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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

11
Mai23

EXCLUSIVO: POR DENTRO DA MÁQUINA DE VASECTOMIAS DA UNIVERSAL

Talis Andrade
Ex-pastores da Igreja Universal denunciam terem sido submetidos a vase... |  TikTok
 
 
 

Justiça identifica clínicas envolvidas. Cirurgias eram feitas até em templos, escritórios e fazendas, relatam ex-integrantes da igreja dos pastores maninhos

 

por Gilberto Nascimento /The Intercept

 

RICARDO VASCONCELOS LIMA tinha 24 anos quando, dentro de um escritório em um templo da Igreja Universal em Buenos Aires, na Argentina, foi submetido a uma vasectomia. Segundo ele, a cirurgia foi realizada por um médico brasileiro nele e em pelo menos outros 20 pastores na mesma ocasião. “Eu senti muita dor, principalmente por causa do frio e do pouco tempo dado para a recuperação”, ele me disse. 

A imposição da cirurgia de esterilização aos religiosos é prática conhecida dentro da igreja. Hoje, no entanto, uma avalanche de processos judiciais começa a revelar em que condições esses procedimentos eram feitos – e as consequências que os ex-pastores vasectomizados sofrem até hoje. 

Lima, que atuou no Uruguai e na Colômbia, além da Argentina, acabou de obter uma decisão favorável da justiça em ação contra a Universal na 17ª Vara Trabalhista de Fortaleza pela imposição da cirurgia. Em decisão na primeira instância, em janeiro deste ano, a igreja foi condenada a pagar R$ 1,2 milhão devido a direitos trabalhistas e danos morais em razão da vasectomia.

A Universal nega as acusações de imposição de vasectomia. “O que a Universal estimula é o planejamento familiar, debatido de forma responsável por cada casal. Como, aliás, está previsto em nossa Constituição Federal”, disse a instituição ao Intercept, por meio de sua assessoria de imprensa (leia aqui a resposta completa).

Para a Universal, a acusação é “facilmente desmentida pelo fato de que muitos bispos e pastores da Universal, em todos os níveis de hierarquia da Igreja, têm filhos. São mais de 3 mil filhos naturais de membros do corpo eclesiástico da Igreja”, disse a instituição. Hoje, a Universal tem 17 mil bispos e pastores.

Segundo denúncias de Lima e de outras dezenas de ex-integrantes da instituição que levaram os casos ao Judiciário, no entanto, grupos de 20 a 30 pastores da Igreja Universal do Reino de Deus eram submetidos de uma só vez a vasectomias em clínicas médicas populares e até em consultórios de dentistas, escritórios, templos, fazendas e emissoras de rádio no interior do Brasil e no exterior. Ex-pastores da Universal dizem ter sido obrigados a se submeter à operação sem seguir os protocolos médicos e, muitas vezes, sem os equipamentos e cuidados adequados.

 
Vasectomia: o que é, procedimento, vantagens - Brasil Escola
 
 

Esses procedimentos, no entanto, não deixavam rastros além dos relatos – até agora. O Judiciário passou a notificar clínicas que realizam ou realizaram a vasectomia em ex-pastores e a exigir a apresentação de prontuários médicos dos pacientes. Ao analisar uma dessas denúncias, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no Rio de Janeiro, determinou, no dia 24 de fevereiro, que a clínica médica Serviços de Cirurgia Geral Norte, no bairro do Méier, na Zona Norte – e apontada como um dos principais locais onde os religiosos passavam pelas operações –, fornecesse o mais rapidamente possível o prontuário médico do ex-pastor Jonathas Costa Azeredo, que disse ter sido submetido à operação ali. O pedido deveria ser acatado sob pena de responder ao crime de desobediência, que pode render até 6 meses de detenção e multa.

O TRT da 1ª. Região solicitou também, na sequência, os prontuários dos ex-pastores Ivo Francisco de Sá Junior e Luciano Garibaldi da Silva. A clínica Geral Norte atendeu o pedido e forneceu as comprovações dos procedimentos, informou a advogada Márcia Cajaíba de Souza, que atua na justiça desde 2012 em nome de mais de 50 ex-pastores da Universal. Em outras ações, religiosos também apontaram como local de cirurgias um consultório do Centro Médico Neomater, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, então dirigido pelo médico José Osmar Cardoso, falecido em março de 2020.

Na rádio e na fazenda

A vasectomia é legal, desde que sejam seguidas as normas e orientações médicas. É preciso, por exemplo, realizar exames pré-operatórios, como o de urina, o espermograma e o hemograma, e fazer repouso de dois a sete dias. Hoje, de acordo com a Lei do Planejamento Familiar, para se submeter à cirurgia é preciso ter no mínimo dois filhos vivos ou 21 anos completos. Até março de 2022, a idade mínima era de 25 anos e era necessária ainda a aprovação da parceira. Além disso, a cirurgia só pode ser consumada 60 dias após a assinatura de um termo de consentimento – para confirmar se é aquilo realmente que a pessoa deseja.

