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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

18
Jul23

O padrão da propaganda fascista

Talis Andrade
 
Imagem: Jose Francisco Fernandez Saura

 

Considerações sobre uma pesquisa de Theodor Adorno

 

por Maurício Vieira Martins 

Cresce no espaço público o debate sobre as razões que levam ao surgimento no mundo contemporâneo de lideranças com características regressivas muito evidentes. E que não se diga que se trata de um fenômeno apenas brasileiro: com diferenças nacionais sem dúvida marcantes, também os países do G7 assistem à emergência de lideranças autoritárias. Nos Estados Unidos, mesmo notórios integrantes do Partido Republicano de Donald Trump se pronunciaram sem maiores rodeios sobre isso: “há um nome para o tipo de política de Trump: neofascismo”.[1]

Por outro lado, o debate sobre as circunstâncias que geram regimes autoritários é muito mais antigo do que se supõe. Abordado já por Espinosa em seu Tratado Teológico-Político – que argutamente lembrava que, permanecendo as causas da tirania, um tirano derrubado logo será substituído por outro –, ele atravessa toda a modernidade até chegar ao século XXI, onde foi retomado por pensadores proeminentes. Dentre eles, há um texto de Theodor Adorno que merece ser destacado. Trata-se de um ensaio de 1951, intitulado A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista.[2]

O texto insere-se num programa de pesquisa mais amplo que Theodor Adorno desenvolveu em diferentes momentos de sua vida (em parceria com Max Horkheimer e outros pesquisadores), programa que gerou também o volumoso livro A personalidade autoritária. Quanto ao referido ensaio, embora conhecido em círculos mais especializados da filosofia e das ciências humanas, ele apresenta a nosso juízo vetores ainda a serem explorados, que chamam a atenção precisamente por sua atualidade. Tal ocorre por se situar num campo de interseção muito fecundo entre a filosofia, as ciências sociais e a psicanálise, mobilizando conceitos que buscam aclarar a complexidade do momento histórico vivido por Theodor Adorno, que apresenta desdobramentos que hoje nos atingem em cheio.

Theodor Adorno inicia seu texto chamando a atenção para a pertinência de algumas categorias desenvolvidas por Freud em 1921 – anteriormente ao apogeu do fascismo, portanto – no livro Psicologia das massas e análise do eu. O hiato de 30 anos que separa o escrito freudiano do ensaio de Theodor Adorno não impediu que este último apontasse com segurança para a produtividade da elaboração do pai da psicanálise.

Resumindo aqui um longo trajeto, Freud se indaga pelos mecanismos que propiciam a forte coesão obtida por um líder entre seus liderados. Sua análise desvela a ligação libidinal existente entre eles,[3]promovendo uma união em torno do mesmo objeto, o próprio líder. Mesmo que dessexualizado, este vínculo fornece o esteio de um certo tipo de laço social onde são secundarizados os traços singulares de cada participante, em nome da coesão do grupo agora formado. Freud destaca em particular a importância dos processos de “identificação” que se dão tanto entre cada um dos liderados e o líder, como também, horizontalmente, entre os que formam aquele grupo.

Momento decisivo no argumento freudiano é quando ele demonstra que o líder passa a ocupar um lugar preciso na economia psíquica de seus liderados. Trata-se do “ideal do eu”, instância psíquica de origem arcaica, relacionada àquilo que formamos como nossos ideais, lugar que nos garante um reconhecimento. Estamos diante de “uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu” (Freud, p. 59).

Consequência disso, acrescentamos, é que a imagem do líder se aloja no psiquismo de seus liderados, tornando-se indiscernível da do próprio seguidor. É esta cola identificatória que permite entender porque mesmo ações gritantemente equivocadas da liderança podem ser endossadas por seus seguidores. E explica também porque as críticas dirigidas a ela são sumariamente rechaçadas: tudo se passa como se os próprios seguidores se sentissem criticados…

De resto, para quem cultiva uma visão idealizada do psiquismo humano, um dos momentos mais desconcertantes do texto freudiano é quando ele sustenta que a qualidade do afeto partilhada pelos liderados não necessita ser positiva: também o ódio é capaz de unir sujeitos distintos (Freud, p. 42). Aqui, o laço social adquire sua feição mais sombria. Ao invés da possibilidade de um projeto civilizatório, entra em ação um grupo com evidentes características destrutivas.

Dada a presença recorrente de categorias freudianas no ensaio de Adorno, poderia-se supor uma quase-identidade entre as posições dos dois autores. Mas esta impressão não é de todo correta. A partir de certo momento de seu texto, Theodor Adorno menciona a necessidade de uma teoria explícita da sociedade para o entendimento da massa fascista que lhe interessa analisar. O leitor presencia então um engenhoso giro argumentativo, que desvela uma nova face do pensamento adorniano: “o fascismo como tal não é uma questão psicológica….Numa sociedade completamente reificada,…, na qual cada pessoa foi reduzida a um átomo social, a uma mera função da coletividade, os processos psicológicos, apesar de persistirem dentro cada indivíduo, deixaram de aparecer como forças determinantes do processo social” (Adorno, 2018).

Assim, o que de início parecia uma restitutio in integrum da teoria freudiana, acaba nela operando uma inflexão que, mantendo sua produtividade, introduz agora determinações societárias decisivas. Dentre estas últimas, surge uma questão central: quem são aqueles, afinal, que caem nas malhas das lideranças fascistas? No segmento final de seu ensaio, sobressai o Adorno estudioso da reificação das relações numa sociedade capitalista: “O segredo da propaganda fascista pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens pelo que eles são – os verdadeiros filhos da cultura de massa estandardizada atual, amplamente despojados de autonomia” (Adorno, 2018).

Estamos diante de um peculiar “individualismo sem indivíduo”, momento histórico que ao mesmo tempo em que apregoa a importância da individualidade, na prática esvazia a efetividade de cada indivíduo, tornando-o um joguete de forças impessoais. Neste sentido, o líder fascista responde tanto às instâncias psíquicas de seus liderados como à ausência de horizontes e às profundas cisões de numa sociedade mercantilizada. Nas palavras de Adorno, torna-se por isso um “mandatário de interesses econômicos e políticos poderosos”: agora, o foco da análise incide sobre uma configuração histórica precisa.

Incidentalmente, esta explícita referência aos interesses objetivos presentes no regime fascista permite testar a atualidade do estudo de Theodor Adorno numa aproximação com o Brasil contemporâneo. A produção acadêmica já disponível sobre o governo Jair Bolsonaro (caracterizado por muitos como neofascista) chama a atenção para o fato de que uma análise apenas política do atual regime é insuficiente. Para além das declarações ruidosas do presidente – que ocupam lugar de destaque na mídia – há uma agenda econômica particularmente perversa sendo implementada, que penaliza sobremodo os setores mais vulneráveis da população.

Sobre isso, dentre os vários exemplos disponíveis, citemos aquele escolhido com precisão pelo historiador Marcelo Badaró: a ida de Jair Bolsonaro ao STF em maio de 2020, acompanhado por nada menos do que 15 dirigentes de entidades empresariais, “numa teatral ‘marcha ao Supremo’, com claro objetivo de pressionar o judiciário a abrir mão das garantias constitucionais à vida humana, em nome do ‘salvamento dos CNPJ’”.[4] (E se tomarmos como referência o caso clássico alemão, é bem conhecido o seu financiamento por gigantes como a Krupp e a Siemens).

Retornando a Adorno, cabe lembrar que, como todo autor proeminente que gerou um ciclo interpretativo, existem críticas a seu trabalho que merecem ser conhecidas. Fugiria aos objetivos deste breve escrito enumerar tais críticas. Mencionemos apenas aquela feita pelo filósofo Anselm Jappe que, embora reconhecendo a relevância do projeto de Theodor Adorno, diverge de sua tácita postulação de uma sociedade totalmente administrada, pois ela finda por desconsiderar contradições disruptivas que são próprias a diferentes formações sociais.[5] Este não discernimento das fissuras do capitalismo de seu tempo é paradoxal, se levarmos em conta o fato de que Theodor Adorno era também um estudioso de Hegel, precisamente o pensador que, distanciando-se das filosofias da identidade, ofereceu uma seminal contribuição para o entendimento das contradições.[6]

Isso posto, ainda assim o ensaio A teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista se encerra com uma nota otimista. Theodor Adorno sustenta que, embora intenso, o domínio dos liderados por seu líder contém uma artificiosidade que o torna vulnerável à irrupção de um real que insiste em se manifestar. Mesmo os hipnotizados não são alheios às convulsões da realidade. Daí a bela metáfora adorniana que sugere que, corroído o entusiasmo inicial alienante, finalmente “despertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados apesar de não estarem mais dormindo”.

Publicado originalmente no Boletim da Anpof [https://anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/ao-que-responde-o-lider-fascista-uma-pesquisa-de-th-adorno].

Notas


[1] É o caso de Daniel Pipes: There’s a name for Trump’s brand of politics: neo-fascism. Disponível em: https://www.inquirer.com/philly/news/politics/20160408_Commentary__There_s_a_name_for_Trump_s_brand_of_politics__neo-fascism.html

[2] Há uma tradução brasileira disponível no site da Boitempo Editorial: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/

[3] Freud, S. Psicologia das massas e análise do eu. Companhia das Letras, p. 44.

[4] Mattos, Marcelo Badaró. Uma história de terror: o Brasil de Bolsonaro e a pandemia. Disponível em: https://www.observatoriodacrise.org/post/uma-hist%C3%B3ria-de-terror-o-brasil-de-bolsonaro-e-a-pandemia

[5] Jappe, Anselm. As aventuras da mercadoria. Ed. Antígona, p. 109.

[6] Desenvolvi com mais vagar a contribuição de Hegel para o estudo das contradições no artigo Hegel, Espinosa e o marxismo: para além de dicotomias. Revista Novos Rumos, v. 57, p. 29-46, 2020.

 

08
Jul23

A economista que desmascarou a “austeridade”

Talis Andrade

 

Clara Mattei sustenta: “Falta de recursos” é armadilha ideológica. Dinheiro, os Estados criam o tempo todo. Corte de serviços públicos visa disciplinar as maiorias, forçando-as a aceitar qualquer trabalho

 

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

 

José Eduardo Bernardes

entrevista Clara Mattei

 

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

 

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto. 

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

 

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

 

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas. (continua)

09
Abr23

A horda

Talis Andrade
Imagem: Ramy Kabalan

 

Considerações a propósito de 8 de janeiro no Brasil

 

por Eugênio Trivinho

 

“Um estado de cavalos” (João Guimarães Rosa1).
“… todos gritam em uníssono, e o tinir é o aplauso dos objetos” (Elias Canetti2).

 

Terror moderno, Guerra Fria e estagnação dialética

No início deste ano, a imprensa, a jurisprudência e a academia alimentaram celeuma em relação à validade ou não da caracterização dos atos vandálicos de 8 de janeiro em Brasília como terrorismo. A discussão, que obviamente repercutiu nas redes sociais, extrapola necessidades de precisão conceitual exclusivamente para fins penais: além de requerer caracterização política e contextualização social-histórica, envolve implicações constitucionais evidentes (para além das de segurança nacional), em defesa da democracia como dinâmica de Estado, regime de governo, processo civilizatório e valor universal. A consistência da discussão depende, igualmente, da apuração de que terror se trata. Se razões de espaço descartam recensão profunda, algumas sinalizações a respeito, mesmo as intempestivas, ganham prioridade.

Independentemente de motivos axiomáticos – de valor sobretudo ideológico, para o bem e/ou para o mal), sabe-se que o terror, do ponto de vista estratégico e tático, constitui princípio e ação políticos de contrarresposta violenta a condições sociais concretas de existência. Como tal, o terror é, também, um instrumento de tomada, manutenção e/ou expansão de poder por meios violentos (físicos e/ou coativos). Mais especificamente, o terror se instala para conquistar, preservar e/ou ampliar espaço numa batalha (campal ou não), para forçar o inimigo a recuar de posições ou desistir de intenções, para evitar que o sinistro avance, para demonstrar, por capacidade irruptiva, com quem está o poder ou com quem ele não está, e assim por diante. Se ou quando mudanças – ou horizontes de mudança – em condições vigentes são concretas ou presumidas, o terror pode encabeçar processos revolucionários, mediá-los ou finalizá-los. O terror abre e/ou fecha o caminho para cumprimento desses objetivos.

O vínculo fenomenológico da questão com o movimento dialético da história social e política, no entanto, permite fazer apostas alternativas de esclarecimento. Uma das mais idiossincráticas e luminosas se assenta no pós-estruturalismo francês.

Não sem razão, Jean Baudrillard, teórico heterodoxo e instigante sobre o terror na modernidade tardia, ambientou, originariamente, o assunto no plano simbólico da lógica binária da Guerra Fria.3A beligerância absoluta via chantagem mútua – nenhum passo invasivo ou destrutivo poderia ser dado por nenhuma das partes sob pena de represália de monta – “congelou” (por assim dizer) o movimento dialético da história, proibindo os poros sociais de gestar, abrigar e/ou desdobrar mudanças estruturais ou significativas (de suplantação completa das condições vigentes). Um dos resultados fragmentários dessa tendência de estagnação foi o terror como reação degradada à redução da política ao mero presenteísmo,4 com este detalhe sine qua non: a mencionada reação serve-se da compulsão espetaculosa e mercantil do universo multimediático para instilar efeitos permanentes de medo no circuito noticiário e imagético, atingindo (em rota de alvo diuturno) a vida de milhões de consumidores.

As condições históricas e geopolíticas que desconstruíram o muro de Berlim, em 1989, dissolveram pari passu a lógica binária da Guerra Fria em prol da aparente hegemonia militar de nação única sobre centenas de outras. Esse processo, favorecedor da cultura anglo-saxônica, em especial a estadunidense, culminou num planeta tentativamente regrado pela posição política de um bloco único de poder, ancorado na Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Mesmo que a recente emergência tecnológico-comercial da China como eixo global de contrapoder (com a Rússia a tiracolo) evoque algo do fantasma dicotômico posterior à Segunda Guerra Mundial, as condições macroestruturais, do ângulo de vista do terror, não sofreram modificações essenciais: a relativamente severa contração da potência dialética do establishment internacional, a qual excita o apetite terrorista, passou a realizar-se de forma aparentemente multipolar, sob o influxo inapelável de uma beligerância por predomínio hegemônico e sem prejuízo de apelo presenteísta – beligerância, lembre-se, campal e por delegação (a exemplo da resistência multinacional da Ucrânia contra a invasão russa) e, em geral, não-campal (em bastidores de espionagem, contrainformação e demais estratégias de inteligência).

