ligaram um som altíssimo. Percebi na hora que era uma cobra imensa, que eles chamavam de Míriam. Felizmente, ela não quis nada comigo. Mas, irritada com a música, a cobra não parava de se mexer. O corpo dela, ao se deslocar, arranhou o meu. Cheguei a sangrar. Mas o maior trauma foi o cheiro que ela exalava, um fedor que custei a esquecer.”
Verso e reverso
Quando leu esta reportagem dois anos atrás, no jornal em que trabalha, Míriam teve uma longa e privada crise de choro, ao cruzar na memória de dor o relato de cobras e jacarés da repartição de terror do coronel Malhães. “Era muita coincidência. A ninguém eu disse isso, nem aos meus filhos”, confessou-me ela, sempre refratária a discutir publicamente o seu drama pessoal. “Guardo aqui a sensação de que a minha dor eu mesmo curo. Não é dela que se trata. O que é importante é a dor do país e ela faz certas exigências às instituições. Uma delas é esse reconhecimento das Forças Armadas de que erraram”.
Com a elegância exigida, Míriam preservou os limites institucionais de sua entrevista com o Ministro da Defesa, sem jamais confundir sua história de vida com a vida do país, embora elas se cruzem e se confundam. A consciência de que tinha diante de si uma sobrevivente da ditadura deve explicar o desempenho nervoso de Amorim na entrevista, ao tentar defender o que ele sabia, de corpo presente, não ser verdade. Aos 61 anos, mãe de dois filhos, ambos jornalistas (Vladimir, repórter da Rede Globo em Brasília, e Matheus, repórter da Folha de S.Paulo na sede do jornal), e avó de quatro netos, Míriam é hoje uma das mais importantes profissionais da imprensa brasileira. Acumula 24 prêmios de jornalismo, a terceira maior coleção de troféus no ranking nacional do site Jornalistas & Cia, logo atrás dos campeoníssimos José Hamilton Ribeiro, o mais premiado repórter brasileiro de todos os tempos, e Eliane Brum.
Em 2005, Míriam tornou-se a primeira jornalista brasileira a receber o Prêmio Maria Moors Cabot, patrocinado pela prestigiosa Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia (EUA), uma das mais importantes do mundo. Em 2012, Míriam produziu para a GloboNews um programa especial de 50 minutos, A história inacabada, com um devastador relato sobre o sequestro, tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva. O trabalho lhe deu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Existe uma maneira simples para definir a qualidade do jornalismo e a essência da conduta profissional de Míriam Leitão. Veja e reveja os dois programas que ela conduziu com brilho e coragem para a GloboNews. Aquele sobre a história inacabada do desaparecido Rubens Paiva, este sobre o desempenho do irresoluto Celso Amorim. O ex-deputado e o atual ministro são, por razões opostas, o verso e o reverso de um mesmo país, ainda atolado no medo endêmico e no cinismo contagioso que rebaixa o debate sobre nosso passado recente.
As perguntas de Míriam e as respostas de Amorim provam, na telinha da GloboNews, que ainda existem jibóias que se enroscam na mentira e jacarés que tentam atemorizar a verdade. O didático enfrentamento na TV entre a repórter e o ministro deixou claro, para os que querem ver, quem enfrenta a jiboia e quem instiga os jacarés.
O inferno das duas Míriam: a jornalista e a jibóia
Três anos atrás, sem contar nada ao marido e aos filhos, Míriam Leitão fez uma furtiva viagem de volta ao passado e ao inferno de sua juventude.
Saiu do Rio de Janeiro e uma hora depois desembarcou em Vitória. Pegou um carro, atravessou a Terceira Ponte, que liga a capital à cidade de Vila Velha, do outro lado da baía, e seguiu em direção a um dos principais pontos turísticos do Estado: o morro da Penha, uma elevação de 150 metros de onde se admira uma bela paisagem. No alto está o velho Convento da Penha, com uma história de 454 anos. Ao pé do morro está outro monumento: o Forte de Piratininga, ali plantado em meados do século 16.
Forte de Piratininga, quartel do Exército, porão de tortura de Miriam Leitão
Míriam não fazia um repentino programa de turista. Era uma dorida viagem interior ao cenário dos piores momentos que a jornalista passou em sua vida. “Quando o país começou a discutir a criação da Comissão da Verdade, por volta de 2011, decidi voltar lá. Eu quis fazer minha viagem pessoal, um retorno particular à minha história”, explica Míriam, no emocionado desabafo que faz pela primeira vez, quatro décadas após o inferno que amargou naquele cenário hoje encantador. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, o forte lá embaixo abriga um batalhão de infantaria subordinado ao Comando Militar do Leste (antigo I Exército), no Rio de Janeiro. A construção mais antiga, redonda [na foto, no alto à esquerda], é o prédio histórico da Fortaleza São Francisco Xavier de Piratininga, reformado no século 17. Foi ali que a Míriam quase adolescente de 1972, uma menina grávida de 19 anos, desceu ao submundo da repressão desatinada que marcava o auge da violência do governo mais truculento da ditadura, o do general Emílio Garrastazú Médici.
No início do século 20, a unidade ainda se chamava 3º Batalhão de Caçadores. Em setembro de 1972, três meses antes da prisão ali de Míriam Leitão, o lugar mudou de nome, passando a chamar-se 38º Batalhão de Infantaria. Entre os 707 processos políticos vasculhados no Superior Tribunal Militar pelo projeto Brasil: Nunca Mais, seis deles procedem do único quartel do Exército baseado em solo capixaba, oriundos do belo forte de Vila Velha. Neles, constam 46 denúncias de torturas consumadas no antigo 3º Batalhão de Caçadores. Outros 13 casos de torturas envolvem o atual 38º Batalhão de Infantaria. Todos se referem ao ano de 1972. Um deles é o de Míriam.
Foi lá que Míriam enfrentou a danação de um nome que resumia como ninguém a truculência do regime: o coronel Paulo Malhães, o temido “Dr. Pablo” do DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita. Ao ver na TV o velho torturador de 76 anos depondo para a Comissão da Verdade, cinco meses atrás, Míriam chegou a duvidar que fosse o mesmo e fogoso oficial de 34 anos e cabeleira negra e farta que comandou seu interrogatório. Mas ela recorda bem que os outros militares o chamavam de “Dr. Pablo”, o codinome que Malhães usava no DOI-CODI. Existe outra forte coincidência a confirmar a identidade do doutor com o coronel. Malhães veio do Rio trazendo um acessório de tortura que o tornou inconfundível na mitologia da repressão, pelo inusitado da escolha: uma cobra.
Na verdade, uma jiboia que Malhães trouxe do Araguaia e casualmente apelidou de Míriam. Talvez para assustar ainda mais suas vítimas, o coronel dizia que a cobra media seis metros de comprimento. Um evidente exagero do “Dr. Pablo”, pois nem Míriam lembra de uma cobra tão grande. Jiboia dessa dimensão, com 6 metros e 120 kg de peso, só foi vista anos atrás no Camboja. Uma jiboia amazônica como Míriam é mais modesta, varia entre 2 e 3 metros e tem 50 kg de peso, ainda assim com tamanho suficiente para intimidar qualquer um.
Durante horas de um dia assustador a jiboia do “Dr. Pablo” foi a solitária companhia na sala onde Míriam Leitão esteve trancafiada no quartel. Quando voltou à vida, libertada três meses depois, a jovem franzina que só pesava 50 kg tinha perdido 11 kg no cativeiro, onde chegou com um mês de gravidez.
Para a visita agora a esse passado de terror, Míriam contou com a ajuda do ex-governador Paulo Hartung, que conhecia o comandante de 2011 da guarnição e facilitou o acesso da ex-presa. “Fui sozinha, não queria ninguém junto comigo. Era uma jornada só minha. Entrei e não precisei que ninguém me mostrasse o caminho. Era esquisito, não tenho bom senso de orientação, mas eu conhecia aquele quartel como a palma da minha mão. Percebi algumas reformas, paredes que não existem mais, escadas que mudaram de lugar, salas que foram modificadas. Não me permitiram ir a alguns lugares, mas o essencial estava na minha memória”, conta Míriam, hoje, com o tremor na voz que trai os demônios que assombraram aquele lugar. Ela posou para fotos junto à porta da cela onde ficou um tempo, tiradas pelo motorista que a acompanhava. E conseguiu voltar à sala grande onde passou a madrugada de horror com sua homônima jiboia. “O lugar agora é um anfiteatro, mas eu fui direto ao ponto onde me mantiveram de pé, nua, durante horas, antes e durante o tempo em que fiquei com a cobra. É uma imagem que não sai da minha cabeça. Ali eu fiz essa foto”, explica, abrindo pela primeira vez seu arquivo pessoal.
Míriam, em meio a tanto sofrimento, lembra de um paradoxo que vivia na época: “Minha cela ficava na fortaleza. Quando eu saía de lá à noite e era levada para outro local de tortura, eu a contornava e passava pela escadaria. Saía desse belo prédio circular, às margens da baía – e que hoje, por ironia, o Exército aluga para festas –, e era levada para a parte nova do quartel onde funcionavam algumas seções administrativas do quartel. Olhava aquele lugar lindo, lindo até hoje, o convento lá em cima, e pensava o quanto nada daquilo fazia sentido. Era uma beleza que contrastava com a violência daquele lugar. Eu não conseguia entender isso. Não entendia naquela época, não entendo até hoje”, diz Míriam, a voz embargada pela emoção da memória. Pela primeira vez, Míriam Leitão conta aqui como viveu, e sobreviveu, naquele lugar:
Ex-sargento deixou o Exército em 1985; depoimento trouxe informações sobre mortes e desaparecimentos, estrutura da repressão, financiamento privado para a Oban e Operação Condor.
A Comissão Nacional da Verdade ouviu hoje, durante 5 horas, o depoimento do ex-analista do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército em São Paulo (DOI-CODI/SP), Marival Chaves Dias do Canto. As informações prestadas por Chaves abriram várias linhas de investigação para a CNV e ele já se dispôs a ser ouvido novamente.
Chaves ingressou no Exército aos 18 anos, em 1965. Dois anos depois, ele já integrava a 2ª Companhia de Polícia do Exército e cursava a escola de sargentos, patente da qual deu baixa em 1985, no início da redemocratização.
“Passei dificuldades ao deixar o meio militar e partir para uma vida civil após tanto tempo, mas precisava deixar o Exército para ter a liberdade de contar o que sabia sem ser reprimido por isso”, afirmou Chaves, que levou sete anos para iniciar suas revelações, em 92.
Chaves afirma ter trabalhado apenas com análise de informações e que nunca participou diretamente de operações de prisão, tortura, morte e desaparecimento de opositores do regime.
INÍCIO DA REPRESSÃO – Segundo Chaves, foi na Polícia do Exército, em 1967, que despontou em São Paulo o processo de repressão às organizações da luta armada. “A Segunda Seção (S-2) do quartel-general do 2º Exército foi o braço operacional do grupo que deu início ao processo. Foi o braço armado e embrionário da repressão”, afirmou.
Na S-2 da P.E., Chaves já era subordinado ao oficial que o levou ao DOI-CODI, anos mais tarde, em 1973. Segundo Chaves, o primeiro centro de tortura em São Paulo, mantido pelo Exército, funcionou na 2ª Companhia de Polícia do Exército.
Foi nessa época que o DOPS e a Guarda Civil passaram a colaborar com os homens do Exército que atuavam na repressão, no que deu início à Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, formalizando a parceria entre os órgãos de repressão federais (Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal) e as forças estaduais, uma espécie de projeto-piloto que acabou se transformando no DOI-CODI.
Segundo Chaves, empresas e empresários simpatizantes do regime contribuíram diretamente com recursos financeiros e materiais para a repressão. “Carros novos eram fornecidos e um sítio foi emprestado para servir como locais de cárcere privado, tortura e morte. Antonio Carlos Bicalho Lana, por exemplo, foi torturado e morto no sítio de um empresário do ramo de transportes”, disse.
INDISCRIÇÕES – Chaves afirma que lia, analisava e produzia documentos, informes e relatórios de informação. Muitas das informações que ele possui das operações clandestinas de sequestro, cárcere privado, tortura e morte foram obtidas por ele diretamente de agentes que participaram dessas ações e cometiam “notórias indiscrições”.
Entretanto, devido à natureza de sua atividade, Chaves teve a oportunidade de ouvir comandos fatais. Foi também através de uma “indiscrição”, ouvida de um agente da repressão em Fortaleza, que o agente soube que a morte do sargento Onofre Pinto, ocorrida no massacre de Medianeira, no Paraná, em julho de 1974, foi decidida após consulta ao Centro de Informações do Exército.
Parte dos agentes queria converter Onofre num “cachorro” (agente infiltrado), mas o general Milton Tavares de Souza, chefe do Centro de Informações do Exército no Governo Médici, negou a proposta. O general teria dito que a morte de Onofre, que abandonou o Exército para se juntar à Lamarca, serviria de exemplo. Segundo Chaves, a operação começou na Argentina e contou com a cooperação da inteligência de outros países. “Só depois compreendi que era uma ação da Operação Condor”, afirmou.
Além dos casos mencionados, Chaves indicou nomes de pessoas que podem contribuir com informações para esclarecer os fatos. “Além de ser uma visão rara das entranhas da repressão, o depoimento de Chaves abre uma série de novas linhas de investigação”, afirmou o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles. Também participou da oitiva a advogada Rosa Cardoso, membro da Comissão, e cinco assessores da CNV.
Enquanto a propaganda da ditadura militar, utilizando-se de um aparato midiático, espalhava o clima de “Brasil grande”, principalmente durante o governo de Médici (1969-1974), era montada uma máquina repressiva sobre a sociedade. Dessa forma, existia um tripé formado por vigilância, censura e repressão, solidificado por uma legislação como a Lei de Segurança Nacional, Atos Institucionais e a Constituição outorgada em 1967. No Brasil, a censura foi intensa, embora não tenha impossibilitado uma ampla produção contra o governo militar, que perseguiu amplamente a criação artística e limitou a circulação de opiniões.
Em 1968, estudantes brasileiros intensificaram suas ações contra a ditadura militar. Nesse cenário, em um protesto ocorrido no restaurante Calabouço no Rio de Janeiro, o estudante de 18 anos Edson Luís foi morto pela repressão policial. Dessa forma, milhares de pessoas compareceram no seu enterro e uma onda de protestos posteriores foi articulada, sendo o mais famoso e considerada a maior manifestação contra a ditadura militar, a Passeata dos Cem Mil. Um ato contra a ditadura que contou com a participação de muitos estudantes, políticos, intelectuais, professores e artistas como o compositor Chico Buarque de Holanda.
