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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

24
Jan24

CULTURA

Talis Andrade

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                       O branco católico

                       traz entranhados

                       preconceitos e tre

                       jeitos seculares

 

                       Dos portugueses

                       o gosto do lucro fácil

                       Deitado em uma rede

                       espera os olhos de dono           

                       engordem o gado

 

                       Dos espanhóis

                       a fome de prata

                       tudo devasta

                       uma fome que sangra

                       e mata

 

                       Dos mascates

                       judeus e árabes

                       a alquimia de transformar

                       bugigangas em peças de arte

 

                       Dos negros e índios

                       a preguiça

                       a poesia a música

 

                       Da gente mestiça

                       os pregões de rua

                       vendendo as miudezas

                       do imutável cotidiano

        

                       Da mestiça gente

                       o prazer da noite

                       o samba no pé

                       a capoeira a ginga

                       o jeitinho de ser

                       brasileiro

          

                       a bola redonda

                       rolando no campo

                       o carnaval na rua

                       o ano inteiro

                      a vida entregue à sorte

              

                      no jogo de bicho

                      no jeitinho de ser

                      brasileiro

                      em que tudo termina

                      em pizza

                      para quem tem poder

                      e dinheiro

 

                      em que tudo termina

                      em chacina para

                      o zé-povinho

 

                      o corpo estendido

                      nas esquinas

                      das empoçadas ruas

                      em que sobrevoam

                      as aves de rapina

                      os pássaros agourentos

                      as balas perdidas

 

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livro o enforcado da rua, trajos do medo, talis andade

desenho latuff

22
Jan24

Justiça racista contra jornalista 'negrinho'

Talis Andrade

 

O quadro Ronda do Consumidor do Canal do jornalista Ben Mendes, tem mais de 1 milhão de seguidores e faz um trabalho sério, ajudando consumidores vítimas de empresas que desrespeitam o Código de Defesa do Consumidor.

O jornalista credenciado Ben Mendes é bacharel em direito e estudante de medicina, um jovem que se dedica a família, aos estudos e a defesa do consumidor. Por ser negro, foi vítima de racismo por um proprietário de Auto Escola que desrespeitou o Código de Defesa do Consumidor, e a vítima procurou Ben Mendes para fazer a reportagem e mediar entre a empresa e o consumidor.

Com ataque racista contra Ben Mendes o proprietário Ricardo Batista Zvaigzne foi conduzido preso parea a delegacia e tempos depois a justiça favorece o agressor racista de forma injusta e cruel.

A juíza Moema Miranda ficou nacionalmente conhecida por proibir os estudantes de Minas Gerais do democrático debate político. 

Por entender que a função de um centro acadêmico é debater sobre questões relacionadas à educação e à própria universidade, e não política, a juíza Moema Miranda Gonçalves concedeu decisão liminar proibindo o Centro Acadêmico Afonso Pena, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a fazer encontro para debater o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Isso aconteceu no golpe de 2016. Censura que lembra o tenebroso tempo da ditadura de 1964, que prendeu, torturou e assassinou estudantes.

21
Nov23

Dia da Consciência Negra: pra quem serve?

Talis Andrade
 
10
Abr23

Após 12 matanças na gestão Bolsonaro, Lula quer rever atuação da PRF

Talis Andrade
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ESTRADAS DA FÚRIA

Polícia Rodoviária de Bolsonaro participoou de diversas ações fora das estradas entre 2019 e 2022

 

por Consultor Jurídico

A Polícia Rodoviária Federal foi responsável por 12 matanças durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando a corporação atuou regularmente em áreas urbanas e favelas. A gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) busca reverter o aparelhamento promovido por seu antecessor, com uma "revisão de protocolos operacionais".

As matanças consistem em três óbitos ou mais em um mesmo grupo. O Rio de Janeiro foi palco de mais de sete das matanças da PRF no último governo, com 28 mortos. O segundo estado com mais matanças foi Alagoas: dois massacres e oito mortes. Na sequência vem Minas Gerais, que registrou uma matança, com 15 mortes.

Ao todo, o órgão registrou 126 mortos em confronto por agentes rodoviários de 2019 a 2022, sendo 57 em massacres. As informações são do jornal O Globo, obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Entre 2017 e 2018, no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), houve 36 mortes e quatro massacres vinculados à PRF. Os registros de mortes só passaram a ser sistematizados em 2017. Após Bolsonaro assumir o poder, a média anual de mortes subiu 75%, enquanto a média de massacres cresceu 50%.

De acordo com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense, as ações policiais com presença de agentes rodoviários no estado do Rio de Janeiro aumentaram ano a ano e quadruplicaram de 2019 a 2022: foram de quatro para 16.

Em outubro de 2020, uma força-tarefa da Polícia Civil e da PRF interceptou um comboio de milicianos em Itaguaí, na Baixada Fluminense. 12 suspeitos foram mortos, mas não aparecem na lista recebida via LAI, pois os confrontos fatais não envolveram diretamente policiais rodoviários.

Já em 2021, a PRF, com o apoio da Polícia Militar, encabeçou uma emboscada que causou 26 mortes em Varginha (MG). Porém, a corporação só contabilizou 15 mortes em seus controles internos. Há um inquérito em curso na Polícia Federal que apura suspeitas de execução e outras ilegalidades nessa ocasião.

Conforme a Constituição, a PRF tem a função de patrulhamento ostensivo das rodovias federais. Em 2019, o então ministro da Justiça, Sergio Moro (ex-juiz e hoje senador pelo União Brasil do Paraná), assinou uma portaria que autorizou os agentes rodoviários a cumprir mandados de busca e apreensão. Já em 2021, seu sucessor no cargo, André Mendonça (hoje ministro do Supremo Tribunal Federal), editou uma norma que excluiu tal previsão, mas manteve a permissão para que a corporação batesse ponto em ações conjuntas fora das estradas.

Ao Globo, a PRF disse que atua fora do ambiente rodoviário, em áreas de interesse da União, quando em apoio a outros órgãos. Segundo a corporação, qualquer registro de morte em ação policial deve ser tratado como exceção e "analisado sob aspectos operacionais e correcionais".

Mudança institucional

O atual ministro da Justiça, Flávio Dino, prega a extinção da portaria que autoriza a atuação da PRF fora das estradas. Já o novo diretor-geral da corporação, Antônio Fernando Oliveira, defende a possibilidade de entrar em favelas em situações excepcionais.

