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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

17
Jun18

OS CAVALEIROS DO APOCALIPSE

Talis Andrade

 

The4horsemanoftheApocalypse,1498.jpg

 

 

Bela exuberante a vida

dos estudantes que conheceram o amor

na militância do sonho e da poesia

e mantiveram a crença mística

de vencer os quatro cavaleiros

montados nas quatro bestas

os quatro cavaleiros que conduzem

as bandeiras da corrupção

 

Cada cavaleiro uma bandeira

de tenebrosa cor

O verde mofo da pele dos enfermos

o verde-musgo da putrefação nas sepulturas

O encarnado infernal

o sangue pisado

da cruentação dos cadáveres

O negro da auréola de Judas

e das trevas da ditadura

O branco das mortalhas

o macilento branco dos vampiros

e de todas as aparições nefastas

 

Aos jovens o tempo ensina

a vida uma luta sem armistício

contra os cavaleiros do Apocalipse

cada cavaleiro uma bandeira

cada cavaleiro uma arma

o arco a espada

a balança e a ceifa

 

 

---

De Albrecht Dürer (1471-1528),
Os quatro cavaleiros do Apocalipse

13
Jun18

Que pode oferecer uma mulher além da flor do sexo

Talis Andrade

penelope.png

 

 

 

PENÉLOPE

1

Dia após dia

as mãos hábeis

de Penélope

teciam o silêncio

a solidão

 

Dia após dia

as mãos de Penélope

varriam a casa

a vida vazia

 

2

No início

era assim

 

a casa lavada

e arrumada

 

a roupa lavada

e passada

 

o corpo lavado

e perfumado

 

como se de repente

o amante entrasse

quarto a dentro

 

3

A fidelidade uma cobrança

Ulisses como recompensa

a resguardasse com os antigos olhos

que a descobriram

entre tantas moças

Os penetrantes olhos

postos em suas coxas

Os antigos olhos

que a desnudaram

no primeiro instante

tornando-a mulher

em cada dobra do vestido

em cada curva do corpo

em cada devaneio inibido

 

4

O medo

uma constante

à vida vivida

sob a mira

do proibido

 

Desde criança

os passos contidos

A casa  

a escola

a igreja

marcavam

o espaço

permitido

 

Algumas vezes

os sonhos

transpunham

o limiar

da porta

os olhos

se perdiam

por estranhos

territórios

 

Um copo de vinho

podia ser o passe

para uma caminhada

mais distante

Uma música lenta

de amor ardente

podia acordar os sentidos

mas os desejos

vinham e iam

quais marés

sonolentas

 

5

Que pode oferecer

uma mulher

além da flor

    do sexo

 

Do homem a vantagem

o mistério das cicatrizes

a coroa de herói

a legenda de mártir

inscrita nos cárceres

 

De Penélope a sina

de tecer tecer

o que nunca termina

O fazer refazer

das obrigações femininas

 

De Penélope a submissão

da espera

O homem lhe complete

a vida vazia

 

6

Na imprensa nenhuma notícia

Na polícia tudo corria

em segredo de justiça

Com o passar dos dias

o esvaecer da esperança

Nem no aniversário

compensa tecer as tranças

de azul pintar

     os olhos

tomar um banho

     de perfumadas rosas

amainar o corpo

      nos ventos alísios

Não havia alegria

em vestir um vestido novo

Os desejos passaram a dormir

no fundo de um poço

 

7

Ouvira os padres profetizarem

um outro mundo

o marido falar

de um mundo novo

As palavras as palavras  

não podiam tudo

Havia o testemunho

do espelho de prata

a dor de não saber

guardar o verdor do corpo

perante o tempo corrosivo

 

Nenhum deus poderia impedir

os dias devorassem

os belos traços do rosto

os peitos pendessem

como frutos podres

 

 

 

---

Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps  154/160 

13
Jun18

O TORTURADOR AGE IMPUNE

Talis Andrade

torture_victims_day___shaditoon.jpg

 