Em interpretação desdobrada e livre, o terrorismo – isto é, a ideologia do terror em movimento contra a ausência de movimento (na direção do desejo imediato dele, terrorismo) na história da modernidade política – equivale, mais precisamente, a uma forma explosiva de ação planejada, fomentada e executada contra determinado espaço social, povoado ou não, quando as possibilidades históricas de superação da realidade disputada se esgotaram e, ainda assim, em relação a elas, permanece, para um dos lados contendores, profundo rasgo de insatisfação e/ou ressentimento, a impedir a aceitação das condições e tendências predominantes. Com a asfixia de seu pertencimento à modernidade tardia, esse modelo de terror, exasperado por defasagem em relação aos trunfos do inimigo em torno do pomo da disputa, instaura-se e se propaga (como atmosfera mediática de amedrontamento) quando a dialética, no sentido da transformação social em nome de aspirações utópicas, se afigura impossível de cumprimento.

O foco concentrado no cerne da questão dissolve qualquer dúvida: quando a viabilidade de mudanças substanciais falha, comparece, no campo da escaramuça, a matança de inocentes (além de inimigos fardados e armados), arruinamentos citadinos (para espalhar o temor da existência) e a destruição de domicílios e locais de trabalho e lazer (uma vez que o campo de batalha se confunde com a zona de moradia, troca e sobrevivência). A primazia política dessa violência – como antes dito – se confunde com sua hipóstase (dela, violência) em medo (ou seja, ameaça socialmente espargida) por meio do uso abusivo da comunicação de massa e interativa (mais propriamente, de sua ingenuidade noticiária indiscriminada e, portanto, cúmplice).

O motivo é trivial: o sistema mediático mercantiliza o terror ao converter seus atos em bens simbólicos consumíveis como espetáculo, seja no conforto televisivo das salas de estar, seja na prerrogativa digital à mão customizada – em quaisquer telas de experiência alucinatória. Com tal expertise – a que o mundo ocidental acertadamente atribui valor de covardia –, o recado do terror é direcionado e franco: os supostos vencedores e suas narrativas, junto com as condições materiais que os explicam e mantêm, não passarão impunes. Seu revide – inseparável da simples vingança, sob a ótica do senso comum – comparece como resultado a esmo. Emana, porém, de cálculo relativamente arredondado.

As aspirações políticas (fundamentalistas ou não) desse modelo de terror, devotado ao paradoxo da abolição veloz da pretensa abolição autoritária do telos, comparecem como representações genuínas da dialética. Estão longe de sê-lo: esse terror é natimorto em potência teleológica. Se, como sugere Baudrillard, o espetáculo multimediático perseguido pelo terror se esgota, operacional e simbolicamente, no presenteísmo, essa violência, ao agir em represália para ferir tais condições, acaba por autossabotar-se quando as ratifica, traindo seu próprio desejo de telos diverso e reduzindo-se ao mesmo presenteísmo. Sem potência trans-histórica efetiva e/ou alavancas socioestruturais viáveis para realizá-la, ele é tão somente um sintoma do refechamento político no perímetro frustrado de revoluções propriamente ditas.

Evidentemente, a ignição “pós-dialética” do terrorismo pode torná-lo “pós-moderno” (na acepção literal e superativa do prefixo), jamais pré- ou pós-político, muito menos pré- ou pós-mediático. Ele pode ser tanto aguerrido (a exemplo dos agrupamentos marcados por forte flexão religiosa) quanto expressão irreversível de esgarçamento doutrinário.

Necropolítica neofascista e terrorismo bolsonarista

 

Sem carnificina concentrada, mas não sem destruição instantânea, os atos vandálicos na Câmara dos Deputados, no Senado Federal, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF) não escapam, de certo modo, às características elencadas. A fleuma deste terrorismo é tão historicamente regressiva – tão nostálgica a ditaduras e autocracias fardadas – que legitima a evocação de lógicas sociopolíticas da segunda metade do século XX anteriores à queda do muro de Berlim ou, se se quiser salto extra, aos ataques a símbolos globais dos Estados Unidos em janeiro de 2001 – arruinamento de torres gêmeas que alterou substancialmente as relações internacionais, sobretudo em matéria geopolítica e militar.

Seria dispensável registrá-lo: nada há de pré- ou pós-ideologia nesse reduto. A necropolítica neofascista do bolsonarismo, no entanto, torna o procedimento oportuno: ela jamais se perde na estrutura dinâmica que animou os atos vandálicos de janeiro de 2022.

Em princípio, o esquema político e social de sua militância “quebra-tudo” (inclusos os 38% de cidadãos justificadores do vandalismo)5 é bastante puído: uma elite civil e militar abastada, historicamente treinada na liderança e no mando, captura, fustiga e fomenta amplo séquito para o “campo de batalha”, vias de fato para a qual serviu previamente o emparelhamento de ruas e praças às redes sociais, com destaque para acampamentos próximos a Quartéis Generais (QGs) e demais instâncias das Forças Armadas, nas capitais e em dezenas de cidades do país.

Especificamente, essa horda, implicando largo contingente de correligionários e simpatizantes em diversos estratos sociais, é, em regra, sustentada por empresários brasileiros, de nacionalismo reacionário e neoliberal graúdo, que rechaçam o resultado do pleito de outubro de 2022. Em alinhamento ao longo domínio latifundiário-autoritário no país – da fase imperial ao estirão republicano –, eles almejam regime de chumbo (com ou sem o miliciano-mor) contra o tal “comunismo que ameaça a pátria”.

A estrutura dinâmica desse contingente extremista combina centralização política (especialmente por lideranças nacionais e estaduais) e descentralização sócio-operatória (pelo “rebanho de manobra”), dentro e fora das redes sociais. Do moralismo religioso-nacionalista à idolatria supremacista e nazifascista, a segmentação interna da horda se distribui, em síntese, entre, pelo menos, cérebros de planejamento e fomento e militantes de inflamação e execução (depredadores/saqueadores ou não).

O cerne do perfil ideológico do bolsonarismo se desnuda por sua própria franja vandálica. No limite, os depredadores autodemonstraram o quanto essa extrema direita – desde os partidários mais aguerridos aos simpatizantes regulares – assenta-se num aglomerado organizado6 muito próximo de uma “seita de massa”, com características conhecidas: seu estado severamente deturpado ou nublado de consciência política (se se tomar por cotejo os fundamentos do Estado de Direito ocidental dos últimos dois séculos e pouco) – uma condição permanente de delírio psiquicamente normalizado para si e para adversários – explica o cultivo fanático-subserviente a líderes autoritários e “carismáticos”; a apropriação indébita e ignara da flâmula republicana e do cromatismo verde e amarelo mistura, em odienta ciranda, inconformismo pós-eleitoral, indignação antidemocrática e desejo imediatista de se libertar de ambos, a partir de um sectarismo fissurado na instauração de um governo de exceção sob a tutela da Forças Armadas.

Sem culpa ou temores, a horda depredatória agiu em Brasília sob o lema do “tudo ou nada”, impermeável a qualquer choque de realidade. [A evidência da derrota eleitoral assumiu ares de falsidade afrontável em bolhas digitais de encorajamento distorcido; milhões de eleitores, entre eles os vândalos, sentiram-se (e sentem-se) roubados: foi o protofüher quem venceu o pleito.]. O fato de cerca de 3% a 18,4% da população7 apoiarem totalmente esse terrorismo não patenteia senão a crosta grosseira de deseducação antidemocrática – enfim, a barbárie da incultura política – no imaginário de parcela significativa do eleitorado brasileiro.

Sob álibi vingador, de ataque a um governo tomado como ilegítimo, embora egresso de pleito hígido e inconteste, a extrema direita atentou contra o Estado propriamente dito, mediante arruinamento de símbolos de poder permanente – a República em si, a Justiça em si, o “sistema” em si, a democracia em si, e assim por diante. Esse cume de distúrbio foi ensaiado dias antes, em meados de dezembro de 2022, quando bolsonaristas tentaram, também em Brasília, arranhar a diplomação presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE): depredaram o patrimônio do Estado e incendiaram ônibus e automóveis, entre outros atos de violência.

Crime político desfechado por um anonimato sedento de ribalta fugaz, os atos terroristas nos edifícios públicos do Distrito Federal foram, por ora (depois de crimes letais aparentemente pontuais), o estouro tumultuante-ultraconservador mais acabado da necropolítica neofascista do bolsonarismo – o legado fúnebre do pior presidencialismo brasileiro, o do quadriênio 2018-2022, protagonizado, vale enfatizar, por um movimento político de escarnecimento das três principais dimensões constitucionais da vida nacional e civilizada: a República, o governo e a sociedade civil.

Nessa conjuntura, a visão sociofenomenológica psicanaliticamente orientada está à vontade para computar o quanto energias pulsionais de frustração política sob o “comunismo imaginário” podem se sublimar em obscuridade galhofeira e anulatória de equipamentos republicanos e, pretensamente, da historicidade destes – uma destruição patrimonial (e, tentativamente, simbólica) custeada por impostos dos 49,1% de eleitores do ex-inquilino do Palácio do Planalto.

A veemência desse cenário lança luz retroativa sobre o procedimento linguístico (propriamente lexical) da produção noticiosa corporativa e conservadora. Não deixa de ser significativo constatar tantos e quantos meios de comunicação de massa chamarem doravante bolsonaristas depredatórios de “golpistas” e “terroristas”. De jornais e revistas impressos a emissoras televisivas (versões Web inclusas) e canais-satélites digitais, poucos veículos responsáveis pelo mainstream deixaram de fustigar serpentes de golpe em 2016 e de fortalecer neofascistas em 2018.

Desde a primeira década deste século, enquanto forças de esquerda se preocupavam com o crescimento progressivo da extrema direita no país e em escala internacional, os gérmens do bolsonarismo foram, por esses media, tratados jornalisticamente como patifaria, pedra bruta sem atmosfera, rala peça de xadrez gravemente negligenciada, sem classificação estrita – procedimento que mesclou descrença alegre no mal, desinteresse imperito pelo baixo clero e exercício solene de vistas grossas. O terrorismo de janeiro em Brasília, no entanto, estava pressuposto desde, pelo menos, a década passada. A obstinada preservação de honras discursivas, com exigente contradição zero em narrativas editoriais e em rastros anuais de pauta, assegura, como se vê, reputação empresarial no limite de exageros desprovidos de autorreflexão, à beira, se se quiser, da desonestidade ou da má-fé.

Horda: do golpe ao terror

 

Em bolhas digitais (empresariais ou não) de propagação neofascista e negacionista, financiadores, instigadores e/ou executores dos atos vandálicos aguardavam vitória idílica e irreversível após invasão das dependências do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF. A meta, clássica demais para efeito veraz, era condicionar, nos dias subsequentes – inúmeros levaram travesseiros –, caos suficiente no país para incentivar as Forças Armadas a atropelar o governo eleito e, em ação delirante, a intervir nos três Poderes contra o “comunismo imaginário”, em nome de Deus, da pátria, da família, da propriedade privada e da “liberdade” – enfim, o conhecido positivismo nacionalista e populista “para o bem da nação”.

De forma suicidária, a horda subestimou, desde antes da abertura do processo eleitoral de 2022, a inteligência estratégica e a potência articulatória das instituições republicano-democráticas e das honras ministeriais do novo governo; a ambiguidade ou hesitação das frações bolsonaristas das Forças Armadas; a reação imediata da sociedade civil organizada, com milhares de manifestações de repúdio; o apoio internacional à democracia no país, e assim por diante.

A contrapelo da estratégia extremista desastrada, o movimento veloz de uma peça institucional no tabuleiro político foi crucial: a preferência do Poder Executivo pela intervenção direta na segurança pública do Distrito Federal.

A recusa da implantação do Estado de Defesa – segunda opção institucional após a medida de intervenção – frustrou ânimos civis, fardados e milicianos nas fileiras da ultradireita: a peça mobilizada descartou a tutela do governo pelas Forças Armadas. A réplica da sociedade civil organizada, repudiando a tentativa sabotadora, jogou, igualmente, papel fundamental na preservação democrática do funcionamento institucional e das relações civis como um todo.

Esses elementos do cenário bastam para sinalizar o quanto sutilezas da ação terrorista em Brasília e da atmosfera política os fazem ultrapassar aparências previsíveis e somar complexidade. Do ponto de vista estratégico, a gema dinâmica dos fatos indicia dois momentos específicos.

(i) A franja aguerrida da horda estava, de fato, acampada há mais de dois meses na cidade (a partir do segundo turno de 2022), à espera de um golpe de Estado, com a participação ou não do ex-inquilino do Palácio do Planalto e com apoio de bolsonaristas nas três Armas.

(ii) A decretação do resultado das urnas pelo TSE, a diplomação de Luiz Inácio Lula da Silva em meados de dezembro, a transmissão da faixa presidencial no início de janeiro e a ressonância multimediática e social em respeito à Constituição Federal impuseram, porém, uma flexão no processo inteiro, asfaltando o terreno republicano que encalacrou, definitiva e irreversivelmente, o adversário – sem volta.

Essa segunda rota factual, polêmica com certeza, precisa ser teoricamente experimentada em todas as letras: 35 anos de renovação – mais tortuosa que linear – das instituições republicanas e democráticas no país podem tê-las fortalecido tanto no quadriênio 2018-2022 (sobretudo no último ano) que a única alternativa final de expressão política da extrema direita foi este rompante derrotista em fluxo de “descarga da massa”8 (para honrar Elias Canetti): o telos político (de intensa espera da intervenção armada) cedeu franquia, nas proximidades dos prédios, à aparente anomia da destruição indiscriminada. Custa acreditar que a horda extremista caminhou em direção aos símbolos da República sem esse objetivo a priori. [Ao esquadrinharem o antro dos responsáveis por conceber, organizar, financiar, incitar e executar o vandalismo e a rapinagem, as investigações federais também precisam apurar de onde partiu a ordem para essa “descarga”, quais os nomes implicados e demais informações atinentes.]

Essa atuação vandálica, por seu turno, abre-se a duas possibilidades interpretativas: a primeira, priorizando cálculo épico-teleológico (ligado à realização do golpe militar), não se excetua do perímetro clássico da ciência política; a segunda, atenta ao desespero pragmático dos extremistas (por autopercepção de impotência) e ao arruinamento voluntário do mundo para exorcismo de insatisfações ressentidas, respira, livremente (com todos os eventuais riscos e insuficiências metodológicos), princípios de sociofenomenologia à luz de conjeturas pós-estruturalistas. O desdobramento cotejado das duas leituras expande, com certeza, o diapasão de surpresas a respeito dos fatos.

Conforme já assinalado, a leitura política convencional admite, ao custo de concordar com fleumas conservadoras, que os criminosos protagonizaram invasão e destruição do patrimônio público para, sob o mote “agora ou nunca”, condicionar, com ou sem cadáveres, o caos social necessário à justificação da interveniência das Forças Armadas nos Poderes da República, à la 1964, com amparo distorcido no artigo 142 da Constituição Federal. Em outros termos, como a horda carecia de criatividade e alternativa estratégicas (sendo, portanto, refém do modelo antigo de investida militar), a tática do vandalismo integrava gradação pragmática planificada, com sabotagem institucional demodé.

