Nada mais simbólico do governo Bolsonaro que o culto mórbido ao coração de dom Pedro 1o. Tão macabro quanto zombar de quem morreu por falta de oxigênio em Manaus. Tão sombrio quanto incentivar criminosamente a imunidade de rebanho, promover remédios inúteis e desprezar a compra de vacinas, o que levou 700 mil brasileiros aos cemitérios. O prazer de Bolsonaro é a morte.
Governo funesto que celebra o colonizador e a pilhagem da terra, encharcada com o sangue do povo. Não fosse o formol, o pedaço de carne do imperador já teria se desmanchado na poeira dos séculos. É como Bolsonaro, conservado no formol do consórcio mais pavoroso de poder e rapina a tomar conta do país depois da ditadura.
Ele e seus filhos, milicianos, militares incompetentes, falsos religiosos exploradores do desespero alheio, coronéis do agro, vigaristas do centrão e empresários golpistas. Donos do capital que viceja no autoritarismo, dispostos a virar a mesa e a cometer crimes para evitar a derrota do governo que os beneficia, como revelam as conversas divulgadas por Guilherme Amado, no portal Metrópoles.
Se não forem investigados, será uma desmoralização das autoridades eleitorais. Golpismo não pode ser relativizado ou naturalizado, sob pena de nunca sairmos da idade das cavernas em termos de estabilidade política e saúde democrática e institucional.
Demorou muito para que setores importantes da sociedade brasileira e autoridades se manifestassem de maneira firme pelo Estado democrático de Direito, como vimos, recentemente, na divulgação de cartas e manifestos e na posse de Alexandre de Moraes no TSE.
Foi só depois de uma escalada de violência eleitoral que teve seu ápice na morte do petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, assassinado pelo bolsonarista Jorge Guaranho. Por fim, a pregação golpista de Bolsonaro para embaixadores demarcou o limite, bastante elástico a meu ver, do inaceitável. Precisávamos ter esperado tanto?
Uma figura da República, recolhida à discrição desde o 7 de setembro, pode reaparecer nos próximos dias. Mas só se estiver na lista da CPI do Genocídio, entre os acusados de envolvimento nos crimes da pandemia.
É o general Braga Netto, ministro da Defesa, considerado o mais poderoso e fiel militar ao lado de Bolsonaro. Braga Netto aparece e desaparece nas listas especulativas entre os nomes que a CPI entende que devam ser indiciados.
O nome do general é dado mais como incerto do que certo, porque integrantes da CPI teriam dúvidas sobre as motivações para o pedido de indiciamento.
Devem ter dúvidas e devem ter medos, sentimentos que o senador Alessandro Vieira, do Cidadania de Sergipe, parece não ter.
Em relatório paralelo, que poderá ter apenas valor político, Vieira vai apontar Braga Netto como incurso em crimes de responsabilidade, de epidemia e contra a humanidade.
Muitos querem esquecer que Braga Netto foi, no começo da pandemia, o poderoso chefe do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19.
Sentava-se ao lado do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, nas entrevistas coletivas, e não dizia coisa com coisa. Mandetta usava o colete do SUS, e o general aparecia de terno e gravata.
Ninguém sabia ao certo o que ele fazia e do que entendia. Mais tarde, o próprio Mandetta deu informações decisivas para a compreensão da tarefa do general.
Braga Netto, pelos relatos de Mandetta, pode ter sido o primeiro grande lobista da cloroquina no governo. Era a voz escalada por Bolsonaro para desencadear o milagre do tratamento precoce.
Foi ele quem chamou Mandetta para a famosa reunião de 6 de abril do ano passado, em que um grupo tentou empurrar a minuta de decreto do governo que mudaria a bula da cloroquina, para que o remédio fosse indicado para a Covid.
Braga Netto era o coordenador dessa reunião, quando começava a se formar o gabinete paralelo dentro do Ministério da Saúde. Estava lá a médica negacionista Nise Yamaguchi.
Em uma das primeiras entrevistas sobre esse encontro pró-cloroquina, ao site Poder 360, Mandetta disse:
“Não conhecia essa médica. Talvez se ela tivesse ido ao meu gabinete para se apresentar. Perguntei o nome dela e qual a formação. Tinha um outro médico do lado que eu nunca o vi antes e nem depois, esse aí nem guardei o nome […] E tinha mais pessoas lá [na reunião]… tinha o ministro Braga Netto, pessoas fardadas também”.
Tinha o ministro Braga Netto? Era mais do que isso. Braga Netto, como comandante do gabinete da pandemia, era o chefe da reunião. Naquele momento, não poderia ser subordinado a ninguém, nem a Mandetta.
A reunião era dele, de Braga Netto. O que Mandetta sugere é que Nise, alguns subalternos, inclusive fardados, e outros infiltrados foram usados como laranjas para empurrar o decreto, que o então ministro rejeitou.
Ficaram suspeitas, depois dessa reunião, de que Braga Netto seria pelo menos o inspirador do gabinete paralelo, para que Mandetta fosse esvaziado, como acabou acontecendo.
A ascensão de Eduardo Pazuello militariza a Saúde, com sua turma de coronéis, e abre a porta também para as facções negociantes de vacinas que não existiam.
Em julho, Braga Netto foi protagonista de um embate com o senador Omar Aziz. Aziz disse, referindo-se aos intermediários de vacinas, que “membros do lado podre das Forças Armadas estão envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
O general largou uma nota: “Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”.
E fez uma advertência: “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.
As Forças Armadas teriam mesmo a prerrogativa de defender a democracia de pretensos ataques de senadores? Que poder seria esse das Forças Armadas?
Pois Braga Netto é de novo candidato a personagem da pandemia. Talvez seja citado na lista dos que devem ser indiciados. Talvez não.
A CPI pode amarelar e tirar o nome do general que peitou Aziz e o Senado? Saberemos no dia 19, quando sairá o relatório de Renan Calheiros.
É possível que fique de fora do relatório o primeiro comandante da estrutura montada por Bolsonaro para escantear Mandetta e abrir caminho para o gabinete da cloroquina, do negacionismo e da sabotagem à vacinação?
É uma dúvida que pode ser resumida numa interrogação de meia linha: a CPI tem medo de Braga Netto?