A operação é simples. Dura em média de 15 a 20 minutos, sem contar o tempo de preparação do paciente. É aplicada uma anestesia local e retirado um fragmento de cada um dos canais, entre os testículos e o pênis, por onde passam os espermatozoides. Não há necessidade de internação, e a cirurgia pode realmente ser realizada em um consultório. Mas se os protocolos e recomendações médicas não forem seguidos e nem ao menos as clínicas apresentarem os prontuários dos pacientes, essas operações no mínimo podem ser consideradas irregulares.

“Principalmente no início dos anos 2000 e nos anos 1990, eram feitas vasectomias em locais diversos sem nenhum cuidado”, disse ao Intercept Luis Alberto Santos Bispo, pastor da Universal por 17 anos e desligado da igreja há um ano e meio. Ele disse ter sido obrigado a fazer a cirurgia em um consultório no Centro Médico Garibaldi, em Salvador, em 2010. “Hoje, pastor solteiro só casa se fizer a cirurgia”, acrescentou o ex-religioso, que entrou com ação contra a Universal há um ano e foi ouvido em audiência pela primeira vez em março deste ano.

“Muitos colegas fizeram a vasectomia na antiga Rádio Bahia, na Ladeira dos Aflitos, onde funciona uma empresa de segurança da Universal. E ouvíamos os relatos do pessoal mais antigo sobre as cirurgias em fazendas no interior do estado”, contou Bispo. 

O ex-pastor J.A.R., que evitou dar o nome completo por ser parente de um bispo da Universal, disse ao Intercept ter realizado o procedimento em 1999 num consultório no Centro Médico Neomater, em São Bernardo do Campo. Segundo ele, os pastores que rejeitassem a vasectomia eram colocados de castigo, com punições como serem designados motoristas nas emissoras de rádio e TV do grupo Record e rebaixados a faxineiros e garagistas. As acusações estão em uma denúncia feita pelo ex-pastor ao  Ministério Público do Trabalho de São Paulo em setembro de 2022. 

Segundo o texto da denúncia, os pastores só podem se casar após a cirurgia obrigatória de vasectomia, “pois o bispo Edir Macedo não admite que os pastores tenham filhos, salvo alguns membros da cúpula da igreja”. O ex-pastor relatou que “foi pressionado e aterrorizado por algumas horas” para fazer a cirurgia.

Segundo a denúncia, J. e outros 10 colegas foram recepcionados por uma enfermeira e levados ao fundo da clínica, onde teriam ficado “amontoados” em local improvisado com apenas uma maca separada por uma cortina. “Éramos levados um a um para sermos vasectomizados em um local insalubre, sem nenhuma aparelhagem adequada”, narrou. 

De acordo com ele, os religiosos eram colocados na maca com a roupa do corpo, anestesiados localmente e recebiam comprimidos para dor. J. afirma que os pastores não tinham ficha, não levaram documentos, não passaram pela recepção e não pagaram nada. “Entendi que era tudo feito na clandestinidade”, detalhou J. em sua denúncia.

Vasectomia - Dr. Leandro Ferro

O ex-pastor afirma que saiu do local com dores, pois a anestesia “não fez efeito”. “Os pontos sangravam, não tínhamos curativos, apenas gazes dentro da roupa e os comprimidos”, diz a denúncia. Na saída do hospital, ele afirma ter apagado, caído e levado para um carro por outro pastor. Em casa, os pontos da cirurgia arrebentaram “e ficou tudo exposto”, ele contou. “Teve uma inflamação no local da cirurgia. Infeccionou e levei quatro meses para me recuperar. Até hoje, sinto fortes dores e desconforto, especialmente em mudanças de tempo”.  

O ex-pastor reforçou as acusações enviadas ao órgão em entrevista ao Intercept. A denúncia sobre as vasectomias, no entanto, foi parcialmente indeferida  pelo MPT por se tratar de “acusação repetida”, sob a alegação de que  já estava sendo investigada no âmbito de uma ação civil pública aberta em 2016. O MPT pediu o “aprofundamento das investigações” em relação a outras denúncias de J.A.C sobre metas impostas, o tratamento dispensado aos pastores e condutas discriminatórias.

A explosão de ações na justiça

A Universal afirmou ao Intercept que “não é responsável por quaisquer decisões particulares de nenhum dos seus oficiais – que gozam de plena capacidade de decisão, sendo totalmente aptos para sua vida civil com absoluta autonomia”. Para a instituição, a opção pela vasectomia é “algo completamente peculiar, entre médico e paciente/casal, não podendo ter qualquer ingerência de terceiros neste ato, ainda que fosse por motivo de credo”. Assim, para a Universal, o procedimento e a orientação ao paciente “são de total responsabilidade do médico”. 

As denúncias sobre essa prática na instituição, no entanto, são comuns e frequentes desde os anos 1990. Em Angola, em março de 2022, o bispo da Universal Honorilton Gonçalves, ex-vice-presidente da TV Record no Brasil e líder espiritual da igreja no país africano, foi condenado a três anos de prisão, sob acusação de violência doméstica, por ter imposto a religiosos locais a vasectomia. A pena foi suspensa por dois anos após recurso dos advogados de Gonçalves.

No Brasil, somente o Tribunal Superior do Trabalho registrou cerca de mil ações de ex-pastores contra a Universal em todo o país, que chegaram à segunda instância. Hoje, 105 delas estão em andamento no TST. Em 2016, o MPF já havia elencado mais de 200 ações. Ex-pastores que movem processos se reúnem em grupos de mensagens e dizem representar hoje cerca de 500 religiosos que integraram os quadros da Universal no passado. 

