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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

28
Jul23

Ditadura militar contribuiu para genocídio dos povos indígenas. Bolsonaro antropófago

Talis Andrade
Qual é a natureza da relação Moro-Bolsonaro?

O projeto antropofágico de encontro pela deglutição se esgotou na torrente de atrocidades do governo Bolsonaro. Está difícil coletar, digerir e incorporar o tecido necrosado do noticiário semanal. Doravante, aqui: mais imagens, adivinhas e mensagens crípticas. Por Gavin Adams

 

É possível ver semelhanças entre os Anos de Chumbo e o governo passado

Por Gésio Passos

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Devastação, violência, fome, doenças e morte de milhares de indígenas yanomami em sua terra, em Roraima. Esse foi o retrato do Brasil no período da ditadura militar. Além da tortura, censura e assassinato de milhares nas cidades e no campo, a ditadura causou um genocídio entre os povos indígenas brasileiros.

O relatório da Comissão Nacional da Verdade, finalizado em 2014, indica que, apenas na investigação de dez povos, foram estimadas mais de 8 mil mortes decorrentes do governo militar. No caso do povo yanomami, segundo a comissão, não há um número oficial de mortos, mas se estima que chegue aos milhares.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Davi Kopenawa, líder yanomami, relembrou o descaso do governo durante a realização de grandes obras. Segundo a liderança, as estradas abriram caminho para os invasores garimpeiros e fazendeiros.

“Eu não sabia que o governo vinha deixar estrada na terra yanomami. [A autoridade] não avisou antes de destruir o nosso meio ambiente, antes de matar o nosso povo yanomami. A estrada é o caminho de invasores garimpeiros, fazendeiros, pescadores e caçadores”.

A tomada das terras indígenas para ampliação da fronteira agrícola e para exploração mineral e de energia foi um dos eixos do Plano de Integração Nacional dos militares. No caso dos yanomami, a destruição veio primeiro com a construção da rodovia Perimetral, a BR-210, que liga os estados do Amapá, Amazonas, Pará e de Roraima.

Já na década de 1980, a situação se agravou com a invasão de cerca de 40 mil garimpeiros na região. Uma campanha internacional exigiu que a ditadura fosse responsabilizada pelo genocídio yanomami. O Brasil foi denunciado em várias esferas internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Terra Indígena Yanomami só foi demarcada após muita pressão, em 1992.

Marcelo Zelic, membro da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e colaborador da Comissão da Verdade, afirma que a estratégia entre o governo dos militares e o governo Jair Bolsonaro, também com forte presença de representantes das Forças Armadas, foram similares. Expulsão dos territórios e falta de assistência de saúde, que levaram à dizimação do povo indígena.

“A saúde indígena foi utilizada como uma arma, uma estratégia de ocupação territorial pelo enfraquecimento da saúde das comunidades. Isso é um crime bárbaro, contra a humanidade. É o uso da saúde como essa ferramenta. Isso é parte da cartilha que aparece quando você olha os documentos do passado”.

Zelic ainda acrescenta que nos dois momentos políticos, a falta do Estado nos territórios contribuiu para o aumento da violência contra os povos originários. “Quando você tem então um governo que estimula o garimpo, que enfraquece a presença do Estado nos territórios, que cria portarias que desestruturam o direito indígena, facilitando a penetração e invasão dos territórios, você tem essa repetição de uma fama acintosa. E uma repetição que promoveu o volume de violência muito grande no Brasil contra os povos indígenas desde 2019 [até] 2022”.

Em janeiro deste ano, o governo decretou emergência federal na Terra Indígena Yanomami. A medida resultou na expulsão de milhares de garimpeiros invasores, além de atendimento médico e ações contra a fome que afligia a população. Só em 2023, 53 mortes foram registradas entre os yanomami.

A Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final, apresentou 13 recomendações relacionadas aos povos indígenas. Entre elas, um pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos indígenas pela tomada de suas terras e demais violações de direitos humanos, além da instalação de uma Comissão Indígena da Verdade.

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, a pasta ainda está sendo estruturada para retomada das discussões sobre essa Comissão.