Em reunião secreta, Marcos do Val afirma a grupo de médicos que trabalhava para garantir acesso à droga; CFM e Ministério participaram.Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Folhapress
O senador Marcos do Val, do Podemos do Espírito Santo e membro da CPI da Covid, trabalhou com o gabinete paralelo que orientou o uso de medicamentos e políticas públicas inúteis contra a covid-19. Em uma longa reunião privada, classificada pelo empresário Carlos Wizard como um “encontro nacional” com médicos de “27 estados”, o senador foi apresentado como o “padrinho político” da iniciativa.
Uma gravação do encontro foi entregue agora ao Intercept por uma fonte que pediu para se manter anônima por medo de represálias. O material, com confissões até então inéditas, não faz parte dos documentos recolhidos pela CPI. Para preservar a identidade da fonte, o Intercept optou por não publicar a íntegra do vídeo, mas apenas trechos dele.
Numa fala de quase dez minutos, do Val afirmou que trabalhava para convencer autoridades para que adotassem o chamado kit covid, assim como para organizar a distribuição de fármacos comprovadamente ineficazes contra o novo coronavírus. O senador mencionou tratativas dele com as Forças Armadas, governadores, prefeitos, o Ministério Público e a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A reunião ocorreu em 28 de junho de 2020.
“Estou aqui não só como padrinho, mas como ponta de lança para entrar onde vocês vão ter dificuldade”, disse o senador no encontro. “Até peço: não entre na seara política, que é muito complicada. Pode contar comigo que vou estar na neutralidade, não quero e não vou fazer publicidade disso. Para mim, fazer publicidade disso é um crime”.
A confissão do senador – que meses depois mentiu a respeito, como mostram notas taquigráficas de sessão da CPI – foi feita em uma reunião fechada de duas horas do grupo, que se autodenomina “conselho científico independente”.
No mesmo encontro virtual, o médico Emmanuel Fortes, que é um dos vice-presidentes do Conselho Federal de Medicina, o CFM, e membro ativo do gabinete paralelo, confirma que a entidade trabalhou alinhada aos defensores do tratamento precoce para dar garantias a quem prescrevesse a medicação inútil a pacientes de covid-19.
Além disso, o vídeo confirma o papel central de Wizard no gabinete paralelo montado por Jair Bolsonaro para aconselhá-lo no combate à covid-19. Ao longo de mais de duas horas, é ele quem preside a reunião, distribui tarefas e faz pedidos aos médicos que participam do encontro virtual.
O coquetel de medicamentos, que contém cloroquina e ivermectina, é comprovadamente ineficaz contra o vírus que já matou quase 600 mil brasileiros, de acordo com estudos da Organização Mundial da Saúde e da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Eu procurei Marcos do Val para que comentasse o vídeo. Em entrevista, o senador confirmou que trabalhou pela aquisição de cloroquina, mas negou que atuava para ajudar o presidente Jair Bolsonaro, principal interessado em vender a ideia de que a cloroquina significava a cura da covid-19 para incentivar que os brasileiros voltassem às atividades rotineiras e evitassem a retração econômica. Do Val disse, inclusive, que se revolta ao ver o presidente provocando aglomerações, e que nunca esteve em reuniões com ele para tratar de qualquer assunto.
“Não fazia parte de um gabinete ou nenhum conluio. Para mim isso não existia”, disse. O vídeo, contudo, o desmente. Do Val também argumentou que sua atitude foi correta à época, mas que, com o surgimento das vacinas e novas evidências da ineficácia das drogas do kit covid, ele reviu sua posição.
Na época da reunião, no entanto, o governo dos EUA já afirmava não ser “razoável” acreditar na eficácia da cloroquina. E um estudo conduzido pelo governo britânico não encontrou qualquer benefício no uso do medicamento. Ou seja: no mínimo, não havia qualquer informação científica que autorizasse a corrida para inundar o Brasil com comprimidos de cloroquina. Hoje, sabe-se que o uso da droga inclusive aumentou a mortalidade de pacientes de covid-19, segundo uma pesquisa publicada pela revista científica Nature.
Os senadores Jorginho Mello, do PL de Santa Catarina (de máscara) e Marcos do Val cumprimentam o empresário e entusiasta da cloroquina Luciano Hang antes do depoimento dele à CPI, no Senado. Foto: Roque de Sá/Agência Senado
A mentira do senador
Marcos do Val jamais revelou detalhes de sua atuação junto aos médicos, apesar do grupo ser um dos focos centrais da investigação de que ele mesmo faz parte. Pior: durante o depoimento de Wizard à CPI, em 30 de junho passado, do Val apenas disse que foi convidado para uma live com Wizard e que nunca lhe pediram nada.
“Não me foi pedido nada, apoio de nada, absolutamente nada. Então, eu queria deixar claro isto pra sociedade, pra todos que estão assistindo: como eu acabei te conhecendo, como eu acabei conhecendo a equipe de médicos e cientistas”, disse, na CPI.
O encontro secreto mostra outra fotografia. Um ano antes do depoimento prestado por Carlos Wizard, do Val disse que tinha proximidade com o empresário, com o presidente Jair Bolsonaro, e se cacifou como representante dos médicos que buscavam promover um medicamento sem eficácia contra o coronavírus.
O parlamentar revelou que por seus esforços conseguiu “fazer com que as Forças Armadas disponibilizassem oficialmente o Exército aqui no meu estado para armazenar a medicação e fazer a distribuição”. “Consegui recursos com o Ministério da Saúde para compra de mais de 200 mil kits para o meu estado, são 4 milhões de moradores”, orgulhou-se.
Adiante, ele repetiu a afirmação: “A gente está conseguindo fazer o movimento mesmo com o governador [do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB] ter sido contrário, do secretário de Saúde ser extremamente contrário a isso. Consegui [empurrar a distribuição da cloroquina] via Ministério Público, via CRM”, falou, referindo-se ao Conselho Regional de Medicina capixaba.
À época da reunião, o país vivia a primeira escalada de casos de covid-19 e somava cerca de 55 mil mortes. Bolsonaro já havia defendido a cloroquina e trabalhava para viabilizar a importação dos insumos. O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército produzia o medicamento em larga escala.
Mas todo esse esforço já não encontrava respaldo na Organização Mundial da Saúde, que estava revendo pesquisas com a droga por conta do risco do medicamento à saúde dos voluntários. Dias depois, em 4 de julho, a OMS encerraria definitivamente as pesquisas sobre a cloroquina.
Nada disso importava para quem participava daquela reunião virtual. O encantado Wizard contava que via do Val como um lobista do grupo – e da cloroquina – junto a órgãos públicos.