Os ex-membros da igreja reivindicam direitos trabalhistas, pois afirmam que trabalhavam 16 horas por dia sem carteira assinada, férias e 13º salário, e indenização por danos morais e materiais pela alegada imposição da vasectomia.  

A ação civil pública aberta pelo MPF em 2016 também está em andamento no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília. O MPT se manifestou favorável ao entendimento de que os pastores são empregados, não atuando apenas em função de sua fé e, portanto, deveriam ter carteira assinada, além de não poderem ser obrigados a fazer vasectomia. A Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro defendeu que um alerta sobre a não obrigatoriedade da vasectomia fosse fixado em locais visíveis nos templos da Universal.

“Só que, na primeira instância, a justiça entendeu que o MPT não teria legitimidade para representar esses trabalhadores em razão de que esses direitos seriam direitos individuais, tese com a qual não concordamos”, explicou a advogada Márcia Cajaíba. Por isso, houve o recurso no Tribunal Superior do Trabalho.

Exclusivo: a máquina de vasectomias da Universal
 
 
 
 

“À época, diziam que não devemos ter filhos carnais, só espirituais.”

 

Em ações individuais, seis ex-religiosos defendidos pela advogada obtiveram vitórias recentemente na justiça. Quatro decisões favoráveis aos ex-pastores foram dadas já na segunda instância, e duas, na primeira. Nos quatro casos vitoriosos em segunda instância, há recursos em andamento.

A Universal alega que a atividade religiosa é uma missão, não trabalho. “Mas, então, por que há metas estabelecidas de arrecadação de ofertas e imposição de horários de trabalho?”, indaga a advogada.

Os ex-pastores reivindicam a indenização por danos morais em razão de perdas que tiveram com a imposição da vasectomia. Lamentam o fato de jamais poderem ter filhos. Apesar da cirurgia ser reversível, o novo procedimento é delicado, tem um tempo de recuperação maior e pode reduzir em até 50% a chance de uma gravidez natural. A maioria dos religiosos ressalta que, à época, era muito jovem e, ao acatar o pedido da igreja, acreditava “atender a um desejo de Deus”. 

Segundo eles, a razão da exigência da vasectomia seria econômica. A Universal mantém os custos com moradia e alimentação dos religiosos e suas famílias. Assim, um casal sem filhos garantiria uma significativa economia para os cofres da igreja.  

“Há muitos relatos de que bispos e outros dirigentes da igreja diziam, frequentemente, que não iriam sustentar filhos vagabundos de pastores. No caso de quem já tinha filhos antes de entrar na igreja, eram avisados que, após o filho completar 18 anos, ou ele se tornaria pastor ou teria de sair de casa imediatamente, devendo morar com avós ou tios, pois a igreja não iria sustentá-los. E repetiam: ‘Não vamos sustentar vagabundos’’, relatou Márcia Cajaíba.

O peso da idade

A advogada Márcia Cajaíba diz que a Universal e outras igrejas neopentecostais têm conseguido atrair hoje um grande número de pessoas dispostas a integrar os seus quadros e se tornarem pastores graças às promessas de ganhos superiores ao dobro e até ao triplo do salário-mínimo e o oferecimento de vários benefícios, entre eles, moradia e carro. “Isso torna a prática religiosa um meio de vida, e não uma vida em prol da fé”, avaliou.

Quando o pastor abandona a igreja, por outro lado, a instituição o maldiz, afirmou a advogada: “A igreja então faz uma mega divulgação de desqualificação dos pastores que saem e de suas esposas para que, no dia seguinte à saída, ninguém mais faça qualquer contato, e eles sejam excluídos”. 

O número de ações na justiça está aumentando hoje porque pastores já idosos passaram a ser substituídos por religiosos mais novos na Universal, segundo a advogada. Na visão da igreja, os mais jovens, com mais vigor, se empenhariam muito mais nos cultos e pregações. Consequentemente, essa atitude gera insatisfação em boa parte dos pastores que deixa a igreja. Muitos, então, resolvem reclamar seus direitos.   

“Decidi entrar na justiça por causa dos abusos emocionais. Eram muito fortes. É um domínio total da vida das pessoas. Por isso, está havendo agora essa enxurrada de processos”, disse Ricardo Vasconcelos Lima, que afirma ter sido submetido à cirurgia em Buenos Aires. 

O ex-pastor Edmilson Jony Estevão da Costa fez parte da Universal por 22 anos e disse também ter sido obrigado a fazer vasectomia na clínica Geral Norte, no Rio, em 2004. “Eu fiz a cirurgia em um grupo com 10 pastores. Eles não davam nenhum papel ou documento para a gente, porque sabiam que era algo contra a lei. Eu tinha 23 anos, não tinha a idade mínima, nem filhos”, revelou. “À época, diziam que não devemos ter filhos carnais, só espirituais.”

A justiça agora solicitou uma perícia médica para comprovar a realização de sua cirurgia. “Eu não vinha obtendo respostas aos pedidos na clínica, mas recentemente consegui o meu prontuário sem requisição judicial”, afirmou Costa. 