Em julho de 1969, foi criada no Brasil a “Operação Bandeirante” que agiu em São Paulo, perseguindo e torturando os militantes considerados “subversivos”. O epicentro da repressão entre 1969 e 1973 eram os guerrilheiros e suas organizações. Inspirado no modelo da OBAN foi criado em 1970, a sigla mais terrível da ditadura militar: o sistema DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Era a institucionalização da repressão do Estado com prisões e mortes clandestinas.
Os DOI-codis eram centros de captura e interrogatório militar em que a repressão com base na tortura superava quaisquer limites jurídicos. A tortura passou, portanto, a adquirir um sentido de sistema estruturado no aparelho civil e militar do Estado. Como assinala Napolitano (2016), adquirindo facetas legais e ilegais, com procedimentos de repressão como interrogatórios à base de violência, execuções e imputação de culpa, com base na Lei de Segurança Nacional.
Todavia, a tortura não se mostrava apenas como uma estratégia para obter informações, mas como uma atrocidade que poderia “destruir a subjetividade do inimigo”. Os métodos usados eram capazes de confundir e causar tamanho receio no indivíduo, a fim de romper suas crenças e ideais de uma sociedade mais justa. O exílio e a prisão provocavam uma autocrítica acerca da mudança de estratégia de luta, mas a tortura é tão poderosa que pode vir a destruir a subjetividade do sujeito. “A tortura invade esta subjetividade de tão plena de certezas e de superioridade moral para instaurar a dor física extrema e, a partir dela, a desagregação mental, o colapso do sujeito e o trauma do indizível” (NAPOLITANO, 2016, p. 140).
Os repressores também utilizavam a estratégia do desaparecimento de militantes políticos contrários ao regime que intensificava o trauma durante esse passado repressivo. Sem o corpo não há a vivência do luto e a ressignificação da dor, portanto, o ciclo da memória fica incompleto. Uma prática de atrocidade que marca as ditaduras na América Latina é a “eterna ausência presença do desaparecido”, ou seja, a dor de familiares de não poderem vivenciar o luto de seus parentes desaparecidos durante as ditaduras nesses países.
Nesse ambiente de radicalização, alguns grupos da oposição usaram como estratégia a luta armada, coma guerrilha, praticando ações como assaltos a banco para obter recursos para a luta contra a ditadura e sequestros de diplomatas, como o embaixador norte-americano Charles B. Elbrick que foi sequestrado e teve como resgate a libertação de 15 presos políticos. Com essas práticas, o governo aumentava a repressão. Assim um dos principais líderes guerrilheiros, Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi assassinado em 1969 e Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), refugiou-se no interior da Bahia, onde depois de dois anos foi capturado e morto. Também existia uma forma de guerrilha rural no Araguaia, região entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins. Era um grupo de 69 comunistas que se instalava naquela região, a fim de preparar os camponeses para uma luta contra governo militar. Eles foram descobertos e massacrados, em 1972, com 20 mil homens enviados para combater a Guerrilha do Araguaia.
Esse trabalho tem o objetivo de fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Maria Amélia Teles e Criméia Almeida, ambas são irmãs. Elas foram integrantes do Partido Comunista do Brasil – PCdoB, lutaram na guerrilha do Araguaia, foram presas e torturadas na Operação Bandeirantes – Obanno período da ditadura militar no Brasil.
Para esse trabalho nos deteremos nas fontes audiovisuais que possuem o formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento, ambos produzidos em 2011.
Essas mulheres narram a partir de suas experiências as dores, rancores, ressentimentos, e as consequências que essas prisões e torturas tiveram nas suas vidas e de seus filhos. Nesse sentido propomos pensar as torturas as quais foram submetidas, e os traumas acarretados nessas mulheres.
Na última década da ditadura militar no Brasil, muitas vítimas testemunhas começaram a emergir com o objetivo de narrarem as suas histórias ou a de familiares, companheiros e amigos que haviam sido torturados, presos, mortos, exilados ou desaparecido durante esse período.
Assim, os discursos dessas vítimas-testemunhas eram repletos, de suas duras experiências naqueles dias, as quais ainda estavam guardadas vivamente em suas memórias. Logo, com o fim da ditadura militar, explodiu uma gama enorme de relatos que buscavam (re)
Esses crimes e vários tipos de violências só foram possíveis de serem revelados pelo fato desses eventos traumáticos terem permanecido em suas memórias. E foi através do ato de lembrar e narrar que as experiências dessas pessoas puderam ser contadas, logo, na busca de não esquecer é que muitas experiências traumáticas foram narradas através de vários formatos de filmes.
A exemplo, dos depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011. A partir do ato de testemunhar realizado por Amélia Teles e Criméia Almeida, e ao falarem das torturas sofridas, algo que marcou não só as suas vidas, como também, a de seus filhos podemos perceber os mais variados tipos de sentimentos que perpassam os discursos desses sujeitos, como trauma, ressentimentos, silêncios, dor, luto e reparação do passado.
Os sujeitos que revelaram esses crimes foram aqueles que participaram ativamente ou passivamente da luta política, como também, por pessoas que pararam para ouvir o testemunho de um familiar, amigo e companheiro. Assim, vários sujeitos começaram a narrar suas histórias a partir das suas experiências. Portanto, o testemunho só é possível de ser construído através da experiência, tendo o sujeito visto, ouvido ou passado por aquele momento. “Os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a um florescimento de discursos testemunhais [...]”. (SARLO, 2007: 46).
Os discursos que emergem nas fontes audiovisuais elaboradas desde o final desse período ditatorial, giram em torno de vários elementos, entre eles estão a segundo Jeanne Gagnebin a “memória traumática”, “[...] gênero tristemente recorrente do século XX [...]” (BRESCIANI E NAXARA, (Org.), 2004: 86).
Essas “memórias traumáticas” são compostas dos traumas nunca superados, dos ressentimentos, da incerteza quanto achar algum familiar ou amigo vivo, a luta em mostrar para a sociedade os crimes que haviam ocorrido no Brasil, às lembranças de sofrimentos que podem ou não serem esquecidas, a luta por uma reparação do passado e justiça.
A experiência do choque acarreta o trauma e possibilita que ele seja imposto nas pessoas. Essas experiências foram impostas aos ex-militantes políticos, a exemplo de Amélia
Teles e Criméia Almeida a partir de prisões e muitas sessões de torturas, em que muitos outros companheiros de luta política foram a óbito, ou estão desaparecidos.
Logo é a partir do trauma que a “memória traumática” é construída, a qual pode levar os sujeitos a silenciarem e buscarem o esquecimento, ou pode também servi para lutarem contra o esquecimento, utilizando essa memória em favorecimento das pessoas que sofreram como foi o caso dos presos e desaparecidos políticos.
A experiência do trauma para essas mulheres serviu não para silenciarem, mas para lutarem contra todos os crimes e torturas que sofreram e todas as torturas psicológicas que viram os filhos sofrerem, a exemplo de Amélia Teles e seu esposo César Teles. Foram submetidas a muitas dessas experiências dentro da Operação Bandeirantes – Oban, “Sua missão consistia em “identificar”, localizar e capturar os elementos integrantes dos grupos subversivos..., com a finalidade de destruir ou pelo menos neutralizar as organizações a que pertençam”. (JOFFLY, 2013: 42).
Nesse sentido esse trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Amélia Teles e Criméia Almeida. A partir de fontes audiovisuais em formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011 para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução.
Assim propomos pensar além da estrutura fílmica com seus variados elementos que compõem a narrativa, as experiências traumáticas vivenciadas por essas duas mulheres vítimas-testemunhas da ditadura militar no Brasil, como suas dores, ressentimentos, rancores, os traumas e, buscarmos perceber os tipos de torturas, as quais foram submetidas, e as consequências que as torturas e prisões acarretaram nas suas vidas e na de seus filhos, e como isso afetou as suas vidas.
As Vítimas-Testemunhas como narradoras das suas histórias
Os depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, foram retirados do Youtube e são apenas dois exemplos dos vários que foram produzidos para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução. Produzida e transmitida pela rede de televisão SBT, de 05 de abril de 2011 a 13 de janeiro de 2012, na faixa de 22 horas. Foi escrita por Tiago Santiago e teve em sua direção Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro.
Essa produção foi muito representativa na teledramaturgia brasileira do País, pois teve como enredo central a ditadura militar abordando o período que começa na década de 1960 e vai até meados de 1980. Ela foi ambientada no Rio de Janeiro e em São Paulo, a trama inicia representando o Golpe Militar de 1964, reconhecido pelos militares como a “revolução” de 31de março de 1964.
Dentro desse recorte temporal eles buscaram retratar a história de pessoas que foram a favor, como também aquelas que foram contra a ditadura. Dentre os temas abordados estão os movimentos sociais e políticos, a luta armada, os ideais de democracia e liberdade tão almejados por muitos militantes políticos na época, as mudanças comportamentais, a música, moda, a chegada da televisão, ou seja, a cultura em seus diversos aspectos nesse período.
No dia 09 de março de 2011 a emissora de televisão SBT, exibiu durante cinco minutos, cenas da trama, fazendo um resumo da história da telenovela. Essas cenas foram vistas na época como uma crítica a Rede Globo de televisão, em que foi acusada em parte de ter sido favorecida pela ditadura militar, e de ter apoiado os militares.
A vinheta de abertura mostrava estudantes, jornalistas, artistas, políticos, dentre outros, desaparecendo em cena, fazendo assim uma alusão ao que ocorreu na ditadura militar, em que muitas pessoas com essas profissões e escolhas políticas foram presas, exiladas, mortas e desaparecidas. Essa abertura foi embalada ao som de Roda Viva, autoria de Chico Buarque, pela banda MPB-4.
O primeiro depoimento gravado foi o de José Dirceu (ex-deputado do PT). Este iniciou sua militância política em movimentos estudantis em1965, foi preso em 1968, Ibiúna – SP, durante uma tentativa de realizar o Congresso da União Estadual dos Estudantes – UNE.
Em 1969, as organizações guerrilheiras Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8 e a Ação Libertadora Nacional – ALN, sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e em troca, exigiram que uma lista de prisioneiros políticos fossem libertados, entre eles estava José Dirceu, os presos foram para o México, de lá seguiram caminho para Cuba e Paris, José Dirceu se exilou em Cuba, voltou para o Brasil definitivamente em 1975, vivendo clandestinamente por um bom tempo.
Seu depoimento durou cerca de 70 minutos, mas somente alguns trechos foram transmitidos ao final de alguns capítulos da telenovela. Todos os depoimentos que foram transmitidos não ultrapassaram o tempo de cinco minutos, sendo assim, as falas eram editadas pela produção. Muitos ex-militantes políticos não deram seus depoimentos, por conta das falas serem editadas e pelo fato de terem receio de que suas falas fossem mudadas na edição do vídeo.
Os depoimentos possuem uma construção narrativa, simples e parecidas, no qual os depoentes foram colocados em um estúdio, sentados, para narrarem as suas histórias. A câmera mostra boa parte das vezes, os depoentes de cintura pra cima, ou seja, apenas meio corpo, e foca nos movimentos que esses sujeitos fazem com as mãos, no rosto, principalmente quando eles começam a falar de momentos traumáticos que vivenciaram. O tempo de duração é pequeno, mas é o suficiente para mostrar através desses testemunhos os diversos tipos de sofrimentos e violências vividos por essas vítimas-testemunhas.
No pano de fundo aparece na maioria desses depoimentos uma imagem colorida com o nome tortura, matérias de jornais, dentre outros elementos, que buscam retratar o período da ditadura militar, mas em Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, tem como imagem de fundo, prédios em preto e branco.
As imagens dos depoimentos são coloridas, e as vítimas-testemunhas logo nos primeiros segundos já começam a narrar as suas histórias. No momento em que elas começam a falar das prisões, das torturas sofridas, dos vários tipos de violências é introduzida como trilha sonora a música Para Não Dizer que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré, mas passa apenas a melodia.
É importante ressaltar que o espaço para a gravação dos depoimentos e para a sua transmissão era pra todos aqueles que se sentissem prejudicados pela ditadura militar, como também, para aqueles que eram a favor dela, ou seja, o espaço estava aberto para qualquer segmento da sociedade.
A partir de julho de 2011, os depoimentos deixaram de ser transmitidos, segundo a equipe da telenovela, havia somente depoimentos de pessoas que foram contra a ditadura militar, e que haviam sofrido torturas, prisões e exílios nesse período. Podemos notar que havia sim depoimentos de pessoas que foram a favor da ditadura, só que pouquíssimos.
O depoimento Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, foi exibido no dia da estréia da telenovela. Ela e Criméia Almeida são irmãs e foram presas no ano de 1972 e torturadas na Operação Bandeirantes – Oban. Ambas eram integrantes do Partido Comunista do Brasil – PCdoB e lutaram, na Guerrilha do Araguaia. O fim da guerrilha se deu com o resultado que favoreceu os militares “resultando mortos mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão que se abateu sobre a população de toda a região”. (ARNS, 1985: 99).
Maria Amélia Teles foi presa juntamente com seu marido César Augusto Teles e mais um companheiro de militância Carlos Nicolau Danielli, enquanto eles eram torturados, os policias foram buscar seus dois filhos Edson Teles e Janaina Teles, ambos tinham na época 4 e 5 anos de idade respectivamente, e sua irmã Criméia Almeida que estava grávida de seis meses, e mesmo assim sofreu torturas, principalmente as psicológicas, como também, as crianças. Lembrando que “As capturas eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita...” (ARNS, 1985: 77), muito menos as crianças filhas e filhos de militantes políticos.
No início do seu depoimento Maria Amélia Teles fala de sua prisão e das torturas sofridas, ela diz:
Quando eu fui presa né, ou fomos presos né, porque era eu, meu companheiro e mais um dirigente do partido comunista, nos fomos e logo encaminhados pras salas de tortura, sempre nua eles arrancavam sua roupa o tempo todo né, alias eu tinha sido torturada a noite toda nua, e eu estava urinada, com vômito, eu tinha levado choque no ânus, vagina, nos seios, no umbigo, nos ouvidos, dentro da boca, eu só não levei choque dento do nariz e dentro dos olhos. (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Falar sobre as torturas sofridas e sua prisão ainda não é algo fácil para ela, podemos perceber os vários tipos de sentimentos desencadeados ao começar a falar de suas “memórias traumáticas”, como o trauma e o sofrimento que aquela experiência acarretou em sua vida. Através de sua fala, entre pausas e repetições de expressões, vemos que falar sobre esses acontecimentos traumáticos ainda é algo sensível e que meche com muitas emoções, com as dores silenciadas, como também, percebe-se o anseio por uma reparação do passado e restituição de direitos.
Movimento Guerrilheiro que se deu na região Amazônica, ao longo do Rio Araguaia, em finais da década de 1960 e início de 1970. Movimento criado pelo PCdoB Partido Comunista Brasileiro, com o objetivo de fomentar uma luta revolucionária, mas foi combatido pelas forças armadas.