Mesmo assim, as ordens superiores, especialmente em delegacias fluminenses de áreas mais críticas — como na Baixada e em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio —, têm buscado desestimular a atuação fora das rodovias. A PRF também tenta virar a chave com a criação de uma Coordenação de Direitos Humanos e de um grupo de trabalho para debater o uso de câmeras pelos agentes.

A atual gestão do governo federal já substituiu diversos superintendentes da PRF nos estados. Na última quarta-feira (5/4), o governo também conseguiu exonerar Wendel Benevides Matos, que foi corregedor do órgão durante a gestão Bolsonaro.

Casos emblemáticos

Em março do último ano, a PRF, a PF e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM fluminense fizeram uma ação conjunta no Complexo do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os agentes rodoviários responderam por três dois seis mortos.

Já em maio daquele mesmo ano, a corporação foi responsável por quatro das 23 mortes ocorridas em um confronto no Complexo da Penha, também no Rio. O agente Alexandre Carlos de Souza e Silva, então chefe da unidade que atuou no massacre, foi promovido a superintendente do órgão no estado menos de um mês depois.

Em agosto de 2022, a PRF se envolveu em uma perseguição que começou na BR-101, em Itaboraí (RJ), mas cujos três óbitos ocorreram já no interior de uma favela próxima à rodovia.

Em maio do último ano, um homem negro de 38 anos chamado Genivaldo de Jesus Santos foi morto por agentes da PRF em Sergipe após ser parado por andar de moto sem capacete. Ele foi colocado no porta-malas de uma viatura e os agentes despejaram gás lacrimogênio e spray de pimenta no compartimento fechado, o que o sufocou.

Além das mortes, a PRF causou polêmica por promover ações políticas. Às vésperas do segundo turno das eleições do último ano, em outubro, o então diretor-geral da corporação, Silvinei Vasques, pediu votos para Bolsonaro em uma rede social.

No dia da votação, a PRF direcionou bloqueios a ônibus com eleitores, especialmente no Nordeste, onde Lula teve larga vantagem sobre Bolsonaro. Já quando apoiadores do ex-presidente fecharam rodovias por todo o país, a instituição se omitiu.

PRF mata homem com bomba de gás em viatura em Sergipe: Um homem negro de 38 anos morreu após passar por uma abordagem realizada por policiais rodoviários federais no município de Umbaúba, litoral sul de Sergipe. Genivaldo de Jesus Santos morreu após ser submetido a uma ação truculenta da PRF (Polícia Rodoviária Federal). No UOL News, o colunista Carlos Madeiro fala sobre o tema e traz últimas informações

20
Jan23

Para o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Talis Andrade

 

 

No sábado 21 de janeiro, temos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Então a hora é boa de cantar o Terreiro do Pai Adão, sobre o qual escrevi no Dicionário Amoroso do Recife.

 

Xangô, Terreiro de Pai Adão *

 

Não estranhem que usemos xangô em lugar do nome candomblé, porque em Pernambuco é assim. O dicionário Houaiss registra que Xangô é 1. orixá iorubá dado como o quarto rei (lendário) de Oyo, na Nigéria, cuja epifania são os raios e os trovões; 2. culto afro-brasileiro que constitui uma alteração do padrão litúrgico nagô, adaptado por diversos grupos étnicos conviventes no Nordeste do Brasil.

Mas curvado aos fatos da língua, pois assim são os bons dicionários, Houaiss define que Xangô também é, da Paraíba até Sergipe, o “local onde se realiza esse culto; Terreiro”. É o nosso caso, neste em especial, da Estrada Velha de Água Fria, 1644 – Recife. Ali reside e resiste há 148 anos o mais antigo xangô de Pernambuco.

Nesse particular de xangô, o mestre é o maestro José Amaro Santos da Silva, que sobre o Terreiro de Pai Adão escreveu no livro Memórias de Água Fria:

“O xangô mais tradicional de Água Fria sempre foi o Terreiro do Pai Adão, na Estrada Velha de Água Fria, próximo a onde tinha o Chapéu de Sol e depois o cinema Império”. Fundado por Iyá Tinukê, tia Inês, uma mulher negra africana que adquiriu aquele espaço terra, que, além do Terreiro onde ainda hoje se fazem os toques de candomblé, fez construir anexa uma capelinha consagrada a Santa Inês. Foi sucedida por Adão. Mais tarde, o antropólogo Renê Ribeiro chegou a dizer e tentar validar que todos os Terreiros surgidos naquelas redondezas não passavam de satélites daquele daquela casa matriz.

Quando menino, nas brincadeiras de rua, alguns outros brincantes que acompanhavam os toques nos terreiros de candomblé, ou de xangô, como sempre foi chamado, estavam sempre a lembrar cânticos que ouviam nos salões, e cantavam brincando: Ogum da guerra, guerria-ê, Ogum da Guerra, guerria-ô. E ainda: Oraiêiê, bebé shoró. Oraiêiê, bebé shoró. Shorô pai, shorô mãe, bebé shorou-ô”.

Na infância, eu me lembro do fascínio do Terreiro de Pai Adão. Nos raros momentos em que o espionávamos — sim, o termo é este, espionar, porque havia nele algo de clandestino, pois era de maldição e de inferno o culto dos negros, como nos doutrinavam os padres e pastores —, lembro primeiro das luzes na noite, das saias largas, axó, voluptuosas das filhas de santo. E tudo envolvido no profundo e sensorial dos toques divinos dos tambores, tão sagrados, tão tentadores, que soavam a beleza como coisa do satanás. Penso que o cinema, com a sua arte onde se misturam imagem, som, cores e personagens, jamais conseguirá reproduzir, que digo, jamais conseguirá uma vizinhança do encanto, encantação daquelas noites furtivas, em que nos metíamos entre os assistentes da manifestação que diziam ser demoníaca. Ali se fuma erva, nos diziam.