Procurado, o médico Sebastião Resende Sagradas, apontado por Jony  como responsável por sua cirurgia na Clínica Geral Norte não retornou os contatos. O Intercept também procurou o advogado de Sagradas, Alex Garcia Sanna, sem sucesso. Em Salvador, o médico Oldack Pitombo, citado por Luis Alberto Bispo como responsável por sua vasectomia, afirmou não se recordar do ex-pastor e negou realizar cirurgias irregulares. 

“Eu não me envolvi com essas coisas, não. Eu não me recordo. Cirurgias só são feitas quando o paciente já tem filhos e tem o consentimento, tudo assinado e um monte de coisas. Não é determinada e pedida assim, não. A conduta é essa”, disse Pitombo. No ABC, os telefonemas para os números que seriam do consultório do médico José Osmar Cardoso, já falecido, não foram atendidos. Cardoso já havia sido citado pela Justiça do Trabalho, em 2019, e não foi localizado à época.  

  

Segundo a assessoria de imprensa da Universal, 96% das sentenças em varas e tribunais são sempre favoráveis à Igreja

 
Exclusivo: a máquina de vasectomias da Universal
 
 
 

Ao Intercept, a Universal disse que a maioria dos tribunais do Trabalho têm entendimento consolidado de que não é possível reconhecer vínculo empregatício entre ministros religiosos e igrejas.  “De acordo com as leis brasileiras, a atividade pastoral não é um emprego, mas uma vocação”, afirmou. 

Segundo a instituição, “oito em cada dez recursos julgados pelos Tribunais Regionais do país reafirmam que o exercício da atividade pastoral em uma igreja não é um emprego, mas sim o exercício voluntário de uma profissão de fé e, assim, não está submetido à Consolidação das Leis do Trabalho”. 

“O próprio Tribunal Superior do Trabalho, instância máxima da Justiça Trabalhista, tem o entendimento de que os ministros de confissão religiosa, de qualquer crença, não são empregados das igrejas”, disse a igreja. “Exatamente por isso, temos a certeza de que estes processos – movidos por ex-pastores que foram desligados do corpo eclesiástico da Igreja em razão de um grave descumprimento de regra de conduta – terão o mesmo destino de outros semelhantes”.

Ainda segundo a assessoria de imprensa da Universal, 96% das sentenças em varas e tribunais são sempre favoráveis à Igreja. “Entre 2019 a 2023, relativos à vasectomia, são mais de 50 decisões favoráveis à Igreja e, aproximadamente, 120 que reconheceram a inexistência do vínculo trabalhista”, disse a Universal. “É esperado que o Intercept demonstre o mesmo interesse que tem em divulgar processos contra a Universal, para também trazer a público as derrotas desses aventureiros na Justiça”.

Igreja Universal é condenada a indenizar pastor obrigado a se submeter a vasectomia

 

Foto: Google

 

01
Mai23

RS: Após caso de trabalho escravo, violações continuam

Talis Andrade

 

Noites em porões. Almoço na caridade. Jornadas extenuantes. Flagrante permitiu que pessoas exploradas voltassem para suas cidades, mas contingente de terceirizados e informais segue em Bento Gonçalves

 

 

por Fernanda Wenzel, daRepórter Brasil (texto), e Daniel Marenco, de Headline (fotos)

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* Por razões de segurança, os nomes de alguns entrevistados foram alterados ou omitidos nesta reportagem

Um mês após o resgate de 210 trabalhadores em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, enquanto turistas agendavam tours pelas vinícolas locais e tiravam fotos fantasiados de imigrantes italianos, dezenas de trabalhadores seguiam entocados em alojamentos clandestinos da cidade.

Dormindo em porões escuros e úmidos e se alimentando graças à doação de marmitas, eles esperavam ser realocados em novas frentes de serviço ou aguardavam pagamentos atrasados para voltarem às suas cidades natais. Enquanto isso não acontece, passam o tempo conversando à sombra das árvores da praça Vico Barbieri, no centro da cidade.

São homens que compõem a frente de trabalho temporário da região, que atua conforme a safra ou a demanda industrial do momento – pode ser na apanha de frango ou na uva; na maçã ou na laranja. Alguns eram ex-funcionários de Pedro Santana, o dono da Fênix, empresa contratada pelas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton que está no centro do escândalo de exploração de trabalhadores, descoberto no final de fevereiro e ainda em investigação pela Polícia Federal (PF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Assim como os baianos resgatados na ocasião, a maioria vem de outros estados do Brasil, de forma organizada e coordenada por empresas ou indivíduos a quem eles chamam de “empreiteiros” – uma realidade que modificou as feições do trabalho na região nos últimos anos, sobretudo depois de 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) aprovou, em um curto intervalo de tempo, a reforma trabalhista e a lei que liberou a terceirização das atividades fim.

 

Enquanto aguardam um novo serviço, trabalhadores terceirizados ou informais passam os dias nas praças de Bento Gonçalves
Distribuição de marmitas feita por uma instituição de caridade local garante refeições aos homens enquanto estão desocupados

 

“Quem nos trouxe foi um empreiteiro de colheita”, explica o jovem Aquiles*, que havia chegado na manhã de 20 de março vindo de Chapecó, Santa Catarina, acompanhado da esposa. Confiantes em dias melhores e “na graça de Deus”, o casal não sabia em qual safra iria trabalhar, se na da laranja, da uva ou da maçã. Também não sabia em qual cidade nem quando começaria o serviço. Não tinham internet nem crédito no telefone. Aquiles* também tinha perdido os documentos, e por isso foi barrado na casa de passagem da prefeitura. A primeira noite na tão sonhada Bento Gonçalves foi passada ali mesmo, na praça.