Refletindo um pouco mais sobre esse depoimento, podemos pensar nas inúmeras formas de torturas que foram colocadas em prática pelos órgãos da repressão, a exemplo, do choque elétrico, da cadeira de dragão, dentre os quais Maria Amélia Teles foi submetida, o afogamento, os insetos e animais, o pau-de-arara, dentre outros. Esses vários tipos de torturas são mostrados na obra Brasil: Nunca Mais, a partir de depoimentos retirados de processos políticos, de pessoas que haviam sido presas e torturadas no período da ditadura militar.
A obra Brasil: Nunca Mais, foi produto de uma pesquisa feita por um pequeno grupo de especialistas, que teve como liderança o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns da Diocese de São Paulo. Essa pesquisa foi iniciada em 1979, dentro da descrição e do sigilo necessário, pois, a abertura política ainda estava sendo pensada.
Suas principais fontes para esse estudo foram documentos produzidos pelas próprias autoridades da época, os quais conseguiram as cópias de 707 processos políticos completos e outros incompletos, todos tinham transitado pela Justiça Militar Brasileira, e alguns passaram também pelo Superior Tribunal Militar – STM, entre o período de 1964 a 1979.
A pesquisa durou cinco anos, e as pessoas que fizeram parte da equipe não revelaram seus nomes, pois tinham receio de serem presas ou torturadas. Foi a partir dessa pesquisa que houve a produção do livro Brasil: Nunca Mais, o qual foi e ainda é de muita importância para entendermos um pouco das experiências traumáticas vivenciadas por tantas vítimas da ditadura militar no Brasil.
Retomando o elemento da tortura, podemos pensar que a tortura não era legalizada dentro da lei, a Lei de Segurança Nacionalcolocava a pena de morte para alguns casos específicos, mas não legalizava a tortura, nem o assassinato e nem as invasões a domicílio, por isso que em certa medida tentaram camuflar e esconder várias mortes e desaparecimentos de pessoas. Logo, a ideia era desestruturar a personalidade do preso, a tortura existe para anular o inimigo, e ela se sofisticou com a criação dos Doi-Codi.
Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam
Cadeira elétrica revestida de zinco ligada a terminais elétricos, na qual os presos eram sentados nus, ao ser ligada na energia o zinco transmitia choques elétricos em todo o corpo, e em alguns casos também colocavam um balde de metal na cabeça do preso, para que também essa parte do corpo sofresse choques.
Barra de ferro que era atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a barra era colocada entre duas mesas, e o corpo ficava pendurado a 20 ou 30 centímetros do solo.
Essa lei foi criada em 1967, a qual amparava o Conselho de Segurança Nacional, tornava qualquer cidadão um suspeito ou vigilante, diante de crimes políticos.
Sobre relações efetivas de parentesco
Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos. (ARNS, 1985: 43).
Os militares que torturam Maria Amélia Teles, a qual sofreu vários tipos de torturas físicas, como também, psicológicas, buscaram ir ao íntimo da suas emoções quando sequestraram seus dois filhos e sua irmã Criméia Almeida que na época estava grávida, e os levaram para a Oban. Os torturadores levaram as crianças para verem seus pais após terem sido torturados, a sua mãe ainda estava na cadeira de dragão quando eles foram levados a sala de tortura para vê-la.
[...] eu estava com na na cadeira de dragão..., e então eu estava bastante machucada e cheia de hematomas, e minha filha quando entraram dentro do operação, bobo botaram dentro da operação, meu filho com cinco anos minha filha com tha, a minha filha com cinco anos e o meu filho com quatro ano, passaram na sala pra ver o pai e depois trouxeram na minha, na sala onde eu tava sendo interrogada e torturada pra que eles me vissem, então ela me perguntou: – Por que você ta azul e o pai ta verde?, E de repente eu fui olhar po meu corpo e eu me dei conta que eu tava da cor dessa calça aqui, eu tava roxa toda roxa... (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Em sua fala vemos que as torturas psicológicas eram muito fortes, e essas marcaram não só a vida dos adultos, mas também a daquelas crianças, que viram seus pais muitos machucados, e ainda ficaram por algum tempo em uma casa da repressão que até hoje não descobriram qual foi. Segundo Amélia Teles seus filhos tiveram reflexos dessas torturas em suas vidas, ainda crianças os problemas já começaram a aparecer, pois ela diz que seu filho voltou a ser bebê, e a menina amadureceu cedo demais.
Sua irmã Criméia Almeida que foi presa grávida de seis meses, sofreu muitas torturas psicológicas, alguns militares ameaçavam dizendo que se o seu bebê nascesse de cor branca e fosse do sexo masculino eles levariam para criá-lo, e segundo ela, ao nascer seu filho tinha os olhos azuis e a cor branca. Essa foi outra criança que já na barriga sofreu com as torturas realizadas em sua mãe. “Meu filho tinha soluços na barriga, meu filho tem soluços até hoje com 37 anos, qualquer tensão ela se manifesta com soluços”. (SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).
Ao nascer os militares não deixava que ela o amamentasse, levavam o bebê algumas vezes e depois de algum tempo o traziam para a mãe, e sempre chegava doente. Foi muito complicado pra ela reaver o bebê, até quando os militares entregaram a criança para a mãe de Criméia Almeida. Através de alguns trechos das falas dessas duas mulheres, refletimos sobre como esse período de repressão e autoritarismo militar, desencadeou muita dor, traumas e sofrimentos na vida de tantas famílias, e na vida de tantas crianças, que muitas nem sabiam o que estava se passando naquele momento.
Pensar em todas as arbitrariedades cometidas pelos órgãos da repressão, como os vários tipos de crimes e violências, nos fazem questionar até que ponto os militares desrespeitaram todos os direitos humanos, os quais são assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual assegura que os seres humanos não podem ser torturados. Eles feriram a própria ética militar e implantaram as suas próprias regras, tudo isso para os militares, em nome de uma aniquilação do “terrorismo” que as “esquerdas” estavam realizando.
Considerações Finais
Não se consolida uma democracia com cadáveres em sepulto e nós temos muitos. (Maria Amélia, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Pra minha família e nós que perdemos essa guerra, que perdemos nossos familiares, a gente tá sempre disponível pra contar essa história, porque nós não nos envergonhamos. (Crimeia Almeida, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).
A primeira fala coloca em cheque o regime democrático que foi instaurado no Brasil a partir de meados da década de 1980. Para a depoente só é possível consolidar uma democracia, quando as histórias das vítimas que morreram e também das que ficaram vivas forem expostas e forem reparadas e punidas, mas isso é algo problemático, pois as histórias estão sendo narradas, mas as punições e reparações ainda são tímidas.
Esses “cadáveres em sepulto” se referem aos que não sobreviveram, mas são também os ressentimentos e traumas, que ainda estão guardados na memória daqueles que sobreviveram a esses acontecimentos traumáticos, que nem o tempo e os silêncios foram capazes de apagá-los, logo luta-se pela reparação desses “cadáveres”, que não querem ser esquecidos na história.
[...] os grandes crimes do século XX, situados nos limites da representação, erigem- se em nome de todos os acontecimentos que deixaram sua impressão traumática nos corações e nos corpos: protestam que foram e, nessa condição, pedem para ser ditos, narrados, compreendidos. (RICOUER, 2007: 505).
As vítimas precisaram assumir seus papeis, para mostrarem os “cadáveres em sepulto”, e para protestarem pelas marcas que haviam abalado as suas vidas. Mas há também, as marcas do corpo, e essas foram impostas através das torturas, as quais se tornaram uma das maiores impulsionadoras dos traumas e ressentimentos, falar de ambos não foi algo fácil, mas foi essencial para se recuperar os direitos políticos e jurídicos.
A segunda fala aborda justamente as perdas, essas se dão pelas mortes de familiares e companheiros de luta política, como pela perda da luta travada contra a ditadura militar, e segundo o depoimento de Crimeia Almeida essas perdas precisam ser protestadas e punidas, por isso que há todo um trabalho de memória, em volta desses acontecimentos traumáticos.
É interessante notar que elas não se envergonham de serem consideradas vítimas, e nem de exporem as experiências traumáticas que vivenciaram. Logo contar, essas histórias é uma maneira de mostrar esses “cadáveres” para a sociedade. E dizer a quem quiser ouvir, que eles não foram esquecidos, eles estão presentes, e vão continuar por muito tempo.
Os relatos dessas vítimas-testemunhas narram os vários tipos de tortura tanto físicas como psicológicas, as prisões, as solturas, como também, falam do fato de não saberem onde seus filhos estavam, de ouvirem os policiais dizendo que não ia devolvê-los, ou trazendo eles muito doentes. E das sequelas que permaneceram ao longo do tempo, como é o caso de Criméia Almeida, que ainda na barriga seu filho tinha soluços, não superando isso na fase adulta, tendo esse problema quando passa por momentos de tensão.
Essas vítimas narram as suas experiências “[...] chamamos experiência o que pode ser posto em relato, algo vivido que não só se sofre, mas se transmite. Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunha”. (SARLO, 2007: 26). Apesar das dores e sofrimentos esses crimes não foram capazes de anular o relato, o qual consolidou-se no testemunho.
Assim, o sujeito e a experiência estão interligados, pois o segundo precisa do primeiro para existir. O testemunho só foi capaz de se consolidar pelo fato da experiência ter existido, e para que ela seja mostrada é preciso haver o trabalho da narração, este se faz através da linguagem, a qual dar voz as experiências que estavam silenciadas.
Vemos assim, através desses depoimentos outro tipo de narrativa, aquela que é construída pela própria vítima, ou seja, ela começa a significar o seu passado, lançando o seu próprio olhar sobre ele. Antes o que era silenciado, pode ser restaurado e “ressuscitado”, que foi a memória como dever, mas também, como campo de conflito, esta última se dá pelo dilema entre os que ainda mantêm em suas lembranças os crimes de Estado, e aqueles que querem esquecer e passarem para uma nova etapa da história.
Segundo Beatriz Sarlo “Mas, antes de celebrar esse sujeito que voltou a vida, convém examinar os argumentos que decretaram sua morte, quando sua experiência e representação foram criticadas e declaradas impossíveis”. (2007: 30). Os silêncios e esquecimentos que foram impostos por muitos anos, reprimiam e recalcavam as experiências desses sujeitos. A Lei da Anistiaserviu em parte para instaurar o esquecimento sobre essas memórias e lembranças.
Suas experiências e memórias foram declaradas impossíveis e colocadas a prova, mas isso não impediu que esses sujeitos (re) surgissem, e restaurasse o discurso da “primeira pessoa”, este se tornou “matéria-prima”. Falar em “primeira-pessoa” foi essencial para conhecermos partes da história de nosso País, pois, através dessas narrativas podemos perceber em que tipo de governo a sociedade estava inserida e como tantas pessoas se tornaram vítimas dessa ditadura.
No século XXI, esses narradores já se auto-intitulam como vítimas da ditadura militar, e mostram através de seus depoimentos o porquê de poderem ser chamadas assim. Eles se designam assim, pelo fato de se darem conta que o que passaram feria até mesmos as normas pregadas pelos direitos humanos, que feriam as suas dignidades, e os seus sentimentos políticos e morais. Elas se deram conta que viveram atrocidades difíceis de serem narradas.
Logo o conceito de vítima, não é atribuído apenas aqueles que morreram nos “porões da ditadura”, mas também, aqueles que sobreviveram a tantas torturas, prisões e maus tratos. As próprias famílias buscam atribuir esse conceito aos entes que foram perdidos, mas também, buscam heroicizar esses sujeitos.
Os discursos dessas vítimas vão exalar seus ressentimentos, ódios, dores e traumas, e isso vai contribuir para uma restauração da esfera de direitos, que até então essas pessoas haviam perdido. Logo a memória se consolida no discurso testemunhal desses sujeitos como um dever moral, mas também, político e jurídico.
Lei de No 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistiava pessoas que haviam cometido crimes eleitorais, políticos, com direitos políticos suspensos, servidores e militares do poder judiciário e legislativo, pessoas vinculadas ao poder público, dentre outras, entre o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Referências ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petropólis: Vozes, 9o Ed., 1985.
BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res) sentimento: indagações sobre questão sensível. In: Memória e Esquecimento: Linguagens e Narrativas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, pp. 85-94.
JOFFILY, Mariana. Engrenagem. In: No centro da engrenagem os interrogatórios na operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013, pp. 38/97.
MATTOS, Vanessa. O Estado contra o povo: a atuação dos Esquadrões da morte em São Paulo (1968-1972). In: Esquadrões da morte e “limpeza social”: meios de implantação da violência do Estado. Mestrado em História. São Paulo: PUC, 2011, pp. 25/50.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain Françóis – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte,: UFMG, 2007.
Filmes
Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.
SBT Amor e Revolução Criméia Almeida – Depoimento 6. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.
EDSON E JANAÍNA TELES
Edson Teles e Janaína de Almeida Telessão ex-presos políticos e filhos dos antigos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, e César Augusto Teles. Ainda crianças, respectivamente com 4 e 5 anos, foram sequestrados pela Operação Bandeirante (Oban) e levados à prisão junto de seus pais, em dezembro de 1972.
Durante o período de detenção assistiram à mãe e ao pai serem vítimas de sistemáticas violações. Também presenciaram os dois sendo torturados pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi.
Hoje, Edson Teles é professor universitário. Docente do curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dedica parte de sua vida acadêmica ao estudo das ditaduras, dos direitos humanos, da memória política e de outros temas relacionados. Entre outras obras publicadas, organizou, com o filósofo Vladimir Safatle o livro“O que resta da ditadura: A exceção brasileira”.
Como o irmão, Janaína de Almeida Teles segue carreira acadêmica. É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Faz pesquisas sobre aparelhos repressivos de Estado, ditaduras na América Latina, mortos e desaparecidos políticos e outros temas correlatos. Também éautora e organizadora de livros sobre a ditadura, citados em diversas obras da literatura especializada nacional e internacional.
“A cultura da impunidade persiste e há uma prática da violência por parte do sistema de segurança pública que herdamos da ditadura. Até hoje ocorrem torturas nas delegacias, instituições de detenção de adolescentes, no sistema prisional.”, César Teles.
A jornalista Miriam Leitão publicou em seu blog em O Globo uma série de relatos em que juízes e advogados falam abertamente sobre torturas cometidas pela ditadura militar brasileira (1964-1985), inclusive cometidas contra mulheres grávidas.
Durante 10 anos as sessões do Superior Tribunal Militar (STM) foram gravadas, inclusive as secretas, as quais o historiador titular de História do Brasil da UFRJ, Carlos Fico, teve acesso.
São 10 mil horas de gravações.