É preciso ser menino, é preciso ter passado pela repressão de cultura e de religião da época, é preciso saber que todo o bom da vida era proibido, que o magnífico, por ir além do medíocre, era vetado, porque se tratava sempre de um trato não escrito com as profundezas do mal, ou de um acordo com o seu mais ilustre representante. É preciso esse mais que cinema para compreender os olhos esbugalhados da infância que bebiam uma noite de toque no Terreiro de Pai Adão. E de tal modo é permanente essa marca e feitiço, que na entrevista com Iá Luiza, em 2014, eu lhe perguntei se todos os dias eram de celebração e festa dos santos. Ela me respondeu, para meu maior desapontamento, que as comemorações eram quatro por ano. “Mas não é nem todo fim de semana?”, perguntei. “Naaão”, ela me respondeu. E o menino persistente apenas resmungou, “interessante”, para não cair em um silêncio absurdo.

Na enciclopédia digital se informa que a história do Sítio, o Terreiro de Pai Adão “começa por volta de 1875, com a chegada ao Brasil da africana Inês Joaquina da Costa (Ifá Tinuké) também chamada de Tia Inês, que morreu em 1905. Foi a fundadora do atual Sitio de Pai Adão, no Sítio de Água Fria, no Recife. É a mais antiga casa de culto Nagô de Pernambuco e uma das mais venerandas do Brasil, considerada uma das matrizes da nação de culto afro-brasileiro Nagô…

O sítio ainda preserva em seu espaço físico um baobá com mais de um século de existência e com mais de 10m de diâmetro, raro no Brasil por ser mais comumente encontradas espécimes desse porte nos locais de onde são nativas, na ilha de Madagascar (o maior centro de diversidade, com seis espécies), no continente africano e na Austrália (com uma espécie em cada)”.

Leia também: Brasil passa a ter dia para celebrar tradições africanas e candomblé

Mas nessa informação do baobá a Wikipédia comete um forte engano. Apesar da semelhança, grosso modo de olhar essa árvore somente pela altura e tronco, não é um baobá, é uma gameleira, há mais de 138 anos no Terreiro de Pai Adão. Acreditamos que erros assim possuem uma razão mais funda, muito além e distante de uma falha acadêmica. Como sempre ocorre com as manifestações populares, que ou não têm intelectuais nascidos no seu meio, ou quando os têm, mal falam da sua gente, porque se encontram mortos de vergonha da origem e querem ser aceitos pelo chamado mundo erudito, aqui também, no Terreiro de Pai Adão, falta uma história sistematizada, diria mesmo, até arqueológica, de recuperação do que foi coberto e enterrado. Uma história sem fronteiras com a literatura, que pesquise os registros indiretos do Terreiro até em notícias das páginas policiais, quando os pais de santo eram presos.

Para este dicionário, tive uma conversa, entre receosa e desconfiada com a Ialorixá Luiza. Receio e desconfiança de Iá Luiza, o que era natural, pois ela nunca me havia visto antes, e desci, baixei de repente à sua casa numa noite de segunda-feira de 2014. Pensei em escrever que ela me prestou um depoimento, mas isso ainda é falso, porque apenas anotei aqui e ali algumas frases da Ialorixá, que saíam a custo. E não poucas vezes ela recriminou a profunda ignorância deste estranho sobre as coisas sagradas do terreiro. Por exemplo, a dificuldade de entender a descendência e os seus laços com o mais famoso pai de santo, porque ela é viúva do neto de Pai Adão. Entender a sua vitalidade, pois ela estava com mais de 85 anos, sorrindo diante de algumas perguntas, para dizer o mínimo, bastante óbvias. Ela sorria à beira da gargalhada, de tal modo que difícil era o intruso acreditar na data do seu nascimento, em 24 de outubro de 1928.

Da conversa com ela, anotei a frase “eu sei ler, tenho caligrafia e tenho ortografia”. Bonito. Mas o mais grato foi saber da existência de uma corrente de solidariedade entre todos os moradores do Sítio, uma comunidade de 66 pessoas, com laços que se cruzam em parentes de sangue ou afinidade. Quando Iá Luzia enviuvou, não lhe deixaram faltar nada, ela me falou. Se adoecer, todos correm para o socorro urgente. No Terreiro existe uma defesa mútua e sólida, que não conheço em outros aglomerados ou vizinhanças. A vontade que deixa na gente é de um dia pertencer à comunidade. No momento mesmo da conversa, pude sentir a vigilância que mantinham sobre este estranho, numa guarda que não aparece, mas se espalha onipresente. A idosa Iá, que não é velhinha, estava amparada.

O Babalorixá atual é Manoel do Nascimento Costa, mais conhecido como Manoel Papai. Eu já havia conversado com Papai em outra oportunidade, no tempo em que ele brigava para que fosse reconhecido o Terreiro de Pai Adão como um templo religioso, e assim merecer a isenção do IPTU, como acontece com outras religiões. Naquela ocasião, ele também me espantou de outra maneira. Papai falava com naturalidade sobre as coisas do espírito, sobre a crença no sagrado, no mesmo campo e tempo em que discorria sobre o direito terreno do Sítio. Sereno e culto, sem afobação.

Desta última vez, com Iá Luzia a maior surpresa foi a revelação no fim da nossa conversa. Então eu soube que ela, mãe de santo, nunca se manifestou no terreiro. Isso quer dizer, ela nunca deu mostras de estar possuída por um santo, com o corpo em transe. No entanto, o quanto e como ela me olhava sem piscar, atenta e penetrante. Agora ao terminar o verbete Xangô é que percebo, o santo de Iá Luiza é ler a gente nos olhos. E da leitura concluir que não havia maldade nas perguntas de um ignorante.

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*Publicado originalmente no Dicionário Amoroso do Recife   

 

23
Dez22

A confirmação da vitória de Lula só poderá ocorrer o peso da lei penal cair por inteiro sobre os fascistas, os milicianos

Talis Andrade

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por Tarso Genro /A Terra É Redonda

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No dia 12 de dezembro de 2022, enquanto o presidente Lula era diplomado numa histórica sessão do Tribunal Superior Eleitoral, ouvindo um épico discurso do ministro Alexandre de Moraes, milicianos bolsonaristas atacaram a sede da Polícia Federal e incendiaram alguns veículos em Brasília. Era a nossa Cervejaria de Munich, um “putsch” para um golpe que faliu e um protesto pela sua derrota nas eleições presidenciais, onde toda sujeira que nela emergiu veio das suas estrebarias de “fake news”, dos órgãos de Estado aparelhados, das ações ilegais da Polícia Rodoviária Federal e dos escaninhos bandidos do orçamento secreto. Estas ações da direita bolsonarista mostram que a vitória de Lula e da democracia ainda pendem de um forte processo político de afastamento dos restos da tragédia ancorados no porto da nossa história recente.