Vertentes de centro-esquerda em geral, instâncias matriciais da sociedade civil organizada e a maioria dos meios de comunicação corporativos e conservadores assumiram a tese desse liame entre depredação antirrepublicana e tentativa campal de golpe de Estado – a mesma tese do governo federal. As incertezas políticas e institucionais que rondam a jovem democracia brasileira demonstram que essa leitura não é equivocada. A Polícia Federal (PF) apurou tentativa de assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com tiro de fuzil a longa distância, no dia da posse no cargo, em 1º de janeiro.9 A conformação aberta do acontecimento em Brasília, porém, não permite que a mencionada leitura monopolize (e refeche) o campo interpretativo.

Em particular, a crença exclusiva no esquema teleológico das ações vandálicas faz a leitura política convencional perder de vista (e não levar às últimas consequências) o significado sociofenomenológico da flexão antes aludida, que evoca – dos fundamentos à empiria mais rasa – a alta resiliência do contexto político e interinstitucional vigente. O foco prioritário nessa dimensão silenciosa expõe os atos vandálicos como espécie de “bagaço de laranja” de um extremismo frustrado na série de graves ameaças às instituições e, ao final, derrotado no processo eleitoral que eles mesmos, os autoritários, não podendo rechaçá-lo no todo, tiveram de tolerar como ambiente mandatório de disputa.

Isto significa: a marcha com gritos de guerra nas vias públicas de Brasília, a invasão dos prédios e o quebra-quebra, em janeiro passado, já não portavam horizonte efetivo algum – não se tratava de golpe como potência dialética, mas de terror puro e simples, isto é, de destruição pela destruição, como forma de expressão de insatisfação ressentida e de divulgação multimediática em tempo real (live e online) do que ocorre se e quando a extrema direita é contrariada (não tanto do que ela pode realizar além disso). A partir desse momento, a horda já não era de manifestantes políticos, mas de lumpenterroristas sem telos viável. Discursos calcados no Código Penal os aproximaram de criminosos comuns.

O acontecimento – vê-se – cultivou obviedades: em matéria de atuação política em zonas urbanas, a rusticidade voluntária, abundante em redes sociais, marcha, de forma atabalhoada, em direção a “revoltas sem cabeça”. Sua inteligência de estatura rasa pode se desdobrar em terrorismo convicto e hedonista.

O fato de a subjetividade da horda e, dentro dela, a dos depredadores/saqueadores ter preservado, do início ao fim dos acampamentos, expectativa de interceptação militar do establishment não altera o repertório e a rota do entendimento. Fatores idealísticos não têm ascendência reversiva (sequer mediata) sobre macrocontextos fenomenológica e tendencialmente assentados. Em léxico de senso comum, o vandalismo, para todos os efeitos pragmáticos, aconteceu somente porque, no terreno da política, os criminosos já “não tinham mais para onde correr”.

À carne previamente golpista, dourada em longos abarracamentos, sobrou um sulco previsível para manifestação decepcionada, infantilmente agressiva, de descontentamento não apenas pela dilapidação irreversível do poder político antes possuído, mas sobretudo pela impossibilidade da conquista da ditadura desejada – manifestação de inconformismo inconsolável, por assim dizer, pela perda simbólica do falo (para registrá-lo, não sem ironia, em episteme lacaniana, ímpar), a saber, perda não do poder propriamente dito, mas do golpe fardado que não veio. O terror foi, assim, a última saída honrosa para uma convicção fundamentalista malograda.

A validade teórica dessa provocativa hipótese – a do caráter teleológico pré-erodido dos atos vandálicos – evidencia-se, igualmente, quando a preocupação estratégica enfoca o perfil extremamente rude e banal desses atos. O desdobramento quixotesco da “sarrafusca descabeçada” do bolsonarismo foi tentado em planície dominical e esvaziada, sem absolutamente nenhuma “peça” concreta e consistente para colocar no centro do tabuleiro, exceto o nome de um doidivanas tíbio, em autoexílio forçado (de “férias” na Flórida, Estados Unidos, custeadas com verba pública), ou alternativa militar sem carisma e articulação majoritária fora da caserna.

De novo, imaginaram – à moda antiga – somente a truculência das armas no lugar da minoria simples do eleitorado. Esse cochilo estratégico de partida, se trocado em miúdos, determinou a lacuna matemática da chegada; do ponto de vista sociofenomênico, a quantidade repercutiu fatalmente na qualidade do resultado esperado: a horda precisava de muito mais gente – precisava de massas e mais massas (protagonistas e tácitas), de milhões de acampados e terroristas – e tudo o que ela tinha era somente a si, uma horda. Em matéria proporcional, uma “revolta descabeçada” pode ser feita por meia dúzia.

Desse ponto de vista – o da impotência político-dialética do surto bolsonarista –, os estilhaços de vidro, alvenaria e arte nos edifícios públicos não conduzem a visão menos sombria: questões de valor não se põem nesse pormenor. No que tange à defesa da democracia, o terror sem telos viável não é, por exemplo, politicamente mais vantajoso que o terror vanguardista e bem-sucedido. A brutalização civil-militar jamais perde cariz corrosivo: insurreições antirrepublicanas, investidas antidemocráticas e sabotagens institucionais preservam, em geral, capacidade atentatória em tempo diferido contra ordens constitucionais. O malogro de ontem autoaprende: se revisto – e recomposto o telos –, pode ser o golpe de amanhã.

Por óbvio, esse reconhecimento (exclusivamente teórico, sem qualquer efeito prático) faz a hipótese da impotência dialética do motim jamais comungar com atenuações em matéria de responsabilização penal e civil, nem com qualquer abatimento na indenização patrimonial aos cofres estatais. Essa discrepância recobra síntese clara: havia, desde o início, intencionalidade de golpe, não por acaso alentado por meses; a erosão institucional transitava nos meandros organizatórios do trabalho do crime, sob prerrogativas geopolítico-jurisdicionais citadinas, nas proximidades de QGs e demais unidades militares; o motor do sinistro, entretanto, carecia de dialética, dado o contexto social-histórico, político e institucional do país. A incriminação e o apenamento, após análise individualizada dos casos, inclusos os de reconhecimento “humanitário” por razões legais e/ou judiciais, devem, por isso, equivaler aos de uma investida sabotadora efetiva.

Para gravame das penas, evoque-se que o quadriênio 2018-2022 foi, de ponta a ponta, golpe heterodoxo serial na República e na democracia nacionais – por dentro do Estado, contra o modelo socioinstitucional desenvolvido a partir de 1988 –, com ataques segmentados (explícitos e oclusos, dos maiores aos menores) desferidos por Ministérios do governo federal. Brasília, em janeiro passado, foi cume de expiração – derradeiro, espera-se – desse rastro político egresso do inferno.

A reedição ilustrada do ciclo argumentativo anterior, com realce para o pomo da contradição envolvida, burila, em complemento, a assertividade da conjetura. Cerca de quatro décadas após as ruínas do regime militar e da promulgação da Carta Magna de 1988, as condições institucionais pró-establishment republicano-democrático já estavam aprioristicamente refechadas – declara o discurso ufano-progressista, certo da robustez da herança consolidada desde então. Eterna, Cassandra, a mítica clarividente grega, joga há muito certezas na fogueira (e, para tanto, não precisa computar a arruaça institucional de 2016): os atos vandálicos – alerta ela – materializaram baga ideológica que, em outras circunstâncias históricas, teria encontrado êxito; e havia armamento previsto para homicídio político. A prudência exige vigília – arremata –: democracias latino-americanas são vulneráveis como penugens.

Seja como for – guardada esta advertência –, se, de outro ângulo do caleidoscópio, a hipótese arrolada estiver correta, não é menos verdadeiro que as instituições republicanas e democráticas brasileiras, para além de qualquer desconfiança sobre sua capacidade de resistência, já se mostravam fortalecidas o suficiente, com freios e contrapesos ao longo do quadriênio 2018-2022, para absorver punhaladas tentativamente fatais, a ponto de liquefazerem meta e douração de golpe, deixando escapar apenas espaço para protestos civis anômicos. Elas têm tudo – espera-se – para prosseguir assim.

Ao gravetar a vaidade dos paradoxos, a mencionada conjetura, embora costure tese empiricamente indefensável, mas não desprovida de sentido, professa pressupostos impagáveis: com um olho aberto, outro fechado, concede às instituições republicanas e democráticas beneplácito importante, o da minoração da dúvida sobre sua potência de autopreservação. Amputada de contexto, a lógica, por certo, pouparia lúmen tanto à hipótese quanto ao procedimento para delineá-la. Não raras vezes, o caráter indefensável de uma tese para alguns é, porém, o que, ao ver de outros, não se sustenta de nenhuma forma.

Quanto aos aspectos reportados, remanesce por ser feito, na área política, um cotejo mais profundo entre o terror brasileiro e o terror norte-americano, ocorrido dois anos e dois dias antes. No todo, a avocação bolsonarista do atentado ao Capitólio nos Estados Unidos, em 06 de janeiro de 2021, colocou a extrema direita brasileira mal com a história, com diversos estratos sociais e com a comunidade internacional. Dois motivos são fortes: plágio e ridículo.

Em ângulo inverso, essa iniciativa de repeteco configurou exemplo exuberante de como a barbarização bolsonarista contribuiu para que as vertentes de esquerda em torno do Partido dos Trabalhadores (PT) e de sua ampla frente democrática se vinculassem (mesmo que temporariamente) a “agenda positiva” na visibilidade multimediática corporativa e conservadora, ligada a amplo consumo diuturno.

Ressentimento neofascista e comportamento de massa

 

A rota da reflexão abarca ainda notas livres sobre a horda à luz do comportamento de massa devastador.

Não pertence às regras da sensatez crer que, entre os criminosos, havia (ou há) quem pudesse (ou possa) alegar, com veracidade, que se encontrava in loco por desaviso; ou, ao inverso e in extenso, quem, no meio da horda (nos acampamentos, na frota de ônibus, nas proximidades dos prédios invadidos etc.), descurava a ciência de que as ações poderiam culminar em prisão em flagrante, inquérito policial (por vários crimes), denúncia pelo Ministério Público Federal (MPF) abertura de processo judicial e condenação, com ou sem encarceramento. Ambas as suposições abusam da inteligência mais mediana.

O Brasil dispõe, desde 2016, de regras legais – cuidadosas, mas limitadas – de combate ao terror.10Com dorsos aquecidos por abraços de conforto afluente, os criminosos, cúmplices também de crença, apostaram em redenção mundana a posteriori, pela justiça comum, à sombra da impunidade. Não por acaso, atuaram, do início ao fim, com comportamento aniquilador típico de condições inóspitas de massa: como se não houvesse amanhã – ou seja, terror (neste caso, sob cálculo, em “represália” vazia e sem medo).

[Semanas depois da prisão em flagrante de mais de 2 mil vândalos para audiência de custódia pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DFT) e pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), centenas deles foram incriminados e mantidos presos.11 A gravidade da situação cavou choque de realidade na extrema direita. Os depredadores/saqueadores descobriram a roda: os limites da tolerância institucional e penal possível. Ao mesmo tempo, a democracia foi posta diante de um estranho espelho compulsório por seus mais truculentos opositores – uma condição que jamais se configura como teste, mas eterna chance de reafirmação de princípios: enquanto os casos individuais estiverem em análise judicial e policial, os valores democráticos estagiarão entre, por um lado, o cinismo de clamores vitimistas da horda por direitos humanos (combatidos pela própria horda até o gás de pimenta arder seus olhos ou até as grades chegarem) e, por outro lado, a necessidade de punições exemplares por parte do Estado, no rastro de método ancestral para desanimar levantes similares.]

A compleição pragmática de repulsa e violência a priori – antes de qualquer diálogo – apenas escoa, em ápice de sarcasmos exasperados, a natureza política, social e moral da extrema direita bolsonarista. Traduz e bem representa, nessa medida, a história agressiva da cepa, que remonta, na conformação de massa, às primeiras décadas europeias do século XX. Quando a rusticidade voluntária desse extremismo partidário exercita ressentimento em ruas e praças, em frente a QGs, nos parlamentos e em redes digitais, suas placas tectônicas arrastam regressões políticas as mais hediondas ou escabrosas: militarização de vínculos sociais, porões de tortura, sabotagens do capital monopolista e oligárquico, latifúndio pós-colonialista sustentado em trabalho escravo, garimpo invasor e predatório, deflorestação sem limite, intensificação do reacionarismo religioso e de sociopatias fóbicas, aplauso à matança policial indiscriminada, além de negacionismo científico e suas expressões patéticas, como a ignorância terraplanista e a grosseria antivacina.

Um adendo arremata o relato: independentemente da força política desse arrastão insidioso, o perfil comportamental apontado remete – lembre-se – ao infantilismo incorrigível não apenas de quem não tolera perder o poder, mas sobretudo de quem, magmas adentro do submundo político, reza com fervor pela reinstauração de regimes de exceção e, com isso, pela volta da violência como método de Estado contra adversários.

Por essa razão, o legado ético radical do horizonte jurídico de Nuremberg, a partir de 1945, com julgamentos e condenações de responsáveis hitleristas pelo Holocausto, justifica inteiramente, por experiência e auscultação desse submundo, o discurso da suspeita convicta em legítima autodefesa e autoproteção prévias contra agressões lesa-humanidade (efetivas ou potenciais). Interpretado sob liberdade fiel ao mesmo campo político, esse legado, intrépido, assevera o que o olvido se recusa a abandonar.

“Diante de derrotas – diz a herança –, nazifascistas, de qualquer corolário, mesmo cristão, não pranteia ou lacrimeja (sobretudo se for abastado, financiador de golpe, sob anonimato de pretensos bastidores); antes, cultiva raiva incontida, desejando que o ressentimento compartilhado se converta em força produtiva de sublevação imediata ou oportuna. Quem pranteia ou lacrimeja, dentro ou fora da prisão, amedrontado por revertério ou imprevisto indigesto, é o numerário útil da massa de manobra – nada ingênuo, nada inocente –, cuja crença fetichista num tiranete barra a consciência suficiente sobre a fervura do chão tocado com pés descalços. Guardião exemplar dos direitos humanos – continua o legado –, o ideal da impessoalidade civilizatória das instituições republicanas e democráticas, no entanto, jamais se compadece do cerne e da crosta de sabotagens terroristas: seus responsáveis vivem na pele ventos plúmbeos que regaram para aprendizado íngreme. Quem, dos defensores da democracia, exercita, com inoportunidade, compadecimento – por notável humanidade, mas sem calo expressivo –, esquece, quase sempre, o ímpeto de destruição com o qual, antes do pranto autoritário, o neofascista operou com o orgulho inveterado de quem não se importa com vidas alheias – e assim poderia destruir também a vida do compassivo. O medroso desolado, que pranteia sob escombros do mundo em sua cabeça, precisa compreender, com rapidez, que a necropolítica que escapa a seus olhos e que ele apoia apaixonadamente não ameaça apenas a democracia como estrutura dinâmica de governo e Estado, mas, no miúdo, a vida de seu parente ou vizinho; e talvez, por isso, este tenha se despedido mais cedo durante a pandemia, sob motejos presidenciais e ministeriais”.