A vinda de trabalhadores de regiões distantes do Brasil através de empresas terceirizadas e atravessadores é novidade em um setor em que as relações de trabalho costumavam ser baseadas nos laços familiares e de amizade. “Antes não se verificava na safra da uva esse atravessador da mão de obra, que ganha em cima do trabalho dos outros”, explica Vanius Corte, gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caxias do Sul. “Como as propriedades são menores, era comum a própria família trabalhar na colheita e um vizinho vir ajudar”.

A lei da terceirização da atividade fim caiu como uma luva no momento em que a demanda produtiva crescia ao mesmo tempo em que as famílias de agricultores reduziam o número de filhos por casal. Com a nova legislação, não só Pedro Santana direcionou sua empresa para a colheita de uva e as vinícolas – antes, ele atuava em outros segmentos – mas a região viu surgir outras firmas interessadas no novo modelo de negócio.

Editada pelo ex-presidente Michel Temer, lei da terceirização da atividade fim permitiu a contratação de trabalhadores para a colheita da uva

 

“Hoje está cheio de empresas terceirizadas, tem crescido nos últimos anos de forma assustadora”, confirma Sérgio Poletto, segundo secretário da Fetar-RS, a Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul. “Mas tem empresas que cuidam dos funcionários, seguem as recomendações. E tem essas que fazem o que fizeram com estes trabalhadores”, completa.

A facilidade na contratação desse tipo de serviço levou uma dessas companhias, a Via Rural, a se apresentar como o “Uber da colheita”: “Graças a essa lei nós podemos tocar na uva, que para o produtor rural é atividade fim”, explica o advogado Jarbas Fagundes, diretor executivo da empresa. “Antes a gente só podia fazer o café, ficar na portaria, dirigir o caminhão”, completa. Fagundes ressalva que, embora terceirize mão-de-obra, sua firma não explora trabalhadores. A Repórter Brasil encontrou apenas um processo trabalhista contra a Via Rural, de um ex-funcionário que teve um pedido de danos morais negado pela justiça.

Mas essa não é a regra. Segundo Maurício Krepsky, auditor-fiscal do trabalho e chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE, o impacto da terceirização nos casos de trabalho escravo contemporâneo registrados no Brasil foi progressivo e acabou se revelando “avassalador”. “Mesmo sem ainda haver estudos sobre isso, por experiência sabemos que grande parte dos resgates envolvem terceirizados, incluindo os dois grandes no Rio Grande do Sul neste ano, em Bento Gonçalves e Uruguaiana”, explica. “Aliás, nos maiores casos de resgate de trabalhadores em condições de escravidão moderna em 2023 havia terceirização, lícita ou ilícita, que somam mais de 500 vítimas de trabalho escravo”, complementa.

Produção em alta demandou mão-de-obra

Nem todos os trabalhadores terceirizados que chegam a Bento Gonçalves e região tem contrato formalizado com alguma empresa, como a Fênix ou a Via Rural. Há vários que chegam conduzidos por “gatos”, atravessadores ilegais que já existiam, mas que proliferaram com a reforma trabalhista, aprovada um mês após a lei de terceirização e que flexibilizou as relações de trabalho.

“A reforma trabalhista deu uma sensação para muitos empregadores de que agora pode tudo. Por outro lado, as pessoas estão topando qualquer coisa para poder trabalhar. Estas duas coisas fizeram aumentar muito a informalidade, mas muito mesmo”, observa Corte, do MTE de Caxias do Sul. “O grande monstro que ronda o campo é a informalidade”, confirma Nelson Wild, presidente da Fetar-RS.

A questão é que muita coisa havia mudado desde o final dos anos 1990 no setor vitivinícola. Depois que o governo do Rio Grande do Sul instituiu o Fundivitis – fundo que injetou dinheiro na atividade e levou à criação do Instituto Brasileiro do Vinho –, o vinho brasileiro ganhou qualidade e ficou mais conhecido. Os espumantes da serra gaúcha caíram no gosto dos consumidores e a demanda por alimentos naturais também impulsionou as vendas de suco de uva integral.

Incentivos estatais levaram a salto produtivo do setor, mas não houve planejamento para ampliar mão-de-obra na mesma proporção

 

“Nossas colheitas saltaram de 500 milhões para quase 800 milhões de quilos nos últimos dez anos”, afirma Helio Marchioro, diretor-executivo da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul, a Fecovinho. Mas o setor subestimou o gargalo da mão de obra: “Ninguém levou muito em conta isso. Estava todo mundo preocupado com a produção da parreira, o preço da uva, a vinificação, o mercado… Mas como eu faço para produzir tudo isso?”.

De início, quando havia necessidade de mais braços, a regra era que o agricultor abrigasse os trabalhadores vindos de fora na própria casa, oferecendo também a alimentação – tudo muito informal.