Votado pela base do governo num gesto escandaloso que se tornou uma vergonha planetária da nossa decadência democrática, que se orgulhava do seu isolamento internacional, do negacionismo genocida e dos ataques sistemáticos às instituições da Constituição de 1988, este “orçamento” só poderia ser composto por uma aliança marginal das religiões do dinheiro com o que tem de pior no fisiologismo das elites empresariais do país. Foi a unidade da barbárie contra a democracia, do fisiologismo com o espírito miliciano, de grande parte das classes médias com as instituições “sacras” do espírito-santo monetarizado na corrupção política.

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Assim ele foi votado, para arrasar a paridade de armas nas eleições, em que o surpreendente foi a vitória de um homem supostamente aniquilado por uma conspiração midiático-judicial, que voltou com coragem e energia moral para reerguer um país dilacerado pelo ódio, obra de arte do fascismo que já percorreu no mínimo dois séculos da história ocidental. Aqui ele assumiu abertamente – com Jair Bolsonaro – a paixão necrófila do negacionismo e a naturalização da dor alheia pelo deboche planejado. Milicianismo e grupos políticos, milicianos e religiões do dinheiro: armas e gestos, assassinatos e naturalização da morte, do racismo e da misoginia, compuseram o dicionário da enciclopédia fascista nacional que quase nos levou ao suicídio.

O fascismo e o nazismo são siameses, ora acolhidos pela maioria das classes dominantes e das classes populares manipuladas pela política da extrema direita. Ambos são anti-sistema, propõe revoluções “pelo alto e “por baixo”, que reconhecem na barbárie uma substância permanente contida no Humano: “não um acidente infeliz da história” (…), como disse Simone Weil, mas “o bárbaro lamaçal da alma”, “um caráter permanente e universal da natureza humana”, esperando as oportunidades críticas para se manifestarem pela violência e pela negação da solidariedade e da justiça. (A barbárie interior, Jean-François Mattei, Unesp).

O livro Casta – as origens do nosso mal-estar, de Isabel Wilkerson (Zahar), lança luzes potentes sobre a formação da sociedade americana e sobre a sua estrutura de poder institucionalizada a partir do século XIX. As castas organicamente montadas em torno das “plantations” e a criação da identidade “negra” – como coisa – em contraposição à identidade branca dos colonos europeus, liberaram uma épica forma de exploração do trabalho. Ali se formavam as novas bases de acumulação – material e cultural – especificidades de um novo sistema capitalista em expansão, cujas tendências hegemônicas em escala global já eram visíveis.

Modernização e barbárie, ciência e técnica, política e ideologia, assim estão harmonizadas: moldam o império que se torna – ao mesmo tempo – exemplo do liberalismo político e também exemplo de convívio das suas liberdades com a barbárie. O Século XX condensa e integra, promove cisões e repulsas, na nação em crescimento, que são vividas tanto nos “partidos” da barbárie como entre os “partidos” da democracia moderna, moderadores da violência, cuja tendência seria adjudicar ao Estado normas mínimas de civilidade, que realizadas bloqueariam os excessos impeditivos de formação da nação.

O impulso da democracia americana, todavia, permanece atado ao sistema de castas, já orgânicas nas classes sociais em renovação, cuja política – a partir do Estado – promoveu tanto a democracia como o martírio de milhões, para a glória da civilização ocidental. Este conflito entre barbárie e civilidade democrática está expresso, também, nas lutas de resistência – vitoriosas ou derrotadas – contra o nazismo e o fascismo. E na luta entre as ditaduras e os defensores das bases constitucionais das democracias na América Latina, hoje uniformemente assediadas pelo fascismo, que retorna com diversos modelos formais em escala planetária

Não é muito divulgado na historiografia do racismo e do “apartheid” americano, que os intelectuais e cientistas “sociais” do Partido Nazista estudaram com muito interesse as estratégias de purificação social e racial nos EUA, tais como as zonas proibidas para a comunidade negra – tanto no espaço social como geográfico – bem como a proibição dos casamentos entre brancos e negros, nas origens da formação democrática americana. A eleição do presidente Joe Biden, que é o oposto de Donald Trump e da Klan nesta matéria, permite uma reflexão mais ampla e profunda sobre este tema vital do futuro das Américas.

Na verdade, a afirmação do modelo americano dentro do sistema de poder mundial foi um gigantesco laboratório de conciliação entre barbárie e humanismo moderno, no qual a força da barbárie que está viva e forte, foi recentemente testada na tentativa de golpe do presidente Donald Trump no assalto ao Capitólio. A escolha do local ocupado pelos milicianos bem remunerados não foi gratuita, pois ali estava o símbolo da democracia liberal que incorporou, processualmente, a vasta comunidade negra do país nas proteções do Estado de direito que foram formalizadas nas leis, como ideia que a nação queria fazer de si mesma.

Comparar a situação de ascensão do fascismo, na Itália, com os episódios políticos nacionais que foram gradativamente dando forma política legítima ao bolsonarismo (protofascismo), que vai lentamente se unificando com estratos relevantes do capital financeiro e com os setores mais marginais da burguesia mais “aventureira”, faz sentido: trata-se de compreender o processo de sucessão, entre as suas “elites”, que refletirá tanto na estratégia política dos setores populares, como nas mudanças necessárias para adaptação do capitalismo a um novo ciclo de acumulação.

Antonio Gramsci no cárcere em 1926, quase dois anos depois de eleito deputado  escreveu em plena era fascista que “os elementos da nova cultura e do novo modo de vida (…) são apenas as primeiras tentativas (…) iniciativa superficial e simiesca”, para interferir no que hoje “seria chamado de americanismo”: é crítica preventiva dos “velhos estratos que serão descartados” (…) “e que já estão tomados por uma onda de pânico social, reação inconsciente de quem é impotente” (Americanismo e fordismo”, Hedra), para alavancar – nos processos de mudança do sistema do capital – os aspectos que lhe interessam. O fascismo seria, assim, uma vitória reacionária com aparência de revolução.