14
Jul23

As 4 bestas do apocalipse de Bolsonaro (segunda parte)

Talis Andrade

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Jair Bolsonaro foi um governo da fome, da peste (vide aqui verbetes).

E da guerra e da morte.

 

A morte. O jornalista Ricardo Noblat historiou:

Bolsonaro acreditou que a economia iria pelos ares e, com ela, seu governo, se combatesse a pandemia como Mandetta pedia. Então, preferiu associar-se à morte. Foram mais de 700 mil.

Se desejasse apenas se reeleger, não partiria para o confronto sangrento com a Justiça. O ápice foi no 7 de setembro de 2021, em comício na Avenida Paulista, quando ele explodiu:

“Acabou o tempo dele. Alexandre de Moraes: deixa de ser canalha. Eu quero dizer que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente nunca mais cumprirá. A paciência do nosso povo se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir seu boné e cuidar de sua vida. Ele para nós não existe mais.”   

Em live nas redes sociais, desafiou o ministro:

“Tu está (sic) pensando o quê da vida, que você pode tudo? E tudo bem? Você um dia vai dar uma canetada e me prender? É isso que passa pela tua cabeça?”

Quem quer pegar galinha não diz xô. A galinha dos ovos de ouro de Bolsonaro não era a reeleição, mas o golpe. Em legítima defesa do país e dela mesma, a Justiça decretou: “Chega! Basta! Fora!”

E Noblat finaliza: 

O imexível e imbrochável capitão de fancaria acabou castrado, tornando-se também inelegível. Falta a canetada. Que não será uma canetada, mas um julgamento que obedeça aos ritos da lei.

É assim nas democracias que não são relativas, mas de verdade.

O que se pretendia com a invasao e a quebradeira de 8 janeiro em Brasilia senao uma resposta sangrenta da policia estadual do DF e das policias federais e das Forças Armadas. Bastaria uma morte para ser a bandeira do confronto, da guerra civil, pretendida na noite de vandalismo do dia 12, ou a explosao de uma bomba no Aeroporto de Brasilia com milhares e milhares de morte. (continua)

20
Mai23

Consciência negra

Talis Andrade

 

Foto de Christiana Carvalho
 
 

Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento

 

por Diego dos Santos Reis /A Terra É Redonda

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Passadas as celebrações do novembro negro e do mês que, em nome de Zumbi e Dandara dos Palmares, rememora, denuncia e exige reparações históricas à população negra brasileira, parece vigorar certo silêncio após a efeméride, no que diz respeito à (in)consciência negra nacional. Reinam, todavia, as imagens associadas à violência, ao genocídio, ao caos e aos casos nunca isolados de racismo que, de norte a sul, cortam o território amefricano. Casos que dilaceram famílias e comunidades, aniquilam sujeitos e arrasam possibilidades de vida plena e digna, tal como garantido na Carta Constitucional brasileira.

Imagens de controle, como enunciadas por Patricia Hill Collins, que reforçam práticas de dominação, criminalização e violência, física e simbólica, voltadas à estigmatização e à legitimação de suas próprias operações de morte. Se a morte ocupa um lugar fundamental nessa produção imagética é na medida em que se constitui como ponto de partida, sob a perspectiva do supremacismo branco, do que seja o destino natural e original do corpo negro, que da morte-em-vida à morte factual passaria de um estado de não-ser ao desaparecer, como o desvanecer da imagem de um fantasma – entre mundos, medos e modos de ser pautados pelo negativo.

Em vida, porém, a consciência retinta de ser, de viver e a teimosia tomam forma, rosto, nome e figura do que, sendo, insiste em desarticular os mundos de morte da branquitude e seus mecanismos de sufocamento, acionados por vias diversas. Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento; em vias privadas, pelas mãos de algozes e feitores que chamam de amor (?) a doença que extirpa, subjuga e liquida as vidas de mulheres, sobretudo negras, encontradas em sacos pretos, rios, azulejos frios, imobilizadas em fotos que estampam, cotidianamente, pequenos retângulos de jornais sanguinolentos (até quando?).