“O Superior Tribunal Militar passou a gravar as sessões a partir de 1975, mesmo as secretas. Até 1985 são 10 mil horas. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso. Não conseguiu. Foi ao Supremo, que mandou liberar. O STM não obedeceu. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos. O plenário acompanhou a ministra. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Fernandes analisou apenas 54 sessões. Em 2017 consegui copiar a totalidade das sessões. Aprimorei o áudio e passei a ouvir”, explica o professor.
O general Rodrigo Octávio continua, no mesmo dia, a falar de torturas em grávidas.
“Lícia Lúcia Duarte da Silveira desejava acrescentar que quando esteve presa na Oban foi torturada, apesar de grávida, física e psicologicamente, tendo que presenciar as torturas infligidas a seu marido”.
Ouça aquitrechos das sessões que ocorreram entre 1975 e 1985.
Leia abaixo as transcrições publicadas por Miriam Leitão:
Transcrições
1) Voz do general Rodrigo Octávio, em 24/6/77. Apelação 41.048 (tempo do áudio: 3:48)
Tenham pacientes, isto me deu muito trabalho. Fato mais grave talvez suscita exame da presente apelação, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes à tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-Doi. Em síntese, os relatos são esses: José Roberto Monteiro, folha 419, que tem uma única declaração a fazer, com pesar, no sentido de deixar claro perante esse conselho que aqui negou muitas das suas afirmativas feitas durante a fase iniciária porque naquela ocasião fora torturado, o mesmo ocorrendo com a sua mulher, o qual inclusive sofreu um aborto no próprio Codi-Doi em virtude de choques elétricos em seu aparelho genital, fato ocorrido no dia 8 de abril de 1974.
De Nádia Lúcia do Nascimento, verso, folha 445: na verdade não participou de qualquer ação delituosa, nem mesmo estava ligada ao MR8, e que se por acaso for considerada responsável por aquilo que disse, pede que seja tomada em consideração o fato, como salientou, não aguentava mais a pressão à qual fora submetida e até mesmo coação. Deseja ainda esclarecer suas atitudes, pois estava grávida de três meses ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a acontecer no dia 7 de abril nas dependências da Oban. Licia Lucia Duarte da Silveira folhas 442 verso que desejava ainda acrescentar que quando esteve presa na Oban foi torturada apesar de grávida, física e psicologicamente, tendo inclusive que presenciar as torturas inflingidas a seu marido, razão porque se viu obrigada a assinar todo o interrogatório, sem reagir. Norma Sá Pereira, diz que foi seviciada no Doi durante um mês, tendo recebido ameaça de morte por parte de policiais. Flora Neide Pavanelli, testemunha, que sofreu maus-tratos físicos, testemunha, hein, tomando choques e ouvindo palavrões que ocorrem no Doi, que Nádia Lucia do Nascimento também recebeu maus-tratos quando esteve presa, que foi constatada pela depoente porque ambas estavam presas na mesma cela e que, segundo a depoente, na ocasião Nádia estava grávida.
Segundo a depoente, Nádia terminou perdendo o filho, abortando. Na defesa das salvaguardas dos direitos e garantias individuais, expresso no artigo 153, parágrafo 14 da emenda constitucional 69, como consequência não só de nossa evolução política, lastreada em secular vocação democrática e formação humanística, espírito cristão, com o compromisso assumido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado pela Assembleia das Nações Unidas, tais acusações, a meu ver, devem ser devidamente apuradas através de competente inquérito, determinado com base no inciso 21 do artigo 40, da lei judiciária militar, Decreto Lei 1003 de 69.
É preciso que se evidencia de maneira clara e insofismável que o governo, as Forças Armadas e os órgãos de segurança não podem responder pelo abuso e a ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem servindo a estrutura política e jurídica, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança criados na consecução dos objetivos revolucionários.
2) Voz do advogado Sobral Pinto, em 20/6/1977. Apelação 41.301 feita por Marco Antonio Tavares Coelho, que havia sido condenado a cinco anos
Os senhores ministros não acreditam na tortura. É pena que não possam acompanhar os processos como um advogado da minha categoria acompanha para ver como essa tortura se realiza permanentemente. E nesse processo senhores juízes há prova documental da tortura que sofreu Marco Antonio. Há um laudo firmado por médicos militares atestando essa tortura. O ilustre eminente advogado de Marco Antonio, doutor Mario Simas vai mostrar aos senhores ministros esse documento.
3) Voz do general Augusto Fragoso, em 9/6/1978. Apelação 41.593 (Tempo de áudio: 1:53)
Eu queria fazer uma ponderação, uma referência, que já tinha escrito aqui no início da sessão quando estava ausente o ministro Reinaldo e os primeiros advogados começaram a falar no Doi- Codi, Doi-Codi, Doi-Codi. De maneira que, eu como único representante do Exército na hora aqui presente, eu experimentei um grande constrangimento em ver essas organizações do Exército tão acusadas, e como mostrou o relator, elas não foram apuradas devidamente. De maneira que como foi um pronunciamento público, não vou ler agora pelo adiantar da hora, mas vou inserir na ata publicamente esta ponderação sobre as acusações ao Doi-Codi que vêm se repetindo. E eu, nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente ser recolher aos afazeres profissionais, como então recomendou no discurso de 31 de março o presidente da República. Não posso deixar assim passar em brancas nuvens essas acusações que foram feitas na tribuna contra esses órgãos do Exército. E sabemos que muitas delas são destituídas completamente de fundamento, mas algumas delas têm aparência de veracidade. Pelo menos aparência de veracidade. Vou fazer constar na ata relativamente a esse processo essa declaração. Depois o farei por escrito.
4) Voz do ministro togado Waldemar Torres da Costa, em 13/10/1976. Apelação 41.229. (Tempo de áudio: 3:50)
Eu não ponho em dúvidas, senhores ministros, e aqui eu começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que estão realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e as vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente. Mas eu fico nessa preocupação de atribuir o que constituiria uma desmoralização a prática de tortura por oficiais do Exército que estão apurando crimes contra a segurança nacional. Eu não me recuso a me convencer dessas torturas, mas exijo que essa torturas tragam uma prova e não fiquem apenas no terreno da alegação. Reconheço, senhores ministros, que também é difícil o indivíduo provar as torturas pela maneira como é feita. Ele próprio não conhece, não tem elementos para a individualizar e ele sofre, presume-se que sofre, as torturas.
Mas como juiz a proferir um voto no tribunal e com responsabilidade de afirmar através de um acórdão que houve torturas, criando-se a obrigação de propor aos meus pares apurar essas violências. Porque como juiz eu não posso reconhecer torturas individualizadas e comprovadas sem que consequentemente eu determine, eu vote, no sentido de ser apurado, porque isso é crime também. Então, nesse inquérito que ensejam que eu examine em primeira mão a acusação do Dalton Godinho, cuja as declarações são longas, me parece que com 14 folhas relatando com pormenores. E é por causa desses pormenores essas particulares é que me custa a acreditar que tenha sido um trabalho, uma farsa, da autoridade investigante. Porque dentro da lógica, todos nós lemos uma determinada confissão no inquérito, e encontramos dentro da lógica a aceitação ou não de tais declarações.
5) Voz do Almirante Julio de Sá Bierrenbach, em 19/10/1976. Apelação 41.264. (Tempo do áudio 4:34)
Como ministro do STM, entretanto, nessa elevada instância, onde não temos contato com os indiciados, antes de julgar os homens, devemos julgar os papéis, isto é, a procedência dos autos do processo. E é esta é a nossa maior dificuldade. Muito se tem falado em direitos humanos. Com profunda tristeza tenho tomado conhecimento da repercussão no exterior de fatos que se passam no Brasil. Fatos esses que também ocorrem em todos os demais países civilizados do mundo. Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente as agências telegráficas e os correspondentes os jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens. Evidentemente essa não é a realidade, o brasileiro de um modo geral não admite a violência. Por isso mesmo há tremenda exploração quando surge um desses lamentáveis casos. É possível que isso venha a ocorrer em torno da presente apelação em que sou revisor. Paciência. É o preço que pagaremos no esforço de por cobro aquilo que todos nós repudiamos. Devo lembrar, entretanto, para livrar qualquer mal-entendido que continuo intransigente no combate à subversão e a corrupção. Rendo minhas homenagens a todos os que participaram da Operação Bandeirantes em São Paulo ao fim da década de 60. Naquela oportunidade, tombaram em ação membros das Forças Armadas, da Polícia Civil e da Polícia Militar, mas a guerrilha urbana foi extinta. Morreram também subversivos, defendendo seus pontos de vista, mas também tombaram em ação. O que não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado. Senhores ministros, já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes. Longe de contribuírem para a elucidação dos delitos invalidam processos, trazendo para os tribunais a incerteza sobre o crime e a certeza sobre a violência. A ação nefasta de uns tantos policiais estende a toda a classe, sem dúvida, na grande maioria, honesta, útil e laboriosa, um manto de suspeita no modo de proceder. Essa ação sinistra de poucos é que extravasa além das nossas fronteiras repercutindo no exterior, como se todos nós fôssemos uns infratores dos direitos humanos, sei o que pensa o nosso preclaro presidente da República sobre o assunto. Tenho contatos com os oficiais generais das três forças Armadas que em sua totalidade deploram tais fatos. Diariamente vejo o cuidado com que vossas excelências examinam os processos em julgamento. É quase sistemática a pergunta: essas declarações foram prestadas em juízo ou na polícia? Também já se tornou um hábito as defesas apelarem, generalizando, que as declarações prestadas na polícia foram feitas sob maus tratos, dando a entender que nos organismos policiais não se salva mais ninguém. Se o Executivo e o Legislativo não se conformam com essas ocorrências, é claro que o Judiciário não as admite e nós, autoridades da organização judiciária militar, temos o dever de propugnar pela extinção desses cancros, as sevícias.
6) Voz do brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira. Sessão de 19/10/1977. (Tempo do áudio: 1:03)
Senhor presidente, senhores ministros, nós estamos discutindo o voto da turma. E eu desejava dar a minha opinião sobre esse voto e uma dúvida que eu tenho. Me impressionou muito os fundamentos do voto do relator, sobretudo na parte em que ele se refere ao fato de que nós não podemos receber aqui indiscriminadamente toda e qualquer suspeita de sevícia, sob pena de nós podermos comprometer aqueles que, de boa fé, com idealismo e patriotismo, se contrapõem à subversão e com isso matarmos e até esmorecer o entusiasmo com que essas forças anti subversivas têm agido no Brasil, no anonimato, no sacrifício, nas perdas de vida e em outras contribuições extraordinárias que não se reconhecem em determinadas horas.
7) Voz do ministro togado Amarílio Lopes Salgado, em 15/6/1976, Apelação:41.027 (Tempo do áudio: 2:33)
(Assaltos a bancos também eram julgados pelo STM mesmo quando eram crimes comuns, não políticos.)
Senhor presidente, recapitulando rapidamente, Documento de Folha 192, é um ofício firmado pelo diretor do presídio, e de Folha 203 é assinado pelo diretor da divisão jurídica. Abri inquérito contra esses dois, acho uma barbaridade. Apenas no meu acórdão se vossas excelências tiverem de acordo e revisor também. É o seguinte é que ele alega que para fazer essa confissão na polícia – ele assaltou dois bancos – mas eu esse ele não podia porque estava preso. “Eu tô preso, estava preso na Ilha Grande”. Faz uma diligência e vem isso aí. Vou dar uma cópia para o procurador geral porque esse moço apanhou um bocado, baixou hospital, e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele. Estou inteiramente com o ministro Rodrigo Octávio, às vezes discordo de sua excelência, quando é difícil apurar. Eles podem negar, mas que os nomes dos dois estão aí estão. É fulano e beltrano. Martelaram esse moço, daí a confissão dele. Em juízo, ele confessa que não podia “eu estava lá na Ilha Grande” no dia 26. No dia 30 eu fugi e assaltei o banco tal no dia 31 e no dia 4 assaltei outro banco, mas no dia 26 não. As declarações dele são longas, acho que no acórdão devia ser feito menção a isso.
8) Voz do Brigadeiro Faber Cintra, em 15/2/1978. Apelação: 41.648 (tempo do áudio: 5:47)
As lesões sofridas, caso acontecessem, seriam facilmente constatadas através do exame de corpo e delito ou mesmo laudo médico particular, posto que nenhum dos acusados foi mantido preso por prazo superior ao previsto em lei. As alegações dos acusados em juízo, no sentido de que sofreram coações morais e físicas, não podem ser consideradas, pois desprovidas de qualquer elemento probatório por mais simplório que fosse um laudo médico particular que à época constatasse qualquer lesão, mesmo superficial do acusado.
Reforça o nosso argumento o fato de que os acusados, na ânsia de elidir as confissões feitas, prestam depoimentos os mais dispares possíveis senão vejamos: Orlando Magalhães e Francisco Carcará afirmam que foram bem tratados na Vila Militar, local de suas prisões posteriores. Ana Maria Mandim afirma que sofreu coações na Vila Militar, ao tempo que acrescenta que pôde ver seu pai após dez dias de presa. Francisco Carcará que não pode fazer exame de corpo de delito, diz ele, porque esteve preso incomunicável. Esse acusado ficou preso 40 dias. Sergio (…) Simões prestou depoimento na Vila Militar, sofrera muitas sevícias e coações. Newton Medeiros que estava preso em local ignorado e posteriormente na Vila Militar prestou declarações que esteve preso em local ignorado. Antonio Alberto Souza ficou preso 55 dias. Não concide muito com as datas de prisão e soltura. Antonio Viana Sad que saiu da prisão vertendo sangue pelo nariz, problema que perdura até hoje. Há três ou quatro anos está botando sangue pelo nariz. Antonio Forges que esteve preso que esteve preso em 40 dias em local ignorado. Romeiro Passos que ficou oito dias sem comer na Vila Militar ratificou suas declarações. Antonio Botelho que prestou declarações sob coação e que seu advogado vai provar as suas afirmativas.
Isso tudo porque todos confessaram minuciosamente no inquérito e em juízo negaram tudo aquilo que disse (sic) e até negaram que se conheciam entre si. Inicialmente, manifesto a minha discordância com um dos argumentos contidos na sentença, que passo a transcrever, aspas, tais declarações na fase inquisitória foram prestados dos próprios acusados em seus interrogatórios em juízo sob violenta coação, após haverem permanecido preso cada qual cerca de 30 dias em unidades militares, locais que não puderem identificar pelo fato de terem sido aquinhoados entre aspas com um capuz na cabeça e assim levados para prestar depoimento. Entendo que opiniões dessa espécie inseridos na sentença aviltam de modo geral o interesse da justiça em termos de credibilidade da prova colhida no inquérito, ao tempo que ocasiona efeitos perniciosos na repressão policial exigida e efetuada tão somente no interesse do estado e da sociedade. Essa egrégia corte, recentemente, através de pronunciamento ministro Almirante Bierrenbach já expressou seu repúdio aos maus tratos ocasionados às pessoas que se encontram sob custódia de órgãos policiais, na oportunidade, entretanto as provas da coação física eram inequívocas.