A grande síntese histórica deste complicado processo político de formação do Estado americano, dentro dos parâmetros da modernidade liberal democrática – um Estado imperial e de ocupações militares no seu exterior “vital” – está refletida em dois fatos históricos exemplares na atualidade, que dizem respeito ao que ocorre em nosso país: de um lado, o Exército americano negando-se, formalmente, a participar de um golpe contra as instituições da democracia liberal; e de outra, seu ex-presidente tentando descaradamente este golpe, manipulando suas marionetes fascistas no Brasil, para comporem um arco de alianças na extrema direita dos EUA, que vitoriosa refletiria seu poder fascista e racista em toda a América Latina.

A diplomação do presidente Lula foi a vitória de uma ampla frente democrática, que tem demandas diferentes sobre o Estado e diversas pretensões de futuro. Ela encerra um ciclo heroico de resistência e ofensiva democrática, pautada pela unidade em torno do Estado de Direito. E ela não foi somente civil, pois a falta de apoio majoritário ao golpismo de Jair Bolsonaro dentro das nossas instituições armadas, pode estar indicando um novo ciclo virtuoso da nossa história republicana.

Sua confirmação só poderá ocorrer, todavia, se o peso da lei penal – dentro dos rituais democráticos do Estado de Direito – cair por inteiro sobre os fascistas, os milicianos e os seus dirigentes políticos, que ainda no dia de ontem mostraram que o terror e a barbárie são suas armas principais contra a República e a democracia. Quem viver verá: vivemos e veremos!

A luta antirracista é um tema urgente e universal que atravessa a pauta do Instituto Brasil-Israel (IBI) e remete a um diálogo entre judeus e negros que encontra raízes históricas, especialmente nos EUA. A noção de casta proposta por Isabel Wilkerson desnuda pontos de contato entre a escravidão norte-americana, o nazismo alemão e o sistema indiano, e como essas hierarquias rígidas e arbitrárias dividem grupos sociais ainda hoje. Apesar do livro focar nos EUA e nos afro-americanos, entendemos que sua leitura pode auxiliar na compreensão do racismo brasileiro, sempre negado, mas profundamente internalizado. E podemos também expandir o raciocínio para todos os grupos marginalizados e colocados como párias em uma sociedade, fazendo-se a crítica à “supremacia branca”. A proposta da mesa é promover uma conversa sobre as principais ideias presentes no livro, em especial a noção de casta como categoria para a compreensão e enfrentamento do racismo. Além disso, pretende-se estabelecer aproximações com o Brasil. PARTICIPANTES Lilia Schwarcz, professora titular no Departamento de Antropologia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton. É autora de, entre outros livros, O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998, prêmio Jabuti de Livro do Ano), Brasil: uma Biografia (com Heloisa Starling, 2015) e Lima Barreto: Triste visionário (2017, prêmio Jabuti de Biografia). Thiago Amparo, advogado, professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste). Michel Gherman, professor de História na Universidade Federal Fluminense, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, pesquisador da Ben Gurion University e Diretor Acadêmico do Instituto Brasil-Israel.

19
Nov22

Apenas 5% das vagas afirmativas de emprego são direcionadas para negros, aponta pesquisa; veja setores com mais oportunidades

Talis Andrade

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Por Marta Cavallini, g1

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Pesquisa da plataforma de recrutamento e seleção Gupy entre as cerca de 600 mil oportunidades publicadas no site, em 2022, mostra que aproximadamente 1% são vagas afirmativas. Dentro desse total, as direcionadas especificamente para pessoas negras representam 5%.

As vagas afirmativas são destinadas aos chamados grupos minorizados, como pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, mulheres e profissionais com idade acima dos 50 anos para levar a inclusão e equidade a essas parcelas de trabalhadores comumente desfavorecidos.

A população negra hoje é o segundo maior alvo das ações afirmativas realizadas pelas empresas na plataforma, ficando atrás das pessoas com deficiência, alvo de cerca de 70% das vagas.

Os 25% restantes são distribuídos da seguinte forma: 8% para mulheres, 3% para comunidade LGBTQIAP+, 0,8% para indígenas, 0,7% para mulheres negras e o restante para todos os grupos de diversidade.

As grandes empresas, com mais de mil funcionários, foram responsáveis por 91% das vagas afirmativas publicadas em 2022 na plataforma da Gupy.

De acordo com a plataforma, trata-se de uma tendência que vem crescendo nos últimos anos: em 2020, empresas de 5.001 a 10.000 pessoas colaboradoras foram responsáveis por 23% das vagas publicadas, o que representa um crescimento de 27% em apenas um ano e meio.

Além disso, analisando as contratações por setor, os maiores responsáveis pelas vagas afirmativas publicadas na Gupy em 2022 são Varejo (27%); Logística (23%) e Serviços Financeiros (7%).

Já os setores que mais geraram vagas afirmativas para pessoas negras em 2022 foram:

 

  1. Serviços Financeiros: 17,83%
  2. Tecnologia: 13,95%
  3. Bancos: 10,85%
  4. Educação: 10,08%
  5. Tecnologia da Informação e Comunicação: 8,53%
  6. Produção Digital: 6,98%
  7. Negócios Imobiliários: 6,20%
  8. E-commerce: 5,43%
  9. Varejo: 4,65%
  10. Telecomunicações: 6,98%
  11. Indústrias em geral: 1,55%
  12. Química e Petroquímica: 1,55%
  13. Agronegócio: 1,55%
  14. Jurídico: 1,55%
  15. Comunicação: 1,55%
  16. Seguros: 0,78%

 

Ainda segundo dados da plataforma da Gupy, em 2018, todas as contratações afirmativas foram direcionadas para pessoas com deficiência, reflexo da Lei 8.213/91 que garante a contratação e inclusão de PCDs.

Esse cenário começou a mudar apenas em 2019, quando surgiram as primeiras vagas afirmativas para pessoas de outros grupos de diversidade, até então não orientadas para populações específicas.

 

44% das empresas não têm meta para contratar minorias

 

A pesquisa feita ainda com a participação de 1.000 empresas mostra que 30,28% das empresas realizam ações afirmativas nos processos seletivos, enquanto 26,22% estudam oferecer futuramente. Outros 23,37% já ofereceram vagas afirmativas de forma pontual.

No entanto, 44,31% das empresas não têm metas de contratação de grupos minorizados, o que mostra que diversidade está caminhando para ser uma frente estratégica na maioria das empresas.

Apenas 28,86% das empresas têm metas de contratação de grupos minorizados, independentemente de função e cargo. E outros 26,63% têm metas limitadas por cargos ou por grupos de diversidade específicos.