A investigação histórica e jornalística tende a se surpreender caso o ressentimento fustigado pelo delírio do “comunismo imaginário” não açode o bolsonarismo (civil-empresarial, militar e miliciano) a novas atuações virulentas, coordenadas ou esparsas, paralelas a investidas eleitorais, para retomada de poderes, institucionais ou não; e a isso as instâncias republicanas e democráticas devem estar permanentemente atentas, na fiada que abrange desde órgãos judiciário-administrativos (com efeitos imediatos e diferidos) até setores públicos e privados de investimento (de longo prazo) na educação para a democracia e para os direitos humanos vis-à-vis contra autoritarismos de quaisquer cepas.

Notas


1. Visada de Riobaldo sobre tropa de jagunços perigosos, em Grande sertão: veredas (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19. ed., 2001), p. 133.

2. Trecho de “Ânsia de destruição”, item do primeiro capítulo de Massa e poder (Companhia das Letras, 2019), p. 17.

3. Entre contextualização histórica e tratamento conceitual estrito, a perspectiva de Baudrillard a respeito, diversificada ao longo do último quarto do século XX, foi expressa em L’échange symbolique et la mort (Paris: Gallimard, 1976), Les stratégies fatales (Paris: B. Grasset, 1983), Power Inferno (Paris: Galilée, 2002), L’esprit du terrorisme (Paris: Galilée, 2002) e no artigo que, com título idêntico, culminou neste último livro (Le Monde, 03 nov. 2001, disponível em https://www.lemonde.fr/disparitions/article/2007/03/06/l-esprit-du-terrorisme-par-jean-baudrillard_879920_3382.html).

4. O termo é tributário da reflexão de Fredric Jameson sobre a configuração pós-moderna da cultura contemporânea, em Pós-modernismo: ou a lógica cultural do capitalismo tardio (Ática, 1997, p. 52-54), que repercute artigo anterior do teórico literário norte-americano, “Pós-modernidade e sociedade de consumo” (Novos Estudos CEBRAP, n. 12, jun. 1985, p. 16-26). Com base nas conclusões de Lacan sobre a esquizofrenia, Jameson foi um dos primeiros a notar a emergência histórica recente de um “presente perpétuo” (ou eterno) na vida cotidiana. Na realidade, esse presenteísmo está mais arraigado na cultura veloz das metrópoles e na percepção fragmentária do tempo do que se imagina. Para cotejo com vertentes diversas, vejam-se A conquista do presente, de Michel Maffesoli (Rio de Janeiro: Rocco, 1984), e El tiempo em ruinas, de Marc Augé (Barcelona: Gedisa, 2003, p. 81, 90, 108).

5. Os dados resultam de pesquisa de opinião realizada pela Atlas Intel e estão disponíveis em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/atlasintel-para-38-ataques-no-df-se-justificam-em-algum-nivel.

6. Um aglomerado glocal, frise-se – nem local, nem global, antes na, com a e/ou a partir da miríade de pontos físico-corporais inextricavelmente entrelaçados a redes comunicacionais em tempo real (de massa, interativas e híbridas). Veja-se, do autor, A dromocracia cibercultural (Paulus, 2007), Glocal e A condição glocal (Annablume, 2012 e 2017, respectivamente).

7. Os percentuais justapõem sondagens feitas por dois institutos de pesquisa, Atlas Intel e Datafolha. Os resultados estão em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/datafolha-93-condenam-ataques-golpistas-e-maioria-defende-prisoes.shtml. Uma ambiência noticiosa pode ser encontrada em

https://www.brasildefato.com.br/2023/01/12/datafolha-93-rejeitam-destruicao-golpista-em-brasilia-55-veem-reponsabilidade-de-bolsonaro e na matéria citada na nota anterior.

8. A expressão comparece no elegante (e já epigrafado) Massa e poder (São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 15-19), com a diferença de o sentido original do autor búlgaro-britânico contemplar mais (embora não exclusivamente) a descarga repentina e não planejada.

9. Mais detalhes em https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/02/flavio-dino-diz-que-havia-atos-preparatorios-para-a-execucao-de-um-tiro-no-dia-da-posse-de-lula.ghtml.

10. A íntegra da Lei Antiterrorismo (n. 13.260, de 16/03/2016) está em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm.

11. Síntese informativa e atualizada em https://www.cartacapital.com.br/justica/a-quantidade-de-golpistas-ainda-presos-pelos-atos-do-8-de-janeiro-segundo-o-stf.

08
Abr23

A Torre de Babel da política brasileira: o que queremos dizer por combate à corrupção?

Talis Andrade
 

 

 

 

por Ana Carolina Albuquerque de Barros, André Antiquera Pereira Lima & Miguel Kupermann /Cult

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Recentemente, por motivo que nada tem a ver com a atuação parlamentar, alguns senadores e deputados da chamada bancada da Lava Jato voltaram a ter um protagonismo que há algum tempo tinham perdido.

Surfando na onda da trágica descoberta de ameaças à vida de autoridades públicas, aproveitaram o repentino palco para amplificar seus gritos contra o processo penal democrático e contra os direitos e garantias que não são apenas do réu, mas sim de todo cidadão.

Esse apelo exacerbado, cego e idiota ao punitivismo não é novidade, nem em nossa sociedade e muito menos para estes parlamentares novatos. Afinal, suas carreiras políticas decolaram muito antes de suas candidaturas, quando ainda se apresentavam apenas como paladinos da justiça, preocupados em combater a corrupção.

Mas qual seria o problema no desejo de combater a corrupção?

Nenhum, não fossem os meios empregados – desenfreados e muitas vezes ilegais – e a elevação deste desejo à categoria de uma ideologia política que, ao fim e ao cabo, suprime a própria política.

Isso porque se criou uma ideologia que apresenta um projeto político próprio – no aspecto econômico e de governança administrativa, por exemplo – que é mascarado por um discurso ancorado em um conceito abstrato.

Afinal, o que querem dizer quando falam em “combate à corrupção”? Será que eles ou seus interlocutores sabem qual o sentido que estão atribuindo à palavra corrupção? Será que nós sabemos?

Para alguns, talvez,  combater a corrupção significa combater o crime chamado “corrupção”; para outros, combater todo e qualquer crime que envolva a administração pública. Há os que entenderão se tratar do combate à forma de fazer política, ao “toma lá dá cá”: troca de cargos por base no Congresso ou a distribuição de emendas. Há, também, quem imagine uma cruzada contra a suposta “corrupção de todo dia”: dirigir no acostamento, furar fila ou parar na vaga de idoso.

São diversos os significados que se atribuem corriqueiramente ao termo corrupção, quase todos de essência moral, o que acarreta grandes problemas.

Desde 2013 – com mais ênfase após a Operação Lava Jato ganhar protagonismo nos noticiários –, o tema da corrupção vem se fortalecendo ainda mais como elemento central da disputa política. Há quem vote “contra a corrupção”, independentemente de todo e qualquer outro critério ou linha política, o que pode, justamente, alçar ao poder pessoas que fogem ao critério absoluto de moralidade imposto pela narrativa majoritária.

Isso aconteceu em 2018, quando se elegeu, por exemplo, alguém que inegavelmente possui vínculos com a milícia (destaque-se, crime organizado) ou mesmo com escândalos que envolvem peculato.

A bem da verdade, nos últimos anos a palavra corrupção passou a significar mais do que, de fato, significa. Essa reflexão pode ajudar a entender como historicamente chegamos até aqui, mas também a identificar um importante entrave para a superação dos problemas que a política enfrenta na atualidade, como a própria ascensão e consolidação do neofascismo como força política relevante.

Quando uma palavra passa a significar qualquer coisa que quem a disse quer, estamos com um grave problema. Hoje, parece que uma grande parcela da população entende que corrupção é qualquer tipo de imoralidade relacionada à coisa pública, independentemente de um regramento. Ou seja, qualquer coisa que a pessoa entenda como imoral, em seu âmbito subjetivo, ou até mesmo da qual discorde por alguma razão, passa a ser considerada corrupção.

Um bom exemplo é o do ex-juiz Sergio Moro. Atualmente, pode-se afirmar, sem medo de errar, que sempre foi um personagem da vida pública absolutamente avesso à política democrática.

Apenas para que não se cometa uma injustiça, cabe uma breve recapitulação: rasgou todos os direitos individuais e fundamentais enquanto era juiz, desprezou a constituição, se valeu de todos os estratagemas mais vis na tentativa de aniquilar aquele que tinha por inimigo pessoal e para se projetar politicamente.

Ainda, aliou-se umbilicalmente ao neofascismo, que insuflou e com o qual colaborou para que vencesse as eleições de 2018, impedindo um candidato que (provavelmente) iria vencer as eleições de concorrê-las e, mesmo depois de afirmar que seus aliados autoritários e antidemocráticos eram, eles também, corruptos (no sentido amplo da palavra), voltou aos seus braços, escancarando a sua completa ausência de valores e a busca incessante pela autopromoção às custas do discurso do inimigo.

Sim, inimigo, pois em sua linha de combate à corrupção não há interesse na verdade, na preocupação legítima de fortalecimento das instituições e na proteção da coisa pública. Há, sim, o combate a um inimigo escolhido muito tempo atrás e revelado ao longo da Operação Lava Jato.

Quando se coloca o outro na posição de inimigo, ele é descaracterizado como indivíduo, o que permite que se tolere tudo para combatê-lo, como se os fins justificassem os meios. Parece familiar?

Essa figura nefasta da história política usou a toga de fantasia e o tribunal como palco, com a Operação Lava Jato, para propagar ainda mais o discurso de que a corrupção pode ser tudo o que queremos que ela seja. Isso, talvez, tenha facilitado que muitos passassem a achar normal a tentativa de criminalizar a própria política.

Junto com seus parceiros de empreitada, por desprezarem a própria política democrática, passaram a imputar como crime o exercício regular da política, como ocorreu em tantos processos da Operação.

Que fique claro: o problema não está em imputar crime a quem de fato o cometeu. O que fizeram, contudo, foi criar, contra a lei, uma interpretação de que corrupção é tudo aquilo de que subjetivamente discordavam, o que é grave quando se discorda da própria política democrática.

Afinal, na democracia a maioria não sufoca a minoria sem debate, mas  disputa com ela, negocia, forma alianças, cede espaço em troca de apoio. Isso, por si só, não é crime como tantas vezes foi imputado na Lava Jato.

Então, concluímos que não. Corrupção não é qualquer coisa. Corrupção é coisa séria, é um crime. E não venham com o discurso que caiu como uma luva nos novos tempos, segundo o qual todos os problemas da nação advêm exclusivamente da corrupção: “Ah, é que o brasileiro é corrupto, começa em casa, quando se fura uma fila. Como esperamos que os políticos não sejam corruptos se nós, enquanto sociedade, não respeitamos as regras?”.

Não podemos tratar com a mesma palavra condutas absolutamente distintas: furar fila não é o mesmo que pagar propina. Pagar propina não se confunde, em todos os casos, com negociação parlamentar. Imoralidade com a coisa pública não será sempre corrupção, sem qualquer delimitação legal do que ela significa.

Enquanto sociedade precisamos garantir um mínimo comunicacional em comum. Quando se atribui um sentido distinto à palavra proferida, perdemos a capacidade de dialogar. Vale dizer: não temos como nos entender se, quando um diz corrupção, o outro entende imoralidade. Essa falha comunicacional talvez explique um pouco as dificuldades de diálogo que o país enfrenta.

Mais que isso, a histeria coletiva em torno do termo corrupção, no sentido amplo que se refere ao que cada um discorda ou entende como fora de seus parâmetros de moralidade, esconde a verdadeira disputa política que está sendo travada.

Não sejamos ingênuos. A confusão interessa, e muito, para muita gente. Há uma bancada inteira da Lava Jato sobrevivendo politicamente, requentando carreiras decadentes, com base nesse sentimento. Há uma oposição inteira que esconde seus ímpetos autoritários e fascistas com base nesse discurso, com muito voto de gente que não pensa efetivamente assim, mas que é contra a temida corrupção e ignora todo e qualquer outro critério de escolha, até mesmo o histórico corrupto de determinados candidatos.

A esse eleitor, interessa somente o combate ao inimigo que lhe apresentaram. A quem constrói o discurso, realmente, interessa a manutenção da “fábrica” de inimigos, alargando o conceito para que se possa carimbar a pecha de inimigo público em qualquer um que lhe interesse.

No fim, esse combate não passa de uma fumaça que esconde os reais interesses políticos e, caso queiram, pode servir a qualquer grupo.

É evidente que a corrupção é algo grave. E mais, qualquer forma de enriquecimento pessoal ou partidário às custas de qualquer conduta ilícita é grave.

Entretanto, os problemas que advêm da política são políticos. A desigualdade social, a fome, a falta de saneamento não são consequências da falta de dinheiro em razão da suposta corrupção, como muito se fala por aí. Pelo contrário, advêm de escolhas políticas, de disputas de interesses de classe e, enfim, de tantos outros motivos.

Quando a sociedade como um todo – a imprensa incluída – mascara as disputas políticas, fazendo-as parecer sempre disputas morais, a sociedade perde a capacidade de articulação e de superação dos obstáculos apresentados pela própria política. Perde a referência, não sabe o que verdadeiramente quer ou do que discorda.

Não vale tudo para combater a corrupção, ainda mais se nem sabemos, como sociedade, o que queremos dizer com isso. O crime de corrupção deve ser combatido com instituições fortes, controle, fiscalização e investigação. Disso não há dúvidas.

Agora, não vale vilipendiar a Constituição e os direitos caros a todos. Não vale realizar disputa política, dizendo-se contra uma corrupção que só é supostamente praticada pelo seu inimigo, com o exclusivo objetivo de mascarar as reais intenções das medidas e políticas em discussão.

Corrupção é corrupção. Improbidade é improbidade, divergência política é divergência política e luta de classes é luta de classes.