 

1

Livre da tétrica prisão

como se explica a vítima

não mate o verdugo

que lhe encurralou

entre quatro paredes

que lhe amarrou

na cadeira do dragão

que lhe seviciou

com a empalação

choques no ânus e sexo

 

2

O torturador age impune

consciente da relação

mais que íntima

uma relação inaudita

que lhe une à vítima

Uma relação física

maldita

que repulsa e excita

tão sadomasoquista

que persiste imune

à qualquer tipo

de vindita

 

13
Jun18

TODOS QUEREM ESQUECER

Talis Andrade

ossadas.jpg

 

 

Paira no ar a cumplicidade do silêncio

O medo paralisa toda reclamação de justiça

Pelo visto apenas ficará o registro

125 camaradas permanecerão desaparecidos

Para toda eternidade

125 camaradas permanecerão desaparecidos

os corpos escondidos

nos cemitérios clandestinos

 

===

Cemitério Clandestino de presos políticos. Foto de Claudio Rossi

Talis Andrade, O Enforcado da Ranha, p. 150

03
Jun18

IN MEMORIAM DE LUIZ INÁCIO MARANHÃO FILHO

Talis Andrade

 

luis maranhão filho foto coleção  Rostand Medei

 

1

Nas televisões

a propaganda mostra

a vitória do sistema

o milagre brasileiro

 

Nas rádios

a animação

Pra frente Brasil

 

Nos jornais

a persuasão

Ame-o ou deixe-o

 

Não há espaço

para a notícia

do suposto extermínio

de um jornalista

 

2

Luiz Maranhão permanece desaparecido

Não há como se achar um cadáver

em um país de oito milhões de quilômetros quadrados

Não há como se achar um cadáver

em um mar de quinhentas milhas

Nem justificativa para rezar missa

pela alma penada de um comunista

 

Em defesa da Nova República

a precaução de colocar uma imensa pedra

sobre o cadáver de Luiz Maranhão

Em defesa da Nova República

a prudência de amarrar

o cadáver de Luiz Maranhão

a uma pesada âncora

fixada em secreto

profundo mar

 

 

3

A conspiração do silêncio

mantém todos quietos

A conspiração do silêncio

deixa em paz

os que prendem

e arrebentam

A conspiração do silêncio

tranqüiliza a consciência

dos confrades de Luiz Maranhão

 

4

Não há que rezar missa

pela alma de um comunista

não há motivo para reclamar

o corpo de um jornalista

 

O brasileiro não aceita

o revanchismo

prefere a paz dos túmulos

o povo brasileiro 

 

---

Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, 147/149

Foto Luiz Maranhão Filho/ Coleção de

03
Jun18

DOS VIVOS E DOS MORTOS

Talis Andrade

 

capa_o_enforcado_da_rainha.jpg

 

 

Os que voltaram do desterro

não deixaram nenhum amigo

nenhum vínculo na terra estranha

Os que voltaram se sentem perdidos

tão solitários quando no exílio

Uma vida tão torturada

quanto a do presídio

como se não mais existisse

nenhum conhecido

uma vez que tudo mudou

no mundo dos vivos

 

Dos camaradas desaparecidos

nos guetos e becos

subsistem vagas referências

nos escritos dos brasilianistas

e na lista publicada

por dom Evaristo 

 

 

03
Jun18

A ANISTIA

Talis Andrade

prestes.jpg 

betinho.jpg

arraes.jpg

 

 

O frio vídeo

mostra os rostos

antes censurados

dos que sobreviveram

nos presídios

 

Coloridas televisivas imagens

registram os passos

dos que regressaram

ao convívio dos vivos

trazendo uma conversa

antiga e repetida

 

Os que regressaram

ao convívio dos vivos

parecem fantasmas

tirando das mochilas

dos tempos hippies

obsoletas armas

exóticos brinquedos

baleeira bolas de gude

máquina de escrever

mimeógrafo e panfletos

 