Ceifadas, entre promessas de amor eterno e o eterno pedido de desculpas das forças policiais e chefes de Estado, desaparecem, em preto e branco, histórias, narrativas e memórias daquelas que, chacinadas, são condenadas sem inquérito, enquanto co-mandantes são condecorados em cerimônias oficias e oficiosas.

Penso nesses rostos enquanto escrevo e vejo o sorriso, os sulcos da pele, as marcas e linhas longas da vida – interrompidas. Penso nas vidas negras que importam, dizem, e, todavia, seguem conscientemente exterminadas por mãos apocalípticas enquanto, nas escolas, tentamos fazer valer a lei da vida, a lei da justiça e do ensino de história e cultura daquelas que, antes de nós, em diáspora, fizeram valer com seu suor a contra-lei do mundo dos homens injustos.

Passados 20 anos de promulgação da Lei 10.639/03, silentes ou complacentes, a conveniência segue esbranquiçando itinerários formativos. Mas o poder do brado negro desafia o silêncio reinante. Peleja, retumba, sacoleja e desarranja os ritos (fúnebres) de histórias lineares, pomposas e heroicas que não mencionam Dandara, Aqualtune, Marielle, Lélia e Sueli, porque, ali, o pacto sa(n)grado é branco, no masculino.

A consciência nossa é ciência, suor e roda. É repente, desafio e capoeira, ginga com os arranjos, institucionais ou não, há séculos organizados para transportar os corpos em tumbeiros, caveirões e rabecões, para quem a morte passa a ser pena capital e não parte da existência e do mundo compartilhado com a ancestralidade. Até a morte foi saqueada. E soterrada em covas rasas, sem nome, placa ou documento de identificação, para que a indigência devorasse, com o bico afiado, a carne putrefata de quem sonhava com casa própria, formatura e família grande, como Kethlen Romeu e seu filho, assassinado no ventre.

Vingar ainda é desafio na diáspora. Vingar até a última gota de vida, o desafio nas 52 semanas e 1 dia de consciência negra, que perfazem um ano. Nele, todos os dias são voltados ao desfazimento do pacto funesto. Todos os dias são voltados à lembrança do que, recalcado, não pode contentar-se com um único dia ou mês do ano. Emerge, dia a dia, porque nascido em zona de emergência. Contra a virulência, insurgente, gesta resistência na negra consciência da luta pelo que é, foi e será. Todos os dias do ano.

 

15
Jan23

A civilização brasileira contra Bolsonaro

Talis Andrade

 

por Urariano Mota

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Para estes dias de luta, divulgo o capítulo pós-escrito que publiquei na edição norte-americana do romance “A mais longa duração da juventude”. Nas últimas páginas da tradução de Peter Lownds , “Never-Ending Youth”, acrescentei estas linhas: 

“Os cartazes tomam conta da cidade nos últimos tempos.

‘Parem o incêndio das florestas no Brasil’

‘Queremos vacinas!’

‘Fora o desprezo pelas mortes do coronavírus’

‘Fora, Bolsonaro’

Eu os vejo e penso. Todos os militantes socialistas do Brasil, nos anos da ditadura, jamais esperaram completar a idade que agora atravessamos ao ver os protestos que voltam às ruas e aos quais voltamos. Antes, a morte estava ali, aqui, já, hoje ou logo amanhã de manhã. As prisões, torturas e assassinatos de companheiros se sucediam, e chegavam cada vez mais perto de nós mesmos, dos camaradas da última sexta-feira de carnaval. Por que nos poupariam o fim? Daí que vivíamos todos sob alta tensão. Daí que vivíamos todos como se ganhássemos as últimas horas do último dia. Mas sobrevivemos, só Deus e o Diabo sabem como.

Agora, sob um governo fascista, problemas que julgávamos resolvidos voltam à tona. O que será dos nossos direitos? O que será do trabalho dos nossos filhos? Haverá um mundo digno do nome para as novas gerações? Para essas perguntas bem sabemos a resposta: vamos à luta, não podemos submergir em um mar de angústia e desesperança. O problema é que no contexto geral desse fascismo vêm as perguntas particulares para a nossa idade: como podemos encarar o futuro? Que planos faremos? Que perspectivas temos?