Sem resolver esse problema, continuaremos convivendo com grupos políticos abestalhados, que gritam por violação de direitos e supressão de garantias constitucionais conquistadas a duras penas pelas gerações passadas, o que recentemente vimos Deltan Dallagnol fazer no Congresso Nacional: bradar contra o Habeas Corpus e dizer que o Ministério Público é injustiçado no processo penal, demonstrando que, realmente, vale falar qualquer coisa para ganhar um palco, mesmo que seja mentira.

Sem isso, não enfrentaremos os reais problemas com seriedade. Não seremos capazes de combater, com medidas que efetivamente surtam resultados, por exemplo, o crime organizado que ameaça essas mesmas autoridades e toda a sociedade. Não será com supressão de direitos que nossos problemas serão resolvidos.

Precisamos retomar a capacidade de falar e sermos entendidos, de debater, de disputar democrática e politicamente e compreender, de verdade, quais são as discordâncias e interesses de cada grupo. Sem isso, colocando tudo na conta da corrupção, inimigo imaginário que vale para um e para outro lado, não entenderemos qual a política que esperamos para o nosso país.

05
Abr23

GRANDE IMPRENSA, POR QUE VOCÊ BLINDA MORO E ENALTECE BOLSONARO?

Talis Andrade
 
 
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As denúncias de Tacla Duran contra o ex-juiz não reverberaram nos grandes jornais, que deram ampla cobertura positiva para o retorno do ex-presidente que responde a inúmeros crimes no STF.

por João Filho /Intercept

NESTA SEMANA, dois episódios revelaram a maneira branda com que a grande imprensa tem tratado os agentes do fascismo que aterrorizaram o país nos últimos anos. As coberturas do caso Tacla Duran e da volta de Bolsonaro ao país mostram que os líderes bolsonaristas não estão sendo tratados como deveriam ser: a escória da democracia.

Bolsonaro é um líder fascista que está voltando para responder por uma série de crimes gravíssimos, entre eles a tentativa de um golpe de estado. Mas está sendo tratado como um ator legítimo da política brasileira – o homem que veio para organizar e liderar a oposição. Moro e Dallagnol são parlamentares eleitos e, por isso, devem ser tratados como atores legítimos. Mas depois das barbaridades que cometeram nos tribunais lava-jatistas e de cumprirem um papel chave dentro do fascismo bolsonarista, o mínimo que se espera é uma grande cobertura das acusações que ambos vêm sofrendo.

As denúncias de Tacla Duran

As graves denúncias do ex- advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran, passaram de maneira marginal pelo noticiário. Não renderam grandes manchetes, não mereceram destaque na página principal dos grandes portais, nem textos indignados dos colunistões de sempre. Não se viu nem uma notinha no jornal televisivo de maior audiência do país. O Jornal Nacional, que gastou horas e horas da sua programação nos últimos anos tratando como verdade absoluta o que diziam os delatores da Lava Jato, silenciou diante do delator que acusa Sergio Moro e Deltan Dallagnol de extorsão. Segundo Duran, o advogado Carlos Zucolotto Júnior, então sócio de Rosângela Moro, teria pedido o pagamento de US$ 5 milhões em troca de facilidades nos acordos de colaboração com a Lava Jato. Em depoimento na 13ª Vara Federal de Curitiba, o advogado apresentou documentos, áudios e vídeos que comprovariam suas acusações.

 

O lavajatismo segue batendo forte no coração da grande imprensa brasileira

 
 
 
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A Folha de S. Paulo se mostrou mais uma vez bastante generosa com o senador Sergio Moro, revivendo os tempos de endeusamento do ex-juiz: “Moro dispensa STF em caso Tacla Duran, vê ‘odioso privilégio’ e critica juiz da Lava Jato”. A manchete trata como um gesto grandioso a recusa de Moro ao que ele chama de “odioso privilégio”, que é o foro privilegiado para políticos eleitos. Trata-se da mais pura demagogia, já que não cabe a um investigado a escolha do foro, mas, sim, ao STF. A Folha sabe disso, mas parece fazer questão de recolocar o ex-juiz no altar da moralidade nas letras garrafais. O juiz que corrompeu o sistema judiciário para perseguir seus adversários políticos segue sendo tratado como a última Coca-Cola do deserto da ética na vida pública.

O lavajatismo segue batendo forte no coração da grande imprensa brasileira. Nem parece que foi a Lava Jato que pavimentou o caminho para ascensão do bolsonarismo ao poder. Está claro que os responsáveis por chocar o ovo da serpente do fascismo no Brasil continuarão contando com a benevolência de parte relevante da grande imprensa. Isso já tinha ficado claro no episódio Moro – PCC, quando vimos um endosso quase unânime da imprensa às mentiras ditas pelo ex-juiz para faturar politicamente com o caso.

A volta de Bolsonaro

Depois de abandonar o emprego, tentar surrupiar joias milionárias na surdina e ir se esconder nos EUA por 3 meses, Bolsonaro voltou para a cena do crime. A recepção em Brasília foi um fracasso. Pouquíssimas cabeças de gado apareceram no aeroporto para recepcionar o líder fascista. Mas a cobertura da imprensa foi grandiosa. A volta do genocida foi tratada como a volta de um ex-estadista de respeito, e não como um líder autoritário que passou os últimos 4 anos ameaçando a democracia com uma faca no seu pescoço.

A CNN Brasil, por exemplo, registrou de perto momento a momento a chegada de Bolsonaro em solo brasileiro, com direito à cobertura ao vivo. Mesmo quando já não havia mais o que falar, a cobertura continuou enchendo linguiça e dando ares triunfais à chegada de Bolsonaro. Parecia uma estrela internacional do rock chegando pela primeira vez ao Brasil.

Os donos da Folha de S. Paulo deixaram claro o que pensam em editorial: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira —desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”. O jornal vê com bons olhos a volta do fascista se ele “se opor ao petismo” e abandonar a atitude antidemocrática. Ou seja, o antipetismo alucinado dos donos da Folha fez com que eles propusessem uma segunda chance a um fascista que destruiu o país em todos os níveis. É inacreditável!

É claro que a chegada dele deveria ser noticiada, mas nunca com toda essa pompa e dedicação. O que se viu foi um homem acusado de crimes gravíssimos — todos eles carregados de provas — sendo tratado como um ex-presidente normal, um estadista legítimo. Bolsonaro não foi um presidente normal. É uma liderança fascista que certamente estará inelegível em breve e tem grandes chances de ir para a cadeia.

Só no TSE são 16 ações que tramitam contra ele. Basta uma condenação para que ele seja proibido de disputar eleições por 8 anos. Há uma pororoca de provas em todos os casos e as chances dele não ficar perder os direitos políticos são remotíssimas. As possibilidades dele acabar na cadeia também são boas, ainda que esse seja um processo mais complicado e demorado. Bolsonaro enfrenta várias investigações no STF, todas passíveis de prisão.

 

Moro e Bolsonaro são agentes do neofacismo no Brasil e deveriam ser tratados pelo jornalismo como tais.

 
 
 
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Em um dos inquéritos, o ex-presidente é acusado pelo seu ex-ministro Sergio Moro de interferir na Polícia Federal para proteger possíveis crimes dos seus familiares. Em outro, é acusado por difundir fake news golpistas sobre o processo eleitoral. Há também a investigação sobre as declarações negacionistas durante a pandemia, que podem ter levado milhares de brasileiros à morte. Em outro inquérito, é denunciado por vazar informações de uma investigação sigilosa da Polícia Federal. O último inquérito investiga a sua participação nos atos golpistas de 8 de janeiro. Todos esses inquéritos são sólidos e com potencial para mandar Bolsonaro para o xilindró. Além deles, há pelo menos 7 pedidos de investigação contra o ex-presidente que foram enviados pelo STF para a primeira instância da Justiça. Bolsonaro também pode virar investigado no caso das joias milionárias presenteadas pela Arábia Saudita. Ele foi intimado nesta semana pela Polícia Federal a depor sobre o caso, por enquanto, na condição de testemunha.

Lembremos que, por muito menos, o Brasil já prendeu dois ex-presidentes. Michel Temer ficou 4 dias na cadeia. Lula ficou 580. Ambas as prisões foram equivocadas, sustentadas por provas frágeis ou pela absoluta falta delas. Esse não será o caso de Bolsonaro caso seja preso. Além do volume de inquéritos, há volume de provas concretas. Não é razoável, portanto, que parte relevante da imprensa estenda o tapete vermelho para a sua chegada. Depois de passar o mandato inteiro criticando Bolsonaro e sendo violentamente esculachada por ele, é incompreensível que ainda haja esse tipo de cobertura. Fica parecendo que a intenção é fazer com que o ex-presidente fascista se consolide como líder da oposição.

Moro e Bolsonaro são agentes do neofacismo no Brasil e deveriam ser tratados pelo jornalismo como tais. Os dois estiveram juntos na última eleição para garantir a consolidação de uma autocracia de caráter fascista. Moro, que havia rachado com Bolsonaro, voltou para o seu aconchego para garantir uma vaga no Senado e voltou a endossar o golpismo do seu ex-chefe. O jornalismo não deveria perdoar ou pegar leve com quem atuou politicamente para calá-lo. Quem ameaça a democracia deve ser tratado como inimigo do jornalismo. É uma questão de sobrevivência, já que é ela quem garante a liberdade de imprensa. Mas, ao que parece, Moro e Bolsonaro estão sendo moralmente anistiados.

 
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14
Fev23

A tutela militar e seus limites

Talis Andrade

 

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Os nexos, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e relações com as classes populares em democracias liberais restritas

 

por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida /A Terra É Redonda 

Dois aspectos adquirem enorme importância na atual crise política brasileira: uma forte expansão do neofascismo que até deixa saudades de quando, uns cinco anos atrás, discutimos sobre a existência de uma onda conservadora no Brasil;  o debate sobre a tutela militar quase cai na boca do povo.

Inevitável não é, mas, pelo que temos visto e vivido, é bastante provável que, especialmente no caso de uma intensificação das contradições internas à formação social brasileira e um aprofundamento da crise econômica mundial em um jogo geoestratégico complicadíssimo, este país constitua um cenário bastante favorável ao crescente entrelaçamento – e mesmo à fusão – da forte presença política dos militares com o avanço do neofascismo.

Este artigo, longe de abordar a questão em toda a sua complexidade, o que implicaria levar em conta, por exemplo, dimensões corporativas específicas das Forças Armadas, centra o foco, de modo ainda bastante genérico, nas relações, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e as classes populares em democracias liberais restritas.

 

Passado e presente da tutela militar

 

Segundo diversos estudiosos, a tutela militar se constituiu com a formação do Estado independente a partir de 1822-24 e jamais se foi. Até porque, apesar do debate, não temos um conceito suficientemente claro de tutela militar, deixo, neste momento, de discuti-la no interior de formações sociais pré-capitalistas e apenas registro uma dúvida teórica que, no Brasil atual, tem imediatas implicações políticas: a distinção qualitativa entre o Estado escravista moderno e o Estado burguês não deveria ser mais considerada ao falarmos de uma bicentenária tutela militar?

Creio que, se traçarmos esta linha de continuidade muito direta, corremos o risco de legitimar posições que, de um modo ou de outro, justificam a proeminência militar na política contemporânea com a referência a um passado mítico de um povo apático, inclusive em razão de determinações raciais, e, portanto, incapaz de se conduzir. Centro o foco no período marcado pela presença de um Estado nacional brasileiro cuja existência coincidiu com a da forma de governo republicana ao longo de 121 anos de História.

Mesmo assim, assinalo um problema: a questão da tutela militar no Brasil se escancara a céu aberto quando se trata de democracias liberais de massas, pois, em se tratando de ditaduras militares, corre-se o sério risco (não a inevitabilidade) de ficar a meio caminho do truísmo e da redundância. O que, ironicamente, não impede que, nas constituições ditatoriais brasileiras, artigos mais diretamente relacionados com o papel das Forças Armadas lhes atribuem um papel mais subalterno ao Executivo. Já as Cartas Magnas das duas democracias liberais de massas neste país, 1945-1964 e desde 1989, trazem o registro da tutela militar: artigos no.177 e 142 das Constituições de 1946 e 1988, respectivamente.

Estranho país no qual a simples aceitação da democracia é acompanhada do aviso constitucional de que as Forças Armadas estão de olho e prontas para agir. Neste texto, centro o foco em alguns aspectos das relações entre o ramo militar da burocracia do Estado brasileiro e a Presidência frente às lutas das classes populares.

 

Transição de capitalismo e lutas político-ideológicas

 

No período 1945-1964, militares atuavam em todas as frentes de disputa a respeito da política de Estado. O principal eixo da discórdia girava em torno da implementação de políticas necessárias ao desenvolvimento nacional brasileiro, o que, de tão genérico, beirava o consensual. Em termos objetivos, estava em disputa a continuidade da política de desenvolvimento capitalista industrial (dependente) implementada durante a Era Vargas (1930-45). Em torno desta é que se manifestavam interesses e variantes ideológicas contraditórios no interior da classe dominante, entre camadas da classe média e segmentos do aparelho estatal em um período marcado, do início ao fim, pela ascensão política das classes populares.

Comparados aos atuais 38 anos do regime atual, os 19 daquela democracia foram de prender o fôlego.

As contendas não se limitaram aos debates orais e escritos dentro e fora dos partidos políticos, no parlamento, na imprensa e, ao longo dos anos 1950, na intelectualizadíssima Revista do Clube Militar. Beiraram as vias de fato quando, na undécima hora, o general Lott liderou o famoso “golpe da legalidade” (11/11/1955) que assegurou a posse da dupla Kubitschek e Goulart, legitimamente eleita mas contestada pelos adversários civis (udenistas) e militares adeptos do candidato derrotado, general Távora.

Questionamento da vitória eleitoral, longe de invenção tucana, foi fortíssimo em relação a dois importantíssimos presidentes brasileiros: Vargas, em 1950, e Kubitschek em 1955, quando o general Lott deu o “golpe da legalidade”, sem falar no risco de confronto armado produzido pelo veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na esteira da renúncia de Jânio Quadros. Enfim, em todas as eleições presidenciais do período, houve sempre um militar (em 1945, dois) entre os candidatos mais votados.

Nestes breves 19 anos de vida, ocorreu formidável ascensão das lutas operárias e também, a partir de 1955, o ingresso promissor das ligas camponesas na luta política. E, no frigir dos ovos, esta ebulição sociopolítica desembocou na montagem de um capitalismo industrial dependente que deixou para traz o debate sobre a vocação agrária da economia brasileira. Neste processo, os conflitos no interior do ramo militar da burocracia de Estado foram decisivos. O que justifica o recurso à noção de tutela militar.

 

Lutas de trabalhadores e transição transada

 

A crise da ditadura militar foi marcada por uma extraordinária presença das lutas operárias e populares que até hoje deixam registros nos nomes de partidos, movimentos e entidades de representação corporativa de trabalhadores e segmentos da classe média, produção cultural, sem falar nas atividades que, perdidas na memória, requerem pesquisa. Houve momentos em que pessoas de classe média, ao encherem o carro de compras no supermercado, reservavam um pouco delas para doarem ao fundo de greve.