“Por que um grupo de médicos de 27 estados precisa do apoio de um senador que nem médico é? Quero dizer a todos vocês que em alguns momentos específicos, vamos precisar do apoio do senador do Val. Seja diante do Ministério Público, seja diante de alguma questão com a Anvisa, seja diante do Exército, para dispensar os remédios no seu município, no seu estado, seja alguma intermediação com o seu governador, com o prefeito local. Seja muito bem-vindo, senador. Agradecemos e contamos com seu apoio”, aplaudiu o empresário.
As falas de Wizard e do Val foram acompanhadas por ao menos 16 pessoas de todas as regiões do país e que faziam lobby pelo uso do kit covid junto a estados e prefeituras.
‘A gente tem um inimigo muito grande contra esse movimento, que é a Rede Globo’.
No encontro esteve também o atual secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, Alessandro Vasconcelos, que à época era assessor especial da Secretaria-Executiva, comandado pelo coronel Élcio Franco. As médicas Nise Yamaguchi, Luciana Cruz, e os médicos Guili Pech e Roberto Zeballos também participaram.
O senador é novato na política: foi eleito em 2018 na onda do bolsonarismo. Dono de uma empresa que dá treinamentos de segurança a policiais, do Val orientou os médicos cloroquiners a evitarem conflitos e processos judiciais enquanto batalhavam pelo tratamento precoce.
“A gente tem um inimigo muito grande contra esse movimento, que é a Rede Globo. Eu tô botando o nome porque eu me sinto à vontade para falar isso com vocês, para não ter melindre. Não adianta entrar em rota de colisão com a Globo, não adianta entrar em rota de colisão com governador que é contrário, a gente tem que criar estratégia e saber chegar ao resultado sem fazer vídeos batendo, sem fazer vídeos agredindo ninguém. Porque isso vai trazer um processo judicial que vai tirar o tempo de vocês”, explicou o senador.
Em vários momentos da reunião, os participantes relatam estratégias para driblar as políticas públicas de cidades contrárias ao tratamento precoce. Em um dos relatos, a médica Luciana Cruz, que integra grupos que promovem desinformação sobre a covid-19, disse ter convencido os gestores de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, a adotarem o tratamento precoce. Ela apresentou a notícia como uma forma de driblar a resistência ao ineficaz tratamento precoce que havia encontrado na capital do Mato Grosso.
Emmanuel Fortes, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina: ‘É preciso que quem se queixa venha a encontrar provas de que foi a prescrição medicamentosa [da cloroquina] que gerou o dano à saúde’. Foto: Divulgação/Facebook
CFM garantiu disseminação da cloroquina
Ainda que tenha falado menos do que o senador Marcos do Val, o médico Emmanuel Fortes, vice-presidente do CFM, é outra estrela da reunião.
“Eu sou o coordenador do Departamento de Fiscalização e da Propaganda e Publicidade Médica [no CFM]. E sou o responsável, fui o relator do parecer sobre uso off label do medicamento”, ele disse, em referência ao relatório de 2016 que autorizou a prática. “Então, tudo que está sendo feito agora [com a cloroquina] está amparado em uma nota técnica do CFM e no parecer sobre uso off label dos medicamentos”, vangloriou-se Fortes.
O uso off label é a indicação de um medicamento para fins não especificados na bula pelo fabricante nem reconhecidos pela Anvisa. Além do parecer de 2016, uma segunda nota técnica, publicada em 2020 pelo CFM, deu sustentação para que médicos alinhados a Bolsonaro pudessem prescrever cloroquina, ivermectina, azitromicina e outros remédios que não têm nenhum efeito contra a doença causada pelo novo coronavírus sem medo de sofrer punições por infringir a ética médica. O texto de 2020 distorceu o conceito de autonomia do médico para ajudar na disseminação do kit covid.
Assim como o senador, Fortes orienta os médicos a não confrontarem colegas de profissão contrários ao tratamento com cloroquina. Ele argumenta, sem explicar bem seu raciocínio, que os profissionais que desconfiaram – com razão – da cloroquina é que corriam riscos de ser processados por pacientes insatisfeitos.
“Se tiver problemas [derivados do uso da cloroquina], é necessário que haja uma relação de causa e efeito. É preciso que quem se queixa venha a encontrar provas de que foi a prescrição medicamentosa que gerou o dano”, falou, com frieza.
“Agora, [no caso de] quem não prescreve, aí a situação fica muito mais complexa. Basta ir no prontuário e ver que a pessoa não tomou providência preliminarmente e [isso] pode [resultar nela] ser acionada judicialmente. […] A gente tem que dizer àqueles que prescrevem [a cloroquina] que a salvaguarda deles é muito maior do que para quem não prescreve”, calculou Fortes.
Jair Bolsonaro e o general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, o ministro da Saúde que liberou o uso generalizado da cloroquina contra a covid-19: intenção era criar a impressão de que havia uma cura fácil para a doença. Foto: Andressa Anholete/Getty Images
Apoio no Ministério da Saúde
Também participou da reunião virtual o então diretor do Departamento de Gestão do Trabalho em Saúde, Alessandro Vasconcelos. À época, ele era subordinado ao general da ativa Eduardo Pazuello, então ministro interino da Saúde.
Após pedidos dos médicos que estavam na live, Alessandro se comprometeu a enviar documentos da Secretaria-Executiva (à época comandada pelo coronel Élcio Franco) que informassem a data em que os estados receberam cloroquina e a quantidade do medicamento enviado. O objetivo era ter em mãos documentos para pressionar os governadores a distribuir a droga aos municípios.
Vasconcelos se dispôs a interferir junto ao Conass, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, que representa secretários estaduais, em busca de reuniões entre o gabinete paralelo e autoridades locais de municípios que tinham “bloqueios”, classificação no grupo para as cidades em que a cloroquina era barrada.
Diferentemente de quando depôs à CPI, onde se agarrou a uma decisão do Supremo Tribunal Federal e repetiu dezenas de vezes que não iria responder a pergunta alguma, Carlos Wizard parece à vontade ao longo da reunião virtual. Além de coordenar o encontro, ele estimulou que líderes do grupo dessem entrevistas a meios de comunicação para disseminar os efeitos (inexistentes) cloroquina contra a covid-19.