As roupas fora de moda

envelhecidos líderes

discursam os slogans

cantam os hinos

de quando expulsos

do paraíso

 

Pelos labirintos das fábricas

pelos corredores da fome

pelos corredores da morte

envelhecidos líderes

retomam a caminhada

de vinte anos atrás

 

Envelhecidos líderes

ofuscados pelas fugazes luzes

dos flashs azuis

vão demorar a perceber

vinte anos se passaram

em negras nuvens

vinte anos se passaram

em brancas nuvens

 

 

---

Talis Andrade, O Enforcado da Rainha, ps. 143/145

01
Jun18

A TORTURA NUNCA TERMINA

Talis Andrade

estátua da liberdade tortura colonialismo preso .

 

 

1

Na escuridão do cárcere

não persiste a mínima

noção de tempo

A escuridão prolonga

um suplício

que nunca termina

 

Na escuridão do cárcere

o prisioneiro desconhece

quando os encapuzados

vão recomeçar o ritual

das místicas

sessões cívicas

 

Desconhece de onde vêm

os cruciantes gritos

se da cela vizinha

ou dos porões da mente

 

Gritos que não lhe deixam em paz

estouram os tímpanos

Pregos penetram o corpo

revificando os estigmas da crucificação

o sangue a coroa de espinhos os escarros

 

Os pungentes gritos

recordam os sermões

dos tempos de menino

O padre Nicolau

descrevia as estações

                               da via-crúcis

ameaçando com os tormentos

                               do inferno

O corpo aferroado

por tridentes em brasa  

a carne torrificada

no castigo do fogo eterno

A capela exalava

malsinado cheiro

de carne queimada e enxofre

Por toda capela

o beatífico aroma

de incenso e cera

de círios acesos

 

2

O prisioneiro desconhece de onde vêm

os cruciantes gritos

se da cela vizinha

ou dos porões da mente

 

No terror implantado o preso não percebia

quando tudo era um macabro divertimento

o cruel vexatório brinquedo do gato com o rato

ou triste cenário de um banho de sangue

O real o imaginário se (con)fundiam

no surrealismo de uma guerra suja

Nos aviões prisioneiros avisados

de que seriam atirados em alto mar

aterrizavam humilhados por continuarem vivos

Carros os freios sabotados desabavam no abismo

Corpos caiam no poço dos elevadores

Carros invisíveis atropelavam nas esquinas

Prisioneiros alinhados ao pé do muro viam a morte fugir

nos fuzilamentos com balas de festim

Prisioneiros eram trucidados

 em uma simulação de fuga

ou simplesmente sumiam

Outros anunciados como mortos

retornavam lampeiros perambulando pelas ruas

 

3

A imprevisibilidade uma tortura

Os segundos sobressaltante eternidade

Os inquisidores não têm hora precisa

Os inquisidores podem chegar

                     a qualquer instante

 

 

Os segundos se arrastam

Perde-se a noção

de quando dia

de quando noite

Não existe mês

no calendário da escuridão

 

 

Na angustiante espera

o prisioneiro sofre a tortura

de desconhecer

quando chegará a vez

de ser empurrado

pelos campos de sangue

para os subterrâneos da morte

os olhos vendados

para uma viagem sem volta

 

 

---

Talis Andrade, O Enforcada da Rainha, ps. 135/139

 

 

30
Mai18

ASCENSO E MANO TEODÓSIO NO PARAÍSO

Talis Andrade

ascendo.jpg

 

1

Em uma pequena casa uma rua humilde

o corpo de Ascenso

sobrava na cama de solteiro

armada na sala de estar

para esconder das visitas

a pobreza

do quarto de dormir

 

O corpo de Ascenso

a morte veio buscar

A morte veio devagar

triturando-lhe o coração

O coração de poeta

parte fraca

covardia machucar

 

