O Brasil escapou por pouco de um golpe de Estado e, mesmo combalida, a democracia prevaleceu. Não é possível dizer, no entanto, que as instituições estejam funcionando normalmente por aqui. Um dos índices de civilidade mais comuns em todo mundo anda em baixa entre nós: a liberdade de imprensa.
Decisões judiciais recentes e processos movidos para intimidar o jornalismo profissional ressuscitaram o fantasma da censura de uma forma que não se via desde o fim da ditadura militar. Nas últimas semanas, três veículos de comunicação foram obrigados a tirar reportagens relevantes do alcance do público.
O primeiro caso foi o do site The Intercept Brasil, obrigado pela juíza Flávia Gonçalves Moraes Bruno, da 14ª Vara Cível do Rio de Janeiro, a suprimir a série de matérias sobre alienação parental. Desde o início de junho, os leitores estão proibidos de ler e assistir o resultado de uma apuração que levou mais de um ano para ser feita.
AO MENOS 22 EMPRESÁRIOSdo agronegócio desembolsaram, juntos, R$ 2,1 milhões para financiar as campanhas de nove parlamentares que agora são membros daComissão de Saúdena Câmara dos Deputados. O levantamento feito peloInterceptconsiderou apenas as doações a partir de R$ 50 mil. A quantia e o número de membros favorecidos, portanto, pode ser ainda maior.
Recriada este anoa partir da separação da Comissão de Seguridade Social e Família, a Comissão de Saúde é responsável por analisar projetos de lei e outras propostas legislativas relacionadas ao tema. Os principais financiadores dos parlamentares que discutemassuntoscomo alimentação e nutrição, SUS e patentes lucram com venda de açúcar, batata frita, ultraprocessados e até cachaça. Não por acaso, propostas como a maior tributação desses alimentos ou a regulamentação de publicidade do setor têm encontrado resistência para serem aprovadas.
Quem mais deu dinheiro para a campanha de titulares da comissão foi o empresário Robert Carlos Lyra, que atua no ramo sucroalcooleiro em Minas Gerais. Foram R$ 400 mil, divididos igualmente entre o atual presidente da comissão, Zé Vitor, do PL, e o deputado Pinheirinho, do PP.
Em 2009, quando ainda era sócio da Usina Caeté, em Alagoas, Lyra foidenunciadopelo Ministério Público Federal, o MPF. A investigação apontou que a empresa teria cometido 16 crimes ambientais desde 2001 e foi autuada seis vezes pelo Ibama entre 2005 e 2007, mas nunca obedeceu às ordens para interromper o desmatamento e recuperar a área degradada. Ao todo, teriam sido devastados 28 hectares para plantar cana-de-açúcar em área de preservação permanente na Unidade de Conservação Federal Reserva Extrativista, no município de Jequiá da Praia, a 61 quilômetros de Maceió.
Inicialmente Lyra e os outros réus foram absolvidos, mas o MPF recorreu, de acordo com a assessoria de imprensa do órgão. Em 2021, o processo retornou à primeira instância para análise das provas. O MPF reiterou o pedido de condenação de todos eles e o processo está em andamento.
A usina Caeté faz parte do Grupo Carlos Lyra, que até 2012 incluía também as usinas de Minas Gerais. Depois de umacisãonaquele ano, as usinas de Alagoas continuaram como parte do grupo, e Lyra ficou com as do Sudeste, dando origem a uma nova empresa, a Delta Sucroenergia.
Segundo arevista Forbes, 11 anos após seu surgimento, a Delta figura entre as 100 maiores do agronegócio brasileiro. Com a produção de açúcar para exportação e para o mercado interno, além de etanol e bioenergia, a empresa tem uma receita anual de R$ 2,14 bilhões. Em 2022, a Federação das Indústrias de Minas Gerais elegeu Lyra oindustrial do ano.
Além dos deputados Zé Vitor e Pinheirinho, Lyra também ajudou financeiramente a campanha de Jair Bolsonaro em 2022, com uma doação de R$ 300 mil, e de mais sete deputados mineiros que não estão na Comissão de Saúde. O empresário ocupa o 22º lugar no ranking de doadores, com mais de R$ 1,8 milhão desembolsados.
O segundo maior doador para campanhas de deputados que agora ocupam a Comissão de Saúde foi Renato Romeu Sorgatto, produtor de tomate e dono de uma fábrica de processamento que fornece polpa para o mercado de molhos, ketchup e pratos congelados. Ele desembolsou R$ 320 mil para Célio Silveira, do MDB de Goiás. A quantia representa mais da metade de todas as doações de pessoas físicas e deixa o deputado em segundo lugar entre os membros que mais receberam financiamento do agronegócio, atrás apenas do presidente da comissão, Zé Vitor, que recebeu mais de R$ 900 mil.
Agrados ao presidente da comissão
Em razão do seu posto, cabe ao deputado Zé Vitor indicar os relatores dos projetos de lei que tramitam na Comissão de Saúde, além de definir o que entra na pauta de votação ou fica engavetado. Por isso, é relevante saber quem são seus financiadores e que interesses eles defendem. Considerando apenas as doações a partir de R$ 50 mil, o parlamentar do PL recebeu R$ R$ 925.489,10 mil de 10 empresários, principalmente do ramo sucroalcooleiro. O valor representa 47,7% de todas as doações de pessoas físicas.
Assim como Robert Carlos Lyra, João Emílio Rocheto foi um dos maiores financiadores de campanha do deputado: doou R$ 200 mil. O empresário é fundador da Bem Brasil, uma fabricante de batatas pré-fritas congeladas que tem uma série de redes de fast food entre seus clientes.
Zé Vitor está no segundo mandato e atualmente faz parte de 10frentes parlamentaresrelacionadas à saúde, mas sua trajetória sempre esteve ligada ao agronegócio. Ele também é membro da Frente Parlamentar da Agropecuária e sócio-administrador da empresa Campo Brasil, do ramo de alimentos e fertilizantes.
O deputado Zé Vitor não respondeu o e-mail que enviamos. Exceto o Grupo Cerradinho, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas cujos donos financiaram a campanha do parlamentar receberam nossos e-mails, mas não responderam até o fechamento dessa reportagem.
Projetos contra alimentos nocivos emperram
Odossiê“Big Food: como a indústria interfere em políticas de alimentação”, lançado em 2022 pela ONG ACT Promoção em Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, mostra quais são as estratégias do setor, incluindo as grandes corporações do agronegócio, para alterar, atrasar ou anular políticas públicas que poderiam melhorar a qualidade de vida dos consumidores, mas ameaçam o lucro das empresas.
A interferência se dá, entre outras formas, por meio de lobby direto ou indireto com os parlamentares, financiamento de políticos e partidos ou mesmo ameaça de retirada de incentivos. As doações de campanha são uma das maneiras de influenciar diretamente os deputados, para que eles votem de acordo com os interesses dos seus financiadores.
Segundo um levantamento da ONG, ao menos 11 projetos de lei que tramitam na Câmara de Deputados contrariam interesses do agronegócio – oito deles passaram, já estão ou ainda vão passar pela Comissão de Saúde. Desses, três dispõem sobre comércio e publicidade de bebidas com baixo teor nutricional e alimentos ultraprocessados ou com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e sódio. Outros três projetos tratam darotulagem desses produtose de bebidas industrializadas, para alertar sobre os riscos do consumo em excesso. Por fim, dois projetos propõem aumentar os impostos para bebidas não-alcoólicas, ou produtos com adição de açúcar, edulcorantes e aromatizantes.
O agronegócio influencia diretamente a agenda regulatória da saúde
Paula Johns, diretora executiva da ACT e membro do comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, afirma que o agronegócio influencia diretamente a agenda regulatória da saúde, seja por meio das entidades representativas do setor, como o Instituto Pensar Agro, ou de forma institucional, por meio da Frente Parlamentar Agropecuária.
Segundo ela, está mais difícil aprovar na Comissão de Saúde projetos de lei que antes passariam facilmente, diante de evidências científicas que justificassem a importância de determinada regulação – a exemplo dos alimentos ultraprocessados, cujo consumo está associado ao aumento deproblemas de saúdecomo obesidade, hipertensão e diabetes.
“Acompanho o Congresso há 20 anos. Havia uma certa garantia de que a gente conseguia avançar com as propostas regulatórias na Comissão de Saúde. Os projetos normalmente paralisavam na Comissão de Assuntos Econômicos. Agora, aumentou o grupo de resistência”, afirmou Johns.
Osmar Terra recebeu R$ 300 mil
Cinco empresários do Grupo Alibem, produtor de carne bovina e suína, além de ultraprocessados, doaram para a campanha de outro membro da Comissão de Saúde, o deputado Osmar Terra, do MDB do Rio Grande do Sul. Médico de formação, ele se destacou como umnegacionistadurante a pandemia. Em 2020, chegou a propor umprojeto de leicontra o isolamento de pessoas que já tivessem contraído o vírus da covid-19, como se não fosse possível se contaminar novamente e transmitir o vírus para outras pessoas.
Nada disso foi relevante para os empresários Eduardo Shen Pacheco da Silva, José Roberto Fraga Goulart, Lee Shing Wen, Maximiliano Chang Lee e Michele Shen Lee. Juntos, eles desembolsaram R$ 250 mil para o negacionista de uma pandemia que causaria mais de700 mil mortesno Brasil. O valor representa 45% de todas as doações feitas ao deputado por pessoas físicas.
O Grupo Alibem foi alvo de umaoperaçãoda Polícia Federal em 2015, que investigou casos de corrupção envolvendo empresas do agronegócio gaúcho e a Superintendência Federal da Agricultura no Rio Grande do Sul. De acordo com a denúncia, a Alibem teria oferecido propina para o então superintendente Francisco Signor, para que ele a favorecesse com fiscalizações menos rígidas em seus frigoríficos. Seis anos após a operação, em 2021, o Ministério da Agricultura multou a Alibem em R$ 159,2 milhões com base na Lei Anticorrupção. O Ministério da Agricultura não respondeu se a multa foi paga.