“Seja a doutora Luciana, o doutor Zeballos, a doutora Nise, o doutor Anthony, [ou] os demais membros do conselho. Entra pelo Skype, entra pelo Zoom. O que nós queremos é cada vez mais divulgar esse protocolo de tratamento precoce”, disse Wizard.
Marcos do Val com os colegas senadores Flávio Bolsonaro, do Republicanos do Rio, e Marcos Rogério, do DEM de Rondônia: contra a ciência, jogando a favor da cloroquina. Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado
Senador se diz arrependido
Na quarta-feira, 6 de outubro, à noite, enviei questionamentos à assessoria do senador Marcos do Val. Em seguida, ele mesmo pediu para dar uma entrevista por telefone sobre o caso. Em cerca de 1h20 de ligação, me explicou suas ações e contextualizou a época do vídeo. Depois, ainda me enviou vídeos de suas redes sociais e documentos que a seu ver legitimam sua atuação em prol da cloroquina.
Na mesma noite, Edvaldo Fernandes, da Advocacia do Senado Federal, me mandou mensagem, a pedido do senador, para emitir uma opinião sobre as atitudes dele.
“O senador Marcos do Val reportou o contato de vocês, enviou documentos e esclarecimentos. Pelos dados disponíveis, não identificamos nada de irregular, já que o senador sempre atuou sob o manto da imunidade parlamentar, fez sim defesa de tratamento precoce e preventivo no começo da pandemia, mas convergiu para a posição ortodoxa quando a ineficácia dessas abordagens se provaram cientificamente ineficientes”, escreveu Fernandes.
A advocacia do Senado serve aos senadores, mas é incomum jornalistas receberem posicionamentos desses servidores sem que o órgão seja procurado para esclarecimentos.
Na conversa comigo, Do Val fez questão de mostrar o ofício enviado ao Ministério da Defesa. Como já havia dito na reunião, ele reiterou que intermediou a doação de cloroquina de laboratórios a um hospital privado, que por sua vez repassaria os comprimidos para médicos os receitarem a pacientes em clínicas particulares.
“Não lembro a quantidade, lembro que nem tive acesso a esses remédios, nem vi, nem toquei [neles]. Só falei para os médicos: olha, está chegando [cloroquina] para o hospital [privado] aqui no estado, o MedSênior, eles que vão receber, porque têm toda liberação da Anvisa. E vocês vão pegar lá, cada médico, e botar sua identidade e tudo mais. Eles [os médicos] pegaram e dentro de suas clínicas particulares receitaram”, disse. O senador disse que a articulação foi comunicada ao Ministério Público do Espírito Santo.
Ele disse, ainda, que conseguiu “uma doação que foi feita diretamente de fábrica para hospital, que entregou para os médicos”. “Eram amostras grátis. Fui pedindo rebarba de remédios, que iriam vencer em seis meses, e até a entrega às farmácias estariam vencidos”, acrescentou. Para embasar o que falava, me mostrou um ofício da Eurofarma em que registram a doação em julho de 2020 para a empresa Samedil.
‘A gente ia ser uma linha de ajuda para os médicos que queriam receitar a cloroquina’.
“Hoje, como integrante da CPI, eu vi, foram descortinadas coisas que eram feitas e que, se eu soubesse [na época], não teria participando dos grupos e movimentos”, disse.
Do Val admitiu que em nenhum momento foi cobrado ou trabalhou pela aquisição de respiradores ou insumos para leitos de UTI – duas alternativas reais para salvar vidas –, mas apenas pela entrega de cloroquina aos médicos.
O senador do Val disse que se interessou pela pauta da cloroquina quando teve covid, em maio de 2020. À época, foi procurado pelo médico Fábio Pimenta, membro suplente do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo. No entanto, me relatou que sua atuação só ganhou força após os encontros com Wizard.
“[A live com Wizard] Era exatamente para dizer como a gente ia trabalhar para ajudar. Não era convencer [a sociedade], não, porque não sou médico. Era ajudar os médicos que eram favoráveis. A gente ia ser uma linha de ajuda para os médicos que queriam receitar isso [a cloroquina]”, afirmou.
Ele contou que montou um grupo com 76 dos 78 secretários municipais do seu estado para discutir demandas, e que atuou diretamente com eles, sem procurar o Conasems, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, entidade responsável por tratar e definir políticas públicas junto ao Ministério da Saúde.
Sobre as críticas à Globo, disse que a empresa age politicamente e queria criticar os métodos do presidente. Já sobre sua fala na CPI de que não ofereceu ajuda, disse que ele foi mal interpretado.
“A minha fala de não pedir nada é [não pedir] nada ilícito. Digo que não me pediram nada, eu tenho que complementar com o ‘ilícito’? Eu não sou político de carreira, então tem que ter essa malícia, pode ser que nas próximas eu seja mais detalhista”, esquivou-se.
Após a publicação da reportagem, a Advocacia do Senado enviou uma nota em que repete as considerações ditas por Marcos do Val na entrevista. Ela pode ser lida na íntegra aqui.
Procurei o advogado de Carlos Wizard, Adelmo Emerenciano, e perguntei sobre a reunião, o contato com o senador e articulação do gabinete paralelo. Ele respondeu que, “tendo em vista que não acessou o material da reunião, Carlos Wizard não vai se manifestar”.
O Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina foram procurados por e-mail, mas não se manifestaram.
Médicos de Cuba fizeram um pacto secreto para promover um medicamento ineficaz contra o coronavírus e assim beneficiar o governo do país, gerando na população a falsa impressão de que a pandemia estava sob controle, às custas das mortes de centenas de milhares de pessoas. Isso te deixou indignado? Agora troque por “médicos do Brasil”, porque foi isso que aconteceu, segundo o depoimento à CPI do Genocídio da advogada Bruna Morato, que representa 12 profissionais da operadora de saúde Prevent Senior.
De acordo com Bruna, seus clientes foram constrangidos pela Prevent Senior a utilizarem nos pacientes o “kit Covid”, coquetel de remédios comprovadamente ineficazes para combater a doença, sob orientação do “gabinete paralelo” do governo.
Existia um conjunto de médicos assessorando o governo federal e esse conjunto de médicos estava totalmente alinhado com o ministério da Economia”, contou a advogada. “O que me explicaram foi que existe um interesse do ministério da Economia para que o país não pare. E se nós entrarmos nesse sistema de lockdown teremos um abalo econômico muito grande. Então existia um plano para que as pessoas pudessem sair às ruas sem medo.”