Todavia, essas lutas que encantaram boa parte do mundo não conseguiram dirigir o processo de transição. Um dos resultados da transição transada – expressão do saudoso Florestan Fernandes – é a Constituição Cidadã com este famoso artigo 142. Ela mal completou 35 dias e ocorreu forte intervenção do Exército na cidade de Volta Redonda para reprimir a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (o chamado Massacre de Volta Redonda). Cinco anos depois, a empresa foi privatizada. Tropas do Exército também atuaram contra a greve dos Petroleiros em maio de 1995 (governo FHC), com impactos importantíssimos para as lutas dos trabalhadores neste país. E, expressando a virada das relações sociais, as operações de GLO, estritamente de acordo com o famoso artigo 147, foram transmitidas de governo a governo. Ou seja, a atual democracia (restrita) brasileira nasceu com o selo da tutela militar.

 

A tutela e seus limites

 

Durante o interregno Temer, no bojo da reafirmação da hegemonia da grande finança, pari passu com as derrotas das classes populares, liquidou-se o que restava da “herança varguista” e,  em meio à crise do sistema partidário, a cena política foi inflada de agremiações reacionárias e conservadoras ligadas a setores da burguesia interna rural e urbana. E um grupo de generais passou a intervir ostensiva e simploriamente na implementação de políticas estatais, como a econômica, externa, cultural, de costumes e eleitoral.

Neste último caso, bloqueou a candidatura Lula e se envolveu diretamente na de Jair Bolsonaro. Estas políticas foram apresentadas como racionais, voltadas para a defesa da lei e da ordem e a regeneração nacional, o que implicaria profundo combate à corrupção. E, no geral, receberam apoio entusiástico do conjunto da classe dominante brasileira, amplos setores da classe média e todos os grandes meios de comunicação.

Com o mesmo apoio, então bem mais emocionado e com maior penetração nas classes populares, emergiu a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro e se configurou uma relação entre militares e política que, salvo melhor juízo, não tem precedentes na história deste país.

Estabeleceu-se um governo fascista profundamente atentatório à democracia liberal, atrelado ao financismo, voltado para a exportação de bens primários e refratário a políticas de desenvolvimento industrial e de apoio à pequena produção rural e urbana. O modo de exercício da hegemonia do capital financeiro levou à defesa objetiva, sob o nome de responsabilidade fiscal, de uma política econômica de aspectos genocidas, atentados constantes à democracia liberal, política internacional desastrada e política sanitária catastrófica, sempre com o envolvimento do referido grupo predominante no interior das Forças Armadas.

O que seria uma simples disputa eleitoral abriu a espaço para, na ausência de qualquer inimigo real ou potencial, um surto de descoordenação nos (e entre os) diversos segmentos do ramo repressivo do Estado (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal). E o centro do palco foi ocupado personagens movidos à violência cega e formulações simplistas quase sempre expressadas por meio de escasso repertório de xingamentos idiotizastes. Aguardemos as pesquisas sobre a inserção social dos que vandalizaram a Praça dos Três Poderes.

Se, mesmo nos casos clássicos, a ascensão de fascismos passou pela impregnação (e posterior comando) do aparato repressivo do Estado, a ascensão do bolsonarismo, cujo líder já foi declarado nada afeito à carreira castrense, mas é admirado pela base da tropa, sinaliza o risco de preocupante mutação da tutela militar no Brasil.

 

14
Fev23

Psicologia coletiva dos neofascistas

Talis Andrade
Imagem: Mustafa Ezz

 

O grande desafio intelectual atual é “decifrar a esfinge” do neofascismo tupiniquim

 

por Fernando Nogueira da Costa

O que de manhã tem quatro patas, de tarde tem duas e de noite tem três? O ser humano. Ele engatinha quando criança, caminha quando é adulto e precisa de uma bengala quando envelhece. Édipo foi quem respondeu à questão e derrotou a Esfinge.

O grande desafio intelectual atual é “decifrar a esfinge” do neofascismo tupiniquim. Diz respeito ao perfil de quem só idolatra “deus, pátria e família”. Há diversos esforços de politicólogos, sociólogos e psicólogos para dar uma explicação para esse fenômeno com capacidade de abarcar 49,1% do eleitorado brasileiro.

Eu, como professor de Economia, leio a todos cientistas em busca de uma resposta cabal… se esta for possível, de maneira definitiva e categórica, sem dar lugar a dúvidas, evasivas ou imprecisão. Também assisti, pouco-a-pouco, porque é muito entristecedora, a importante série documental Extremistas.br da Globoplay.

Daí, visualizando os personagens celibatários – em sentido figurado sem proveito, estéreis, inúteis – dessa trama paranoica, senti necessidade de reler o Psicologia de massas do fascismo, publicado em 1933, durante a ascensão do nazismo na Alemanha. O psicanalista austríaco Wilhelm Reich analisa a razão de os fascistas apresentarem um sintoma da repressão sexual. Ele alerta: “a explicação socioeconômica não se sustenta”. Quando o pensamento e a ação dos humanos são incoerentes com a situação econômica, eles são irracionais.

O marxista comum e o economista tacanho, caso não reconheçam a psicologia, não têm resposta para esta contradição. Por qual razão apoiar um governo militarizado sem apoio à mobilidade social dos párias, mas só com concessões de benesses às suas castas?

“Quanto mais mecanicista e economicista é o sociólogo, tanto menos conhece a estrutura psíquica dos seres humanos e tanto mais incorre nos erros de um psicologismo superficial, na prática da propaganda de massas. Em vez de revelar e resolver a contradição psíquica do indivíduo, inserido nas massas, (…) explica o movimento nacionalista [místico] como uma ‘psicose de massas’”.

Como o economicista não conhece nem admite a existência de processos psíquicos, a expressão “psicose de massas” significa para ele uma coisa sem qualquer relevância social. Para Wilhelm Reich, significa um fato social de enorme importância histórica.

O livro Psicologia de massas do fascismo inicia seu questionamento exatamente no ponto onde fracassam as explicações socioeconômicas imediatas. Por conta de sua crítica ao economicismo do marxismo vulgar, desdobrando-se em crítica ao totalitarismo stalinista da União Soviética, Wilhelm Reich foi expulso do Partido Comunista da Alemanha.

Mas não foi só por parte dessa esquerda a recusa ao seu pensamento crítico. Ele teve de fugir da Alemanha, após a tomada de poder pelo nacional-socialismo (nazismo) com o incêndio do Reichstag. Seu livro, em conjunto com muitos outros banidos pelos nazistas alemães, quando chegaram ao poder, foi queimado publicamente.

Aqui, os neofascistas tupiniquins “queimam” os livros de Paulo Freire e toda a literatura universitária suposta ser de “comunistas e drogados”. Só leem suas redes de ódio na internet, ou seja, louvam os palavrões vomitados por Olavo de Carvalho como fossem um profundo conhecimento…

Pior, Wilhelm Reich também foi expulso da Associação Psicanalítica Internacional em 1934 por seus pontos de vista sobre sexualidade. Todos os livros publicados por ele foram posteriormente ordenados a serem queimados, a pedido da Food and Drug Administration (FDA), por um juiz do Maine, Estados Unidos, em 1954, durante o auge do macarthismo, o anticomunismo norte-americano.

Qual é o maior incômodo causado por ele aos fascistas? Considera a família (Tradição e Propriedade), uma das pernas do tripé Deus (Evangelismo) e Pátria (Forças Armadas), como a principal célula germinativa da política reacionária, o centro mais importante de produção de homens e mulheres reacionários. A família torna-se o pilar principal para a manutenção do sistema autoritário em favor da conservação do status quo.

Em contraponto, a mulher sexualmente consciente, capaz de se afirmar e ser reconhecida como tal, significaria o colapso completo da ideologia autoritária. Daí o ódio dos conservadores tacanhos contra a pauta identitária: feminismo, transexualismo, anti-homofobia, liberdade para dispor do próprio corpo etc.

Cada ordem social cria, nas massas componentes, as estruturas psicológicas necessitadas para atingir seus objetivos fundamentais. As contradições da estrutura econômica da sociedade estão enraizadas na estrutura psicológica das massas oprimidas, econômica e sexualmente. A compreensão do agir de maneira irracional e aparentemente sem propósito necessita da compreensão da clivagem entre ideologia e economia. Todo o misticismo é reacionário – e o homem reacionário é místico.

Ridicularizar o misticismo – a inclinação para acreditar em forças e entes sobrenaturais –, considerando-o como “embotamento” ou “psicose coletiva”, não é a medida adequada contra ele. Mas, se compreendermos corretamente a crença de o ser humano poder se comunicar com alguma divindade ou receber dela sinais ou mensagens, poderemos descobrir um antídoto para o fenômeno do conservadorismo reacionário.

Qualquer místico justificará tal comportamento com base na moralidade intrínseca da natureza do homem. Ela impede a rebelião contra as instituições divinas e a autoridade do Estado, caso esteja sob controle das Forças Armadas e seus representantes.

Tais fenômenos não podem ser explicados de um ponto de vista puramente econômico, ou seja, apoiando-se na luta de classes entre as frações de renda e/ou riqueza. É necessário entender a conexão entre esse comportamento auto repressivo e a distorção da vida sexual das grandes massas incultas e doutrinadas religiosa e militarmente.

A sexualidade ou sua energia — a libido —, instintiva no corpo, é o motor principal da vida psíquica. As condições biológicas e as condições sociais da vida cruzam-se na mente.

Desde a infância, a sexualidade é normalmente reprimida pelo medo do castigo por atos e pensamentos de natureza sexual. Isso explica a obsessão da extrema direita com os xingamentos de pederastia contra os discordantes. A repressão intensifica a sexualidade e a torna capaz de se manifestar em diversas perturbações patológicas da mente.

O código moral introjetado no ser humano, longe de ter origem divina, provém da educação dada pelos pais e seus representantes, desde a infância. Dentre as medidas educativas, destacam-se as contrárias à livre sexualidade.

A sociologia da economia sexual se pergunta: por quais motivos sociológicos a sexualidade é reprimida pela sociedade e recalcada pelo indivíduo conservador? O evangelismo diria ser pela “salvação da alma”, mas a atividade cultural em si não demanda a repressão e o recalcamento da sexualidade. Não é uma questão de cultura, mas sim de manutenção da mesma ordem social de outrora com suas hierarquias.

A combinação da estrutura socioeconômica com a estrutura sexual da sociedade (e sua reprodução) verifica-se desde os primeiros anos de vida na família autoritária. A Igreja continua com essa função castradora. Por fim, o líder autoritário no Estado defende ambas (Deus e família), onde estruturas e ideologias da Pátria armada são moldadas.

Como sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. O objetivo da moralidade familiar e evangélica é a criação do indivíduo submisso, adaptado à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilhação.

A inibição moralista e antissexual impede a mulher conservadora de tomar consciência da sua situação social. Liga-a fortemente aos pastores “evangélicos” (sic), pois a fazem temer o “comunismo sexual”.

A repressão da satisfação das necessidades materiais se subordina à repressão das necessidades sexuais. Esta impede a rebelião contra as duas espécies de repressão ao reprimir seus impulsos sexuais, retirando-os do domínio do consciente e fixando-os como defesa da moralidade retrógrada contra os costumes sociais dos novos tempos.

O resultado, segundo Wilhem Reich, é o conservadorismo, o medo da liberdade. Por isso, predomina a mentalidade reacionária, vista em xucros interioranos no DF.

A ideologia fascista, ao contrário da ideologia evangélica, faz uma distinção entre as necessidades orgásticas do animal humano e as estruturas psicológicas, criadas na sociedade patriarcal autoritária. Em suas violentas manifestações, contrapõe-se ao celestial, assexual, puro. Libera o instintivo, demoníaco, sexual, extasio, orgástico.

Nos acampamentos em frente os quartéis, os “puritanos” se excitaram sexualmente. O convívio com gente da mais laia causou muita animação, empolgou-os até se afastarem da família. As manifestações coletivas são orgásticas. No vandalismo contra símbolos da República, finalmente, obtiveram um orgasmo, o mais alto grau de satisfação sexual.

07
Fev23

Patriotas versus cidadãos

Talis Andrade
 
 
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Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome

 

por Luiz Marques 

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Entre as revoltas que precederam a declaração de Independência do Brasil, a Inconfidência Mineira (1789) refletiu os valores iluministas do século XVIII e a experiência das colônias da América do Norte. Os líderes descendiam da “casa grande” – militares, fazendeiros, magistrados, padres, poetas. À semelhança da Revolução Haitiana (1791), a rebelião mais popular foi a Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, que envolveu militares de baixa patente, artesãos e escravizados. Composta por uma maioria de negros e mulatos, mirou na escravidão e no domínio dos brancos. Não buscou fundar um quilombo distante de uma cidade populosa, como era hábito dos foragidos (Palmares).

A última insurreição colonial aconteceu em Pernambuco (1817), encabeçada por militares de alta patente, comerciantes, senhores de engenho e padres (estima-se em 45), que se diziam “patriotas”. Sob inspiração maçônica, proclamou uma república autônoma que enlaçava Pernambuco e as capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sobre o modelo escravista, iniciado logo após o descobrimento e mantido por penosos 350 anos, silêncio obsequioso. Os grilhões restariam intactos.

Apesar dos pesares, no livro Cidadania no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho salientou no evento insurgente “uma nascente consciência de direitos sociais e políticos”, na crua geografia de abestalhados – entrecortada pela mestiçagem derivada dos frequentes estupros das negras. Por república, entendia-se o governo de povos livres em oposição ao absolutismo monárquico. Não acenava um futuro com ideias sustentadas na igualdade. Com a identidade forjada em batalhas prolongadas contra os holandeses, o patriotismo do epicentro pernambucano superava o brasileiro.

Agora, um salto temporal. Adeptos do movimento golpista recente também se autodenominaram “patriotas”. Não “cidadãos”, como na terminologia propagada na Revolução Francesa para designar o pertencimento a um Estado-nação. No caucasiano acampamento da extrema direita, incubadora dos atos descompensados no 12 de dezembro e no 8 de janeiro, em Brasília, os partícipes não evocavam o conceito de cidadania ao justificar o vandalismo brutal dos símbolos republicanos. Considerando-se indivíduos de exceção perante as leis vigentes, depredaram com brutalidade os fundamentos sedimentados por práticas civilizacionais inexistentes em hegemonias fechadas.