“No momento de ir embora, eles ainda levam de presente caixas de uva, garrafas de vinho e salames”, observa Cedenir Postal, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar de Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Pinto Bandeira e Santa Tereza. Uma realidade que ainda subsiste, mas é cada vez mais rara diante dos riscos jurídicos de um contrato sem nenhuma garantia legal.

A adoção de tecnologia na aplicação de agrotóxicos e outros insumos também permitiu a concentração de áreas de parreira cada vez maiores nas mãos de famílias reduzidas, e cujos filhos não querem permanecer no campo. “Está ficando gente velha nas propriedades, casais de 50, 60 anos, às vezes com apenas um filho, e plantando mais uva”, resume Luis Carlos Rupp, professor de viticultura do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves.

Para piorar, as mudanças climáticas tornaram o período de colheita mais imprevisível – depois que a uva chega no ponto, precisa ser colhida em cerca de dez dias, sob o risco de sair dos padrões exigidos pelas indústrias.

Foi assim que Santana percebeu na safra de uva uma oportunidade de ampliar os lucros. Passou a oferecer aos pequenos agricultores um pacote completo, que incluía transporte, alimentação e alojamento dos trabalhadores. “Ele dizia que a gente não precisaria se preocupar com nada”, confirma José*, um produtor rural que contratou o serviço de Santana na safra passada. “Eles traziam o trabalhador de manhã, serviam a comida no almoço e depois buscavam pra levar embora”, relata.

“Talvez essa empresa tenha entrado com tanta força no mercado porque apresentou algo que parecia uma vantagem competitiva, fornecendo a mão de obra e ainda se encarregando da estadia, alimentação e transporte”, avalia Paulo Roberto Wünsch, professor de sociologia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves. “Imagina uma mulher com 60 anos de idade tendo que fazer café da manhã, almoço e jantar para um monte de trabalhadores por dez dias. Isso era um suador para estas famílias”, concorda Rupp.

Os professores Wunsch (E) e Rupp (D) concordam que mudanças socioeconômicas na região contribuíram para mudanças nas relações de trabalho na região

 

Mas as investigações da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho e Emprego revelam que as estratégias de Pedro Santana para lucrar mais incluíam jornadas exaustivas, condições degradantes e servidão por dívida – três características de trabalho análogo à escravidão previstas no Código Penal brasileiro. A reportagem ouviu depoimentos que corroboram os achados das autoridades, que ainda estão trabalhando no caso.

Jornadas de trabalho de 20 horas

São 4 horas da manhã, e você acorda por bem ou por mal – neste caso, com choques elétricos. Embarca em uma van, onde ganha meio copo de café preto e um pacote de bolachas Maria. Antes das 5:30, já está embaixo do parreiral colhendo uva. O almoço é engolido ali mesmo, sob o sol. Depois, ainda é preciso carregar as caixas de uva para cima do caminhão. 

Você está de pé há nove horas, mas o expediente ainda não chegou nem na metade.

Da propriedade rural, a van te leva para uma das três vinícolas clientes da Fênix: Garibaldi, Aurora ou Salton. Ali, começa uma nova jornada que só vai terminar perto da meia-noite, e que inclui o descarregamento das caixas vindas das propriedades rurais e a limpeza da prensa de uva. Vinte horas de trabalho depois, você volta pro alojamento para dormir por quatro horas, antes de começar tudo de novo.

Vinícolas que se beneficiavam do trabalho escravo, como a Garibaldi, Aurora (foto) e Salton, assinaram termo de ajustamento de conduta para prevenir novos casos

 

Assim como o “pacote completo” oferecido ao produtor rural, incluindo transporte, alojamento e alimentação do trabalhador, Pedro Santana instituiu a seus homens jornadas de 20 horas, segundo relatos ouvidos pela reportagem – o que levava alguns homens a dormir de pé sob as parreiras ou em cima de caminhões. Com isso, dizem os entrevistados, lucrava duas vezes em cima de um mesmo trabalhador: através de um contrato com a vinícola e outro com o produtor rural.

No final do mês, era comum estes trabalhadores não receberem nenhum centavo. Pelo contrário: muitas vezes, eles que acabavam devendo para os patrões, graças a um esquema que envolvia multas por faltar ao trabalho ou por envolvimento em brigas e atrasos no pagamento dos salários – o que deixava os trabalhadores dependentes de vales e empréstimos a juros exorbitantes fornecidos por Fábio Daros, parceiro de Santana no negócio e dono do alojamento onde aconteciam agressões com armas de choque, spray de pimenta e balas de borracha

“Esses vales eram fornecidos a juros extorsivos, que em alguns casos chegava a 100%”, afirma o delegado da Polícia Federal em Caxias do Sul, Adriano Medeiros do Amaral. “Eles pegavam empréstimo com o dono da pousada [Fábio Daros], e depois o valor era descontado em folha pela Fênix [Pedro Santana], o que mostra que eles atuavam em conjunto”, completa.

Trabalhadores eram submetidos a jornadas intermináveis, mas ainda assim, muitas vezes não recebiam salário no final do mês

 

Em nota, a defesa de Fábio Daros informou que a pousada não tinha qualquer envolvimento nas questões trabalhistas e relativas à intermediação de mão de obra. “A pousada possuía situação de funcionamento regular perante os órgãos municipais e jamais chegou ao seu conhecimento os fatos narrados pelos trabalhadores”, informou a advogada de Daros. A íntegrapode ser lida aqui.