Em julho de 2018, quando a investigação ainda estava em andamento, o deputado Osmar Terraacompanhou o empresário Roberto Fraga Goulartem uma reunião com o então secretário executivo do Ministério da Agricultura e Pecuária no governo de Michel Temer, Eumar Roberto Novacki. O órgão também não respondeu qual foi a pauta do encontro, assim como Terra e Goulart. As perguntas foram enviadas por e-mail.
Outro empresário que se interessou em financiar a campanha de um negacionista foi Gilson Lari Trennepohl, dono da Stara Máquinas Agrícolas. Logo após o primeiro turno da eleição de 2022, aempresa enviou uma cartaaos fornecedores, comunicando que reduziria sua base orçamentária em 30%, caso Lula ganhasse. Ele doou R$ 50 mil para a campanha de Osmar Terra e a mesma quantia para o deputado Pedro Westphalen, do PP, que é o terceiro vice-presidente da Comissão de Saúde. Já Bolsonaro recebeu R$ 350 mil.
Assim como Terra, os empresários do agronegócio que financiaram sua campanha não responderam o contato que fizemos por e-mail.
Apenas o deputado Ruy Carneiro respondeu nosso contato e disse que integra a Comissão de Saúde há muito tempo. Ele acrescentou também que nunca integrou a bancada do agronegócio e até apresentou um projeto que contraria os interesses do setor – o PL do Bem-estar Animal, que disciplina o abate de animais pela indústria agropecuária. “Com relação às doações, todas foram realizadas seguindo rigorosamente o que determina a lei e de forma transparente”, rebateu.
Com exceção da Cachaça Pitu e do Grupo Vale do Verdão, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas receberam nossos e-mails, mas não responderam nossos questionamentos.
Johns defende a necessidade de a sociedade civil formar uma frente ampla que envolva as questões de saúde, de justiça social e ambiental para enfrentar o lobby do agronegócio. “Se a gente não descobrir uma maneira de impedir a escalada dessa influência, vamos ficar patinando. Hoje, não conseguimos avançar com nenhum tema, ou avançamos a passo de cágado”.
HÁ QUASE 18 ANOS, uma operação de auditores fiscais do trabalho resgatou 43 pessoas da fazenda de Marcos Nogueira Dias, o Marcão do Boi, na zona rural de Abel Figueiredo, no Pará. O fazendeiro era conhecido como um dos mais ricos do sudeste do estado. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, os trabalhadores bebiam água fétida, comiam carne podre de vacas que morriam no parto, não tinham salário e recebiam bebida alcoólica como pagamento. Eles também tinham que comprar produtos de higiene superfaturados do patrão e eram submetidos a jornadas exaustivas “em sol escaldante”, inclusive nos feriados e fins de semana.
Era evidente a condição de trabalho degradante e análoga à escravidão, de acordo com o MPF. Mas, para o desembargador Olindo Menezes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, essas circunstâncias não eram degradantes, mas apenas comuns ao trabalho rural, que tem “o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal”, e não se caracterizavam como algo que “rebaixa o trabalhador na sua condição humana”.
Seus argumentos convenceram os outros desembargadores da 4ª turma do TRF-1 a absolver Marcão do Boi em 2019. Ele chegou a ser condenado a cinco anos de prisão pela Vara Federal de Marabá. O juiz Fábio Ramiro, relator convocado que analisou o recurso na segunda instância, propôs aumento da pena para seis anos, mas o voto do desembargador Menezes mudou o rumo do processo.
Ele alegou que o caso deveria ser melhor analisado, pois muitas denúncias de condições análogas à escravidão tinham como base apenas os levantamentos feitos pelos fiscais do Ministério do Trabalho, que “são muito ardorosos e, normalmente, feitos por pessoas que não têm a menor noção do que é um trabalho no meio rural. Os exageros, em muitos casos, são evidentes”, justificou, pedindo mais tempo para decidir seu voto.
Quando se manifestou, alguns meses depois, o desembargador Menezes votou pela absolvição de Marcão do Boi. Para o magistrado, as denúncias mencionadas na sentença, como os alojamentos insalubres, a falta de água potável, a comida podre “devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira”, em que os patrões “não raro” também se submeteriam a tais condições, na visão de Menezes. O fazendeiro, contudo, já havia informado que só ia ao local onde os trabalhadores estavam “a cada trinta ou sessenta dias”. Era a sua defesa para alegar não ter conhecimento das condições precárias.
Muitos operadores do direito, argumentou ainda o desembargador, “se contentam com os desconfortos mais comuns do trabalho rural para dar por configurado o trabalho análogo ao de escravo” quando seriam na verdade situações “comuns na realidade rústica brasileira” sem “gravidade intensa que implique a submissão dos trabalhadores a constrangimentos econômicos e morais inaceitáveis”. Marcão do Boimorreu em 2021, executado por pistoleiros, sem nunca ter sido preso pelo caso.
Argumentos assim são recorrentes nas manifestações do desembargador. Encontrei ao menos outros quatro processos em que o magistrado votou pela absolvição do acusado, relativizando a denúncia por conta do lugar ou do tipo de trabalho realizado. As condições no meio rural, como em carvoarias ou em fazendas de café, segundo ele, são “duras pela própria natureza da atividade” e, por isso, não devem ser confundidas com trabalho análogo à escravidão.
“A condenação somente se justifica em casos graves e extremos, sem razoabilidade, quando a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, alçando-se a níveis gritantes”.
Não era o caso de trabalhadores de uma carvoaria submetidos pelo acusado a exaustivas 12 horas diárias de trabalho. Na interpretação de Menezes, tratava-se apenas de uma jornada “um pouco acima daquela prevista em lei, e realizada como forma de aumentar a produtividade”, como afirmou em um processo de 2013.
Em processo de 2011, como os trabalhadores ficaram poucos dias submetidos à situação degradante justamente pela ação de resgate do Ministério Público do Trabalho, o desembargador minimizou a denúncia. No entendimento dele, como os trabalhadores ficaram menos de 30 dias nas condições descritas na denúncia, não havia justificativa para “imputação de trabalho escravo”.
Menezes ainda considerou favorável aos trabalhadores quando o empregador deixou de pagar R$ 40 por cada alqueire roçado – uma medida que, no Pará, equivale a cerca de 2,5 campos de futebol – para pagar R$ 25 a diária. Segundo o magistrado, o acusado teria constatado que levaria vários dias para executar o trabalho e entrou em acordo com relação ao novo valor. “O que parece ter constituído um benefício para os trabalhadores e não um malefício, como quer fazer parecer a acusação”.
Considerando apenas o salário bruto, o magistrado ganha quase R$ 1,2 mil por dia, inclusive quando não trabalha, como em feriados e fins de semana. Seu salário mensal fixo é de R$ 35,4 mil, mas devido a algumas gratificações e benefícios como auxílio alimentação, nesse mês de março, ele recebeu, já com os descontos, R$ 37,4 mil.
Procuramos o desembargador Menezes por meio da assessoria de imprensa do TRF-1 e informamos os números de todos os processos analisados, bem como os trechos que destacamos nesta reportagem, para que ele pudesse se manifestar. O magistrado, contudo, não respondeu a nenhum dos seis questionamentos.
Vale ressaltar que, juridicamente, não existe a figura do trabalho escravo, mas sim a do trabalho em condições análogas à escravidão, já que, a nível oficial, a escravidão acabou com a Lei Áurea, em 1888. No entanto, oIntercepttomou a decisão de usar a expressão, entendendo que a imposição de um regime de trabalho degradante, com jornadas exaustivas e sem o devido pagamento salarial não pode ser chamada de outra forma, senão de trabalho escravo.
A culpa é da vítima
Segundo Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a falta de sensibilidade com processos como esses se explica porque o Judiciário é majoritariamente elitista, branco e masculino.
“As pessoas que trabalham nesse poder estão muito distantes da realidade dos brasileiros que são submetidos à condição de trabalho análoga à escravidão. Há um espelhamento maior do Judiciário com os empregadores julgados do que com os trabalhadores”.
A clínica coordenada por Miraglia, junto com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, também da UFMG, traçou um raio-x das ações judiciais de trabalho escravo. O levantamento de quase 1.900 ações iniciadas entre 2008 e 2019 constatou que o TRF-1 é o tribunal federal que mais absolve os acusados de trabalho análogo à escravidão na segunda instância – apenas 0,48% deles foram condenados. Dos 293 empregadores condenados por juízes da primeira instância, o tribunal absolveu 254, o equivalente a 86,7%.
Abrangendo os estados da Amazônia Legal, um área de intenso conflito agrário, o TRF-1 tem o maior número de acusados por trabalho análogo à escravidão – 1.943, quase sete vezes mais que a quantidade de acusados no TRF-3, que aparece em segundo lugar. Já o Pará, estado de Marcão do Boi, tem o maior número de empregadores incluídos na lista suja do trabalho escravo – 152 pessoas.
A impunidade, segundo Miraglia, leva os empregadores a concluírem que compensa submeter pessoas à situação degradante. “A falta de punição impede a perspectiva de mudar esse cenário no presente e no futuro, porque o crime continuará sendo praticado”.
O próprio fazendeiro Marcos Nogueira Dias entrou na lista duas vezes quando estava vivo. Três anos depois dos 43 trabalhadores serem resgatados em Abel Figueiredo, 11 pessoas foram libertadas em outra fazenda dele, dessa vez localizada em Rondon do Pará.