O coração de poeta

desmanchado coração

derretido coração

pelas morenas de cabelos de trança

trançados amores os corpos trementes

enroscados no verde dos canaviais

gemendo lamentos de almas penadas

desencarnadas almas

dos quilombos destruídos

a ferro e fogo e berro

por Bernardo Vieira de Melo

 

2

Mano lembrava Ascenso

o corpo gigante desajeitado

esbarrando nas mesas

e amigos

Mano lembrava Ascenso

no sorriso de menino

no abraço apertado

e imenso

 

De Mano e Ascenso a luta

em diferentes fronts e

confrontos

 

Ascenso imaginárias escaramuças

cantadas nos folhetos populares

duelos de repentistas

brigas de feira e amor

emboscada de macacos

fuga de cangaceiros

enganadora busca

do Tempo de Antes

quando o trem corria

danado pra Catende

 

Mano o sofrimento

por compreender

querer levar aos escravos

a esperança

pelos campos de catequese dos camponeses

aos estudantes o ensinamento

da guerrilha de Che

nos aparelhos clandestinos

 

3

No fígado devorado pelas águias de asas azuladas

os adivinhos buscavam decifrar números nomes

revelados pelos presos no terror

no delírio dos corpos dilacerados

 

Estava Mano deitado no áspero chão

as mãos os pés amarrados

o jovem corpo nu

bonito de ver

apesar dos hematomas

 

apareceu a potestade maior

gritando

para os subordinados

eram uns frouxos

deixassem ele sozinho

que tirava o serviço

 

Expulsos os comparsas

fechou a porta da câmara escura

a pesada porta de bronze

que tudo veda e esconde

 

Serpenteando no chão frio cinzento 

a potestade foi se aproximando

silenciosamente se aproximando

se achegando

e chegando mansamente

abocanhou o pênis de Mano

e mamou

mamou

e babou

como um frágil

inocente

bezerrinho

 

4

Mano conseguia fugir para os mais distantes recantos

correndo solto pelas ruas pelos campos

Vinham ao seu encontro os vultos de mulheres

que amou pelos verdes canaviais verdes gramados

brancas dunas macios leitos leitosas luas

Mano se transportava enlevado pelas estrelas

fachos que iluminam a noite e os bares de Olinda

 

Estava Mano deitado

os olhos vendados

as mãos os pés amarrados

os pensamentos na lonjura

na tontura

os músculos se retesaram

com o frio toque

o bote profissional

da cobra verde

 

Os músculos se retesaram

como acontecia na sessão de choques

os fios elétricos riscando com fogo a pele

Pela vez primeira Mano sentiu medo

O medo de ser castrado escureceu os olhos

 

Secos poços os olhos

As mãos

em carne viva

cavassem na rocha

os poços das lágrimas

As mãos reconquistassem a força

para quebrar as correntes

da verde cana caiana

 

Nas vascas da morte

o corpo desvencilhar-se da rede

dos reacionários

A rede de invisíveis e visíveis malhas

A rede dos terciários

que imobiliza os corpos

e enreda as almas

 

Deitado em leito de plumas

deitado em areias prateadas

despojado no cimento esponjoso

desmaiado no chão molhado

Mano ia e voltava do paraíso

Mano desfalecia e acordava

para beber uma cerveja

no inferno 

 

5

Chegado o novo tempo

pactuado na anistia

gradual geral irrestrita

Mano sentiu-se deslocado isolado

no arraial da fama camaleônica

dos antigos camaradas

a dividir o poder

com os inimigos

 

No mudado tempo

Mano nada pediu

Não pousou de herói

não virou mito

não encenou o papel

de sobrevivente

Quis simplesmente o tento de ser

o Mano de sempre

 

6

Mano fazia política

por amor

um grande amor

à marginalizada gente

que ele liderava

nas barricadas e comícios

 

Mano fazia política

como Ascenso fazia poesia

      por desvairada paixão

       mal de raiz

 

Mano se misturava com o povo

com ternura de flor

pureza de irmão

A inocência de quem tem

dos poetas e dos santos

a pobreza o coração

 

 

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