A defesa de Pedro Santana preferiu não responder aos questionamentos da reportagem: “Não iremos nos manifestar perante o vosso canal, face a afiliação com o site Headline, que possui viés político e, consequentemente, não visa a informação do leitor, mas sim criar uma narrativa que atenda aos seus ideais”, justificou o advogado Augusto Giacomini Werner. A Repórter Brasil esclarece que todos os fatos narrados neste texto foram apurados por jornalistas profissionais guiados pelo interesse público e passaram por verificação. O espaço permanece aberto para a manifestação de Pedro Santana e de seus advogados.

Como mostrou o Headline, além das vinícolas, Santana fornecia mão de obra para a safra de uva e para a produção de frango da Brazilian Food, a BRF, e era comum os mesmos homens atuarem nas duas atividades – uva e frango – a depender da demanda dos empregadores. Segundo a PF, há indícios de que todos eles estavam submetidos ao mesmo esquema de vales e descontos na folha.

Trabalhadores ouvidos pela reportagem relataram que as condições da jornada no frango eram ainda piores do que na uva. Nesse caso, o  pesadelo era o “batidão”, em que os funcionários ficavam três dias trabalhando ininterruptamente, indo de granja em granja para apanhar frangos e levá-los para a BRF.

Na avaliação do Ministério do Trabalho e Emprego, entretanto, as condições de trabalho eram diferentes nos dois casos. “Estas pessoas que vêm pra apanha de frango não têm uma atividade sazonal, mas trabalham continuamente, então a relação é diferente. Eles tinham pagamento de salários e muitos não ficavam no alojamento, e sim em moradias que eles mesmos alugavam”, afirma Corte.

Dono de alojamento onde estavam os resgatados é apontado pela polícia como parceiro de empresário que contratava trabalhadores

 

“Isso não quer dizer que as condições de trabalho fossem ideais, e há inquérito em tramitação para apuração da situação específica dos trabalhadores da apanha do frango”, acrescenta Ana Lúcia Stumpf González, coordenadora da unidade do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em Caxias do Sul, que concedeu entrevista por e-mail (íntegra aqui). O órgão é responsável por buscar a responsabilização de toda a cadeia produtiva após a operação de resgate.

Por não terem sido considerados vítimas de trabalho escravo, vários funcionários de Santana não tiveram direito à indenização de quase R$ 10 mil pagos pelas vinícolas após assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT e acabaram permanecendo em Bento Gonçalves. Alguns querem voltar para a Bahia, mas não têm dinheiro para a passagem. “Eu não me adaptei no Sul. Vim trabalhar na uva, acabei no frango, e ia embora depois da safra. Bateu esse revertério aí, ficaram com nosso dinheiro e eu fiquei sem condição de ir embora”, diz Dirceu*, um trabalhador que perdeu o ônibus oferecido no dia do resgate. Ele também alega que Pedro Santana ainda não pagou o que lhe deve. 

Outros querem continuar tentando a vida no Rio Grande do Sul – com sorte, desta vez em um trabalho digno. “Depois que eu saí da Fênix, eu passei dias só dormindo e me alimentando. Agora que estou começando a me recuperar”, conta Hamilton*.

Convenção coletiva pode ser acordo histórico

Pouca coisa parece ter mudado depois do resgate dos trabalhadores – cujo número foi atualizado para 210 pelo Ministério Público do Trabalho, com a inclusão de três pessoas que não estavam no local no momento em que ocorreu a ação, mas faziam parte do grupo.

Mesmo oficialmente interditado, o alojamento de Fábio Daros, no bairro Borgo, segue em funcionamento – não se sabe se os trabalhadores estão prestando serviços para as empresas de Santana ou apenas permanecem ali por não terem para onde ir. O imóvel até chegou a ser desocupado no dia 20 de março, mas só por algumas horas, antes da visita do ministro do Trabalho, Luiz Marinho: ele tirou uma foto na frente do galpão, falou rapidamente com jornalistas, e foi embora. Dali a pouco, um grupo de cerca de 50 trabalhadores voltou ao local. “Foi uma cena de cinema que montaram para o ministro”, relatou um morador do bairro que prefere não se identificar.

Reportagem flagrou pessoas entrando e saindo do alojamento, embora em sua porta haja uma placa de interdição afixada

 

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar aproveitou o escândalo e a visita do ministro para pedir mais “flexibilização” nas contratações e “uma visão mais sensível” para a realidade do setor. “A gente não quer fazer algo fora da lei, mas tem que ser algo viável para os pequenos agricultores. Os custos são altos, as propriedades são pequenas e muitos produtores esperam mais de um ano para receber o pagamento da safra”, justifica Postal, que entregou um ofício ao ministro.

Para o lado das indústrias, há inclusive vitórias. O governo federal, que havia suspendido a participação de Aurora, Garibaldi e Salton em eventos e negociações internacionais capitaneados pela Agência Brasileira de Exportações e Investimentos (Apex), voltou atrás na decisão de excluir as vinícolas das rodadas de negócio. Vinhos e sucos de uva das três marcas também seguem nas prateleiras nas principais redes de supermercados, incluindo aqueles que assumiram compromissos públicos contra o trabalho escravo.