Mapeei ao menos 17 processos em que magistrados do TRF-1 absolveram acusados de submeter pessoas a trabalho escravo em suas decisões. Oito deles têm manifestação do desembargador Menezes, mas também aparecem na lista outros nomes, como o do juiz Leão Aparecido Alves, que atuou como relator convocado em alguns processos em segunda instância – para ele, a solução do problema, nesses casos, parece caber às vítimas.
Para Fachin, é inconstitucional usar a região como critério para caracterizar um trabalho como degradante.
Em uma ação de 2009, ele votou pela absolvição do réu porque, entre outros argumentos, não foi apresentado teste para comprovar que a água era imprópria para consumo. Além disso, escreveu que “os trabalhadores não estavam impedidos de ferver a água a ser por eles consumida”.
Em outro processo, de 2011, ele concordou com a decisão do juiz de primeira instância que absolveu o réu. Para os magistrados, o trabalho degradante e a jornada exaustiva só indicam que o trabalhador foi submetido à condição análoga à escravidão se ele for vítima de violência ou efetivamente privado de liberdade por meio de agressões ou ameaças. De outra forma, é livre para “abandonar o local e buscar melhores condições de trabalho”.
Procurado por meio da assessoria da justiça federal de Goiás, o juiz Alvesrespondeuque seu voto foi acompanhado nos dois processos, por unanimidade, pelos demais integrantes da Terceira Turma do TRF-1, resultando em decisões unânimes. Com relação ao processo de 2009, ele argumentou, entre outras coisas, que os trabalhadores “nunca foram constrangidos ou ameaçados e não se consideravam escravos” e que “os tribunais têm decidido que o simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo”.
Sobre o processo de 2011, ele disse que as testemunhas não relataram “o uso de violência contra os trabalhadores pelo empregador ou prepostos ou a presença de segurança armada na fazenda, tampouco noticiaram a existência de servidão por dívida ou o impedimento de deslocamento dos trabalhadores”. O magistrado acrescentou ainda que “condena quando há prova acima de dúvida razoável, e, em sentido oposto, absolve quando inexistem provas aptas a expurgar a dúvida razoável”.
Existe, de fato, um entendimento consolidado no meio jurídico de que o trabalho escravo se caracteriza pela privação de liberdade por meio de violência para forçar a permanência da vítima contra a sua vontade. A falta de provas de que as pessoas se sentiam como escravas, aliás, é um dos argumentos que se repetem para absolver os réus em todos os tribunais, de acordo com levantamento de que Miraglia participou. Nas 26 decisões analisadas, os magistrados alegaram que o consentimento da vítima afastaria o delito praticado.
Para a pesquisadora, esse entendimento só comprova quão distantes desembargadores e juízes estão da realidade de um trabalhador, por estranharem que ele não abandone o local de trabalho quando se percebe explorado ou, ainda, que não tenha ciência do crime a que é submetido. “Parece uma situação fácil de ser resolvida. Se não está bom, basta ir embora. É o que essas pessoas fazem nas situações que lhes incomodam. Mas, para muitos brasileiros que precisam de qualquer coisa para sobreviver, não é bem assim”.
No seu voto a favor da condenação de Marcão do Boi, o juiz e relator convocado Fábio Ramiro citou a sentença do juiz de primeira instância para caracterizar o trabalho degradante como “aquele que priva o trabalhador de dignidade, que o desconsidera como sujeito de direitos, que o rebaixa e prejudica, e, em face de condições adversas, deteriora sua saúde”. Segundo o magistrado, a coação moral pode ser mais efetiva que a força física para manter a vítima em condição análoga à escravidão, principalmente quando o empregador lhe impõe dívidas, impedindo seu desligamento do serviço.
112 condenações em mais de 10 anos
De acordo com o raio-x das ações judiciais, as equipes de fiscalização resgataram mais de 20 mil trabalhadores de 2008 a 2019 e mais de 2,6 mil empregadores foram acusados por trabalho análogo à escravidão, mas apenas 112 foram condenados definitivamente – os magistrados absolveram, em primeira instância, quase metade dos acusados por falta de provas. A maior pena de prisão, após o processo transitado em julgado, foi de 11 anos e seis meses.
Mesmo assim, há quem afirme em suas decisões que há exagero nas leis trabalhistas. É o caso da desembargadora Cláudia Cristina Cristofani, do TRF-4. Assim como o desembargador Menezes, ela enfraquece as denúncias usando o mesmo argumento de serem características do meio rural. Em um processo de 2013, do qual foi relatora, a magistrada afirmou que as condições de alimentação e alojamento dos trabalhadores eram precárias, “quando considerados os padrões, elevados e irrealistas, requeridos pelas normas trabalhistas” e que “o empregador rural se vê obrigado a reduzir custos, a fim de manter um lucro cada vez menor”. Por isso, disse no seu voto pela absolvição do acusado, não era “razoável dar relevância criminal ao fornecimento de condições de trabalho idênticas às condições de habitat da localidade em que a atividade estava sendo prestada”.
Procurada por meio da assessoria de imprensa do TRF-4, a desembargadora não se manifestou.
Em 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux reconheceu a repercussão geral de um pedido de recurso extraordinário do MPF para debater o acórdão do TRF-1 que absolveu Marcão do Boi. Os procuradores querem o reconhecimento das condições retratadas nos autos como degradantes e afirmam que a absolvição “pode estimular o empregador rural, proprietário de fazenda no interior, a cada vez mais tratar os seus empregados de forma desumana”. O relator do processo no STF é o ministro Edson Fachin, que defende ser “inconstitucional a diferenciação regional dos critérios para caracterização do trabalho como degradante”.
Se a água era imprópria para consumo, ‘os trabalhadores não estavam impedidos de ferver’.
O procurador-geral da República Augusto Aras concorda com a tese de Fachin. “A efetivação dos princípios da dignidade humana, da erradicação da pobreza e da redução das diferenças econômicas e sociais direciona-se no sentido de proteger o padrão de vida e as condições de trabalho minimamente satisfatórias nas diversas regiões brasileiras, de modo a equalizar a situação do trabalhador em todas as localidades do país”, disse o PGR, em fevereiro de 2022, em sua manifestação no processo.
O procurador também recomendou o restabelecimento da sentença de prisão de Marcão do Boi pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal, ou seja, por submeter pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitá-las a condições degradantes e à restrição de locomoção. Mas quando tudo isso aconteceu, já era tarde demais para o fazendeiro ser punido pelo rigor da lei.
Correção:3 de abril, 17h06 Uma versão anterior deste texto falava em fiscalizações feitas pelo Ministério Público do Trabalho. O órgão correto é o Ministério do Trabalho.
Correção: 10 de abril, 10h28 Corrigimos a comparação de um alqueire roçado a campos de futebol de acordo com o alqueire do Norte.
Aperseguição a jornalistas por meio de processos judiciais vai além das ações impetradas pelos próprios magistrados e sempre ameaçou a liberdade de imprensa. Nos últimos anos, porém, essa prática aumentou tanto que ganhou até um nome: assédio judicial. Isso acontece quando são orquestradas várias ações contra um mesmo veículo ou jornalista, por várias pessoas ou entidades diferentes, e quando uma mesma pessoa processa um jornalista várias vezes, explica a advogada Tais Gasparian, que há mais de 10 anos defende vítimas de processos como esses.
Um exemplo é um caso ocorrido no Paraná em 2016, em quedezenas de juízes e promotoresdo Ministério Público se incomodaram com uma reportagem sobre seus supersalários, publicada na Gazeta do Povo. De forma simultânea, os juízes e promotores citados no texto moveram mais de 40 processos contra todos os profissionais que assinaram a matéria, incluindo os repórteres e um analista de sistemas.
As ações foram movidas em várias cidades, obrigando os profissionais a viajarem o estado inteiro para audiências. Somados, os pedidos de indenização ultrapassaram a quantia de R$ 1 milhão. O caso foi tão absurdo que o Supremo Tribunal Federalsuspendeutodas as ações. A corte agora decide se elas devem ser julgadas pelo Judiciário local ou pelo próprio STF. Valores de indenização muito altos, reforça Gasparian, cumprem a função de intimidar e prejudicar financeiramente o jornalista.
Segundo umlevantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, com dados até 2021, jornalistas e veículos de comunicação foram alvo de mais de 4 mil processos por calúnia, injúria e difamação desde 2002 – 97% das ações, contudo, foram movidas nos últimos 10 anos. A maioria delas são de políticos, mas há também os casos que envolvem magistrados, como revela o mapeamento que fiz para esta reportagem. Mesmo quando não é praticado pelo Judiciário, o assédio judicial conta com o apoio de juízes e desembargadores, pois são eles quem condenam os jornalistas ou os veículos a pagarem altas indenizações ou a retirarem conteúdo do ar. Em outras palavras, são os magistrados que ajudam a censura a se concretizar.
Se você fizer uma busca na internet pelo blog paraense Rondon Sem Censura, por exemplo, não vai encontrá-lo. Ele foi censurado. Em 2012, o juiz Gabriel Costa Ribeiro alegou que sua honra estava sendo atacada pelas publicações e conseguiu uma liminar que obrigava o Google a retirar“do mundo virtual”não apenas os textos que o citavam, mas todo o blog. Caso o Google não cumprisse a determinação, a multa diária seria de R$ 100 mil. Como o site ficou no arpor mais de um mês, a justiça do Pará ainda mandou bloquearR$ 3 milhões nas contas da multinacional.
97% dos processos por crimes contra a honra que miraram jornalistas desde 2002 foram movidos nos últimos 10 anos.