Os médicos envolvidos foram citados nominalmente por Bruna Morato: os bolsonaristas e negacionistas Anthony Wong (que teria morrido de Covid-19, mas a Prevent ocultou), Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto, cada um deles com uma missão específica.
A “estratégia” que eles desenvolveram era “dar esperança para as pessoas irem às ruas, e essa esperança tinha um nome: hidroxicloroquina”, disse a advogada. “A Prevent Senior iria entrar para colaborar com essas pessoas, é como se fosse uma troca, o qual nós chamamos na denúncia de ‘pacto’, porque assim me foi dito. Alguns médicos descreveram como ‘aliança’, outros médicos descreveram como ‘pacto’.”
Randolfe Rodrigues
ATENÇÃO! Informação importante: a advogada Bruna Morato, que representa os médicos da Prevent Senior, disse à CPI que a empresa fez “pacto” com médicos do gabinete paralelo que estariam alinhados com o Ministério da Economia.
Bruna disse ainda que os médicos que se negavam a ministrar o “kit Covid” eram repreendidos publicamente, demitidos ou tinham seus plantões reduzidos. E os pacientes foram induzidos a assinar um termo que não era de consentimento quando recebiam os medicamentos, sem serem informados dos estudos desautorizando peremptoriamente o uso da hidroxicloroquina, da ivermectina e de outros remédios do “kit” para tratar a doença.
Traduzindo: por questões ideológicas e econômicas, médicos orientaram outros a utilizarem remédios que não funcionam em pacientes com Covid-19. Uau. Está explicado o ódio dos bolsonaristas pelos médicos cubanos. Elogiados pelo secretário-geral da ONU por seu trabalho humanitário, não há notícia de que os médicos cubanos tenham se curvado a um governo, rasgando o juramento de Hipócrates e deixando de salvar vidas, missão primordial da profissão.
Leonardo Rossatto
@nadanovonofront
A BRUNA MORATO EXPÔS UMA DENÚNCIA DE QUE A PREVENT SENIOR DIMINUIA DELIBERADAMENTE A OXIGENAÇÃO DOS PACIENTES APÓS 14 DIAS DE INTERNAÇÃO NA UTI PARA "LIBERAÇÃO DE LEITOS". ELES TRABALHAVAM COM O PRINCÍPIO DE QUE "ÓBITO TAMBÉM É ALTA". HOMICÍDIO SIMPLES ASSIM.
O ódio dos médicos de extrema direita aos colegas cubanos começou em 2013, quando a presidenta Dilma Rousseff lançou o programa Mais Médicos e importou profissionais da ilha para atuar nos lugares onde os brasileiros se recusavam a trabalhar (e depois que eles foram embora continuam a recusar, sobretudo nos distritos indígenas). Uma das cenas emblemáticas do período aconteceu em Fortaleza, na chegada do primeiro grupo de cubanos ao Brasil, quando médicos foram ao aeroporto hostilizar os colegas, com vaias e gritos de “volta pra senzala”.
Não por acaso, entre eles estava a médica Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, secretária de Gestão do Trabalho do ministério da Saúde de Jair Bolsonaro.
Lola Aronovich
@lolaescreva
Conheça a história da pediatra Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina. Na foto de 2013, ela grita "Volta pra senzala" pra médico cubano q chegava ao aeroporto de Fortaleza. Ela foi candidata à dep fed (2014) e senadora pelo PSDB (2018), mas ñ se elegeu. Essa desgraça é do Ceará.
Antes de assumir o cargo, Bolsonaro ofendeu tanto os médicos cubanos, duvidando inclusive de sua formação, que o governo da ilha decidiu, em novembro de 2018, chamar de volta os 8300 profissionais. O CFM (Conselho Federal de Medicina), bolsonarista de primeira hora e que tem apoiado todas as decisões absurdas do governo em relação à Covid-19, também combateu ferozmente o programa, uma das razões do ódio de classe ao PT que culminou no golpe contra Dilma, ao lado da PEC que garantiu direitos trabalhistas às empregadas domésticas. E sobre o “pacto da cloroquina”, o que dirá o CFM?
Se dedicar a salvar vidas deve mesmo gerar muito ódio em médicos que só pensam em ideologia, grana e poder. Ser um profissional de saúde comprometido com o bem estar e a vida das pessoas deve mesmo gerar muito ódio. Médico fazendo pacto para dar remédio que não funciona a paciente? Sem dúvida os cubanos jamais seriam cúmplices de atitudes criminosas assim.
Em meio a tantos absurdos que se somam a cada dia, foi revelado de forma quase natural a raiz de tanto horror no combate à pandemia pelo governo federal: doentes fazem mal à economia.
Depois de uma sequência de inépcia, descaso, militarização, charlatanismo, falta de empatia, desprezo à ciência, crueldade, corrupção e outros crimes, a verdade final foi dita com todas as letras. Havia um pacto, uma aliança, uma estratégia ditada a partir da economia. Ou melhor, como foi explicitado, do Ministério da Economia. As digitais de Paulo Guedes não estão apenas nas planilhas dos péssimos números das finanças públicas, mas nas quase 600 mil vidas perdidas.
Todos devem se lembrar da antiga e insensata disputa apresentada entre a dimensão sanitária e econômica da pandemia. Parecia que havia se estabelecido um dilema entre sanitaristas e economistas, sobre a melhor forma de enfrentar a doença e suas consequências para a sociedade. Na falsa contraposição, um lado não se importava com as baixas para os negócios e empregos; o outro não tinha sensibilidade para a dor das famílias. O desprezo pelas ciências da vida se escorava numa preocupação com a vida material. Chegou-se a dizer que padeceríamos de mais mortes por desemprego e suicídio do que pelo vírus.
Na verdade, a divisão foi apresentada pelo governo federal como anistia para sua ação negacionista no combate à doença, que apostava na morte como saída biológica inevitável, travestida na ideia de imunidade coletiva ou de rebanho. Por isso não cabia investir em testes, vacinas, atendimentos e medidas não farmacológicas. Era só deixar a morte fazer seu trabalho saneador e suspirar um desumano: “e daí, todo mundo morre um dia”. Há um componente sadomasoquista no fascismo. De um lado, defende-se o extermínio dos fracos; de outro, submete-se ao poder como forma de se sentir próximo a ele. O fascista é antes de tudo um covarde.