O clamor contrarrevolucionário não se construiu em relação a um inimigo externo: portugueses, holandeses, franceses, espanhóis ou ingleses com os quais em algum momento o Brasil esteve em conflito. Dirigiu-se ao inimigo interno (o povo) que desfraldou a bandeira da democracia, em defesa das instituições da estremecida Terra brasilis. Apostou no fratricídio e nas manipulações digitais com robôs e fake news. O dedo seletivo apontou os judeus da hora: os sujeitos políticos (partidos de esquerda), regionais (nordestinos), étnicos (negros, indígenas), de gênero (mulheres), identitários (grupos LGBTQIA+) e do conhecimento (intelectuais, cientistas, agentes da cultura e das artes).

O simulacro patriótico tinha um forte ingrediente ideológico, ligado a uma visão mítico-messiânica para ocultar o antinacionalismo econômico remanescente do colonialismo. Fenômeno reatualizado pela vassalagem vira-lata ao imperialismo estadunidense e pelas privatizações crescentes. Vide o fatiamento da Petrobrás e do pré-sal. Tudo consentâneo o Consenso de Washington. A peculiaridade do neofascismo tropical foi a estreita associação com a globalização neoliberal que, com dogmas monetaristas em favor da “austeridade fiscal” e do “teto de gastos públicos”, retirou poderes da governança submissa que, de resto, cedeu-os sem um mínimo de decoro na função presidencial.

A estratégia desenvolvimentista com foco na reindustrialização para formar um mercado de massas, dentro das fronteiras territoriais, e amainar as infames desigualdades herdadas do longo ciclo de horrores, nunca integrou a agenda do Coisa Ruim. Os protestos de aparência leonina maquiavam os desprotestos raposinos, vergonhosos, pusilânimes, de traição à pátria. O objetivo era congelar a matriz colonialista (racista) e patriarcal (sexista), junto com as hierarquias sociais da antiga tradição de dominação e subordinação. A violência e a hostilidade aos progressistas tinham um por quê.

O antipatriotismo estrutural foi disfarçado com a estética verde-amarela dos desfiles, com hinos. Os toscos revoltosos concentraram os disparos nas balizas constitucionais de amparo a uma democracia com justiça social e ambiental. Por suposto, a raiva e o ódio não se estenderam até o mundo das finanças. O rebanho de manobra desconhecia os patrões e, por ignorância, aliou-se aos opressores. Para curar frustrações com as promessas descumpridas do sistema democrático, o remédio indicado foi a instalação do regime iliberal. O liquidificador fundiu a essência neofascista (Jair Bolsonaro), o neoliberalismo duro (Paulo Guedes) e o conservadorismo teocrático (Silas Malafaia, Edir Macedo). Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome.

A lógica de financeirização do Estado e os interesses do agronegócio somaram-se ao predatório extrativismo de madeiras (nobres) e minerais (ouro, diamantes) da Amazônia, o que esgaçou a crise climática e o genocídio de comunidades originárias. O programa da ultradireita fez, da floresta, uma refém do totalitarismo da mercadoria. Nisto, resumiu-se a distopia de extermínio bolsolavista. Com opção de classe nítida, os entreguistas celebraram a necropolítica no aparelho estatal. Danem-se os pobres; vivam os privilégios redobrados ao capital financeiro. La noblesse du dollar oblige.

Ao transformar as “liberdades individuais” em panaceia para os problemas da nação, a obtusidade das vertentes obscurantistas entrincheirou-se em um campo específico de direitos, que abrangiam a vida, a garantia da propriedade, a segurança pessoal, a manifestação do pensamento, organizar-se, ir e vir, e acessar informações alternativas – rápido, convertidas em passaporte para o negacionismo. Quando a ênfase recai apenas nos “direitos civis” e, estes, ademais, se restringem ao usufruto dos correligionários, os “direitos sociais” e os “direitos políticos” saem pela porta dos fundos; para retomar o estudo clássico de T. H. Marschall sobre as três dimensões indispensáveis da cidadania.

No transcurso da pandemia do coronavírus, vale lembrar, uma hermenêutica levada ao paroxismo liberou o desaforo de festas privadas, superlotadas, enquanto as UTIs dos hospitais estavam abarrotadas de pacientes da covid-19. No macabro jogral negacionista, não faltaram os empresários dispostos a “salvar a economia”, à revelia dos cuidados com as normas sanitárias para a proteção da população. A desobediência narcísica aos protocolos de isolamento social, à prescrição para o uso de máscaras e à vacinação enalteceu um hiperindividualismo, de pretensões aristocráticas. Com muita arrogância, se reproduziu nas ruas a pulsão genocida encastelada no Palácio do Planalto.

O quadro sombrio desembocou nos ataques terroristas à soberania popular, com a contestação das eleições – sem provas. A convicção tola foi regada pelo despresidente pária, a partir de 2018, para arregimentar as mentalidades entorpecidas pelo antipetismo / antilulismo e jogar desconfiança sobre os suportes da democracia na institucionalidade. O fetiche da “liberdade de expressão” avalizou as realidades paralelas dos militontos, com ares de zumbis. Mas o caos não angariou outras adesões.

É necessário intensificar a disputa política e ideológica na sociedade civil, empoderar a unidade na diversidade, fortalecer a esfera pública crítica e pluralista com a voz dos segmentos excluídos. Os marginalizados da história devem ocupar um “lugar de fala”, na intrincada arquitetura do poder nos municípios, nos estados e na União. Sem esse engajamento ativo é impossível mudanças de cenário. Não basta que os democratas e os intelectuais orgânicos das classes subalternas legitimem as justas demandas “de baixo”. A situação de espectadores das narrativas ofertadas e benefícios recebidos não contempla o importante princípio da autonomia, no processo pedagógico de desalienação. “A emancipação será obra dos próprios trabalhadores”, ensinava o ainda atual Manifesto comunista de 1848.

Para combater a sociopatia do extremismo direitista, a solução sob auspícios do governo liderado por Lula reside na implementação de: (a) Mais direitos sociais – saúde, educação, segurança, renda, formalização do trabalho, sociabilidade não discriminatória e; (b) Mais direitos políticos, por meio da participação cidadã ampliada para a elaboração coletiva de políticas públicas, na forma de um Orçamento Participativo Nacional (OPN). Para uma exposição detalhada, ver o artigo “Políticas participativas” de Leonardo Avritzer e Wagner Romão, no sítio internético A Terra É Redonda.

O desafio está em estimular a cidadania a confrontar o falso civismo que estupidificou a política, no quadriênio miliciano. Tarefa para os partidos e movimentos sociais do campo e da cidade, entidades comunitárias e estudantis, sindicatos e clubes de bocha, pagodes e saraus, ônibus e metrôs, praças e bares, almoços dominicais e intervalos dos jogos de futebol. Qualquer local. Como na bela canção de Caetano Veloso: “É preciso estar atentos e fortes / Não temos tempo para temer a morte”.

 
 
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05
Fev23

Necropolítica e racismo

Talis Andrade
 
 

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Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado

 

por Luiz Marques

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Achille Mbembe é um filósofo camaronês que, no início do século XXI, publicou um pequeno ensaio em inglês intitulado Necropolitics. Traduzido para o português, em 2018, soma mais de uma dezena de reimpressões. Virou um grande best-seller do pensamento. Necropolítica discute o atributo fundamental da soberania: “exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida como implantação e manifestação de poder”. A definição corresponde ao que Michael Foucault denomina de biopoder, em Nascimento da biopolítica (Collège de France, 1978-1979).

A preocupação do pensador africano é com “a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. A ascensão da extrema-direita em escala internacional acendeu o alerta. O neofascismo reenergizou a oposição amigo / inimigo, na política, para justificar o Estado de exceção e conferir ao poder instituído a decisão sobre a vida e a morte dos indivíduos. No Ocidente, o racismo étnico foi o instrumento, por excelência, criado para a eliminação da alteridade; mais inclusive do que a perspectiva de classe social.

Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Neste sentido, os relatos históricos sobre a necropolítica precisam reinserir na agenda crítica a escravidão, “que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”. Se o sistema de plantation serviu para modelar o Estado de exceção moderno, as perdas que abateram os escravos incubaram apátridas, sem direitos sobre o seu corpo ou à existência social (desumanização). Perdas maiores que a simples mais-valia.

Michel Foucault localiza as origens do terror no mecanismo das formações sociais e políticas da Europa, branca e cristã: a subjugação corporal, as regulamentações médicas, o darwinismo social, as políticas de eugenia, as teorias médico-legais sobre hereditariedade, a degeneração e a raça. Mas foram a plantation e a colônia que concentraram o imaginário de horror, que incitou a máquina de moer carne dos campos de extermínio e gulags, dos anos 1930-40. Ambientes em que a ideia do Estado baseado no princípio de organização racional e em ideais universais, como símbolos de uma moralidade, caíram por terra. Em zonas assim conflagradas, a guerra e a desordem postam-se lado a lado, suspendendo as garantias de ordem judicial e constitucional. Em tais circunstâncias, a brutal truculência dos longos hiatos excepcionais operou a serviço da “civilização”.

Para o conquistador, “vida selvagem” equivale à “vida animal”, uma vivência além da imaginação e da compreensão. Do ponto de vista do imperialismo colonial, o alterego é um elemento natural, inumano, a ser subjugado e domesticado. Massacres não geram o sentimento de crime. Conflitos não estão submetidos às normas legais e institucionais. A cidade dos colonizados é má, tem fome, miséria. O locus colonizado é uma favela ajoelhada, disciplinada com ferros.

As beligerâncias pós-modernas são diferentes. Não incluem a conquista e a gerência territorial. Destroem, sem a necessidade de olhar o inimigo nos olhos. A Guerra do Golfo lembrou um jogo de videogame. Bombas inteligentes, sensores eletrônicos, mísseis guiados a laser, veículos aéreos não tripulados, ciberinteligência liquidavam os esboços de reação do inimigo. Em Kosovo, a guerra teve um caráter infraestrutural, destruiu pontes, ferrovias, rodovias, redes de comunicação, armazéns e depósitos de petróleo, centrais termoelétricas, centrais elétricas e instalações de tratamento de água. A estratégia visou o aniquilamento da alternativa de sobrevivência. Ouse e verá.

Os estragos na vida civil foram tremendos. Quando a explosão de uma petroquímica contaminou os arredores de Belgrado, recomendou-se às mulheres o aborto e que não engravidassem por dois anos. Na África, os aparelhos de Estado já não possuem o weberiano “monopólio da violência”. Grupos privados formam e armam exércitos poderosos de extermínio, com os recursos extrativistas de minerais para a compra de armamentos pesados, letais. Crianças viram soldados, mutilados vagam como zumbis, os êxodos levam a zoneamentos prisionais e ao sofrimento.

A ausência de liberdade e a iminência da morte física é o traço comum entre os sobreviventes, nos Estados escravistas e nas ocupações coloniais. A brutalidade pretende fazer da dor infligida um meio de submissão incondicional. Fenômeno que não pertence ao passado, pertence ao presente construído com a lógica colonialista da dominação e subordinação. A “duração” entrelaça o ontem ao hoje com a linha de continuidade da necropolítica, às vezes imperceptível. Como se fosse um raio no céu azul, uma excepcionalidade. A rigor, trata-se do continuum. Em sociedades marcadas pela longa travessia escravista, todas as relações sociais reproduzem a chaga da intolerância e do preconceito que “roubou a alma até dos proprietários de escravos”, conforme diziam ilustres abolicionistas em priscas eras. Empregadas domésticas sabem-no de cor.

Apesar do processo de desumanização metódica e sistemática, escravizados no Brasil por 350 anos erguem-se das ruínas, onde os significantes se mantiveram entre destroços para desenvolver suas capacidades polimorfas, com a música e a dança. Pareciam despojados de Eros para sempre, porém reinventaram novos significados para existir. A “territorialização” da colônia à margem da lei não logrou acabar com a resiliência dos subalternizados. Oprimiu; não venceu.

A memória de detalhes das lutas e revoltas ancestrais impulsiona, não a fantasia do regresso a uma ilusão sem pé nem cabeça na verità effettuale della cosa, e sim a esperança no futuro. A resistência reside no candomblé, na umbanda, nas comidas que formataram uma identidade brasileira, nos quilombolas, no sincretismo para manter vivo o interditado. Cotas étnico-raciais em universidades públicas agilizaram a reparação, que era devida aos vitimizados por séculos, e acionaram políticas públicas em Conferências Nacionais sob os governos progressistas (2003-2016). Nenhum outro programa promoveu tamanha e impressionante mobilidade social. Filhas e filhos de diaristas e frentistas puderam então frequentar o ensino superior, tornar-se doutores.

O biopoder, a necropolítica e o Estado de exceção rondam o mapa-múndi, o que dá a perfeita dimensão da vitória de Lula à presidência da nação. O resultado impactou e bloqueou o crescimento da extrema-direita, internacionalmente. A política voltou ao prumo de cidadania, com os valores da liberdade, igualdade e solidariedade. Nas delegacias de polícia ainda ecoam torturas e violações dos direitos humanos. Ainda se morre asfixiado no porta-malas da SUV de agentes rodoviários, por estar sem capacete, ou na saída de um supermercado espancado por seguranças racializados pelo racismo estrutural, porque se é preto. Mas a indignação no peito sai às ruas. O nível de consciência, cresceu e o ânimo organizativo se fortaleceu. “Vidas negras importam”.

A luta de classes no país está ligada à emancipação da canga do colonialismo (racismo). As relações de trabalho e raça, juntamente com a questão de gênero, tecem uma totalidade que a astúcia política se encarrega de classificar e ordenar, sem apriorismos teóricos. Nem tudo se resolve na teoria; muito se resolve na prática, no movimento, sem manual de instrução. O mérito de Achille Mbembe é pôr o dedo na ferida narcísica da história mundial do supremacismo caucasiano. A necropolítica e o racismo são âncoras que nos prendem aos piores pesadelos. Içar âncoras!

 
 
 
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07
Out22

Upresidente, memórias de um doente de fascismo

Talis Andrade
Imagem: Varvara Stepanova

 

Carta ficcional sobre áudios de um suposto presidente que finge enlouquecer durante as eleições de um país real chamado Brasil

 

por Pedro Paulo Rocha /A Terra É Redonda

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Que dia é hoje? Ainda é hoje? Faz quanto tempo que estou preso? Dia…

O cheiro do Chorume Nacional entra em minhas narinas e ouvidos zunindo. Estou nos Buracos dos muros.

O fedor arde na pele, exalando dos ternos dos neofascistas da pátria; brilha a cruz, brilha o capital. A pele queima do que me olha: vejo de longe muito perto a paisagem de um Esgoto de pólvora em piscinas de mansões; meu corpo fica paralisado até que tudo acontece de repente! Escuto som de tiros vindos da rua. Gritos inumanos e pessoas correndo. Pretos apanhando e brancos consumindo. E se rebelam. Quilombos, favelas. Subterrâneos. Corpos de sons. Sei bem que não é um sonho. Milicianos nadam nas favelas e moram em Torres.