Tamara Braga, head de Diversidade & Inclusão da Gupy, afirma que esse cenário se dá pelo fato de que muitas empresas ainda não veem diversidade como uma frente estratégica, o que faz com que as iniciativas levem mais tempo para serem implementadas.

“Enquanto diversidade não for um dos assuntos do conselho das empresas, ainda veremos profissionais de RH e de diversidade buscando implementar algumas iniciativas muito importantes, mas que não recebem a devida atenção por não ser uma prioridade do negócio", observa.

Para ela, o cenário já está mudando. Ela cita outro dado da pesquisa que mostra que 55,49% das empresas estão olhando para diversidade e inclusão como uma frente estratégica com metas ou caminhando para isso.

"Na Gupy, por exemplo, oferecemos para as empresas uma solução de diversidade para o recrutamento. Por meio dela, é possível realizar ações afirmativas e ter acesso a dados que permitam identificar quais etapas de um processo seletivo estão barrando a diversidade, o que permite aplicar ações corretivas”.

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13
Nov22

"O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu"

Talis Andrade

Dora Longo Bahia, Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças), 23 x 30.5 cm cada
 
 

Escreve Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português

 

Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Quando o visitei na prisão em 30 de agosto de 2018, vivi no pouco tempo que durou a visita um turbilhão de ideias e emoções que continuam hoje tão vivas quanto nesse dia. Pouco tempo antes tínhamos estado juntos no Fórum Social Mundial de Salvador da Bahia, conversando, na companhia de Jacques Wagner, na cobertura do hotel onde Lula estava hospedado. Falávamos então da sua possível prisão. Lula ainda tinha alguma esperança de que o sistema judicial suspendesse aquela vertigem persecutória que desabara sobre si.

Eu, talvez por ser sociólogo do direito, estava convencido de que tal não aconteceria, mas não insisti. A certa altura, tive a sensação de que estávamos a pensar e a temer o mesmo. Pouco tempo depois, prendiam-no com a mesma indiferença arrogante e compulsiva com que o tinham tratado até então. Sérgio Moro, o lacaio dos EUA (é tarde demais para sermos ingênuos), tinha cumprido a primeira parte da missão. A segunda parte seria a de o manter preso e isolado até que fosse eleito o candidato que lhe daria a tribuna a ser utilizada por ele, Sérgio Moro, para um dia chegar à presidência da República.

Quando entrei nas instalações da Polícia Federal senti um arrepio ao ler a placa onde se assinalava que o presidente Lula da Silva tinha inaugurado aquelas instalações onze anos antes como parte do seu vasto programa de valorização da Polícia Federal e da investigação criminal. Um primeiro turbilhão de interrogações me assaltou. A placa permanecia ali por esquecimento? Por crueldade? Para mostrar que o feitiço se virara contra o feiticeiro? Que um presidente de boa-fé entregara o ouro ao bandido?

Fui acompanhado por um jovem polícia federal bem parecido que no caminho se vira para mim e diz: lemos muito os seus livros. Fico frio por dentro. Estarrecido. Se os meus livros fossem lidos e a mensagem entendida, nem Lula nem eu estaríamos ali. Balbuciei algo neste sentido e a resposta não se fez esperar: “cumprimos ordens”. De repente, o teórico nazi do direito Carl Schmitt irrompeu dentro de mim. Ser soberano é ter a prerrogativa de declarar que é legal o que não é, e de impor a sua vontade burocraticamente com a normalidade da obediência funcional e a consequente trivialização do terror do Estado.

Prezado Presidente Lula, foi assim que cheguei à sua cela e certamente nem suspeitou do turbilhão que ia dentro de mim. Ao vê-lo, acalmei-me. Estava finalmente na frente da dignidade em pessoa, e senti que a humanidade ainda não tinha desistido de ser aquilo a que o comum dos mortais aspira. Era tudo totalmente normal dentro da anormalidade totalitária que o encerrara ali. As janelas, os aparelhos de ginástica, os livros, a televisão. A nossa conversa foi tão normal quanto tudo o que nos rodeava, incluindo os seus advogados e a Gleisi Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores.

Falámos da situação da América Latina, da nova (velha) agressividade do império, do sistema judicial convertido em ersatz de golpes militares, das sondagens que o continuavam a destacar, do meu receio que a transferência de votos não fosse tão massiva quanto esperava. Era como se o imenso elefante branco naquela sala – a repugnante ilegalidade da sua prisão por motivos políticos nem sequer disfarçados – se transformasse em inefável leveza do ar para não perturbar a nossa conversa como se, em vez de estarmos ali, estivéssemos em qualquer lugar de sua escolha.

Quando a porta se fechou atrás de mim, o peso da vontade ilegal de um Estado refém de criminosos armados de manipulações jurídicas caiu de novo sobre mim. Amparei-me na revolta e na raiva e no desempenho bem-comportado que se espera de um intelectual público que à saída tem de fazer declarações à imprensa. Tudo fiz, mas o que verdadeiramente senti é que tinha deixado atrás de mim a liberdade e a dignidade do Brasil, aprisionadas para que o império e as elites ao seu serviço cumprissem os seus objetivos de garantir o acesso aos imensos recursos naturais do Brasil, a privatização da previdência e o alinhamento incondicional com a geopolítica da rivalidade com a China.

A serenidade e a dignidade com que o Lula enfrentou 582 dias de reclusão é a prova provada de que os impérios, sobretudo os decadentes, erram muitas vezes os cálculos, precisamente por só pensarem no curto prazo. A imensa solidariedade nacional e internacional, que fez de si o mais famoso preso político do mundo, mostraram que o povo brasileiro começava a acreditar que pelo menos parte do que fora destruído a curto prazo poderia ser reconstruído a médio e longo prazo. A sua prisão passou a ser o preço da credibilidade dessa convicção.

 

Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Escrevo-lhe hoje antes de tudo para o felicitar pela vitória nas eleições de 30 de outubro. É um feito extraordinário sem precedente na história da democracia. Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado, não o futuro, mas desta vez não me enganei. Nem por isso tenho maior certeza no que sinto necessidade de lhe dizer hoje. Como sei que não tem tempo para ler grandes elaborações analíticas, serei telegráfico. Tome estas considerações como expressão do que de melhor desejo para si pessoalmente e para o exercício do cargo que vai assumir.