Tais exemplos, mercê de sua autonomia e excepcionalidade, não podem ser erigidos em respaldo generalizado para que a autoridade judicante, sem o menor resquício de elemento probatório, confiando pura e simplesmente na palavra dos acusados, invista contra a dignidade das funções policiais, exercidas por oficial superior do nosso Exército, no caso o coronel Iris Lustosa, agravado pelo fato do uso de expressões pejorativas, como entre aspas aquinhoadas, inaceitáveis frente à seriedade como deve ser encarada a prestação jurisdicional. Compreende-se que por parte dos réus, na falta de outras alegações, seja usado esse meio indireto de defesa, cuja finalidade sabemos é elidir a prova consignada na fase inquisitorial, inquisitória, principalmente a autoria. No entanto, o agasalho indireto de tais afirmativas por parte de autoridades judicantes, tem servido de incentivo a que todos os indiciados em juízo, através de voz uníssona, deixam de se defender, oferecendo apenas alegações de maus tratos, como se tais afirmativas, sem qualquer elemento de convicção, se prestassem a anular autos de apreensão, laudos de avaliação, e todos os outros atos processuais que, na forma da lei, são efetuados obrigatoriamente na instrução provisória e algumas vezes com total independência em relação ao depoimento dos indiciados.
As acusações de sevícias praticadas por autoridades militares, desde que procedentes, devem ser apuradas. Simples alegações além de não merecerem qualquer crédito, visam denegrir a prova colhida e afrontar autoridade constituída, pois em última análise trata-se de palavra contra palavra e nesse aspecto endosso do digno procurador Oswaldo Lima Rodrigues que disse “sinto-me em melhor companhia confiando na palavra do encarregado do inquérito”.
9) Vozes do ministro general Rodrigo Octávio e do ministro general Augusto Fragoso no julgamento de Marcio Moreira Alves no STM na sessão 98ª Secreta, em 15/12/1976 (Tempo de áudio 11:14)
Ministro general Rodrigo Octávio
Acredito que devíamos ter feito juridicamente era ter feito de acordo com o artigo 5º da Lei de Segurança Nacional, feito um novo processo desse moço, tendo em vista as publicações que ele fez no estrangeiro. Um desserviço que ele está prestando à Pátria.
Agora condená-lo em bases jurídicas é completamente inexequível. Agora nós vamos tomar e eu vou tomar também uma decisão revolucionária. Porque em 1968, solicitei ao ministro do Exército de então que se tomasse uma providência drástica contra ele, inclusive a cassação. (…) De maneira, eu vou tomar uma decisão revolucionária que vou deixar de lado a lei, porque pela lei não se pode condená-lo de maneira nenhuma. Ele é inviolável. E só se pode condenar algum deputado, pela Constituição de 1967, se a Câmara tivesse dado licença. E ela não deu e desencadeou esse processo. Desde 1968, eu era comandante militar na Amazonas. De maneira que hoje estamos preservando o regime revolucionário, e a irreversibilidade dos objetivos revolucionários, não podemos deixar de maneira nenhuma deixar de fazer isso. Não estamos julgando aqui como verdadeiro Tribunal da Justiça, estamos julgando como tribunal de segurança. Essa é a realidade dos fatos.
Tudo que a procuradora disse é uma inverdade dentro dos fatos e realidades jurídicas apontada pelos mestres de Pontes de Miranda e outros e no interessante parecer do doutor Djalma Marinho, que explicita isso muito bem. Tanto que pediu imediatamente a demissão da Comissão de Constituição e Justiça, que foi toda substituída para poder conseguir a licença.
Agora a licença é um ato técnico, jurídico, da Comissão de Constituição e Justiça. Não tendo aprovado, eu, representando, o Amazonas e todos os meus comandados, passei um rádio para o ministro do exército pedindo uma providência enérgica dos fatos, que não era possível proceder dessa forma. Compete às Forças Armadas a preservação da política nacional, da organização nacional, da sobrevivência do país. Por isso proclamou o AI-5.
Agora querer julgar no Tribunal de Justiça baseado em lei e fatos, na minha opinião, é um completo absurdo. Vamos condená-lo nas mesmas penas. Mas ainda: proponho que se faça outro processo tendo em vista estes sucessivos livros que ele mandou publicar no estrangeiro.
Ministro general Augusto Fragoso
Também queria acrescentar um comentário, sobretudo depois das declarações do ministro Rodrigo Octavio. Os relatórios que se ouviram aqui foram minuciosos demais. E ficou uma certa difusão sobre o que estamos julgando. Estamos julgando, segundo os estudos feitos à margem desse processo, a incitação talvez contida em muitos pronunciamentos do acusado, visando despertar animosidade entre as Forças Armadas, como diz o 33 paragrafo 3º, mas no exercício do mandato de deputado.
Negada a licença para o processo, ele foi imediatamente cassado e saiu do Brasil. A denúncia diz respeito apenas aos pronunciamentos dele como deputado. E a constituição de 67, repetindo ipsis litteris o texto da constituição de 46, não deixava dúvidas: os deputados e senadores são invioláveis no exercício do mandato por suas opiniões, palavras e votos.
Ouviu-se aqui também certas invocações do processo do deputado Francisco Pinto. Mas é um processo completamente diferente. Porque a Emenda Constitucional 69 alterou esse dispositivo da Constituição de 67. Manteve aquela redação e acrescentou “salvo nos casos de injúria, difamação ou calúnia ou previstos na Lei de Segurança”. Então, a primeira conclusão que se tira, nós estamos analisando a atitude deste deputado nos pronunciamentos que ele fez no exercício do mandato. A Constituição não diz no recinto da Câmara e sim no exercício do mandato, ou seja, onde quer que seja. E figuras insuspeitas da revolução como Cordeiro de Farias e Daniel Krieger mostraram que havia nesta representação do ministro da Justiça injuridicidade. Isso é claro. Mas é como diz o eminente ministro Rodrigo Octávio, nós temos que encaminhar para um outro sentido. Mas daí eu discordo do eminente companheiro em considerar que o tribunal, nessa votação, iria funcionar como tribunal de segurança e não como Tribunal de Justiça.
Eu não acho. Se ele for condenado, estaremos agindo como um Tribunal de Justiça. Porque a questão é controversa. Basta ler a mensagem que o presidente Costa e Silva respondendo a carta do Daniel Krieger e que cita os argumentos dele, baseado no parecer do ministro de então, o veemente, o radical Gama e Silva. Não vou ler porque estamos cansados, mas para mostrar que podemos agir como um tribunal de Justiça, basta dizer o seguinte, houve controvérsia na questão. A própria Câmara dos Deputados através do parecer da Comissão de Justiça, toda ela reformulada, mas afinal de contas funcionou como comissão de justiça. A comissão de justiça diz que poderia ser processado pelos discursos que fez. E no plenário, embora a maioria de 216 votos negasse a licença, 141 congressistas, ou seja, 34% dos que votaram, acharam que ele podia ser processado. Eu não quero discutir o mérito desses homens. Então acho que pelo que ele fez, ele pode ser processado. E podendo ser processado pode ser condenado.
Tudo que ele fez, ele fez como deputado. Agora a lei não pode retroagir. Que se processe, como lembrou muito bem o ministro Rodrigo Octávio, o cidadão Márcio Moreira Alves, inclusive pelos livros, como esse outro que o general Reinaldo me cedeu por empréstimo, “O despertar da revolução brasileira”, em que ele é veemente. A gente analisando o caso, vê que a própria representação que deu origem a isso, assinada pelo general Lira Tavares apenas dizia que o Exército estava sentido com aquilo e pedia ao presidente as providências que ele julgasse necessárias.
Sabemos que o Congresso ofereceu suspender o mandato do deputado. E o governo, naturalmente alimentado pelos radicais do tempo, não aceitou, dizendo que era tarde. E há um depoimento do general Cordeiro de Farias, que era ministro do Castelo, mostrando que o governo não se conduziu ali com, a juízo dele, com o equilíbrio e habilidade que eram necessários.
Estamos julgando o acusado pelo discurso que ele pronunciou como deputado. Como diz a sentença ‘amparada pelas imunidades parlamentares agasalhadas no artigo 34’.
Não há dúvida. Agora é uma questão controvertida e ele pode ser processado ou não? Uns acham que pode. Outros acham que não pode. Nós podemos achar que pode e condená-lo. Acho que deve ficar bem claro isso porque houve muita difusão, muita coisa que nem precisamos ouvir. Todos somos alfabetizados, lemos, os pareceres forçam um pouco. Ele foi absolvido por prescrição, passou em julgado nas acusações do artigo 14. Estamos o 33, parágrafo 3º e, como sabemos, o decreto de lei 314 dizia “incitar publicamente”. O item terceiro diz “a animosidade entre Forças Armadas ou contra estas e as classes sociais”. O decreto de lei 510 alterou esse artigo, ficou só incitando a administração, detenção de um a três anos.
Isso que estamos julgando. A sentença absolveu por maioria contra o voto de um capitão, que condenava a um ano, absolveu por maioria o acusado por entender que os fatos foram praticados no exercício de mandato de deputado federal e amparado pelas imunidades parlamentares. Eram essas observações que eu gostaria de fazer até mesmo por desencargo de consciência. Estamos julgando pelo pronunciamento dele como deputado. Agora, podemos agir não com o Tribunal de Segurança, longe disso, um tribunal de justiça.
10) Voz não confirmada. O historiador avalia que pode ser o Almirante Sampaio Ferraz que faz um aparte no voto do ministro togado Amarílio Lopes Salgado. Apelação 41.027. Data: 16/6/1976. Logo após o ministro dar o voto há um aparte. Tempo do aúdio: 1:22
Eu sou revisor de um processo que aparece…que eram quatro indiciados no inquérito, todos eles confessaram direitinho na Polícia, que tinham tomado parte, uns acusaram os outros, mas na ocasião do sumário ficou provado que um deles não tinha nada a ver com a história. Esse trabalhava direitinho. Por que razão ele havia confessado e ele disse: “ou a gente confessa ou entra no pau”. E é o que está acontecendo. Entrou dessa vez e muita gente tem entrado, por isso que muitas vezes a gente acha que o inquérito na Polícia não tem valor por causa desses casos, desses casos. Eles apanham mesmo. Por isso, quando vejo um inquérito na polícia eu fico logo com um pé atrás. Como revisor, eu tomo muito cuidado, examinando isso, porque o que se sente é que na polícia, no Dops, eles entram no pau. Ou confessam ou então apanham. Então não tem valor quase esse inquérito policial, a não ser um inquérito policial militar. Então estou de pleno acordo que é preciso acabar com isso.
Fonte: O Globo
Foto: Reprodução
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BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig: como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade
por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN
O delegado de polícia Pedro Carlos Seelig morreu em Porto Alegre na terça-feira, 8 de março, fulminado por um infarto aos 88 anos, com sequelas da covid. Ficou dois meses internado, até sair para morrer em sua casa de vidros coloridos e revestimento de azulejo no bairro da Tristeza, zona sul da capital. Algum leitor desatento dos burocráticos, ineptos registros dos principais jornais e portais da internet poderia imaginar que era apenas a morte encoberta de um policial irrelevante, que não merecia mesmo a atenção da imprensa. Grave erro.
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade que a repressão política disseminou pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Foi o mais notório e intimidante torturador gaúcho, símbolo maior do terror de Estado que lhe garantiu lugar eterno no panteão dos grandes patifes da repressão brasileira. Seelig formou, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, a santíssima trindade da tortura brasileira.
Ganhou espaço merecido na lista definitiva dos 377 brasileiros acusados de graves violações dos direitos humanos cometidas durante os 21 anos do regime militar de 1964-85, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali se misturam generais-presidente e sargentos, coronéis e inspetores, diplomatas e médicos legistas, policiais militares e civis e até um ex-piloto de companhia aérea. No topo da cadeia de comando da repressão, foram denunciados os 53 militares que comandaram o aparato repressivo brasileiro nas duas décadas de violência como política de Estado: os cinco generais-presidentes (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três ministros-militares da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969. Além deles, como cúmplices, são citados seis ministros do Exército, sete da Marinha, cinco da Aeronáutica, três chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI), oito do Centro de Informações do Exército (CIE), onze do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e cinco do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Logo abaixo, na pirâmide da repressão, são apontados pela CNV outros 84 militares, policiais e um diplomata, responsáveis em diferentes níveis pela gestão do aparato repressivo. O número 71 da lista é o coronel Brilhante Ustra, que organizou e comandou entre 1970 e 1974 o DOI-CODI paulistano da rua Tutoia, o mais letal do país, onde morreram 51 pessoas sob tortura. Finalmente, completando a relação dos torturadores, estão os 240 militares e policiais com responsabilidade direta naviolência física, os torturadores que fizeram o serviço sujo dos porões. Fleury é o número 367 da lista e Seelig, o 333.
O fã de Fleury
Quando estourou o golpe de 1964, Seelig estava há três meses no lugar certo: o DOPS de Porto Alegre. Aos 23 anos, tinha trocado o quepe de motorista de ônibus pela boina vermelha, a jaqueta, a calça cáqui com listra vermelho e o negro cassetete de borracha da tropa de choque da antiga Guarda Civil da capital gaúcha, formada por lutadores profissionais para dispersar tumultos. Aos 29, entrou na Polícia Civil como escrivão de 3ª classe. No primeiro semestre de 1964, teve uma rápida passagem pelo DOPS, antes de passar cinco anos na ronda de delegacias do interior. Com o curso de delegado, voltou para a capital e para o DOPS em junho de 1969, quando o país já amargava seis meses de AI-5.
Foi destacado para o Serviço de Investigações da sensível Divisão de Segurança Social do DOPS, cada vez mais atarefada pelo aquecido clima político nas ruas e universidades. No mês seguinte, julho, nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN), a mãe dos DOI-CODI, que integraria militares e policiais no estágio mais sofisticado e virulento da repressão política, excitada pelo combate mais intenso à luta armada nos centros urbanos.
Seelig era discípulo do colega mais famoso de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury, que ganhou fama internacional por sua ligação visceral com os meliantes do Esquadrão da Morte, de onde tirou o know-how para eliminar os militantes mais radicais da esquerda. Ficou amigo de um astro em ascensão na comunidade de informação, o major Carlos Alberto Brilhantes Ustra, antes ainda de sua notoriedade como comandante do sangrento DOI-CODI em São Paulo. Inspirado nesses notáveis exemplos, Seelig foi promovido em 1970, aos 36 anos, para a direção da Divisão de Segurança Social do DOPS, tornando-se o homem mais importante da repressão gaúcha no momento buliçoso em que o Estado convivia com sete organizações da luta armada: VPR, ALN, VAR-Palmares, M3G, POC, M-26 e FLN.