A liminar requerida pelo juiz Ribeiro foi julgada em apenas dois dias na comarca de Rondon do Pará, cujo único magistrado, na época, era ele mesmo. A decisão foi tomada por um colega, o juiz substituto Jonas da Conceição, que estava temporariamente responsável pelos processos na cidade durante os dois dias que Ribeiro se ausentou por uma licença-médica.
Por considerar que a decisão feria “os princípios constitucionais da livre manifestação de pensamento e liberdade de expressão”,o Google recorreu. A empresa alegou que a maior parte das publicações do blog sequer citavam o juiz Ribeiro e, por isso, excluí-lo por completo causaria “uma gritante desproporção na aplicação da razoabilidade”.
Para Gasparian, obrigar a retirada de uma reportagem do ar é uma ordem extrema que afeta gravemente não apenas a liberdade de expressão, mas a liberdade de informação. “Os sistemas de publicação dos sites de notícias permitem que um texto seja corrigido, se for o caso. Mas excluir um conteúdo e banir informação do conhecimento público é censura”, diz a advogada.
Argumentos como esses não convenceram a desembargadora do Tribunal de Justiça do Pará, Gleide Pereira de Moura, que analisou o recurso do Google. Ela manteve a decisão de retirar o blog do ar e apenas reduziu a multa diária para R$ 2 mil.“Nada há de pedagógico ou informativo no blog referido, mas sim comentários pueris e injuriosos”, escreveu a magistrada. Como queria o juiz Ribeiro, o Rondon Sem Censura desapareceu da internet.
Todos os magistrados foram procurados por meio da assessoria do Tribunal de Justiça do Pará, que não respondeu aos questionamentos feitos.
Em 2014, foi a vez da justiça do Rio Grande do Sul, que censurou uma matéria do repórter Rogério Barbosa, publicada no Conjur, site especializado em assuntos jurídicos. Ele escreveu que a juíza Fabiana dos Santos Kaspary usava o espaço das notas de expediente, publicadas no site do tribunal estadual, para dar conselhos amorosos como esse: “Não precisa agir como um ogro.O amor acabou, mas vocês já se divertiram um bocado juntos”.
Essa e outras dicas para o fim de um relacionamento realmente estavam lá, mas a juíza alegou que foi um “erro cartorário” e que o jornalista se aproveitou disso para ridicularizá-la com “matéria de cunho vexatório”. Ele e o site foram condenados a pagar, juntos, R$ 12 mil. O texto foi excluído do Conjur, maso encontreireproduzido em outra página.
Por meio da assessoria do tribunal, a juíza Kaspary respondeu que “o processo em questão não tem relação com liberdade de imprensa e nem com assédio judicial”, portanto, o caso “não se enquadraria no tema abordado” pela reportagem.
Em Pernambuco, a juíza Blanche Maymone Pontes Matos ganhou, após acordo, R$ 10 mil e um direito de resposta no UOL. Ela moveu dois processos contra o veículo e a jornalista Fabiana Moraes, então colunista do site e atualmente colunista do Intercept. A magistrada se incomodou com o texto“Ministra Rosa, juíza Blanche e preso preto: tudo é cor no Brasil de Kafka”, no qual a jornalista recorreu a um jogo de palavras e cores para tratar do racismo estrutural no Judiciário. A juíza foi citada porque, entre outras decisões questionáveis mencionadas no texto, ela considerou legal a prisão em flagrante de um homem negro, acusado de furtar uma bicicleta de aluguel – mas o objeto sequer tinha sido encontrado com ele. Em sua defesa, a juíza Blanche alegou que não é racista, pois é até “casada com um negro”.
Os argumentos dela convenceram o juiz Sérgio Paulo Ribeiro da Silva, da comarca de Recife, que concedeu o direito de resposta à colega de toga. Embora tenha reconhecido que é “inegável e nefasta a existência de racismo estrutural” – exatamente o ponto principal do texto da jornalista –, o magistrado se recusa a admitir que as decisões judiciais tenham alguma coisa a ver com isso, pois acredita que não “sejam eivadas de discriminação racial, a ponto de serem elas as responsáveis pelo perfil dos detentos do país”. Umrelatório do Conselho Nacional de Justiçade 2020, contudo, aponta que combater o racismo no Judiciário é urgente.
Os dois magistrados foram procurados por meio da assessoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que não respondeu aos questionamentos e me orientou a enviá-los para a associação de magistrados do estado. A assessoria da entidade, porém, disse que “não responde por processos movidos individualmente por magistrados e magistradas” e que não tem autorização para passar seus contatos de telefone.
Mais recentemente, em fevereiro deste ano, o jornalista Rubens Valente foi obrigado a pagar cerca de R$ 310 mil por danos morais ao ministro Gilmar Mendes pela publicação do livro “Operação Banqueiro”. A sentença, reformada pelo STJ e confirmada pelo STF, mesmo tribunal do qual Mendes faz parte, ainda impôs ao jornalista que inclua, em uma futura edição do livro, a sentença e a transcrição da petição do ministro, que tem cerca de 200 páginas.
De acordo com um levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, noticiado pela Agência Pública, a jurisprudência criada pelo STF para condenar o jornalista Valente foi usada em quatro processos no STJ e em outros 10 julgamentos nos tribunais estaduais de primeira e segunda instâncias até dezembro de 2021. Os mesmos argumentos serviram como parâmetro também para o cálculo de reparação por danos morais, com valores semelhantes aos milhares cobrados de Valente.
Em abril de 2021, a Abraji lançou o Programa de Proteção Legal para Jornalistas, para dar apoio jurídico a profissionais de imprensa. A iniciativa, diz otexto de apresentaçãodo projeto, é uma “resposta ao crescimento das ameaças à liberdade de imprensa e do assédio judicial”.
Outra iniciativa para coibir a perseguição à imprensa vem da Associação Brasileira de Imprensa, a ABI, queentrou com duas ações, atualmente em andamento no STF. Uma delas cobra que “apenas a divulgação dolosa ou gravemente negligente de notícia falsa possa legitimar condenações”. A outra pede que os ministros assegurem aos jornalistas “o direito de não responder a ações penais por calúnia ou por difamação pelo simples fato de exercerem com destemor seus ofícios”.
Atualização: 10 de maio, 19h18 No dia seguinte à publicação deste texto, a Associação dos Magistrados Piauienses enviou uma nota afirmando que “o desembargador Erivan Lopes é um cidadão e, como tal, tem direitos” e agiu conforme a lei permite para “defender sua imagem e honra que, no seu entender, estavam sendo atacadas criminosamente pelo jornalista” Arimatéia Azevedo. A Amapi continua, dizendo que a reportagem “omite sabidamente” que Azevedo já havia sido preso em 2005 e tece “considerações tendenciosas”, por, no passado, “a autora da matéria” ter trabalhado no “mesmo grupo de comunicação” que ele. Esclarecemos que o processo a que se refere a nota não tinha relação com o tema desta reportagem, por não haver indício de que o caso configure assédio judicial. Reforçamos ainda que toda a investigação está ancorada em fatos, além de apresentar diversas outras histórias para além da de Azevedo, não havendo qualquer motivação escusa para a publicização do que vem ocorrendo com este e outros profissionais da imprensa.
[Nota deste correspondente: Em mais de 70 anos de jornalismo, escrevendo texto, editando jornais, criei dezenas de termos. Assédio Judicial, inclusive]
Em Sergipe, o processo movido pelo desembargador Edson Ulisses de Melo, do tribunal de justiça do estado, conseguiu a condenação do jornalista Cristian Góes por um texto que sequer citava seu nome ou sua profissão. Antes de recorrer ao Supremo Tribunal Federal, o STF, Góes foi condenado cível e criminalmente por uma crônica que escreveu em 2012, em sua coluna em um site local. O detalhe é que ele não fez nenhuma reportagem citando o magistrado. A condenação foi por causa de um texto ficcional, escrito em primeira pessoa.
A crônica“Eu, o coronel em mim”falava sobre um coronel da República Velha que estava vivo em plena democracia e ficava contrariado ao ver tamanha liberdade de greve e de manifestações. “Esse personagem que eu criei não aceitava que as pessoas tivessem direitos”, me contou o jornalista por telefone.
O que mais irritou o desembargador Melo parece ter sido esse trecho: “Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo”. Para o magistrado, casado com a irmã do então governador de Sergipe Marcelo Déda, do PT, a expressão “jagunço das leis” fazia referência a ele.
Na crônica, o coronel não era governador, nem havia menção à data ou ao local em que a história se passava. Mesmo assim, em 2013, Góes foi condenado em primeira instância a sete meses e 16 dias de prisão pelo texto ficcional. A pena foi convertida em prestação de serviço à comunidade. Para cumpri-la, Góes me disse que precisou suspender o doutorado em Comunicação que cursava na Universidade Federal de Minas Gerais.
No ano seguinte, em 2014, o jornalista foi condenado na esfera cível a pagar R$ 25 mil de indenização por danos morais ao desembargador. O juiz Aldo de Albuquerque Mello escreveu em sua sentença que “o valor do dano moral deveria ser bastante superior ao fixado acima, tendo em vista a gravidade da conduta”. Para o magistrado, o jornalista “denegriu de forma gratuita e desnecessária” não só o desembargador, “mas também a imagem e a credibilidade do próprio Poder Judiciário”.
Ao dizer que Góes havia agredido a imagem de toda uma categoria somente porque um de seus membros se sentiu ofendido, o juiz sergipano deixou escapar o que está por trás desse tipo de ação contra jornalistas e transmitiu o recado que vale para qualquer um de nós: não mexam com o Judiciário.
Góes também recorreu dessa condenação por danos morais, mas perdeu em todas as instâncias. Com a correção monetária, me disse, o valor da indenização subiu para R$ 60 mil. “Eu não tinha esse dinheiro. Tive que fazer um empréstimo, que pago até hoje. Parcelei em 60 meses e ainda faltam mais de 20″.