O que vem sendo revelado nos últimos dias é mais grave e profundo. Não houve apenas uma abordagem equivocada em termos científicos, mas um plano traçado estrategicamente para que chegássemos aonde chegamos. As mortes por covid-19 não foram uma consequência, mas um instrumento utilizado com método. Além do Ministério da Saúde, foram convocados tanto alguns profissionais da área, como falsos profetas do tratamento precoce, como empresas e planos de saúde. A ordem foi dada: matem os brasileiros doentes porque eles fazem mal aos negócios. O comando foi assassino, mas travestido de liberalismo.
Progressão do terror
Frente a isso, a incompetência gerencial, a falta de uma política consequente e até os esquemas de corrupção traçados para a compra de vacinas, com toda sua gravidade, são ações de criminosos menores e até certo ponto medíocres. Há uma progressão de terror entre um burocrata, comerciante ou deputado que combina a compra de insumos com propina e um dirigente de plano de saúde que mata seus pacientes para fechar as contas e nutrir a falsa esperança de que está tudo bem e que já passou a hora de sair às ruas. No primeiro caso a morte é uma consequência hedionda, no segundo é o motivador da ação.
O que a CPI da covid revelou nos últimos dias, com os procedimentos experimentais que só encontram paralelo no nazismo, praticados pela Prevent Senior, além de estarrecedor é metódico. E coletivo, já que defendidos, entre outros, por Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto (e até Anthony Wong, mártir da própria infâmia) e financiado por empresários como Luciano Hang.
O que foi feito, às custas da vida de pessoas que pagaram para receber atenção, é exatamente o cumprimento do que foi chamado de “pacto”, a partir de uma demanda do Ministério da Economia. Vale tudo no campo sanitário para devolver a dinâmica dos negócios e fazer girar a roda da economia, dos tratamentos ineficazes à falsa sensação de segurança conferida por eles. De quebra, se abre uma franja de oportunidades para empresários inescrupulosos dispostos a lucrar com a pandemia.
No entanto, não se trata apenas de um projeto genocida para salvar a vida material, mas de um programa que visava também aumentar os ganhos da operadora disposta a levar esse alinhamento à frente. Um prêmio macabro pela subserviência ao poder e indigência ética na condução de seu negócio. Em outras palavras, além de contribuir para o propósito de criar uma impressão de normalidade para empurrar as pessoas para as ruas e o contágio, a Prevent Senior agia em nome de seus próprios interesses econômicos.
Em primeiro lugar, apresentando-se como opção de baixo custo para seus clientes. Em seguida, pela busca de protagonismo em protocolos que utilizavam tecnologias e medicamentos ineficazes e perigosos. Para isso, criou falsos procedimentos de pesquisa, deturpou dados e pretendia se lançar como alternativa assistencial reconhecida mundialmente. Para levar adiante esse projeto, usou pacientes como cobaias, encurtou tratamentos e tirou pacientes graves de respiradores. Há uma relação entre a morte e a liberação de leitos.
Não se sabe onde se localiza a maior desumanidade, se na obediência aos interesses de Guedes e do mercado ou na deturpação da assistência para garantir corte de custos. Nos dois casos, o imperativo da economia era apresentado como um valor e os doentes, sobretudo os mais graves, como um problema a ser retirado do horizonte. Valia tudo: falsear dados de pesquisas, retirar diagnósticos do prontuário, deslocar pacientes da UTI para unidades paliativas sem informação aos responsáveis, fornecer medicamentos inservíveis como alternativa para famílias desesperadas, ameaçar médicos e outros profissionais que não concordassem com a farsa. Falsificar atestados de óbito e praticar eutanásia.
Horror
Como relatou a advogada dos médicos da empresa, Bruna Morato, havia uma aliança direta entre os interesses do Ministério da Economia e a empresa, para que o país “não parasse”. Os profissionais que compuseram o gabinete paralelo, muitos deles com passagens pelo plano de saúde e sedentos de poder e cargos, garantiram que o plano para fazer a economia seguir sem percalços tinha respaldo em decisões técnicas, o que não era verdade e deixava a cada dia um rastro maior de mortes e sofrimento.
O alinhamento entre a economia e a política de saúde executada pelo governo federal, com contribuição criminosa de alguns profissionais ambiciosos e empresas deformadas moralmente, não tem outro nome: horror. Não é incompetência, ganância ou negacionismo. Vai além da política pública, sobrepuja a corrupção, está muito distante da mera ignorância. É um pacto com o mal, no sentido mais profundo da expressão. Não é possível ir mais baixo na escala humana.
A Conferência de Wannsee consistiu num jantar, realizado nos arredores de Berlim, com membros superiores do governo nazista alemão juntamente com líderes das SS, organização miliciana, sob a chefia de Heirinch Himmler (1929-1945), sendo a principal polícia paramilitar de vigilância e terror durante o período da Alemanha nazista. O objetivo da reunião era o de coordenar todos os esforços dos chefes dos ministérios do governo e de seus servidores na implementação da Solução Final pela qual grande parte dos judeus das regiões europeias invadidas pela Alemanha seria deportada para os campos de concentração na Polônia para serem eliminados em massa.
A primeira grande dúvida apresentada pelos participantes girou em torno de qual tratamento deveria ser dispensado àqueles que não eram 100% judeus: deveriam ser mortos ou apenas esterilizados? A segunda questão centrou-se na definição de quais métodos de matar seriam utilizados para o genocídio. A reunião não durou mais que uma hora e meia; depois que foram servidos drinques e todo mundo almoçou, ficou decidido que 11 milhões de judeus tinham de ser assassinados. (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Companhia das Letras, 1999, 16ª. impressão).
Ontem, a CPI da Covid, instalada no Senado Federal, cumprindo um papel histórico de desvelamento da realidade obliterada pela orquestração da estrutura de poder que assaltou o país desde o Golpe de 2016 (Temer, PSDB, PMDB, Mídia, Militares, Judiciário, Capital, Religião e EUA), tornou público, por meio do histórico depoimento da advogada Bruna Morato, a permissão que a Prevent Senior tinha para matar, em nome de uma orquestração nefasta desenvolvida no seio de setores do governo bolsonarista.