Nas duas maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o combate à guerrilha urbana era tarefa do Exército e seus DOI-CODI, onde morreram pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura – 51 no DOI paulistano da rua Tutoia, 30 no DOI carioca da rua Barão de Mesquita. Segundo documentos recolhidos pela Comissão Nacional da Verdade, os dois locais concentravam quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais do regime militar. No Rio Grande do Sul, essa tarefa literalmente bruta não sujou as mãos do DOI-CODI local. A missão foi delegada a Pedro Seelig e sua comprovada eficiência repressiva. Em janeiro de 1971, na fervura da política local, o DOPS de Seelig contabilizava a prisão de 256 esquerdistas e a apreensão de 15 metralhadores, 49 pistolas, nove automóveis, 27 mil dólares e milhares de cruzeiros (a moeda da época). Investigou 13 assaltos a banco praticados pela esquerda. Esquadrinhou a frustrada tentativa de sequestro do cônsul estadunidense Curtis Cutter por um comando desarrumado da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Na passarela do DOPS
O policial mais famoso do Rio Grande do Sul não tinha o figurino desgrenhado de um meganha rastaquera de filme noir : um ‘tira’ balofo de uma delegacia qualquer da periferia, com a barriga saltando dos botões torturados pela obesidade, a gravata cafona desarrumada e frouxa no pescoço gordo, o suor escorrendo pelo rosto. Nada disso. Seelig contrariava o padrão folclórico.
Em uma rua elegante, o vaidoso Seelig poderia ser confundido com um executivo arrogante e descolado da avenida Paulista ou do centro financeiro de Wall Street. Porte atlético, pose de galã, exibia músculos em vez de gordura espalhados pelo corpo esguio de mais de um metro e oitenta. Tinha alfaiate próprio e preferênciapor ternos de corte justo e conjuntos esportivos, tipo safári, nada comuns em delegacias. Pelo talhe elegante, Seelig parecia predestinado à passarela iluminada de modelo de loja de grife, não aos corredores sombrios das celas da repressão.
Sua alinhada cabeleira precocemente grisalha, repartida ao meio, caía em ondas disciplinadas sobre o pescoço, escoltando duas abundantes costeletas que quase escondiam as orelhas. O rosto anguloso, mais retangular, exibia traços duros, esculpidos por cinzel prussiano. Grossas sobrancelhas, mais escuras que os cabelos, acentuavam a frieza dos olhos, separados por um nariz maciço que ressaltava o tom marcial do rosto. O perfil nasal se impunha sobre os lábios finos e o queixo quadrado. A pele mais escura da face mostrava que os pelos rígidos da barba resistiam à lâmina matinal com rebeldia crônica, quase subversiva.
Aos sábados, passava rapidamente pelo DOPS, no segundo andar do Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga, vestido imaculadamente de branco. Ninguém estranhava. Era o dia em que Seelig, sem demanda extra na delegacia, saía dali para jogar tênis no clube.
Olívio Lamas Baru Derkin/Coojornal Ricardo Chaves
Delegado Pedro Seelig era outro fora do ambiente funesto do DOPS: vaidoso, elegante, garboso, aprumado
No trabalho, conforme testemunho de sobreviventes, Seelig sabia alternar a fala mansa com o rigor e a rudeza necessários para extrair o máximo possível de informações dos presos políticos no tempo mínimo indispensável. Na sala de tortura do DOPS, apesar do capuz de praxe que os presos usavam para não identificar os torturadores, a presença de Seelig era antecipada pelo odor torturante do perfume dedo-duro que usava e pelo codinome ‘Major’ com que era tratado pelos subordinados. Com um sotaque levemente carioca, que ele achava ser moderno e charmoso, tentava ser claro e direto pelo uso de gíria e de palavrões dos mais jovens.
Em novembro de 1977, o repórter Rafael Guimarães, empossado dias antes no comando do centro acadêmico da faculdade de Jornalismo da PUC gaúcha, caiu numa blitz da Brigada Militar na avenida Independência, perto de casa. Com o uniforme da época – calça Lee, tênis, camiseta e bolsa a tiracolo –, Rafael parecia o suspeito de sempre. O caldo entornou quando acharam na bolsa um exemplar do jornal de esquerda Movimento, um livro de teoria política, um caderno de anotações e uma papelada em xerox com um título eloquente: “A redemocratização do país pelo desmantelamento do aparelho repressivo”. Foi levado direto para o DOPS de Seelig. Depois das perguntas de praxe do escrivão de plantão, apareceu o delegado. Rafael, hoje escritor e dono de uma bem-sucedida editora de livros, conta em depoimento publicado em 2021 no jornal eletrônico não.til:
Até que ele entrou na sala. Quer dizer, primeiro, entrou o perfume, depois o homem magro, mais baixo que eu pensava, cabelo grisalho repartido no meio, moderno na época, mas hoje absolutamente ridículo. Pedro Carlos Seelig, o símbolo da repressão no Rio Grande do Sul, o mais frio, eficiente e covarde torturador de que se tem notícia nestes pagos.
Na época, ainda era um mito. Só aparecia em fotos distantes e desfocadas e nos relatos dolorosos de dezenas de homens e mulheres por ele torturadas. Quando entrou, eu soube imediatamente de quem se tratava. Literalmente, tremi nas bases. Olhou para mim com desprezo e mostrou um desenho numa das páginas do meu caderno de anotações:
– Que mapa é esse? –. Era um mapa que tinha desenhado semanas antes, com base nas informações de um caminhoneiro, para chegar a uma cidadezinha na fronteira norte do estado onde eu tinha feito uma matéria sobre o cultivo da citronela, uma planta que serve de matéria prima para a produção de perfumes. Certamente, a mente paranoica da repressão via naquele mapa mal feito um plano subversivo ou um futuro foco de guerrilha. Não contive um esboço de sorriso com tal absurdo, que ele naturalmente percebeu:
– Tá rindo de quê? –. Comecei a contar a história da citronela, mas ele interrompeu:
– Olha pra mim quando fala. Que idade tu tem, seu merda? Teu pai sabe que tu anda metido nessas coisas? –. “Metido em quê”, eu ia dizer, mas calei. Seelig me olhava fixo, esfregava um lábio no outro e flexionava os dedos das mãos. Baixei os olhos e me senti o maior covarde da face da terra.
Ele saiu e não mais entrou. O escrivão faz mais umas perguntas que eu respondi de forma triste e desanimada. Sobrevivi sem sequelas físicas ao encontro com o temível Pedro Seelig, o ‘Pedrão’, ao contrário de tantos que apanharam, sofreram castigos hediondos e desapareceram em suas mãos.
O susto mortal no filho
A partir do segundo semestre de 1970, fase mais aguda da repressão política do recém-empossado governo do general Médici, os presos do DOPS de Seelig foram obrigados a usar capuz nos interrogatórios. O Instituto Médico Legal recebeu ordens superiores para não mais exigir de presos oriundos do DOPS de Seelig a anamnese, o histórico clínico do paciente anterior ao exame de corpo de delito. O objetivo era claro: convencer os médicos legistas a esquecer a fase de duro interrogatório aplicado pelo time do ‘Pedrão’.
Apesar do recato forçado, Seelig ganhou da imprensa o título de ‘Fleury dos Pampas’, seu sanguinário modelo do DOPS paulistano. A face violenta do delegado gaúcho está marcada pelas cicatrizes da Justiça na sua machucada folha funcional: em 1957, Seelig foi processado por crime de lesões corporais e, em 1958, por agressão. O momento mais difícil de sua carreira ocorrera em 1973, quando enfrentou uma CPI na Assembleia Legislativa e a ameaça de julgamento pelo Tribunal de Júri de Porto Alegre em processo de homicídio qualificado, acusado da morte por afogamento de seu filho adotivo, Luís Alberto Pinto Arébalo, de 17 anos.
Na manhã do dia 6 de fevereiro de 1973, suspeito de ter roubado uma pequena quantia em dinheiro de uma associação comunitária presidida por Seelig, o menor foi levado para uma das celas do DOPS para ganhar “um susto” – por ordem do pai adotivo. Passou por duas sessões de pancada na “fossa”, a principal sala de torturas no fundo do corredor do DOPS. Arébalo apanhou por meia hora. À tarde, ao ouvir a voz do delegado, chamou por ele. Seelig abriu a porta e se espantou com o que viu.
– O que fizeram contigo, cara? Não era pra fazer isso com o guri… – disse, olhando contrariado para três caras feias de sua equipe. Quando Seelig saiu, eles devolveram Arébalo à “fossa”. Mais vinte minutos de pau, desta vez enfiando uma mangueira de água na boca. O garoto se afogou, passou a noite agonizando, tremendo de frio, respirando mal, com dores no peito. Enrolado em um cobertor, suava diante de um grande ventilador ligado o tempo todo. Horas depois, mais machucado do que assustado, Arébalo foi transferido às pressas para o Hospital Sanatório Partenon. Sussurrou para a irmã Celsa, chefe do serviço de triagem do hospital:
– Aqueles caras me bateram…. Aqueles caras lá, né! – Morreu quatro horas depois, no dia 8 de fevereiro, e não foi de susto. O laudo de necropsia disse que Arébalo sucumbiu por “insuficiência respiratória aguda, consecutiva a afogamento parcial”, antecedida por traumas que debilitaram o jovem. O afogamento, escreveram osegistas, foi comprovado pela presença de plâncton mineral nos assustados pulmões do rapaz.
Arquivo Coojornal Ilustração Edgar Vasques Carlos Rodrigues
Arébalo, o filho de 17 anos, morreu afogado na tortura do DOPS: devia ser só um ‘susto’, rezava Seelig.
Indiferente a essas líquidas evidências, a maioria governista na CPI desensopou a denúncia e concluiu secamente – por quatro votos da ARENA governista contra três do MDB oposicionista – que Seelig poderia no máximo ser acusado de ‘abuso de autoridade’. Na Justiça, o juiz Luiz Carlos Castello Branco, alegando ‘falta de provas’, impronunciou o delegado. A defesa alegou que o ventilador assassino é que causou a pneumonia fatal no garoto. Emotivo, Seelig chorou perante a família e os amigos policiais. Humilde, dobrou-se diante dos fotógrafos dos jornais, persignado em um banco de igreja, e orou contrito na missa pela alma do finado filho adotivo. Parecia um pai devastado, não um delegado incriminado.
A mão amiga e verde-oliva
Seelig, no entanto, tinha mais fé na força terrena do que no conforto divino. Especialmente na força verde-oliva. Rosto compungido ainda de dor, pouco antes da sentença complacente do caso Arébalo, o delegado submeteu-se a uma reconfortante cerimônia castrense: a entrega solene pelo Exército da “Medalha do Pacificador”, honraria militar concedida sempre por indicação de um general e entregue apenas àqueles que se destacaram na luta contra a subversão. Ele tinha o amparo da força terrestre da ditadura, fiel ao seu lema: “Braço forte, mão amiga”.
Ricardo Chaves
Seelig e seu braço forte: o Exército vê o pacificador, não o torturador
O delegado, ao contrário do filho, era imune a sustos. Pedro Seelig era um dos intocáveis do regime. Depois do caso Arébalo, o delegado teve por duas vezes a refrescante sensação da boa imagem junto à opinião pública. Em 1974, quando ainda respondia ao processo por homicídio, Seelig comandou uma espetaculosa operação policial para libertar o estudante Alexandre Möeller das mãos de seus sequestradores. Depois que a família pagou o resgate, o garoto, de 13 anos, acabou sendo resgatado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em 1977, em nova ação sensacional, Seelig coordenou as investigações sobre seis crianças de um bairro da capital, o Cristo Redentor, sequestradas pelo comerciário Santino Ferreira – mas o sequestrador, em outro desfecho frustrante para o delegado, acabou sendo preso por uma anônima patrulha da Brigada Militar.
Nessa época, o Internacional era o grande time do país, com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani, Batista, Manga e don Elias Figueroa. Para desespero dos gremistas, já acumulava o segundo título de campeão brasileiro de futebol. Era comum então encontrar Seelig, fanático torcedor colorado, nos vestiários do estádio Beira-Rio confraternizando com jogadores e dirigentes após as grandes vitórias, que ele assistia confortavelmente instalado em uma das cabines reservadas à imprensa
Durante o campeonato gaúcho de 1978, ele mesmo organizou o esquema de segurança do time colorado em alguns jogos mais arriscados do interior. O delegado circulava pelos corredores do DOPS e pelo gramado do Beira-Rio com muita familiaridade. Seu grande amigo e estrela principal do Inter, o meio-campo Falcão, era o terceiro melhor jogador do mundo em 1982 e 1983, segundo a revista inglesa World Soccer. O volante foi escalado em 2021 na melhor seleção brasileira de todos os tempos, ganhando a camisa 5 de um meio de campo de luxo que divide com Didi e Pelé, segundo a eleição de 170 jornalistas e narradores profissionais de esporte selecionados pela revista Placar.
Falcão tinha como procurador o então preparador físico do time, Reinaldo Jorge Salomão – filho de um cunhado de Seelig e também delegado do DOPS. O craque colorado retribuía sua presença no estádio visitando-o no DOPS.
– Olha, eu sou suspeito pra falar do Pedro, porque sou muito amigo dele. Conheci ele em 1972, no tempo em que o Salomão estava nos juvenis. Sou amigo dele desde 1974, quando às vezes eu ia lá na polícia. Até hoje a gente sai, vamos a festas juntos. Ele é bem relacionado – dizia Falcão, driblando com a elegância habitual as perguntas incômodas da imprensa.
O time do carcará
JB Scalco Olívio Lamas
Falcão e Seelig, dois amigos elegantes: só o craque não batia no seu local de trabalho
No futebol, ao contrário da leveza e classe de craque de Falcão, Seelig era um zagueiro de estilo duro e botocudo, que maltratava mais os adversários do que a bola. Como provaria depois no DOPS, gostava de bater. Por isso, alto e vigoroso, era o temido capitão do time de futebol da Secretaria de Segurança, nos idos de 1967. A família trazia a polícia no sangue: tinha uns dez ou doze parentes com o sobrenome Seelig servindo na corporação. Dava para formar um time – e formava.
A parentada integrava uma unida e exclusiva equipe doméstica chamada Carcará. Além do sobrenome, o que dava harmonia ao time era o lema – inspirado na música de 1965 de João do Valle – que atemorizava os adversários: “pega, mata e come”. O comissário de polícia Omar Seelig, primo-irmão de Pedro, definiu assim o time familiar para os repórteres Najar Tubino e Caco Schmidt, do semanário Coojornal, em 1979:
– No Carcará, do umbigo pra baixo é canela! Quando o cara não dá pau, a gente chama e diz: “Meu filho, qual é o teu negócio? Vai pra casa e bota uma sainha, vai…”
Passados 43 anos, essa corajosa reportagem de primeira página do bravíssimo semanário da Cooperativa dos Jornalista de Porto Alegre ainda é a única, solitária investigação sobre Seelig. O resto da imprensa calou-se, por quatro décadas, intimidada pela fama do personagem maior da tortura.