(1) Seria um erro grave pensar-se que com a sua eleição tudo voltou ao normal no Brasil. Primeiro, o normal anterior a Jair Bolsonaro era para as populações mais vulneráveis algo muito precário ainda que o fosse menos do que é agora. Segundo, Jair Bolsonaro infligiu um dano na sociedade brasileira difícil de reparar. Produziu um retrocesso civilizatório ao ter reacendido as brasas da violência típica de uma sociedade que foi sujeita ao colonialismo europeu: a idolatria da propriedade individual e a consequente exclusão social, o racismo, o sexismo, a privatização do Estado para que o primado do direito conviva com o primado da ilegalidade, e uma religião excludente desta vez sob a forma de evangelismo neopentecostal.

A fratura colonial é reativada sob a forma da polarização amigo/inimigo, nós/eles, própria da extrema-direita. Com isto, Bolsonaro criou uma ruptura radical que torna muito difícil a mediação educativa e democrática. A recuperação levará anos.

(2) Se a nota anterior aponta para o médio prazo, a verdade é que a sua presidência vai ser por agora dominada pelo curto prazo. Jair Bolsonaro fez regressar a fome, quebrou financeiramente o Estado, desindustrializou o país, deixou morrer desnecessariamente centenas de milhares de vítimas da covid, propôs-se acabar com a Amazônia. O campo emergencial é aquele em que o Presidente se move melhor e em que estou certo mais êxito terá. Apenas duas cautelas. Vai certamente voltar às políticas que protagonizou com êxito, mas, atenção, as condições são agora muito diferentes e mais adversas.

Por outro lado, tudo tem de ser feito sem esperar a gratidão política das classes sociais beneficiadas pelas medidas emergenciais. O modo impessoal de beneficiar, que é próprio do Estado, faz com que as pessoas vejam nos benefícios o seu mérito pessoal ou o seu direito e não o mérito ou a benevolência de quem os torna possível. Para mostrar que tais medidas não resultam nem de mérito pessoal nem da benevolência de doadores, mas são antes produto de alternativas políticas só há um caminho: a educação para a cidadania.

(3) Um dos aspectos mais nefastos do retrocesso provocado por Bolsonaro é a ideologia anti-direitos capilarizada no tecido social, tendo como alvo os grupos sociais anteriormente marginalizados (pobres, negros, indígenas, Roma, LGBTQI+). Manter firme uma política de direitos sociais, económicos e culturais como garantia de dignidade ampliada numa sociedade muito desigual deve ser hoje o princípio básico dos governos democráticos.

(4) O contexto internacional é dominado por três mega-ameaças: pandemias recorrentes, colapso ecológico, possível terceira guerra mundial. Qualquer destas ameaças é global, mas as soluções políticas continuam dominantemente limitadas à escala nacional. A diplomacia brasileira foi tradicionalmente exemplar na busca de articulações, quer de âmbito regional (cooperação latino-americana), quer de âmbito mundial (BRICS). Vivemos um tempo de interregno entre um mundo unipolar dominado pelos EUA que ainda não desapareceu totalmente e um mundo multipolar que ainda não nasceu plenamente. O interregno manifesta-se, por exemplo, na desaceleração da globalização e no regresso do protecionismo, na substituição parcial do livre comércio pelo comércio com parceiros amigos.

Os Estados continuam todos formalmente independentes, mas só alguns são soberanos. E entre os últimos não se contam sequer os países da União Europeia. O Presidente Lula saiu do governo quando a China era o grande parceiro dos EUA e regressa quando a China é o grande rival dos EUA. O presidente Lula foi sempre adepto do mundo multipolar e a China é hoje um parceiro incontornável do Brasil. Dada a crescente guerra fria entre os EUA e a China, prevejo que a lua de mel entre Biden e Lula não dure muito tempo.

(5) O presidente Lula tem hoje uma credibilidade mundial que o habilita a ser um mediador eficaz num mundo minado por conflitos cada vez mais tensos. Pode ser um mediador no conflito Rússia/Ucrânia, dois países cujos povos necessitam urgentemente de paz, num momento em que os países da União Europeia abraçaram sem Plano B a versão norte-americana do conflito e condenaram-se ao mesmo destino a que está destinado o mundo unipolar dominado pelos EUA. E será também um mediador credível no caso do isolamento da Venezuela e no fim do vergonhoso embargo contra Cuba. Para isso, o Presidente Lula tem de ter a frente interna pacificada e aqui reside a maior dificuldade.

(6) Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa.

No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato.

(7) O presidente Lula tem neste momento a seu favor o apoio dos EUA. É sabido que toda a política externa dos EUA é determinada por razões de política interna. O presidente Joe Biden sabe que, ao defender o presidente Lula, está a defender-se de Donald Trump, seu rival em 2024. Acontece que os EUA são hoje a sociedade talvez mais fraturada do mundo, onde o jogo democrático convive com uma extrema direita plutocrata suficientemente forte para fazer com que cerca de 25% da população norte-americana continue hoje convencida que a vitória de Joe Biden em 2020 foi o resultado de uma fraude eleitoral. Esta extrema direita está disposta a tudo. A sua agressividade fica demonstrada pela tentativa recente de raptar e torturar Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara dos Representantes.

Pensemos nisto: o país que quer produzir regime change na Rússia e travar a China não consegue proteger um dos seus mais importantes líderes políticos. E, tal como se irá observar no Brasil, logo após o atentado, uma bateria de notícias falsas foi posta a circular para justificar o ato. Portanto, hoje, os EUA são um país duplo: o país oficial que promete defender a democracia brasileira e o país não oficial que a promete subverter para ensaiar o que pretende conseguir nos EUA. Recordemos que a extrema direita começou por ser a política do país oficial. O evangelismo hiper conservador começou por ser um projeto norte-americano (vide o relatório Rockfeller de 1969) para combater “o potencial insurrecional” da teologia da libertação. E diga-se, em abono da verdade, que durante muito tempo o seu principal aliado foi o Papa João Paulo II.

(8) Desde 2014, o Brasil vive um processo de golpe de Estado continuado, a resposta das elites aos progressos que as classes populares obtiveram com os governos do Presidente Lula. Esse processo não terminou com a sua vitória. Apenas mudou de ritmo e de táctica. Ao longo destes anos e sobretudo no último período eleitoral assistimos a múltiplas ilegalidades e até crimes políticos cometidos com uma impunidade quase naturalizada. Para além dos muitos que foram cometidos pelo chefe do governo, vimos, por exemplo, quadros superiores das Forças Armadas e das forças de segurança apelarem a golpes de Estado e a tomarem publicamente partido por um candidato presidencial durante o exercício das suas funções.