A advogada afirmou que os administradores e médicos da cúpula da operadora de saúde se sentiam seguros para utilizar seus protocolos de morte, cientes de que não seriam fiscalizados pelo Ministério da Saúde, sob o comando do General Pazzuelo. De acordo com ela, existia um pacto, intermediado pelo Gabinete Paralelo (Nise Yamagushi, Paolo Zanoto, Anthony Wong, entre outros médicos) pelo qual a seguradora poderia implementar suas experiências com medicamentos ineficazes, que nos casos de aplicação em pacientes idosos eram repetidamente letais. Em 20 de maio de 2020, a doutora Mayra Pinheiro (PSDB-CE), que continua ainda hoje como secretária de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério da Saúde, apresentou uma nota informativa pela qual fazia recomendações sobre o uso da hidroxicloroquina. Neste mesmo período, o maior garoto-propaganda do tratamento precoce era Jair Bolsonaro. Mayra Pinheiro citou a Prevent Senior como se fosse um “case” de sucesso. Portanto, a Prevent Senior estava no centro das artimanhas concertadas pelo poder. (https://www.brasildefato.com.br/2021/09/28/prevent-senior-tinha-permissao-para-matar-em-nome-de-formula-milagrosa-diz-senador).
O senador Rogério de Carvalho (PT-SE), membro da CPI, resumiu o depoimento da seguinte forma: “Estamos falando de homicídio abertamente. A Prevent Senior tinha autorização do governo, tinha autorização do Conselho Federal de Medicina, autorização do Ministério da Saúde, tinha autorização para matar em nome de uma “fórmula milagrosa” para apresentar à sociedade a fim de ela retornar ao trabalho”, como, por exemplo, defenderam desde o início Paulo Guedes e Jair Bolsonaro.
Em meio a toda essa fetidez criminosa, recorde-se que, em seu delírio de poder, o general do twitter, ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, em 11 de janeiro de 2019, sentiu-se empolgado para anunciar em discurso de despedida o “Novo Rio da História”, fundado, segundo ele, na conjugação de três linhas ideológicas de práxis autoritária: o fascismo bolsonarista, a persecução-jurídica morista e a força armada braganetista. Afirmou o general naquela ocasião: “a nação brasileira festeja os sentimentos coletivos que se desencadearam a partir da eleição de Bolsonaro”. Indaga-se: que sentimentos seriam? Os mesmos da Wannsee alemã? Sentimentos de extermínio da população brasileira?
Em junho último, auge pandêmico, publicamos aqui a palavra de especialistas a explicar, com propriedade, por que não se deve propugnar pelo equilíbrio jornalístico quando um dos lados nega a ciência. “Ao dar amplo espaço aos discursos presidenciais contrários às medidas não-farmacológicas e a favor de drogas sem eficácia, como a cloroquina, na maioria das vezes sem problematizá-los, as mídias contribuíram para a disseminação da tese completamente equivocada e antiética da imunidade natural de rebanho”, destacava Cláudia Malinverni, jornalista, pesquisadora do Instituto de Saúde de São Paulo.
De forma condescendente, a imprensa expunha considerações de Osmar Terra e Nise Yamagushui de uma parte, e de infectologistas e epidemiologistas conceituados de outra. Como legado, parcela dos leitores ficava com os primeiros, para risco de sua vida. Quem comprou negacionismo agora pode comprar, sem receio, a versão oficial sobre a facada que tornou Jair Bolsonaro presidente do Brasil.
Essa ânsia por pluralidade, uma pluralidade acrítica, substitui em certos veículos o ímpeto investigativo. Repórteres amarrados ao “fontismo”, que são presenteados com furos e os publicam sem critério ou checagem, predominam. Possuir o celular de um político, ou de um assessor dele, está valendo mais do que gastar sola de sapato para descobrir a verdade. Colunistas de notas maliciosas de três linhas viram celebridades.
Não se bancam reportagens de fôlego, salvo exceções. As revistas semanais publicam apanhados editorializados do noticiário diário. Preguiça de investigar, medo de afrontar poderosos (principalmente os da finança), receio de afugentar anunciantes e de contribuir para que o poder no Brasil mude, de fato, de mãos – é o jornalismo estabelecido, hoje saudavelmente confrontado pela mídia progressista da Internet.
Nesse contexto, é natural que o documentário da TV 247 “Bolsonaro e Adélio: uma fakeada no coração do Brasil” incomode tanta gente, a despeito de ser aplaudido em volume muito maior.
Conheci Joaquim de Carvalho nos anos 80, na redação do jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, numa rápida passagem. Tempos depois, trabalharíamos juntos em outros veículos, um dos quais tendo eu como editor e ele como repórter, outro com ele editor, eu colaborador esporádico. Em qualquer função, Joaquim é pragmático: desconfiar da versão oficial lhe é espontâneo, caçar a verdade factual é seu oxigênio.
Os pluralistas de fachada jamais se entenderão com Joaquim de Carvalho, mesmo porque muitos deles são, na verdade, porta-vozes do reacionarismo que legou ao Brasil Jair Bolsonaro. Um reacionarismo ora arrependido pero no mucho.
Reacionários à moda nativa gostam de posar de liberais, de democratas conservadores, mas não enganam ninguém. O bom conservador situa-se entre os limites da régua democrática e não compactua com sua quebra – este aplaudiu “Uma fakeada no coração do Brasil”. O reacionário que diz não compactuar com Bolsonaro mas ataca a megarreportagem da TV 247 recusa-se a abraçar a denúncia contundente, permanecendo apegado às críticas que não dão em nada e, claro, contorcendo-se de inveja por jamais ter produzido algo tão forte.
QUANDO O MUNDO estava atônito com a ascensão de presidentes de extrema direita em 2018, escrevi sobre um artigo alemão que dava dicas para jornalistas de como confrontá-los. Um resumo delas: faça perguntas básicas e técnicas, e não dê espaço para o proselitismo ideológico, que é a única arma de um extremista em um debate. Mantenha a conversa no campo técnico e não permita que ela caia para o debate moral, que é a seara em que eles se sentem mais à vontade. Todo extremista é, via de regra, um sujeito com intelectual limitado e invariavelmente se enrola com perguntas simples e técnicas.
Durante um debate no primeiro turno da eleição daquele ano, o jornalista Reinaldo Azevedo fez uma pergunta das mais simples sobre dívida interna para Bolsonaro. O então candidato ficou tenso, gaguejou e parecia estar à beira de sofrer a mesma síndrome vasovagal que derrubou Pazuello na CPI. A resposta do candidato foi um ajuntamento de palavras aleatórias que formavam frases desconexas e sem qualquer relação com a pergunta.