Sindicato espera costurar acordo com a patronal que permitiria assinatura de primeira convenção coletiva da história nas regiões de Bento Gonçalves e Caxias do Sul

 

Na capital do estado, empresários brindaram com vinhos e espumantes da Salton, Garibaldi e Aurora, em ato de desagravo às três empresas. Para os donos do dinheiro, o assunto é página virada, como decretou o editorial do maior grupo de comunicação do estado.

Aos trabalhadores terceirizados da agricultura resta a esperança de que, ao menos, o escândalo sirva para garantir direitos. “A região da serra é bem problemática. Há uma resistência por parte dos próprios sindicatos com relação ao assalariado rural”, explica Sérgio Poletto, segundo secretário da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul.

Mas a categoria está decidida a pressionar e suas reivindicações ganharam força: depois da repercussão do caso de trabalho escravo, a Fetar conseguiu retomar negociações que estavam travadas há anos para a assinatura de convenções coletivas de trabalho que podem mudar a vida dos assalariados em nove cidades da região, incluindo Bento Gonçalves e Caxias do Sul, onde nunca houve acordo coletivo.

15
Mar21

Manifesto em apoio à Lava Jato desinforma a sociedade

Talis Andrade

Grupo Prerrogativas | Coordenação: Marco Aurélio de Carvalho

Grupo Prerrogativas, composto por advogados e juristas, ciente dos termos de manifesto subscrito por membros do Ministério Público em apoio a procuradores da Lava Jato, cujos desvios e abusos vieram a ser objeto de crítica por ministros integrantes da 2ª Turma do STF, em 9/3/2021, no julgamento do HC n° 164.493, vem assinalar a pertinência das recriminações fundamentadamente apontadas pelos ministros da Corte Suprema.

​O resguardo da função institucional do Ministério Público não deve obliterar a correção de excessos e ilegalidades. O exercício da persecução criminal deve ser avaliado em termos objetivos e sob a lente dos limites constitucionais e legais, como fizeram os citados integrantes do STF. Não convém ao regime republicano que a apreciação da conduta irregular de membros do MP dê margem a uma reação corporativista, que lhes ofereça apoio de índole subjetiva.

​O combate à corrupção não prescinde da observância plena dos predicados jurídicos que o condicionam, sob pena de fomentar o arbítrio, com a sucumbência do Estado de Direito. Sob o império do direito, os fins não podem justificar meios ilícitos. A atuação legítima do STF, no sentido de desconstituir abusos gravíssimos praticados por membros do Ministério Público, em lastimável associação com o ex-juiz Sérgio Moro, serve a depurar a atividade ministerial de comportamentos vexaminosos e contraproducentes de alguns de seus integrantes. A correta anulação judicial de atos legalmente viciados jamais deve ser razão para lamentações, mas sim para o aperfeiçoamento das práticas.

​Membros do Ministério Público não são intocáveis, blindados numa cruzada supostamente heroica contra criminosos. São na verdade servidores públicos, vinculados a um papel definido em escala normativa. O manifesto assinado por membros do MPT confunde a missão da instituição, a ponto de pretender a concessão de um salvo conduto aos procuradores da Lava Jato, o que é inaceitável num regime constitucional democrático. A complacência com os desatinos comprovadamente praticados por Deltan Dallagnol e seu séquito apenas alimentam o fracasso das operações de combate à criminalidade, não o seu êxito. A orientação política de certas acusações, levada ao extremo com a manipulação judiciária e midiática, representa a falência dos esforços de combate à corrupção em nosso país.

​O manifesto dos membros do MP em apoio à Lava Jato, portanto, desinforma a sociedade e mistifica a atuação dos procuradores da operação. Todo processo criminal deve assegurar juiz natural, imparcialidade judicial, presunção de inocência, ampla defesa e contraditório. E também acesso dos acusados ao sistema recursal. O manifesto comete sério engano ao atacar o exercício regular pelo STF de sua competência para anular atos irregulares por meio do julgamento de habeas corpus. Parece haver membros do MP que tanto se acostumaram a admirar as atitudes anômalas do ex-juiz Sérgio Moro que agora estranham a atuação imparcial e judiciosa de ministros do STF.

​Não há como disfarçar: são gravíssimos os atos praticados pelos procuradores da Lava Jato, ao desencadearem perseguição implacável ao ex-presidente Lula. Não se pode admitir que o Ministério Público naturalize condutas marginais à Constituição por parte de seus integrantes. Os méritos reconhecidos da atuação da instituição não podem implicar em justificativa para que seus defeitos sejam ignorados. A defesa do interesse público e a busca do avanço dos valores republicanos em hipótese alguma permite a tolerância com transgressões a direitos fundamentais inscritos na Constituição.

A melhor defesa que se pode e deve fazer do Ministério Público, reitera-se, passa pelo reconhecimento dos graves equívocos cometidos por alguns de seus membros.

Seguiremos na defesa verdadeira das Instituições e do papel relevante para o qual foram desenhadas.

A reacreditação do nosso Sistema de Justiça é a melhor resposta e a única saída.

Grupo Prerrogativas, 15 de março de 2021

 

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