Enquanto o jornalista enfrenta dificuldades financeiras para pagar o empréstimo, o desembargador Melo acumula poder. Em fevereiro de 2021, assumiu a vaga de presidente do tribunal e, curiosamente, anunciou umprêmio de jornalismo. Lançado quatro meses depois, exatamente no Dia da Imprensa, o magistrado disse que era uma “forma de valorizar os profissionais e disseminar notícias sobre o trabalho do Judiciário em Sergipe”. Oferecer prêmios em dinheiro para estimular jornalistas a falarem bem dos magistrados, convenhamos, é uma forma mais amigável de calar a imprensa.
Por meio da assessoria de imprensa, o desembargador Melo disse que, para ele, o caso está encerrado “após o trânsito em julgado das ações referidas, e o posicionamento do Judiciário sobre a questão posta, com garantia plena do contraditório e da ampla defesa”. Já o juiz Albuquerque disse que as razões da sua decisão “estão descritas na própria sentença” e não pode “emitir pronunciamento sobre o processo, que inclusive já transitou em julgado”.
Desde 1998, o magistrado Luiz Beethoven Giffoni Ferreira já processou ao menos dois profissionais de comunicação – os apresentadores José Luiz Datena e Ratinho – e quatro veículos – IstoÉ, Record, Folha de S.Paulo e Jornal de Jundiaí. Os processos se devem aum mesmo caso: reportagens sobre um grupo de mães de Jundiaí, no interior de São Paulo, que acusavam o magistrado de facilitar adoções por casais estrangeiros.
À época, Ferreira era juiz titular da Vara da Infância e da Juventude da cidade e foi alvo daCPI do Judiciário, realizada em 1999. A investigação do Senado concluiu que havia indícios de irregularidades cometidas pelo magistrado, suspeito de mandar crianças para o exterior sem cumprir as regras definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Várias decisões de Ferreira nos processos de adoção foram suspensas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, ele foi transferido de Jundiaí para a capital e ao menosseis crianças voltaram para suas famíliasde origem. Contudo, o juiz nunca foi punido. Ao contrário, subiu na carreira eé desembargador desde 2012.
Nos processos, Ferreira reclamou aos colegas por ter sido ofendido e tido a honra maculada pela repercussão do caso na imprensa. Os julgadores de pronto concordaram que a imagem do magistrado foi exposta indevidamente. As indenizações determinadas tanto pelo Judiciário paulista quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ, variam entre R$ 60 mil e R$ 300 mil. Como boa parte dessas ações ainda não tiveram desfecho, os valores somados de todas as causas, incluindo juros e multas, poderão ser milionários.
Após acusar inocente de crime, Globo foi condenada em R$ 50 mil. Já a IstoÉ foi condenada a pagar R$ 300 mil a juiz por denunciar irregularidades em processos.
Em primeira instância, o Judiciário paulista calculou em R$ 800 mil a honra do colega juiz no processo movido por Ferreira contra a IstoÉ, em decisão de 2010. O valor foi reduzido para apenas R$ 15 mil na segunda instância, mas, quando o caso chegou ao STJ, o tribunal julgou que essa quantia era irrisória. Considerando a intensidade do dano provocado, o nível sócio-econômico do magistrado e o porte econômico da IstoÉ, a corte determinou, por fim, uma indenização de R$ 300 mil.
Para efeitos de comparação, em abril de 2021, a TV Globo foicondenada a indenizarum homem que teve uma foto sua divulgada no Jornal Hoje como suspeito de um crime que nunca cometeu. A reportagem o acusava de aliciar uma adolescente de 13 anos. Após ser comprovado que ele não tinha nada a ver com o caso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou a gigante da comunicação pagar R$ 50 mil como indenização por danos morais. O valor foi mantido pelo STJ, a quem a defesa da Globo recorreu. É uma quantia seis vezes menor do que a paga ao desembargador Ferreira, num caso que envolveu uma pessoa comprovadamente inocente. A ministra Maria Isabel Gallotti disseem seu votoque o valor estava “dentro dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade, não se mostrando desproporcional à lesão”.
Sem o porte econômico da IstoÉ, o Jornal de Jundiaí, publicação do interior de São Paulo com tiragem de cerca de 18 mil exemplares diários, também descobriu quanto custava expor a má atuação de um juiz. O veículo teve que pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais, porque descreveu como “desastrosa” a atuação de Ferreira na Vara da Infância da cidade. E essa foi a penarecalculadapelo STJ. Na primeira instância, os colegas do juiz haviam determinado indenização em R$ 255 mil. Mas, dessa vez, o STJ julgou a quantia desproporcional à gravidade da ofensa e à condição econômica do jornal e a reduziu para R$100 mil.
Em 2011, foi a vez do apresentador Datenaperder um processocontra Ferreira. No STJ, ele foi condenado a pagar R$ 60 mil de indenização por comentários feitos em seu programa, à época na TV Record, sobre o caso das adoções irregulares. Para o desembargador Claudio Godoy, que julgou a ação, o apresentador imputou um crime ao magistrado ao dizer que “isso parece um caso claro de tráfico de menores” e que “crianças foram praticamente contrabandeadas para fora do País”.
O magistrado Ferreira, porém, não contou com a mesma benevolência quando processou por dano moral um colega de toga, o desembargador Enio Santarelli Zuliani. Ferreira havia sido denunciado à corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo porsuspeitas de favorecer empresas em processo de falência e não gostou do “excesso de linguagem” de Zuliani no voto favorável à investigação. O ministro do STJ Marco Buzzi, no entanto, decidiu que“o inconformismo não merece abrigo”enegou o direito à indenização. Já o processo administrativo contra Ferreira foi arquivado no Judiciário estadual e no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ.
O magistrado foi procurado por meio da assessoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, que não respondeu aos questionamentos feitos. [Continua]
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Mas de 60 anos de jornalismo. Criei vários vocábulos, termos, palavras. Talvez assédio judicial, terrorismo judicial
Desgostosos por serem citados em reportagens, juízes e desembargadores contam com colegas para ganhar processos contra jornalistas e censurar a imprensa.Ilustração: Amanda Miranda para o Intercept Brasil
Levou menos de um mês para o desembargador Erivan Lopes, então presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, levar a melhor num acordo contra três jornalistas em 2016. Ele se irritou com uma reportagem que dizia que sua filha, servidora do Judiciário piauiense desde 2011, tinha sido favorecida com uma transferência para exercer cargo com gratificação no Tribunal de Justiça do Maranhão, antes de cumprir os três anos de estágio probatório.
O magistrado ganhou quase R$ 16 mil de indenização por difamação, e a reportagem foi excluída dos sites em que foi publicada. Alguns veículos que replicaram a matériatambém publicaram retratação. Já os jornalistas tiveram que pedir desculpas na audiência e publicar um texto admitindo que erraram como parte do acordo, embora não haja o reconhecimento judicial de que a difamação ocorreu de fato. O resultado da audiência também foi rapidamente anunciado no site do tribunal, sob o título “Jornalistas que difamaram presidente do TJ-PI vão pagar indenizações”. Profissionais da imprensa do estado que leram aquele texto entenderam o recado: não mexam com o desembargador Lopes.
Três anos depois, contudo, o jornalista Arimatéia Azevedo mexeu com o magistrado. Ele cobre a política e a polícia do Piauí há cinco décadas e, em julho de 2019, teve acesso a informações exclusivas sobre umadenúncia feita ao CNJpelo Ministério Público do Piauí. O desembargador Lopes havia sido acusado de comprar um terreno sem documentos e depois usar da sua influência para legalizar a terra – a tradicional grilagem. Azevedo publicou reportagens e notas sobre o caso no seu site, o Portal AZ, e em uma coluna que mantinha no Jornal O Dia, do Piauí. Não deu outra – o jornalista foi processado por Lopes. Embora não haja uma relação direta entre o que aconteceu nos anos seguintes, chama atenção que após contrariar o desembargador, Azevedo tenha passado a sofrer censura na sua atividade profissional e a enfrentar uma série de outras denúncias que culminaram em processos por estelionato e extorsão e em mandados de prisão em 2020, 2021 e 2022.
Em resposta aos questionamentos enviados ao desembargador, eleafirmaque tem “apreço e respeito à liberdade de imprensa”, e reconhece a sua importância para a democracia. Mas, “como qualquer outro direito protegido pela Constituição, a liberdade de expressão encontra limites, de modo a não ofender o direito à honra, à intimidade, à privacidade e à imagem das pessoas”. O magistrado diz, ainda, que busca inibir os ataques contra a sua honra “com o amparo das normas legais”.
De norte a sul do país, magistrados têm interferido na liberdade de imprensa e ganhado um bom dinheiro com isso. Mapeei uma série de casos em que membros do judiciário seguiram o exemplo do desembargador Lopes: desgostosos com o que leem, apelam a colegas de profissão para calar jornalistas. Na maioria das situações, há também pedidos de indenização que chegam a milhares de reais, extrapolando os valores cobrados em ações do mesmo tipo, mas que não têm a imprensa como alvo. Com dívidas judiciais, a sobrevivência financeira – principalmente de profissionais independentes ou de pequenos veículos de comunicação – é dificultada.
Conseguir informações oficiais sobre esses processos não é tarefa fácil. Pedi a todos os estados brasileiros, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre ações de magistrados contra jornalistas porcalúnia,injúriaedifamaçãomovidas entre 2010 e 2020, mas só os fóruns do Amapá e de Roraima me responderam no prazo legal de 20 dias. Para chegar aos casos que cito nesta reportagem, contei com levantamentos feitos pela Associação Brasileira de Jurimetria, a ABJ, pela Associação Brasileira de Jornalismo, a Abraji, e pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, além de notícias divulgadas pela imprensa.