Foi essa a tática utilizada pelos senadores de oposição na última terça-feira na CPI da Covid durante o depoimento da médica negacionista Nise Yamaguchi, que recentemente se tornou a nova queridinha da extrema direita.
Os senadores bolsonaristas estavam otimistas com o depoimento da doutora. Além de estar alinhada ao presidente, ela ostenta um belo currículo na área médica. Os senadores governistas esperavam que isso fosse dar alguma credibilidade às teses negacionistas, mas o que se viu foi o contrário. As pretensas explicações científicas de Yamaguchi não resistiram ao escrutínio dos senadores oposicionistas que estavam afiados. Eles se focaram em questões básicas e técnicas, sem dar margem para o proselitismo negacionista.
O ponto alto do constrangimento de Yamaguchi veio quando Otto Alencar, que também é médico, fez uma pergunta simples: “qual é a diferença entre protozoário e vírus?”. A médica, que defende fervorosamente a aplicação de um remédio para protozoário para combater um vírus, não soube responder. Otto emendou então outra pergunta elementar: “a senhora sabe a que grupo pertence a covid-19?”. Ela ficou nervosa, começou a murmurar e a folhear papéis como se estivesse procurando uma resposta. Quando Yamaguchi tentou apelar para o enrolation, Otto não deixou o lenga-lenga negacionista florescer. Interrompeu a doutora e cobrou uma resposta para suas perguntas técnicas, mas, mais uma vez, ficou no vácuo.
Yamaguchi, que era apresentada pelo bolsonarismo como uma especialista no enfrentamento da pandemia, se mostrou uma profunda ignorante na área de infectologia. Uma pessoa completamente despreparada foi alçada pelo governo Bolsonaro à condição de conselheira de alto nível para assuntos relacionados à pandemia. É esse o tamanho do buraco em que nos encontramos.
O relator emedebista Renan Calheiros perguntou qual a opinião de Yamaguchi sobre as vacinas. Ela respondeu que a imunização não é o único caminho para combater a pandemia, dando a entender que as vacinas têm o mesmo nível de importância que o famigerado tratamento precoce. O presidente Omar Aziz então a interrompeu para pedir para o povo não acreditar nela: “não acreditem nela. Quem está nos vendo neste momento, não acredite nela. Tem que vacinar. A vacina salva. Tratamento precoce não salva. Não vou fazer propaganda enganosa para a população brasileira. Eu tenho responsabilidades aqui, e a responsabilidade é grande”. Um golaço. Omar deixou claro que não haveria mais espaço dentro da CPI para se contrariar um consenso científico. O tratamento precoce é comprovadamente ineficaz e não se pode admitir que uma profissional médica trate um consenso científico como se fosse mera questão de opinião.
A senadora Eliziane Gama, do Cidadania do Maranhão, perguntou se a médica já teria se vacinado. Ela respondeu que não pôde tomar a vacina por ser acometida de vasculite, uma doença autoimune. Pouco tempo depois, a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a SBR, emitiu nota desmentindo: “(…) vasculites não representam, por si só, qualquer contraindicação para receber qualquer vacina contra a covid-19″.
Depois, a depoente disse para os senadores que foi integrante do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o Conass. Poucos minutos depois, o próprio Conass publicou nota declarando que Yamaguchi não possui qualquer vínculo com a entidade. Confrontada com a nota, a doutora admitiu que não fez parte do conselho e, como se nada tivesse acontecido, alegou apenas que tem apreço pelos secretários da entidade.
As mentiras escabrosas foram muitas e não pararam por aí. A oncologista mentiu quando afirmou ter feito parte da criação do comitê de crise do Ministério da Saúde para o enfrentamento da pandemia de H1N1 em 2009. José Gomes Temporão, o ministro da época, a desmentiu. Mentiu ao dizer que o estado do Amapá tem uma das menores taxas de letalidade da doença do mundo graças ao uso do tratamento precoce. Mentiu ao citar um estudo de Nova York que comprovaria a ineficácia do lockdown. Mentiu ao dizer que o governo mexicano recomenda uso de hidroxicloroquina. Mentiu quando disse que nunca teve encontros privados com Jair Bolsonaro.
As agências de checagem tiveram trabalho. A doutora mente demais até mesmo para os altos padrões bolsonaristas. Nem o festival de mentiras protagonizado por Pazuello na CPI foi tão ostensivo.
O depoimento de Yamaguchi foi uma derrota e tanto para o bolsonarismo. Senadores e outros políticos governistas iniciaram então uma campanha em defesa da médica, alegando que ela foi humilhada e desrespeitada pelos senadores de oposição durante a CPI. Um grupo de médicos saiu em defesa da colega, incentivados pelo presidente do Conselho Federal de Medicina, que está aparelhado por bolsonaristas. Ele agitou uma reação corporativista da classe ao gravar um vídeo em que anuncia a publicação de uma moção de repúdio em defesa do profissional médico, ao respeito e à civilidade na CPI. A narrativa é a de que toda a categoria médica estaria sendo desrespeitada na comissão. Mas quem de fato desrespeita a profissão de médico são os médicos que desrespeitam a ciência.
Os extremistas estão sempre tentando tirar o debate na área técnica para levá-lo para o campo moral. Yamaguchi foi humilhada sim, mas pela verdade dos fatos. Desrespeitada não foi em nenhum momento, muito pelo contrário. Os senadores a trataram com cordialidade a todo momento. Apenas tiveram a firmeza necessária para quem está investigando as responsabilidades de um crime contra a humanidade. Ficou claro que a doutora não tinha a menor condição de se apresentar como conselheira do governo no combate à pandemia.
Um dia após o depoimento de Yamaguchi, outra depoente médica, Luana Araújo, aquela que foi chamada para trabalhar com Queiroga mas foi barrada por não estar alinhada às loucuras negacionistas, classificou a defesa da cloroquina no tratamento precoce como uma “discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”. São adjetivos feitos sob medida para o depoimento de Yamaguchi.
A tática utilizada para desmascarar a falta de conhecimento técnico da médica bolsonarista pode ser um aperitivo para as eleições de 2022. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro pode até fugir dos debates, mas não vai poder ficar apenas naquele cercadinho em que todos os dias alimenta o seu gado. Vai ter que se expor, dar entrevistas e responder questões básicas e técnicas para quem ocupa o cargo de presidente. Esse é um bom caminho para se enterrar o extremismo.