Estes comportamentos golpistas devem ser punidos exemplarmente quer por iniciativa do sistema judiciário quer por meio de passagens compulsórias à reserva. Qualquer ideia de amnistia, por mais nobres que sejam os seus motivos, será uma armadilha no caminho da sua presidência. As consequências podem ser fatais.

(9) É sabido que o presidente Lula não põe grande prioridade em caracterizar a sua política como sendo de esquerda ou de direita. Curiosamente, pouco antes de ser eleito Presidente da Colômbia, Gustavo Petro afirmava que a distinção para ele importante não era entre esquerda e direita, mas antes entre política de vida e política de morte. Política de vida é hoje no Brasil a política ecológica sincera, a continuidade e aprofundamento das políticas de justiça racial e sexual, dos direitos trabalhistas, do investimento na saúde e na educação públicas, do respeito pelas terras demarcadas dos povos indígenas e da promulgação das demarcações pendentes.

Acima de tudo, é necessária uma transição gradual, mas firme da monocultura agrária e do extrativismo de recursos naturais para uma economia diversificada que permita o respeito por diferentes lógicas socioeconômicas e articulações virtuosas entre a economia capitalista e as economias camponesa, familiar, cooperativa, social-solidária, indígena, ribeirinha, quilombola que tanta vitalidade têm no Brasil.

(10) O estado de graça é curto. Não dura sequer cem dias (vide Gabriel Boric no Chile). O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primeiros tempos. Uma sugestão: reponha de imediato as Conferências Nacionais para dar um sinal inequívoco de que há outra maneira mais democrática e mais participativa de fazer política.

04
Nov22

Lula e um país em carne viva

Talis Andrade

nove crimes de bolsonaro vaccari.jpeg

 

por Cristina Serra

- - -

Bolsonaro, nunca mais teus maus bofes, tua vulgaridade e tuas mentiras, tuas agressões às mulheres, teus arrotos e palavrões, tuas ofensas aos negros, aos povos indígenas e aos brasileiros do Nordeste, teu ódio aos pobres.

Nunca mais teus fardados bolorentos, teus valentões de Twitter, tuas falanges raivosas, tuas milícias terroristas. Como disse o anônimo haitiano que te enfrentou, em 2020: “Bolsonaro, acabou”.

Bolsonaro nunca mais? Não, seus 58 milhões de votos não permitem tal afirmação. As urnas mostraram que vencedores e vencidos têm projetos de país inconciliáveis e pouquíssima capacidade de se comunicar, mas, ao realizar a façanha de se eleger para o terceiro mandato, Lula já diz a que veio.

Lula tem pressa. E o Brasil também. Em seu primeiro discurso pós-eleição, falou de paz e diálogo. Engrandecerá sua biografia se conseguir unir este país em carne viva. Sua trajetória alcança contornos épicos. Lula foi capaz de reafirmar sua liderança depois do golpe de 2016, de uma prisão injusta e de ter tido sua reputação emporcalhada por uma conspiração judicial-midiática. Ao completar seu mandato, em 2026, será o presidente que por mais tempo terá exercido o poder consagrado pelo voto popular.

Sobre a luta permanente por democracia e justiça social, um belo livro dos anos 1970 nos serve como reflexão neste momento crucial de reconstrução. É o pungente “Em câmara lenta”, de Renato Tapajós, em nova edição (editora Carambaia), 45 anos depois da primeira.

Amazon.com.br eBooks Kindle: Em câmara lenta, Tapajós, Renato

Um dos personagens reflete sobre os anos de combate à ditadura: “(…) mudar o mundo é transformá-lo sempre – nossa contribuição nunca está dada. Por maior que tenha sido ela, por maior que tenha sido qualquer vitória, nossa contribuição está sempre por fazer. Os que se satisfazem com qualquer vitória desertam no momento mesmo em que se satisfazem. (…) As coisas que valem a pena são aquelas que ainda não foram feitas.” É o que Lula precisa fazer.

 

29
Out22

Na véspera da eleição, Carla Zambelli saca arma e aponta para militante de Lula na rua (vídeos)

Talis Andrade

carla-zambelli-e-sara-winter.png

Crime de racismo. Abuso de poder. Atentado ao pudor. Falta de decoro parlamentar. Gíria miliciana. Ameaça de morte. Violência contra morador de rua negro, pobre e desarmado

 

247 - A deputada federal reeleita por São Paulo Carla Zambelli, apoiadora de Jair Bolsonaro, sacou uma arma e apontou para um homem na rua na tarde deste sábado (29), véspera do segundo turno da eleição.

O episódio aconteceu na travessa da Joaquim Eugênio Lima com a Lorena, no bairro nobre Jardins, segundo Antonio Neto, do PDT, que divulgou um vídeo da cena no Twitter (veja abaixo).

No vídeo, ela segue o homem por uma distância, que foge e entra num bar. Ela entra atrás e ordena aos gritos: “Deita no chão! Deita no chão!”. “Quer me matar para quê, mano?”, pergunta o homem.

Segundo o jornal O Globo, Zambelli afirmou que "militantes de Lula" a "cercaram e agrediram quando saía do restaurante". As imagens, no entanto, não mostram agressão, e sim Zambelli correndo - e caindo enquanto corria - atrás de um homem negro. Outro vídeo mostra um homem que acompanha Zambelli também correr e atirar - não é possível identificar em qual direção.

Leandro Grass, candidato ao governo do Distrito Federal pelo PV, já anunciou que vai pedir a cassação do mandato da deputada. "Estou preparando o pedido de cassação da Zambelli. Assim que protocolar, enviarei aqui", postou no Twitter.

ДRiКА✜⁷
a fanfiqueira da carla zambelli caindo sozinha e depois botando os cães de guarda dela pra cima da pessoa
@drickaos
"um homem negro"
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CHOQUEI
@choquei
AGORA: Bolsonarista Carla Zambelli se pronuncia após sacar a arma para petista: “Um homem negro veio pra cima de mim. Me machucaram. Me chamaram de vagabunda e de prostituta. #Eleições2022
 
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