Todos os processos têm em comum o uso da justiça para censurar, intimidar e prejudicar financeiramente jornalistas ou veículos. Como são ações movidas por magistrados e julgadas entre colegas de tribunal, o corporativismo exerce forte influência nas decisões.
Nove anos de prisão
O inferno judicial vivido por Azevedo começou depois que o desembargador Lopes apresentou uma queixa-crime contra o jornalista em julho de 2019. Incomodado com as reportagens publicadas no Portal AZ sobre a denúncia de grilagem de terras, o magistrado concluiu que Azevedo tinha a intenção de ofendê-lo moralmente por meio de “sistemática campanha difamatória” e o acusou de calúnia, injúria e difamação. O desembargador também pediu uma indenização por danos morais, que deveria ser determinada pela justiça.
Por e-mail, Lopes me disse que o jornalista, “aproveitando-se da vulnerabilidade da minha imagem perante a opinião pública”, colocou em prática a sua “pistolagem digital” para o ofender agressivamente com “insultos e adjetivações degradantes até publicações mentirosas e caluniosas que abalaram minha honra e saúde” – diferentemente, a seu ver, dos demais jornalistas e órgãos de imprensa, que apenas noticiavam os fatos relacionados à reclamação disciplinar a que o magistrado respondia no CNJ.
O processo movido pelo magistrado ainda estava em andamento quando a denúncia contra ele no CNJfoi arquivada, em setembro de 2019, e o jornalista repercutiu a informação. Por e-mail, Lopes me disse que as reportagens reiteravam “as ofensas criminosas”. Por conta disso, alegando “fatos novos”, o desembargador fez pedidos mais extremos à justiça. Ele queria que Azevedo fosse proibido de escrever reportagens envolvendo seu nome e que fossem retiradas do Portal AZ todas as notícias que o citavam. Em caso de descumprimento, o magistrado pedia uma multa de R$ 50 mil por matéria e, “sendo necessário”, a prisão preventiva do jornalista.
Liberdade de expressão pode ser censurada quando há excessos e abusos’.
Foram necessários apenas dois meses para que o juiz Almir Abib Tajra Filho, da 8ª Vara Criminal de Teresina, considerasse que os pedidos de Lopes eram apropriados e concedesse uma liminar, em dezembro de 2019, que obrigava Azevedo a cumprir a ordem judicial em 24 horas, sob risco de ser preso. Para Tajra Filho, a “liberdade de expressão pode ser censurada quando há excessos e abusos”. Em março de 2021, o processo foi concluído em primeira instância, com a condenação do jornalista a três anos de prisão pelos três crimes de que foi acusado. Ele recorreu e ainda aguarda decisão em segunda instância. Tajra Filho não respondeu aos meus questionamentos sobre o caso.
Antes dessa sentença, Azevedo já tinha sido preso em junho de 2020, devido a uma denúncia de extorsão. Ele foi acusado de cobrar R$ 20 mil para retirar do ar uma reportagem sobre o erro médico de um cirurgião, que havia esquecido a gaze dentro de uma paciente. O inquérito sobre esse caso foi instaurado no dia 5 de junho pelo Grupo de Repressão ao Crime Organizado, o Greco, e andou rápido. No dia 11, policiais entraram na casa do jornalista para cumprir um mandado de prisão preventiva e apreender seus celulares. Curiosamente, algum tempo depois dessa operação, a imprensa passou a receber vazamentos de informações que só estavam nesses aparelhos, inclusive contatos da lista telefônica de Azevedo.
O mandado de prisão preventiva foi expedido pelo juiz Valdemir Ferreira Santos, da Central de Inquéritos. Ele também proibiu o jornalista de publicar matérias que citassem o médico, o Greco ou qualquer um dos policiais da unidade. Entre abril de 2020 e março deste ano, o magistrado exerceu uma função da confiança do desembargador Lopes, que era o corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí – Santos foi seu juiz auxiliar.
Por e-mail, o magistradoalegouque, por lei, é proibido de se manifestar sobre processos em andamento, mas destacou que “em todos os referidos procedimentos, não se investiga o exercício constitucional do direito fundamental da liberdade de expressão, e sim a suposta prática de delitos graves de extorsão”.
Azevedo tem 69 anos e, à época, sequer conseguiu da justiça estadualo direito de cumprir prisão domiciliar, mesmo sem ter sido condenado nesse caso e com a recomendação do CNJ para que os magistradosreavaliassema situação dos idosos em prisão provisória por conta da pandemia. A decisão só foi revertida cinco meses depois, em novembro de 2020, por decisão unânime do STJ. Para a relatora do pedido de habeas corpus, ministra Laurita Vaz, não existiam motivos para prendê-lo, especialmente porque o crime não teria sido cometido com violência e não ficou comprovado que o jornalista oferecia algum perigo caso fosse solto. Para o ministro Rogério Schietti, a medida mais estranha e “desproporcional” foi a proibição do exercício da profissão. O caso segue em andamento e ainda não teve decisão.
Depois do habeas corpus do STJ, Azevedo voltou ao trabalho, mas foi novamente preso em outubro de 2021, por outra denúncia de extorsão. O mandado de prisão preventiva é do mesmo juiz Santos, que tem cargo de confiança do desembargador Lopes na Corregedoria do TRE do Piauí. Dessa vez, a prisão foi justificada por umainvestigação da Polícia Civil, que apontou que Azevedo e o advogado Rony Samuel estavam tentando tirar dinheiro do empresário Thiago Duarte, proprietário da empresa Saúde e Vida, por meio de notas publicadas no Portal AZ. Tendo o advogado como fonte, o jornalista publicou em sua coluna que o empresário tinha recebido do governo do Piauí pagamentos suspeitos por serviços que não foram comprovadamente oferecidos.
O curioso nesse caso é queo advogado disse, em depoimento à polícia, que repassou as informações a Azevedo porque queria pressionar o empresário Duarte e que o jornalista não sabia das suas verdadeiras intenções. Por meio de lobby, Rony conseguiu que o governo quitasse um débito de quase R$ 500 mil com a empresa Saúde e Vida e ele esperava receber uma comissão por isso, o que não aconteceu. Mesmo assim, o advogado não foi preso, enquanto Azevedo ficou na cadeia por 48 dias, até conseguir um habeas corpus para cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica.
A prisão mais recente do jornalista aconteceu em março de 2022, após sua condenação por estelionato a nove anos de cadeia em regime fechado. Em uma ação movida pelo Ministério Público do Piauí, o jornalista é acusado de falsificar certidões da Receita Federal para receber R$ 68 mil de um contrato com o governo estadual.
Embora três pessoas tenham sido processadas, apenas Azevedo foi condenado pelo juiz Ulysses Gonçalves da Silva Neto. A denúncia contra Maria Thereza Azevedo, que é citada no processo como dona do Portal AZ e é filha do jornalista, foi separada em outro processo que está em andamento. Já Welson Souza Costa, que tinha 1% do capital social do site, foi absolvido. O juiz entendeu que ele estava alheio às “questões gerenciais e diretivas” do veículo e que executava apenas “afazeres de menos importância”.
Para Azevedo, porém, a sentença foi a prisão, mesmo com a condenação apenas em primeira instância. Ele sequer poderia recorrer em liberdade, devido à sua “periculosidade social”, principalmente por causa do “fácil acesso que o réu tem à internet e a dispositivos que permitam continuar utilizando seu jornal, o Portal AZ, como forma de perpetrar crimes”. O jornalista ficou na cadeia pouco mais de um mês e conseguiu um novo habeas corpus. Atualmente, segue cumprindo prisão domiciliar, usando tornozeleira e impedido de exercer a profissão.
Por telefone, a filha do jornalista, Haidyne Azevedo, me disse que existe um “complô judicial” contra seu pai. “É uma articulação voltada a criminalizar o exercício da sua atividade jornalística para que ele perca a credibilidade, tenha honra, reputação e saúde atingidas”, acredita. Já o desembargador Lopes diz que essa “narrativa” de perseguição por parte de autoridades do Judiciário a um jornalista sério e respeitado é falsa. “O fato público e notório é que ele há muito tempo faz uso criminoso da profissão para caluniar e extorquir pessoas na busca de proveito financeiro”, diz Lopes.
Para Giuliano Galli, coordenador da área de Jornalismo e Liberdade de Expressão do Instituto Vladimir Herzog, a tentativa de censura e o assédio judicial a Azevedo se tornam mais evidentes quando se juntam todas as peças de como a justiça respondeu às denúncias contra ele e os termos usados na última condenação. “Falar que um jornalista representa periculosidade social para pedir a sua prisão é um absurdo”, afirmou. “Sem entrar no mérito da culpa, pois isso cabe à investigação, defendemos que os profissionais tenham direito a um sistema de justiça de forma ampla e que qualquer acusação seja investigada dentro da lei, não de uma forma abusiva, como está acontecendo nesse caso” (Continua)
SE VOCÊ ESTIVESSE pesquisando preços para comprar uma televisão que custa por volta de R$ 2 mil, diria o quê a quem te propusesse alugar o mesmo aparelho por seis meses por mais de R$ 4 mil? O atual comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército, o 6º BEC, em Roraima, coronel Carlos Evando dos Santos, provavelmente acharia um ótimo negócio – se pago com dinheiro público, claro.
Ele e o tenente-coronel Júlio André Damasceno dos Santos são os responsáveis por um contrato pelo qual o Exército alugou cerca de 5 mil itens como armários, mesas, colchões, geladeiras, tomadas, lâmpadas e computadores pelo dobro do valor que gastaria para comprar todos eles. Trata-se de mobiliário e equipamentos para o hospital de campanha de Boa Vista, capital do estado, montado pela operação Acolhida para atender venezuelanos e brasileiros durante a pandemia de covid-19.