Arquivo CooJornal
A reportagem corajosa: um feito ainda inédito, passados 43 anos
No jogo bruto do DOPS, o estilo de atuação de Seelig ficou mais doloroso do que o do Carcará. Dos cabelos para baixo, tudo era canela, ninguém usava sainha, era puro pau. Em 1969, ao mesmo tempo em que nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes, era criada em Porto Alegre a Divisão Central de Investigações (DCI). Quando a OBAN virou DOI-CODI, no ano seguinte, a DCI continuou ocupando o espaço central da repressão no sul. Na verdade, havia algumas diferenças.
Em São Paulo, o DOI-CODI, com a parceria do DOPS, fazia tudo – da análise das informações aos pedidos de busca e combate nas ruas, passando pela sangrenta fase de interrogatórios e torturas. Em Porto Alegre a DCI do coronel Attila Rohrsetzer processava as informações e coordenava o combate à subversão, mas delegava ao DOPS de Pedro Seelig o serviço sujo e perigoso – o suplício dos interrogatórios e as operações externas de combate. Embora formalmente ligada ao secretário de Segurança, a DCI se reportava diretamente ao comandante do III Exército e à 2ª Seção do Estado-Maior, ligados ao CIE em Brasília. O que o DOPS e o DOI-CODI somavam em São Paulo se concentrava em Porto Alegre, com vigor redobrado, na DCI e seu braço executor, o DOPS. Ou seja, o delegado Pedro Seelig era sozinho, em Porto Alegre, o que o delegado Sérgio Fleury e o coronel Brilhante Ustra representavam juntos em São Paulo em termos de truculência.
Os estádios dos torturados
Quase metade dos casos de tortura no Rio Grande do Sul que chegaram ao Superior Tribunal Militar (STM), instância máxima dos inquéritos contra presos políticos,aconteceu no quintal de trabalho de Seelig. Nunca se saberá o número exato de vítimas, porque nem todas as denúncias chegaram a Brasília. Segundo levantamento feito pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo do cardeal Paulo Evaristo Arns, nos primeiros treze anos da ditadura – de 1964 a 1977 – houve 6.016 denúncias de torturas em todo o país, espalhadas ao longo de 707 processos julgados pelo STM.
Em uma simples conta aritmética, isso representa cerca de 8,5 denúncias de maus-tratos em cada causa levada ao tribunal. Quando o cardeal Arns acusou a ocorrência de 502 casos de tortura no DOI-CODI de São Paulo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou aquele inferno na fase mais dura, entre 1970 e 1974, ironizou:
– Não foram 502, foram mais de três mil pessoas que passaram lá. E ficam sempre inventando denúncias de torturas não comprovadas…
Nos 21 anos do regime militar brasileiro passaram 25 mil presos pelos cárceres da ditadura, que exilou outros dez mil. O Brasil Nunca Mais afirma que “dificilmente houve pessoas que passaram pelos processos de elaboração dos inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas”. Se cada um desses presos representasse um processo, seria possível fazer uma estimativa assustadora sobre as fronteiras sempre imprecisas, ocultas, inóspitas da tortura. Nessa conta, segundo as projeções feitas sobre os números do STM, o Brasil contabilizaria 212 mil casos de tortura – o que lotaria quatro vezes a Arena ou o Beira-Rio, os estádios de Grêmio e Internacional, cada um com capacidade para 55 mil espectadores.
O quadro de denúncias formalizadas na Justiça Militar no período de 1964 a 1977 – mais da metade das duas décadas de ditadura – fotografa o endurecimento do regime ao longo do tempo. Em 1964, ano do golpe, houve 203 acusações de maus-tratos, número que se reduziu em 1965 (84 casos) e em 1966 (66 casos). Chegou ao seu ponto mais baixo em 1967 (50 casos) quando Costa e Silva sucedeu a Castello Branco. Voltou a subir em 1968 (85 casos) e em 1969 foi vinte vezes maior do que a marca de dois anos antes: 1.027 denúncias de tortura – segundo a meticulosa tese de mestrado de 2006 da historiadora da UFRGS Caroline Silveira Bauer – Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação política do DOPS-RS (1964-1982).
O país tinha irrompido o ano já sob o império do AI-5, e 1969 acabou com o Brasil governado por uma patética junta militar, que ocupou por dois meses o vazio de poder provocado pelo derrame que matou Costa e Silva. O ano seguinte, 1970, que marca a promoção de Seelig como diretor da Divisão de Segurança Social do DOPS, registra também a estreia retumbante do general Médici e o ápice dos porões da repressão: foram 1.206 denúncias de tortura.
A taxa se manteve em nível elevado no período restante dos Anos de Chumbo: 788 denúncias de tortura em 1971, 749 em 1972 e 736 em 1973. Caiu dramaticamente no último ano de Médici, 1974, quando se registraram apenas 67 casos. A violência voltou a explodir em 1975, no primeiro ano do general Geisel no Planalto, com 585 casos de tortura – quase dez vezes mais do que o saldo do derradeiro ano de Médici no Planalto.
RS, maior concentração da tortura
Os parcos registros do STM assinalam apenas 122 denúncias de tortura no Rio Grande Sul nesses treze anos iniciais de ditadura. Embora distantes da realidade, os números mostram percentualmente o peso do DOPS de Seelig no terrorismo de Estado. Um total de 48 casos, 43% do total, se localizam nas dependências do segundo andar do Palácio da Polícia, quintal onde reinava Seelig e seus asseclas.
A pancadaria no DOPS de Seelig não era um exagero individual da repartição. Era uma prática institucional do regime, que acabava chancelando por cima o que se cometia por baixo. No mesmo período, o balanço do STM mostra outros 17 casos de torturas espalhados por sete quartéis diferentes de guarnições do Exército em quatro cidades distintas do Rio Grande do Sul – Livramento, Santo Ângelo, Cruz Alta e Porto Alegre. Trinta denúncias de tortura atingiram quartéis da Brigada Militar em Passo Fundo, Três Passos e na capital gaúcha.
A extensa fronteira seca do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina e o fato dos principais líderes depostos em 1964 terem se asilado em solo uruguaio explicam, historicamente, a alta concentração militar que fez do III Exército (hoje Comando do Sul) a guarnição mais poderosa do país, com as unidades reforçadas –especialmente Santa Maria, no centro do Estado, sede do maior destacamento blindado e de uma importante base aérea, com dois esquadrões aéreos de caça AMX, outro de helicópteros Black Hawk e um de aeronaves não tripuladas.
Ainda assim, é surpreendente que esteja no Rio Grande do Sul a maior concentração de instalações identificadas pela Comissão Nacional da Verdade como centros de tortura ou, na elegante terminologia da CNV, “locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)”. Os 230 centros revelados no país se espalham por 23 Estados (as exceções são Mato Grosso, Acre, Rondônia e Roraima) e o RGS é o primeiro da lista, com 39 locais de tortura, superando até mesmo o Rio de Janeiro (38) e São Paulo (26).
Veja o mapa da CNV:
Relatório CNV, Volume I, Cap. 15, pg 830
RS, campeão nacional de centros de tortura: o DOPS de Seelig é o maior e mais sangrento dos 39 no Estado
O trio parada dura de Seelig
É impossível dimensionar, com precisão, o tamanho do circo de horrores que Seelig imprimiu, com sangue, suor e lágrimas, na carne e na alma de tanta gente que passou por suas mãos. Nessa tarefa desalmada, teve ao seu lado um trio diabólico de policiais truculentos que obedeciam cegamente suas ordens e o poupavam de maiores esforços físicos. Os outros batiam por ele, mas seu perfume angustiante estava sempre ali, na sala de torturas, pairando acima dos corpos, excitando os comparsas, envenenando o ambiente de miséria e terror.
O trio era formado por três inspetores: Nilo Hervelha, Nelson Pires e Itacy Vicente, que atendia pelo sugestivo apelido de ‘Mão-de-Ferro’. Todos os três foram parceiros na sessão de tortura no DOPS com mangueira e ventilador que levou o jovem Arébalo à morte, após o ‘susto’ ordenado por Seelig, seu devotado pai adotivo.
O pior deles era Hervelha, codinome ‘Silvestre’, considerado o mais sádico e violento de um trio temido pelos sobressaltados frequentadores, nada voluntários, daquele martírio em terra gaúcha. Hervelha tanto fez e aconteceu, sob as ordens de Seelig, que acabou arranjando um lugar na lista de 377 torturadores do relatório final da CNV: é o número 318.
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Correio do Povo
João Carlos Bona Garcia e seu torturador
João Carlos Bona Garcia era um jovem de 24 anos, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foi preso em abril de 1970 na feroz blitz da repressão desencadeada duas semanas após o frustrado sequestro do cônsul dos Estados Unidos. Foi levado diretamente para o DOPS de Seelig. Ele lembrou sua agonia no livro de memórias, Verás que um filho teu não foge à luta, lançado em 1989:
Entrei encapuzado e quando me tiraram o capuz vi sangue nas paredes, sangue no piso, pessoas ensanguentadas jogadas no chão e se arrastando, rostos inchados, corpos cheios de marcas e feridas, olhos em fogo, bocas contraídas mostrando coágulos no lugar dos dentes, gemidos e soluços, uivos de dor. Lembrei imediatamente do matadouro. Tive a sensação de estar num matadouro de gente.
No dia seguinte, marcado pelas queimaduras de ponta de cigarro, Bona Garcia foi levado para a “fossa”, a mesma sala do DOPS onde Arébalo começou a morrer. Bona Garcia conta:
Havia um gerador elétrico manual, a ‘maricota’, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade na manivela, a voltagem ia subindo, até mais de trezentos volts (…) Foram me amarrando fios nas orelhas e dando choques na cabeça. A primeira vez dá uma sensação terrível. Com o choque nas orelhas se perde a visão, na hora fica tudo escuro (…) O pessoal da polícia ficava à volta, enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. (…) Já o major Attila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais.
Seelig e Hervelha devem ter ficado perplexos com os caprichos da História que, em apenas duas décadas, viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo.
Na ditadura, Bona Garcia era assaltante de banco, terrorista e inimigo dos militares. Participou de duas ações da VPR atacando os carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Foi banido do país, em janeiro de 1971, no grupo de setenta esquerdistas enviados para o Chile de Salvador Allende em troca do embaixador da Suíça, Giovanni Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro por um comando da VPR liderado por Carlos Lamarca.
Na democracia, o ex-assaltante de banco virou executivo de banco. Em 1998, foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. No regime civil, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos quartéis e banido pela ditadura virou subchefe da Casa Civil em 1986 do governador Pedro Simon e chefe da Casa Civil em 1998 do governador Antônio Britto. Acabou juiz da corte militar gaúcha no mesmo ano: o inacreditável ex-preso político e ex-torturado Bona Garcia sobreviveu a Seelig e a Hervelha e chegou em 2002 à presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Morreu em 2021, aos 74 anos, vítima da covid-19.
Igor Sperotto/ExtraClasse Correio do Povo
Nilce Azevedo Cardoso e seu torturador
– Tira a roupa! – foi a primeira frase que a moça de 27 anos ouviu, no DOPS, logo após ser sequestrada em uma parada de ônibus no centro de Porto Alegre, na manhã de 11 de abril de 1972. Nilce Azevedo Cardoso, uma paulista que sonhava ser bailarina, ingressou na faculdade de Física quando a violência atravessou sua vida: “Entrei na USP em 1964 e, junto comigo, entraram os tanques do Exército”, dizia. No fim da década de 60 mudou-se para a capital gaúcha, já como militante da Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica. Em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, em 1997, ela contou:
O delegado Pedro Seelig, junto com Nilo Hervelha e outros, arrancou minhas roupas. Perguntaram meu nome e eu disse: Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e do tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para a frente
Seelig mandou levar Nilce Cardoso para o pau-de-arara
Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criaram-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que eu não conseguia gritar (…). Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiraram dali (…).
Quando acharam que já estava melhor, eles me penduraram novamente. O meu sangue jorrava e eles enfiaram a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molharam meu corpo e me arrebentaram com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não estivessem cometendo aquelas atrocidades.
Nilce sofreu uma parada cardíaca. Ao tentar reanimá-la os policiais do DOPS acabaram provocando um esmagamento do seio e uma fratura no tórax. Foi levada para o Hospital Militar, ficou lá oito dias em coma. Depois voltou para o DOPS. Foi transferida para o DOI-CODI de Brilhante Ustra, em São Paulo, para novas sessões de pancada.
Voltou ao Sul e só escapou daquela tormenta de seis meses de suplício com o alvará de soltura, em julho de 1972. Tornou-se psicopedagoga e militante dos direitos humanos, trabalhando na Clínica do Testemunho, projeto que acolhe sobreviventes da ditadura, como ela. Morreu no dia 21 de fevereiro passado, aos 77 anos, 15 dias antes de Pedro Seelig.
O pintor pré-morto
Paulo Mello era um pacato pintor na praia de Xangri-lá, no litoral gaúcho, até ser preso em outubro de 1973. O DOPS não esquecera que meses antes ele integrava o MR-26, o movimento clandestino que o ex-sargento Manoel Raimundo Soares tentou infiltrar nos quartéis antes de aparecer boiando e com as mãos amarradas às costas nas águas do rio Jacuí. Foi recebido efusivamente no DOPS de Porto Alegre por Nilo Hervelha, que berrava enquanto o espancava:
– Brizolista! Comunista! Vais morrer nas minhas mãos, me fizeste de bobo muitas vezes!
O ex-tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor de Leonel Brizola antes do golpe, relata no livro O tenente vermelho, de 1987, o que aconteceu com Paulo Mello:
Na primeira noite Pedro Seelig voltou para ver como andava o “serviço”. A sessão era debaixo da maior pancadaria. No segundo dia foi para a ‘fossa’, um cubículo sujo, escuro, com muitas marcas de sangue que Hervelha fazia questão de mostrar que tinha sido de outra pessoa que “quis bancar a durona”. (…) No “tratamento” junto com choques elétricos eram-lhe aplicados murros na cara e pauladas nas costas. Quebraram-lhe a boca várias vezes, passou pelo “telefone”, sangrava muito pelo nariz e ouvidos, o corpo todo inchado. Mesmo assim, não cedendo ao desejo das bestas, colocaram-no no pau-de-arara(…).
Num dia em que as forças estavam lhe faltando, chamaram o médico (…). [O médico] examinou-o, deu-lhe um remédio e disse a Seelig que não o espancasse mais, que o estado [de Mello] era de pré-morte.