A Tortura nunca acabou. Pastores chovem dinheiro. Rezas. Mijo. Roda de investidores. Quartéis de viagras e pau de borracha queimada. Sala vermelha de Tortura. Rua, morro. Morro e escapo. Vivo e não morro, desço num salto até uma constelação acesa. Eles matam, continuam matando. Igrejas e empresas. Os terreiros nas florestas, onde se escondem.

A vida no beco. Ora ternura, ora terror. Amor, memórias vivas, memórias enterradas e desenterradas. Exploração, sexos comercializados. Amor proibido. Indígenas, pretos, mulheres e crianças trafegadas. Desterrados. Fluxo sanguíneo e ficção. Na boca da guerra. Cruz e arma. Nunca acaba de passar. Bancos em navios com tubarões atrás do rastro de sangue no mar. Choro e chorume. Banho de Esgotos. Água Santa. Animal. Pão de Terra. Sangue azul. Corpo petróleos. Vírus.

É uma tempestade de ferro e pedras de uma ilha roubada. Amontoados. Presídios. Shopping. A piscina transborda. Muitos não sabem nadar. Indígenas refletem na vidraça rachada do planalto central. Nome de rio. Cara de peixe. Fronteira de fogo. A foto de uma flecha lançada fora do tempo acertou o hoje. Inventam nossos olhos.

Vou relatar aqui fatos quase reais de um presidente que enlouqueceu. Enlouqueceu? Na real ele finge que está louco. E esse presidente todos sabemos quem é e o que fez. Não vi com meus próprios olhos, mas posso afirmar que ouvi com meus próprios ouvidos… Desgraçado quanta desgraça de graça? A mente perdeu o controle ou o controle dominou a mente?

As frases ultrapassaram o acontecido, depois preciso voltar ao começo que imaginei…

Tudo aconteceu hoje pela madrugada. Soube logo pela manhã que Upresidente enlouqueceu…

Já aviso que ele não tem mais apenas um nome. Se tornou tanto ele mesmo que seu eu perdeu a cisão consigo. Muitas cabeças estão nascendo de sua voz –metamorfose. O monstro que ele foi vive uma mutação. Isso aconteceu exatamente nesse momento em que estou escrevendo esta frase sem futuro, mensagem de uma carta roubada, sem remetente. Espero que a carta chegue…

Se eu parecer também louco é devido a emoção que isto que te escrevo me causa. É a realidade que é insuportável. Soube que tudo começou nesta manhã assim que recebi algumas mensagens de áudio do UPresidente de um número desconhecido. Levei um susto e estou angustiado até agora com o que escutei de viva voz do Capetão da Nação.

Gostaria, não consigo, gostaria de fugir do que ouvi, não consigo! Se escrevo agora o ocorrido é porque é urgente dizer de alguma maneira o que é a doença do Messias.

O fato dela se confundir com o que é dito normal é o mais assustador e estranho – como é possível misturar duas coisas pensadas como opostas – o normal e a loucura?

Foi nesta manhã lá pelas 6 hs quando eu estava na rua caminhando em direção ao centro dividido da necrocidade – e de repente – o som do celular começou a tocar indicando o nome “a pátria armada”: olhei sem olhos e dei uma risada abafada e desliguei na hora depois de cuspir na tela. Depois que cuspi. Senti uma dor no estômago, acho. Cuspi mais uma vez na tela.

O sol queimou as minhas íris quando vi uma pessoa na rua com uma ferida viva. Ela percebeu que a vi chorar uma lágrima seca e ficou com raiva de mim. Tive que desaparecer rapidamente para não morrer por ver na flor da pele a dor de alguém queimando o ar.

Nesse lapso, no mesmo momento, chegou no meu WhatsApp uma série de mensagens com códigos sem significados por mais de um minuto sem cessar.

Logo depois veio um áudio de uns 10 minutos, 10 minutos e 37 segundos para ser mais preciso ( não importa ) com essa mensagem: “Upresidente enlouqueceu completamente. Por favor não envie para ninguém os áudios, ainda é possível salvar o país! Seus assessores estão procurando alguém que possa curá-lo urgentemente. É muito perigoso o que pode acontecer. Se descobrirem será tarde demais. Não sabemos mais como controlá-lo de hoje em diante. Os empresários ainda estão nos apoiando. Temos muito dinheiro, muito, muito mesmo. Além de armas, muitas… caixas de armamento pesado”.

Depois de ler isso passei a escutar os áudios. A sua voz estava trêmula e grave de um jeito animalesco. Por minutos senti falta de ar lembrando aquela imagem dele imitando alguém quase morrendo dos pulmões. Quando olhei para o chão da cidade cheio de lixo e por segundos me esqueci, por segundos quase me esqueci, o que tinha achado de ocorrer. Acabado, quis dizer, que tinha acabado de ocorrer. Pode ser que as vezes eu troque as palavras sem querer… por querer, quis dizer… isso vai se repetir… as palavras não têm controle… Aconteceu antes, aconteceu depois, fui golpeado por uma memória sem imagem muito pesada que evaporou na curva fantasma. Tentei na descida sufocar o esquecimento momentâneo, não deu – a coisa voltou – vomitei o agora com uma gosma viva no chão da fome, uma gosma de cor branca com algumas notas de dinheiro queimado, real, dólar, e uma cruz enrolada em uma corrente enferrujada. Rachadura de pedra, pensei, rios – como assim? ? Achei que vi também algumas balas gastas de 38.

Isso seria muito real para ser tão irreal. Fui me arrastando até o primeiro bar na encruzilhada de Brasília e pedi um copo de água viva com raízes. Bebi, fui bebido. Pensei que eu fosse água. Meu organismo absorveu até o vapor. Encostei para retornar a mim mesmo em algum lugar na parede esburacada e assim que recuperei um pouco meus sentidos continuei a caminhada na rua vazada, até que uma nova curva me reviveu.

Fui voltando ao normal e lembrei sem vulto algum que o U presidente entrou em um delírio tão absurdo que nada seria mais normal do que sua loucura; tive que escutar com atenção novamente para acreditar em viva voz naquela mensagem irretratável!

Ele crê que está se transformando em um super-eu. Relatou que hoje não dormiu e que a partir das 3 hs da manhã ganhou novos poderes – “Os raios de deus são balas a partir de agora! Darei meus nervos por vocês. Sou mais forte que o super-homem americano, mais forte que o super-homem de Deus. Existem muitas maneiras de converter a derrota eleitoral em uma oportunidade de tomar o poder, e demostrar de uma vez por todas que o voto é inútil. Eleições só de século em século. Muda os ministérios, mas o presidente é divino. Nunca deixamos de mostrar o que somos e o que buscamos. Não enganamos ninguém. Sempre falamos em voz alta nossos planos. Amém? Amém… pega a arma 09… liga para o quartel… ok? Em nome da lei! Voltando para o tema das eleições… imagine uma coisa simples… sempre um lance a frente… supor que se aconteça isso, nós podemos fazer aquilo… a pergunta é: quem tem mais lances para dar? Vai fazer o que?? vai fazer o que agora?? Se eu for preso como herói! Eu quero a coroa da injustiça! Levar o jogo ao limite até o inimigo perder a possibilidade de reagir… a tomada dos territórios através das subjetividades mortais de uma guerra civil permanente, o modelo é a milícia mesmo! Qual é o problema?… O Rio-Haiti é aqui – Floresta Amazônia Brasil favela do rio… kkkkkkkkkkkk …sou o novo rei do império, mas não sou ladrão… kkkkkkkk”.

Ele está ameaçando enviar um comando de Guerra civil para toda a sua rede com mais de 20 milhões de pessoas, ou mais ainda, nem sei mais quantas…

Muito rapidamente, senti que o asfalto estava quente, muito quente, as pessoas dormiam no chão com fome. Eu derretendo a cada segundo. O sol caía, o céu caía, as nuvens eram florestas em chamas, ouvia o grito dos animais queimando. Povos queimando dentro da noite dos massacres. Eu corria… caía e corria… vocês estavam comigo dentro de uma tela, dentro de uma tela sem fundo que emergia.

Não poderei ainda transcrever diretamente tudo que ouvi abismado da paranóia do herói do fascismo nacional, o Fas Star. Tentarei pelo menos transpor pedaços em uma espécie de zona de encontro entre ficção e realidade.

Acredito que esses áudios são reveladores do que vem acontecendo em nosso país, porque Upresidente realmente já estava fingindo enlouquecido antes desses áudios; por isso a veracidade de seus delírios recentes nos coloca a pergunta: se esses delírios não são simplesmente mais nada do que a nossa redundante normalidade?

Uma estranha loucura ocultada em normalidade quando explicitada através de um absurdo violento se legitima como um novo normal possível de ser aceito e simbolizado. O que ouvi nesses áudios do presidente são delírios de pura realidade, é a verdade mais absurda!

Juro que pode ser algo muito terrível de imaginar e contar. O estranho é ele não parecer tão louco depois de tantas formas de tornar normal sua loucura de poder fascista.

Porém, posso supor que ele atravessou uma fronteira teatral no que está falando agora. O medo fez ele liberar como nunca seu inconsciente fascistóide. Estão correndo atrás da chamada cura porque o seu estado de delírio atual tornaria mais explícito ainda seu desejo de morte pelo poder. Perdeu toda a autocensura porque o super eu e o inconsciente se tornaram a própria fissura que dá vida ao desejo de vingança.

Seu delírio tem agora muito de teatral, se antes ele citava seus heróis, agora ele os encarna. Nos áudios o Upresidente diz não ser mais ele mesmo! Não sei se ele já conseguiu parar de falar como se fosse seu pai Ustra, o torturador.

A partir de agora todos podem ser ele, seu nome é de um Deus chamado Comandante Ustra (que está apaixonado pelo super eu do Messias). Ele falou que está indo para uma sala secreta do centro da cidade para encontrar o Upresidente; quer amá-lo! Não quer interromper seu trabalho de torturador – ele tem muito medo, percebe-se, ele tem medo de estragar tudo com sua presença amada.

Vocês sabem que terei que contar o que ouvi por cortes misturados com realidades que se confundem com uma ficção que está quase virando outro real.

Posso dizer pouca coisa por hora – por isso mesmo não devo também deixar de dizer coisas que não se pode calar porque falar tudo é praticamente impossível.

Usarei uma estratégia de comunicação com fragmentos para montar quase uma história sem fim, esse delírio fascista não se sabe onde vai dar….

Voltando lembro novamente que é sinistro que o que acaba de se revelar de forma mais nua, a loucura mais normal do fascismo, na mente do presidente, faz da normalidade a loucura de Deus pela violência.

Logo no primeiro segundo desses áudios com essas palavras ele abre o discurso mais real que já fez: “Não sou mais mito, não sou mais humano, agora sou Deus, sou o grande U, quero encontrar o Messias para penetrá-lo com meu cano 38 na torre do STF. Já disse, o raio é bala! O Capitão é Rei, Sou Upresidente Ustra. Sou o filho do pai que virou pai. Podem me prender. Me levem, sou um herói!

Está tudo aqui nesses áudios que vou revelar em cartas. A paranoia fascista que desde do primeiro sinal já estava nascida. Agora temos isso em detalhes precisos, quase literários, de alguém que fez da fé razão da verdade para conseguir salvar uma nação do seu diabo inventado.

Muito do que ouvi, apesar de seu novo grau de normalidade alcançado de um fascismo sem limites, já foi tudo dito antes. Quando diziam ele é um louco – quando ele era tão normal que hoje sua chamada loucura não é nada mais do que a mais rigorosa normalidade nova se impondo como lei de uma realidade simbólica. O imaginário se dissolveu no real.

O simbólico não existe (não seria o real?) a não ser nesse instante de seu uso abusivo que pode mudar conforme for o interesse do operador. É notável que o que ele fala em delírio agora se parece com o que ele dizia normalmente; todos os dias sem parar ele explicitou o normal – e nós todos espantados – “ nossa como ele é um…” querendo dizer ele é normal e o normal é isso mesmo, e agora o que vamos fazer?

É depois de ouvir esses áudios, acredito que perdemos a fronteira da loucura e da realidade, quando a violência media. Do dia a dia ferindo em tortura. Esse estado de coisas que sempre foi um retrato fiel absurdado da paranoia da violência vivida como lei natural. Império da violência. Sempre foi essa a doença da violência colonial transformada em progresso, que se impôs contra a maioria do povo sangrado, explorado.

A realidade violenta forjada como ei do mundo.

Não posso deixar de acabar sem essas frases do que ouvi: “ Eu não vou perder ! Eu não vou perder!” gritou quase no final dos áudios…

O real parece insuportável para o salvador, o Messias, alucinado com sua super verdade, está ferido, sangrando! Incrivelmente está alegre com o martírio! “Vou fazer do país pedaços arrancados de mim mesmo U! Meu nome é U! Eu arranquei a faca de dentro da minha barriga. Eu sobrevivi, foi um milagre, eu sobrevivi! Nunca vou… morrer ! Deus morreu em cima de mim com uma arma na mão, acima de todos mais de 740 mil mortos, eu renasci. Eu renasço. Vou matar esses fantasmas em sonho que me invadem o dia. Comunistas! Meu patrimônio, minha família, meus negócios. Eu juro, eu juro que vi dentro das malas de dinheiro, eu vi, eu vi que existem serpentes, muitas serpentes de Deus… o ministro da economia no paraíso me enviou fotos delas; ele vai me levar para o jardim dos investidores. Se eu precisar abandonar a política, eu seria um grande empresário no ramo de armas. Óbvio, vocês sabem disso, minha paixão por armamentos. Sou pela famílicia. Sou pelo negócio. Amém! Rachadinha de ossos. Quem não fez? Não sou diferente de ninguém. Pastores te amo, empresários te amo! Por isso, e por muito mais, que não vou poder me explicar, eu vou dizer, pode acontecer o que for, nem eu, nem minha família vai abandonar a missão em nome do Brasil. Preciso de vocês! Porque é pelo povo. Pelo povo eu luto até a morte. Pelo povo eu mato o povo! A morte me conduz. A morte é nossa glória. E se Jesus voltou armado é para nos mostrar a importância da luta pela nossa liberdade. Eu vou contar tudo para vocês… vão me chamar de louco… mas podem xingar…”

Corta… Vou ter que parar aqui, já escrevi demais por hoje… talvez amanhã cheguem novos áudios… encerro entre cortes e lapsos… faltou muita coisa para lembrar… aos poucos mais fissuras vão surgir…

Essa é a primeira de muitas cartas que envio e enviarei; ontem não sei que dia foi, amanhã desistiu e para hoje só basta um dia… a segunda, a terceira, a quarta carta com mais detalhes eu já comecei… em breve já chega, amanhã até meia noite ou dia… que nunca para de não escrever…

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