O negócio cercado de suspeitas foi firmado com a Ágora Produções, de Brasília, para a “locação de mobiliário hospitalar e administrativo”. A empresa recebeu uma solicitação de orçamento do 6º BEC para fornecer os itens e realizar sua manutenção por seis meses. Após esse período, tudo seria doado definitivamente à unidade militar. O contrato foi assinado em agosto de 2020 e fechado com dispensa de licitação, graças à lei de fevereiro daquele ano que facilitou processos de contratação durante a pandemia. Por ele, o Exército pagou mais de R$ 3 milhões. Mas o TCU descobriu que seria possível comprar os mesmos produtos por cerca de R$ 1,6 milhão, ou seja, pagando 46% menos.
Damasceno era o comandante do Destacamento de Engenharia da operação Acolhida e assinou, em junho de 2020, o projeto básico que deu origem ao processo de contratação da Ágora Produções. Também foi ele quem garantiu que os preços apresentados pela empresa eram “compatíveis com [o] mercado e no âmbito da administração pública”. Atualmente, ele trabalha em Pernambuco.
Já o então tenente-coronel Carlos Evando foi o ordenador da despesa – isto é, quem mandou pagar – e assinou o contrato suspeito. Mesmo com o TCU já investigando o caso, ele foi promovido pelo Exército a coronel, o que lhe valeu um aumento salarial e, desde janeiro passado, passou a comandar o 6º BEC.
A possível irregularidade foi notada pela Secretaria de Controle Externo de Aquisições Logísticas do TCU, que acompanha os contratos publicados no Diário Oficial da União, principalmente os relacionados ao enfrentamento da covid-19, para os quais as exigências se tornaram menos rigorosas devido à emergência sanitária. Em 28 de agosto, apenas uma semana após a assinatura do contrato entre o 6º BEC e a Ágora Produções, o TCU enviou um e-mail para o Centro de Controle Interno do Exército solicitando todos os documentos do processo envolvendo a escolha da empresa. Eu li os documentos, além de vários relatórios de auditores do TCU, todos em poder da CPI.
O caso ainda está em andamento e – aí é que está o problema – terá como relator o ministro Jorge Oliveira. Policial militar da reserva e amigo do presidente Jair Bolsonaro desde 2013, ele era secretário-geral da Presidência da República até ganhar do chefe o cargo vitalício no TCU. Por isso, a investigação pode dar em coisa nenhuma, mas não por falta de motivos. Outra ministra do TCU, Ana Arraes, já havia identificado “risco de irregularidades” no contrato num outro relatório, de setembro de 2020, e alertou que o caso merecia atuação imediata do tribunal.
“Os valores de diversos itens do contrato, ao final dos seis meses, mostraram-se muito superiores aos valores de aquisição desses itens no mercado. A manutenção e eventual reposição de alguns itens durante o período de locação não justificariam pagar preços tão elevados”, escreveu a ministra em seu despacho. Se o Exército tinha a intenção adquirir os bens, “utilizar-se da modalidade de locação temporária acabou por se mostrar alternativa antieconômica”. Arraes deixou a relatoria do caso ao assumir a presidência do Tribunal, e todos os processos do gabinete dela foram encaminhados ao de Oliveira.
Relatórios de diferentes auditores – os profissionais concursados e especializados em contas públicas – que compõem o processo dão fartos exemplos de itens com preço exagerado. Os 18 carrinhos de madeira com gavetas e rodas, usados para transportar medicamentos dentro do hospital, por exemplo, custaram 373% mais caro por terem sido alugados a R$ 22 mil mensais. Após os seis meses, o 6º BEC teria que pagar aproximadamente R$ 133 mil. No comércio varejista, apontou o auditor Rafael Faria Braga em um parecer de outubro de 2020, a mesma quantidade de carrinhos poderia ser comprada por apenas R$ 28 mil.
Somente com instalações de pontos de energia, a Ágora Produções receberia mais de R$ 500 mil, mas os materiais que constam no contrato não são comuns em instalações como tendas, que é o caso dos hospitais de campanha. “O órgão realizou a contratação sem qualquer parâmetro objetivo”, chamou a atenção o auditor Braga.
Em sua defesa, o hoje coronel Carlos Evando informou ao TCU que o contrato com a Ágora Produções foi rescindido em dezembro de 2020, dois meses antes do previsto “devido ao encerramento das atividades da Área de Proteção e Cuidados”. Curiosamente, a rescisão se deu logo após o TCU identificar Carlos Evando e o tenente-coronel Damasceno como os principais responsáveis pelo negócio suspeito.
Com isso, em vez dos R$ 3 milhões que pagaria caso o contrato fosse executado conforme o previsto, o Exército entregou à Ágora quase R$ 1,5 milhão por quatro meses de aluguel do mobiliário. O que o tenente-coronel Carlos Evando tentou apresentar como uma economia, contudo, é mais um indício de que o negócio de fato precisa ser investigado.
O hoje coronel Carlos Evando dos Santos: mesmo com um negócio sob a lupa do Tribunal de Contas da União, ele foi promovido pelo Exército. Foto: Divulgação/Exército Brasileiro
Cartas marcadas
Encontrei ainda indícios de combinação de preço em benefício da Ágora Produções, algo que não foi mencionado nos relatórios do TCU. Há uma coincidência de datas em decisões que envolvem o processo de contratação. A Ágora foi a última das quatro concorrentes a entregar o orçamento para o Exército, em 10 de junho de 2020. As demais, duas delas de Roraima e uma do Amazonas, enviaram suas propostas entre os dias 28 de maio e 1º de junho. A Ágora venceu com uma proposta apenas R$ 620 mais barata que a da Mais Opções, de Manaus, a penúltima a entregar o orçamento.
No mesmo dia em que a Ágora entregou a sua proposta de preço, a chefia da 4ª seção do 6º BEC pediu ao ordenador de despesas, o tenente-coronel Carlos Evando, que autorizasse o início do procedimento para contratação de empresa com dispensa de licitação. A resposta foi imediata, com a abertura do processo administrativo na mesma data.
Há ainda outra coincidência que o auditor Luiz Rodrigo Airosa Castro considerou “oportuno citar” em seu parecer de setembro de 2020: Wanderson Pereira Tavares Gomes, um dos sócios da Ágora Produções, e Marco Rodrigo Giordani, proprietário de uma das concorrentes da empresa na disputa pelo contrato com o Exército, possuem sociedade em outro negócio. A questão que o auditor deixa nas entrelinhas é se a disputa entre orçamentos requisitados informalmente foi mero jogo de cena.
Há outros indícios de que pode ter sido. No mesmo 10 de junho em que a Ágora entregou sua proposta, o tenente-coronel Damasceno, então comandante do Destacamento de Engenharia da operação Acolhida, apresentou o projeto básico para “contratação emergencial de locação de mobiliário hospitalar e administrativo para ser aplicado na Área de Proteção e Cuidados”, espaço em que foi montado o hospital de campanha. Nesse projeto constava a relação dos itens a serem alugados e os respectivos valores. A lista que Damasceno apresentou era a proposta que a Ágora Produções havia entregue naquele mesmo dia. Ainda que não seja, em si, uma irregularidade, é curioso que o Exército tenha achado razoável deixar de fazer uma pesquisa de preços por conta própria.
Essa, inclusive, foi a orientação da advogada da União Maria Francelina de Sousa no parecer entregue em 7 de julho de 2020 em que analisava o processo de contratação pela modalidade dispensa de licitação. Ela sugeriu que o 6º BEC explicasse a metodologia usada para fazer o orçamento e que justificasse por que não utilizou o Painel de Preços – o site do governo federal usado como referência para compras públicas.
A resposta do tenente-coronel Carlos Evando veio em uma semana, no dia 15 de julho. Ele respondeu que a pesquisa de preço havia sido feita junto aos fornecedores, que receberam pedidos para enviar orçamentos. Quase um mês depois, em 12 de agosto, o militar assinou outro documento que tentava explicar internamente a dispensa de licitação. Entre as justificativas está a “alta especificidade do objeto” do contrato – que, como já vimos, era composto por itens corriqueiros como colchões, mesas, cadeiras e armários em MDF.
Todo esse esforço para explicar o negócio foi necessário antes mesmo da assinatura do contrato e da abertura do processo do TCU. A assessoria jurídica do 2º Grupamento de Engenharia, que fica em Manaus e ao qual o 6º BEC é subordinado, já havia alertado em 20 de julho que a coisa estava mal explicada. O tenente-coronel Marcos da Silva Castro, chefe da assessoria jurídica, citou o exemplo da televisão que custava cerca de R$ 2 mil no mercado, mas cujo aluguel por seis meses sairia a R$ 4.746,24. “Não cabe apenas o argumento de que na possibilidade de quebra, o referido item será substituído imediatamente, pois trata-se de um aparelho novo”.
O assessor jurídico antecipava o que seria questionado pelos auditores do TCU dois meses depois. Ele chegou até mesmo a aventar o que seria um motivo razoável para a decisão dos colegas de farda: “As oscilações da área de Boa Vista, público e notório, costumam queimar aparelhos elétricos [e] eletrônicos”. O contrato com Ágora Produções foi definitivamente assinado em 21 de agosto.
A colher de chá da assessoria jurídica do Exército: a justificativa sugerida acabou usada pelo coronel Carlos Evando dos Santos junto ao TCU.
De fato, as “notórias” oscilações de energia em Boa Vista foram usadas pelo então tenente-coronel Carlos Evando em sua justificativa ao TCU. O atual comandante do 6º BEC alegou que, em um único dia, dois computadores queimaram devido a uma sobrecarga no sistema elétrico. Os aparelhos, argumentou o militar, em defesa da locação, foram trocados no mesmo dia pela empresa.