Os boatos de que havia morrido debaixo de pau obrigaram o DOPS de Seelig a provar que Paulo Mello estava, ao menos, semivivo. Decidiram quebrar sua incomunicabilidade e permitir uma única visita – da mulher e do filho. Antes tiveram o cuidado de lavar e limpar o preso para lhe dar um aspecto mais apresentável. Não adiantou.
Ele surgiu diante da família com sangue purgando pelos ouvidos, olhos e nariz, além de hematomas no corpo. Ao ver o pai naquele estado, mais pré-morto do que semivivo, o filho sentiu-se mal. Teve que ser atendido por um médico. O pintor e ex-guerrilheiro foi libertado condicionalmente em 1975. Estava com os rins destroçados, os ouvidos rompidos, os nervos em frangalhos. Sofreu um derrame cerebral, ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Paulo Mello nunca mais pintou.
DOI-CODI rejeita torturado do DOPS
Hilário Gonçalves Pinha, dirigente do PCB no Sul, foi preso em março de 1975 pelo Exército. Passou um mês incomunicável, mas ileso, na Polícia Federal e daí foi entregue ao DOPS de Seelig. Seu calvário começou ali, numa equipe de torturadores que incluía o irremediável Nilo Hervelha, o bate-estaca de Seelig. Pinha passou por sessões de afogamento, choque elétrico e pancada. Teve a barriga pisoteada, quatro costelas quebradas e os intestinos e o fígado rompidos em várias partes. Na madrugada de 24 de abril, desmaiado, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Pinha foi transportado pelo DOPS de Seelig até a base aérea de Canoas, requisitado pela Justiça Militar de São Paulo.
O estado dele era tão deplorável que o piloto da FAB, um oficial da Aeronáutica, exigiu uma prévia inspeção médica do paciente e o acompanhamento de um enfermeiro militar no voo. O preso estava tão machucado que nem o DOI-CODI de São Paulo quis receber aquela mercadoria tão estragada, ainda sem assistência médica. Ao ser transferido para o DOI-CODI de Ustra, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Antônio Ferreira Marques, exigiu um ofício atestando as condições deploráveis do preso remetido pelo DOPS de Seelig. O médico do DOI-CODI o mandou para o pronto-socorro e lá perceberam que ele precisava de uma cirurgia de emergência. Acabou sofrendo cinco intervenções cirúrgicas no abdômen no prazo de um mês no Hospital das Clínicas. Perdeu 80% dos intestinos e a capacidade de trabalhar. Devolvido a Porto Alegre em julho de 1975, Pinha foi submetido a mais quatro cirurgias no abdômen no Hospital Militar.
Em 1979, entrou com uma inédita ação pelas torturas sofridas. Em dezembro de 1981, o juiz Moacir Álvares, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, condenou a União como responsável pelos danos físicos produzidos pela tortura em Hilário Pinha. Foi o primeiro preso político do país a ter reconhecido o direito à indenização pelos maus-tratos da ditadura. Hilário Pinha morreu de câncer em Porto Alegre em 2006. Tinha 79 anos.
Naquela manhã de agosto de 1971, a estudante de Economia da UFRGS Marinês Grando, às vésperas de completar 24 anos, só conhecia a fama de truculência do inspetor Nilo Hervelha. Seria apresentada minutos depois ao seu estilo de trabalho, ao ser arrastada para um Fusca estacionado na avenida Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, onde encontrou o companheiro preso cinco dias antes. Começou a apanhar já no banco de trás do carro, no curto trajeto de dez minutos até o DOPS de Seelig.
Hervelha lhe dava tapas no rosto e socos nos seios. Ao descer do carro foi levada ao segundo andar, passou por uma espécie de guichê e ingressou em uma sala grande, sem móveis, sem janela. Ali tudo escureceu. Sua cabeça foi coberta com um capuz, que dificultava a respiração com o forte fedor do vômito de presos anteriores. Ela foi despida e ficou por algumas horas em pé, rodando como pião sob gritos, ameaças, piadas obscenas e pontapés no traseiro. De repente, mudou o cenário.
Marinês, sempre encapuzada, foi levada através de um corredor com salas menores de um lado e outro e, no final, um banheiro. A superpopulação de presos obrigara o DOPS a transformar algumas salas em celas, onde jogaram colchões no chão para os presos dormirem, sempre com a luz acesa. Chegou enfim à sala de interrogatório – e a escuridão do capuz foi subitamente trocada pelo clarão ofuscante do holofote jogado sobre seu corpo nu, que tremia de frio, vergonha e medo.
Arquivo pessoal Correio do Povo
Marinês Grando e seu torturador
O holofote libidinoso na ruiva nua
Com cabelos ruivos e lisos, Marinês tinha pele clara, um rosto fino e uma fisionomia triste. Sob o brilho do holofote, ela percebia o intenso vai-e-vem na sala, como contou ao autor deste texto, em depoimento em 2008 para o livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios:
O interrogatório se prolongou pela noite adentro com muitas presenças, todas masculinas, todos agitados, entrando e saindo pela única porta daquela sala claustrofóbica, sem janelas. Eles todos no escuro e eu, nua, sob os holofotes. Diziam que queriam ver como era uma mulher ruiva, riam e batiam palmas. Na escuridão do lado de lá dava para eu distinguir a figura bem trajada do delegado Pedro Seelig, posicionado diante do bando de machos excitados e à frente do interrogatório.
Agitados pela rara visão daquela bela mulher de curvas bem delineadas no esplendor de seus 24 anos, toda nua e toda ruiva, eles se divertiam. Marinês chegoua pensar que seria estuprada, pelo grau de excitação no ar, mas ninguém a tocou. No limite entre a luz e a treva, o delegado Seelig, de terno e gravata, parecia controlar o foco de luz do holofote que lambia, libidinoso, o seu corpo indefeso.
Naquele teatro que misturava violência e degradação, Seelig fazia o papel do brincalhão, tentando se mostrar gentil e afável em meio a tanta sordidez. Durante todo o tempo, entre risos e piadinhas, Marinês ouvia perguntas sobre o POC (Partido Operário Comunista), suas ligações políticas e a atuação do grupo junto ao movimento estudantil.
Quando o show terminou, o holofote foi desligado e ela colocada em uma cela com outra mulher, uma paulista da luta armada que havia sido violentada nos cárceres do DOI-CODI de Ustra. Estava toda arrebentada pela tortura e, ainda assim, era ‘tratada’ por um médico do DOPS para aguentar a sessão seguinte de suplício. Desestruturada pela violência, ela imediatamente procurou o colo de Marinês. Embora adulta, a jovem encolhida em posição fetal comportava-se como um bebê desamparado, em busca do conforto materno.
A expressão melancólica de Marinês ficou ainda mais triste.
Na quinta-feira, 12, dois policiais levaram Marinês de volta ao seu apartamento. Entraram com a chave da presa e reviraram tudo, recolhendo alguns livros e deixando para trás tudo bagunçado. No dia seguinte Marinês completou 24 anos. A notícia se espalhou pelos corredores e celas do departamento. Todo mundo queria ver, de perto, aquela moça azarada que fazia aniversário em uma sexta-feira, 13 de agosto – e ainda presa no DOPS.
Marinês foi liberada quarenta dias após sua prisão. Ela saiu da cadeia enquadrada na Lei de Segurança Nacional, com hematomas na alma mais fundos que as dores no corpo. Ela perdeu o emprego na clínica médica onde trabalhava. Não houve explicação. Nem precisava.
Em liberdade, continuava vigiada e seguida a todo momento. Certo dia, em uma rua meio deserta do bairro Floresta, um sujeito de uns 25 anos se aproximou e lhe falou ao pé do ouvido:
– Eu te vi nua, eu te vi nua, eu te vi nua!…
Era um dos “machos do DOPS de Seelig”, que ela não reconhecia. Marinês saiu dali correndo, apavorada. Perdeu todas as cadeiras do semestre no curso da faculdade. Amigos esfumaram-se, parentes afastaram-se. Conseguiu um emprego provisório em um órgão de pesquisa estadual. Meses depois ele tornou-se a Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada à Secretaria de Planejamento estadual, que a contratou como economista em 1974. Três anos mais tarde, ela fazia um doutorado na Universidade de Paris I quando se viu, inesperadamente, no centro da guerra de estrelas em Brasília entre Geisel e Frota.
Marinês era um dos 97 “comunistas” infiltrados na administração pública, segundo a lista dedo-duro que o general Sylvio Frota, ministro do Exército, divulgou na tarde de 12 de outubro de 1977, horas depois de ser demitido pelo presidente Ernesto Geisel. Nove nomes da lista atuavam no Rio Grande do Sul, quatro deles eram economistas na FEE – entre os quais Marinês Grando e uma colega chamada Dilma Rousseff. Marinês só não foi demitida, como os outros três, porque estudava na França, protegida por um acordo internacional que lhe garantia ficar por lá até a poeira baixar. Ela só voltou da França em outubro de 1978 – sete anos após sua prisão, às vésperas da anistia.
O tour de terror de Seelig
O DOPS de Seelig estava em temporada de caça ao POC, integrado por Marinês. O DOPS localizou três ‘aparelhos’ da organização em Porto Alegre e prendeu 30 militantes, entre eles sete universitários das federais de Porto Alegre e Santa Maria. Um dos comandantes do POC era casado com a secretária de um dos jornalistas mais famosos do Rio Grande e do Brasil: Paulo Totti, 33 anos, o respeitado chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que depois teria fulgurante carreira em São Paulo e Rio, nas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico. Seelig avisou a sucursal que queria ouvir Totti, naquele momento fazendo uma cobertura jornalística na Argentina. “É um simples esclarecimento de rotina, coisa rápida”, tranquilizou Seelig.
Quando Totti voltou a Porto Alegre, na manhã de terça-feira, 10 de agosto de 1971, lá estavam no aeroporto a mulher e os dois filhos, de sete e quatro anos – e um cidadão elegante de terno, gravata e cabelos grisalhos, que ele não conhecia, mas se apresentou:
– Sou o delegado Pedro Seelig, do DOPS. Tu estás convidado a ir até lá hoje à tarde – falou, com a fidalguia de um recepcionista que dá as boas-vindas ao turista recém-chegado. Simpático, passou a mão na cabeça dos dois filhos de Totti, de sete e quatro anos, voltou a encará-lo e elogiou:. – Teus filhos são muito bonitos. E não falte, hein?
Ricardo Chaves Correio do Povo
Paulo Totti e seu torturador
À tarde, atendendo ao cordial convite de Seelig, Totti se apresentou no DOPS acompanhado pelo gerente da Editora Abril, Michel Barzilai. A dupla foi recebida cortesmente por Seelig, que os levou até sua sala, no segundo andar do DOPS. O delegado voltou a dizer que precisava de Totti para responder apenas algumas perguntas, que exigiriam só algumas horas de permanência ali.
– Ele será bem tratado – tranquilizou.
No embalo, escancarando um sorriso, Barzilai tentou ajudar:
– O Totti só pensa em trabalhar, delegado. Ele é um cara pacífico…
Seelig emendou, retribuindo o sorriso:
– Todos dizem isso, mas tu precisas ver os trabucões que eles usam – replicou, sem esclarecer quem eram “eles”. Barzilai ainda sorria quando o delegado o levou até a porta e o despediu com um abraço e um rijo aperto de mão. Mal fechou a porta, ao se virar Seelig já se transformara. Totti se levantava da cadeira quando o sorriso do delegado simpático à porta se desfez de repente. Seelig, de rosto crispado, aproximou-se e lhe desferiu uma violenta cutilada no ombro esquerdo. O golpe inesperado com a parte externa da mão direita do policial atirou Totti de volta à cadeira. A pancada doeu. Totti ficou surpreso com a violência repentina. Seelig sorriu:
– O que é isso, Totti? Não me leve a mal. É só pra mostrar que aqui a coisa é mais dura do que parece…
– Vou te mostrar nossas instalações – emendou o delegado, percorrendo os corredores do DOPS com o orgulho de quem mostra o conforto de um estabelecimento cinco estrelas. Apresentou as celas e uma delas, no final de uma sala grande, escancarou o inferno daquela hospedaria fora de catálogo: havia dois presos ali, pendurados no pau-de-arara como dois frangos expostos na vitrine.
Um deles era uma mulher pequena, encolhida, totalmente nua, que soluçava em um ritmo cansado. Ignês Maria Serpa de Oliveira, 21 anos, a Martinha da VAR-Palmares, estava naquele antro há quatro meses. Parecia ter chorado muito, durante muito tempo, e o soluço agora era sua última demonstração de alento. Seelig nem olhou para ela. Perguntou ao sujeito que estava ao lado, comandando o interrogatório:
– Tudo bem aí? Alguma novidade? – falou, como quem confere mecanicamente a mercadoria na prateleira. O homem respondeu com um grunhido, que soou como um “até agora, nada”, e Seelig entendeu. Fechou a porta e conduziu Totti para uma nova atração da casa: abriu a porta de outra sala e, com um gesto de mão, mostrou a cena à sua frente. Um homem no pau-de-arara, com a cueca vermelha de sangue. Na cadeira ao lado, outro preso, sentado, com os pés amarrados e fios enrolados em torno dos dedos. Tinha o rosto todo machucado, um dos olhos parecia saltar da órbita ensanguentada.
A visitação parecia ter chegado ao fim. Seelig levou Totti a uma cela onde havia mais duas pessoas e um beliche. Apontou para a parte superior da cama: – Tu vais ficar aqui, por enquanto. Amanhã vamos conversar. Acho que não vou precisar te levar para aquelas celas que visitamos há pouco, né? – disse, em tom que fundia ironia e ameaça.
Totti na “cadeira do dragão”
Nada aconteceu no resto do dia. Na manhã seguinte, quarta-feira, 11, Seelig voltou. Pediu que Totti descrevesse toda a sua vida, contasse o que pensava da política, do governo, do regime.
A “cadeira do dragão” é uma cadeira pesada, com assento, apoio dos braços e espaldar revestidos de zinco. Os pés e os pulsos de quem ali senta são amarrados e as pernas empurradas para trás por uma travessa de madeira. Na parte traseira existe um terminal onde se acopla o magneto que transmite a corrente elétrica, gerada manualmente pela manivela conectada a um dínamo. A “pimentinha” dos torturadores ardia no corpo dos torturados, graças aos cem volts que produziam uma corrente de dez amperes. Uma voltagem duas vezes menor já produz fibrilação ventricular. Com a pele molhada ou a voltagem aplicada diretamente na pele por eletrodos, uma carga de apenas quarenta volts pode ser letal. Um choque de meros dezesseis volts, aplicados diretamente no coração, leva à morte. A ponta dos fios conectados ao dínamo era fixada em pontos sensíveis do corpo – como o mamilo, situado exatamente sobre o músculo cardíaco. (Continua)