Para quem atinge além dos 70 anos, o futuro a ser vivido é curto, pode até nem atingir o fim deste dia. Nesse aspecto, é uma repetição dos anos de ditadura, em inesperada semelhança. No entanto, a resposta hoje é bem diferente daqueles dias. Hoje, devemos encarar o futuro sem lhe destacar o prazo certo, pequeno de tempo. Para o breve futuro caminhamos na certeza de que até o fim viveremos com a força do que sabemos fazer e acreditamos. Ateus, materialistas, não teremos o céu depois da morte. O céu é nosso trabalho, aqui, agora, de hoje até o último segundo. O inferno é negar o que temos de melhor em nossa alma, porque de ideias e sentimentos somos feitos.

Mas que planos faremos? Para tão curto espaço de horas o plano é amar, beijar as pessoas, dizer-lhes o que nunca lhes dissemos, porque temos a consciência do próximo mergulho que não projetamos. E trabalhar, e trabalhar, e trabalhar para realizar o melhor que somos. Admitamos, esse é um grande plano. Pois devemos dividir e multiplicar as lições que acumulamos.  Queremos aquele alto que Joaquim Nabuco expressou tão genial em seu fim:

– Doutor, tudo, menos perder a consciência!

Se perdemos a consciência, já não somos. E quando a perdermos, não seremos. Não deve haver lágrimas para um corpo inútil corpo, sem identidade. Então o plano é ser, o ser pleno, o plano é pleno. Até onde possamos sorver a plenitude.   

Mas que perspectivas temos? Daqui onde estamos, nesta hora, que olhar podemos lançar para o porvir? Uma resposta está no que vimos há pouco, nas linhas anteriores.

A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz.  

Por isso a nossa mais longa juventude protesta nestes dias. Voltamos às ruas, voltamos à luta, aqui, agora, em palavras, em ações e arte, de todas as maneiras. Canta de novo para todos nós, ó Ella Fitzgerald! Estamos voltando.

Texto publicado em inglês no internacional Pressenza

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11
Dez22

Senzalas & campos de concentração

Talis Andrade

Jornal PASQUIM "Brasileiro é tão Bonzinho! É... Mas

 

Nos consideramos gente boníssima, mas somos?

 

por Alex Castro

O Brasil se considera uma nação boa e pacífica. Mas é só porque esqueceu ter sido a maior economia escravocrata de todos os tempos.

Muitas vezes, o sono tranquilo não é consciência limpa: é falta de memória.

"O melhor bife batido da cidade está na Lanchonete Doi-Codi!"

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Senzalas eram lugares de morte, tortura, exploração. Por que associar seu restaurante a ISSO?

No coração do centro histórico de Paraty, cidade colonial construída com o sangue e o suor de muitos escravos, em pleno mês da consciência negra, acabou de ser inaugurado um novo restaurante:

Senzala Churrascaria Rodízio.

Não deveria me chocar mas ainda me choco. Afinal, o que não falta, em todo Brasil, são estabelecimentos chamados Senzala.

Na Alemanha, pelo menos, não existe nenhum Restaurante Auschwitz.

Eles teriam vergonha.

 

As maravilhas do tráfico humano

Nesse cela, eram colocados para morrer de fome os escravos problemáticos. Elmina, uma maravilha da arquitetura colonial portuguesa!

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Em 2009, Portugal promoveu um concurso para escolher as "7 Maravilhas de origem portuguesa do mundo".

Dentre os vinte e sete indicados, muitos eram locais fortemente identificados com a escravidão, com a compra e com a venda, com a morte e com a tortura, com o desterro e com o desenraizamento de milhões de pessoas. Pessoas como eu e como você. Pessoas cujo sofrimento não deveria ser esquecido:

Por exemplo, o forte Elmina foi construído em 1482 para fazer ali o comércio de escravos, hoje abriga um museu onde os visitantes são convidados a visitar as celas onde os Africanos ficavam confinados antes de serem enviados para as Américas. No sítio da votação, encontra-se uma longa descrição do forte e nem sequer uma linha, uma palavra mencionando o tráfico de africanos escravizados. ...