Mas ele não convenceu o auditor Braga, que lembrou ao tenente-coronel a existência de equipamentos como estabilizadores de voltagem. “Não se pode alegar que oscilações na energia elétrica são comuns na região para justificar a aquisição de um bem por valor superior a duas vezes seu custo de mercado”, disse o servidor do TCU em um parecer de outubro de 2020.
A Ágora também apresentou defesa ao TCU em dezembro passado. Alegou que era a “única empresa apta, financeiramente e comercialmente, a fornecer os mobiliários em um prazo tão exíguo e em local tão remoto”. Por isso, mesmo admitindo que os preços eram “manifestadamente superiores aos praticados no mercado”, a proposta apresentada era vantajosa “dado ao atendimento imediato”.
Além disso, a justificativa se choca com a curiosa maneira como o Exército conduziu o negócio. Em vez de publicar um edital convocando interessados a apresentarem orçamentos, o tenente-coronel Carlos Evando simplesmente escolheu quem ele julgou que deveria disputar o contrato, enviando solicitação de orçamentos diretamente do 6º BEC.
A dispensa de licitação já favoreceu a Ágora Produções em outras oportunidades. De acordo com o Portal da Transparência do governo federal, a empresa assinou 13 contratos com o 6º BEC relacionados à operação Acolhida. Em seis deles, que somam R$ 29,5 milhões, foi selecionada sem precisar disputar uma concorrência pública. Mesmo com tantos contratos milionários, a empresa sequer possui um site, nem é facilmente localizada pela internet. O número de telefone que consta na Receita Federal não existe mais, e o que encontrei na internet é de uma consultoria de contabilidade.
Enviei perguntas sobre o negócio que é objeto desta reportagem ao Exército e aos advogados da Ágora Produções e não tive resposta. Reencaminhei os e-mails e avisei por telefone a assessoria do 6º BEC e a advogada da empresa a respeito. Mesmo assim, ninguém se deu ao trabalho de responder.
‘Condições severas de utilização’
Os tenentes-coronéis Carlos Evando e Damasceno têm se esforçado para tentar justificar o contrato que fecharam. Em relatório datado de setembro de 2020, o auditor Luiz Rodrigo Airosa Castro falou sobre a improvável chance de que todos os itens do contrato precisassem ser substituídos ou consertados em um intervalo de seis meses. Um dos exemplos que ele citou foi o dos colchões. O aluguel de cada um custou cerca de R$ 200 mensais, o que daria R$ 1.234,26 ao longo de seis meses. No Painel de Preços, mostra o auditor, um colchão com as mesmas características custava R$ 218,19 – e tem até cinco anos de vida útil.
Sem ter mais o que argumentar, o coronel Carlos Evando, agora já assinando como comandante do 6º BEC, disse em um documento de maio de 2021 que foram necessários “reparos nos acabamentos dos colchões ou substituição de peças das camas devido aos movimentos bruscos” feitos pelas equipes de plantão porque os “pacientes tinham parada cardíaca e precisavam ser reanimados”.
Sobre as manutenções nos armários, o militar disse que as equipes médicas trabalhavam sob pressão e, por isso, “no stress do plantão, perdiam as chaves”, fazendo com que os miolos das fechaduras tivessem que ser substituídos. Sobre vários outros itens como bandejas, cadeiras ou contêineres para roupas e coleta de lixo, o coronel alegou que nenhum deles seguiu intacto devido às “condições severas de utilização, somado ao ambiente tenso de um hospital onde quase diariamente algum paciente veio a óbito”.
O problema é que não há provas dessas demandas tão constantes por manutenções ou trocas de equipamentos. A empresa mostrou ao TCU apenas prints de pedidos esporádicos feitos por WhatsApp. De acordo com o próprio contrato, as solicitações de reparos tinham que ser formalizadas por e-mail. Mais uma vez, os militares apelaram para o “clima de tensão” devido ao intenso fluxo de atendimento na Área de Proteção e Cuidados da Operação Acolhida, que exigiu que “os procedimentos fossem se ajustando ao longo do tempo de forma a promover o resultado esperado com a máxima eficiência possível”.
‘No mínimo essa análise comparativa entre o custo da aquisição e o custo da locação deveria ter sido empreendida’.
Mas eficiência não é a palavra certa para descrever o negócio dos tenentes-coronéis. No documento enviado ao TCU em maio de 2021, Carlos Evando insiste em defender que o contrato de aluguel, embora custasse quase o dobro, era mais vantajoso porque dispensaria a necessidade de mão de obra para instalar, montar e fazer a manutenção dos equipamentos. “Receber mais de cinco mil itens de fornecedores diversos seria uma tarefa inviável para um Batalhão de Engenharia de Construção”.
O militar também afirma que não saberia o que fazer com todo esse material após seis meses, caso o tivesse comprado. Por seu caráter temporário, diz o militar, a “Operação Acolhida sempre opta por locação, para reduzir investimento com material permanente” – a missão em Roraima iniciou-se em 2018 e não há previsão de encerramento. Mesmo assim, para Carlos Evando, o Exército corria o risco de “ser acusado por ter deixado patrimônio público sendo deteriorado pelo tempo sem utilização”. Essa é mais uma explicação que não convence. Segundo o contrato, todos os itens seriam doados ao 6º BEC. De todo modo, o órgão ficou com a responsabilidade de dar uma destinação correta ao material.
A ideia de fazer a doação, aliás, foi da própria Ágora Produções. Pelo menos foi o que o militar disse ao TCU. Isso porque, ele alegou, devolver todos os itens traria custos extras com desmontagem e transporte de retorno, o que “encareceria ainda mais o contrato e necessitaria estar embutido no preço final da locação”.
O argumento de Carlos Evando só reforça a tese dos auditores do TCU – comprar os itens, em vez de alugar, era a decisão mais inteligente e responsável. “Não conseguimos vislumbrar a vantajosidade da solução adotada”, disse o auditor Márcio Motta Lima da Cruz, em um parecer de março de 2021, que nomeou Damasceno e Carlos Evando como possíveis responsáveis por desperdiçar R$ 1,3 milhão em dinheiro público. “No mínimo essa análise comparativa entre o custo da aquisição e o custo da locação deveria ter sido empreendida”.
A juíza, que atua regida pelos princípios alucinados do olavismo, compartilha do mesmo espírito lacrador do seu mestre. Está sempre combatendo as esquerdas nas redes sociais e provocando ministros de instâncias superiores. Adepta da escola jurídica lavajatista, usa a visibilidade do cargo para se promover como figura de relevância no debate político. No ano passado, ela foi convidada para palestrar em um seminário promovido pelo Ministério das Relações Exteriores. O tema da palestra foi “O ativismo judicial a serviço do globalismo”. Para os olavistas, o conceito de globalismo se refere à ideia de que o mundo é controlado por elites marxistas internacionais. É esse tipo de maluquice, sem nenhum respaldo na realidade dos fatos, que faz a cabeça da juíza-celebridade.
Quando o presidente da República compartilhou com o país um vídeo pornográfico no carnaval, Grilo usou as redes sociais para defendê-lo. Para a juíza, Bolsonaro fez muito bem em exibir conteúdo pornô para denunciar as imoralidades do Carnaval.
Ludmila Lins Grilo@ludmilagrilo
A exposição nua e crua do estado de degradação moral de um povo é meio legítimo e eficiente de elevação do nível de consciência coletiva, na medida em que escancara as entranhas carcomidas do ambiente cultural em que estamos inseridos.
É possível despir-se de discursos ideológicos, mas não do ambiente, imagens e influências estéticas a que se é exposto todo o tempo. Os engodos progressistas sobrevivem assim, pois não se trata da adesão racional a uma DOUTRINA, mas da atuação afetiva e profunda em uma CULTURA.
Ludmila Lins Grilo@ludmilagrilo
Nesse processo, evidencia-se correta a afirmação de Olavo de Carvalho quando diz que a guerra não é ideológica, mas sim, cultural. O processo de simples persuasão racional, ou seja, o simples discurso ideológico é absolutamente impotente para lidar com tais fenômenos.
Grilo considerou um ato flagrantemente incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo — e que configura um evidente crime de responsabilidade — em militância em defesa da moral e dos bons costumes. É o duplipensar de George Orwell em estado bruto. É triste, porém, ao mesmo tempo fascinante ver o que o olavismo é capaz de fazer com a mente das pessoas.
Olavo de Carvalho@opropriolavo
O Miguel Reale Junior tem de tomar umas aulas com a dra. Ludmilla Lins Grilo.
As decisões de Ludmila Lins Grilo no TJ de Minas Gerais, comarca de Buritis, são marcadas pelo punitivismo e refletem o rigor da lei que ela defende em seus textos e palestras. Uma pessoa que roubou um celular ou que se envolveu em uma briga e feriu outra com faca é severamente condenada “para a garantia da ordem pública, considerando o temor e sensação de insegurança que tal crime impôs na comunidade”.
Ludmila Grilo não esconde sua admiração por Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, no Twitter.
No ano passado, em uma audiência na Câmara dos Deputados para discutir projetos de lei que endureciam o sistema penal, entre eles as propostas do pacote anticrime de Sergio Moro, Grilo disse: “Nós sabemos que há muitos juízes que acabam seguindo opções extremamente garantistas e que vão se valer disso para realmente colocar criminosos perigosos na rua antes do tempo”.
Ela já condenou um homem acusado de roubo de celular com arma de fogo, na companhia de dois adolescentes, a 11 anos e 5 meses em regime fechado e sem direito de recorrer em liberdade. As grandes facções criminosas, cujo recrutamento de novos membros acontece principalmente nos presídios, agradecem à sanha punitivista de Grilo. (Continua)