É como se Auschwitz participasse em uma eleição das sete maravilhas alemãs no mundo.

(Leia mais ou confira a lista dos vencedores.)

 

A feliz união das raças da maior democracia racial do mundo!

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Todos são iguais... mas um tem maior expectativa de vida que os outros. Adivinha qual?

Ninguém realmente deveria ficar surpreso. No mundo lusófono, o apagamento da memória da escravidão sempre foi a regra.

A grande maioria dos brasileiros aprende na escola que nosso lindo país foi construído por brancos, negros e índios, todos felizes, de mãos dadas e cantando kumbayá. Como se a colonização do Brasil tivesse sido um comercial da Benetton.

Para manter a mentira primordial no cerne do nosso mito de origem, a escravidão nunca é mostrada em seu verdadeiro horror:

Sim, alguns de nossos avós escravizaram nossos outros avós, mas, no fim das contas, eram todos bons amigos, os escravos eram muito bem tratados e, olha só, pelo menos nunca tivemos as leis racistas dos EUA! No Brasil, país bondoso e generoso, até a escravidão era a melhor do mundo!

(Aliás, não faz sentido falar em "escravidão melhor" mas, somente nos Estados Unidos, a população escrava tinha crescimento vegetativo, ou seja, aumentava e se reproduzia. No resto da Américas, a mortalidade era tão alta que, mesmo com os nascimentos, era preciso sempre importar novos escravos. O Brasil foi o maior importador de escravos de todos os tempos porque aqui, nessa terra tão bondosa e tão pacífica, era onde eles mais rapidamente morriam. Esse artigo clássico de Herbert S. Klein explora essas contradições.)

 

Somos tão legais hoje que nem parece que éramos tão escrotos ano retrasado!

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Sim, vamos parar de falar de racismo! Afinal, essa tática tem dado tão certo no último século... (pra nós, brancos, claro!)

Um trecho do Hino à Proclamação da República, escrito em 1890:

Nós nem cremos que escravos outrora

Tenha havido em tão nobre País…

Hoje o rubro lampejo da aurora

Acha irmãos, não tiranos hostis.

Somos todos iguais! Ao futuro

Saberemos, unidos, levar

Nosso augusto estandarte que, puro,

Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Somente um ano e meio depois de abolida, a escravidão já começava a ser sistematicamente lavada da memória nacional.

 

Escravidão e Holocausto, ensinados lado a lado

"Eu, Barack Obama, o 44º presidente eleito dos Estados Unidos, peço desculpas pela escravidão."

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Para muitos brasileiros, o bicho-papão racial são os Estados Unidos. Não podemos implementar cotas, pois senão "nos tornaríamos um Estados Unidos"; "temos muitos defeitos mas pelo menos não somos os Estados Unidos", etc etc.

Pois eu morei lá e morei aqui, e estudei a fundo a história da escravidão nos dois países. Somos ambos profundamente racistas, mas o Brasil é pior por um motivo:

A cultura do deixa-disso. Por pensarmos que o não-falar sobre o racismo e a escravidão vai resolver por si só o problema.

Enquanto isso, o presidente norte-americano, em visita a Gana, um dos principais portos exportadores de escravos, afirmou que a escravidão, como o Holocausto, é daquelas coisas que não pode ser esquecida.

Para Obama, a visita aos calabouços de escravos remeteu à sua viagem ao campo de concentração Buchenwald: ambos nos fazem lembrar da capacidade humana para cometer o Mal.

E completou afirmando:

A escravidão e o Holocausto deveriam ser ensinados nas escolas de modo a conectar a crueldade passada aos eventos atuais.

 

Homens que não entendem porque tanto alarde pelo câncer de útero

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"Nunca esqueça! Nunca esqueça! Sai dessa, pô!"

Desconfie sempre de quem fala "sai dessa" quando o "essa" é algo que ele nunca experimentou.

Afinal, do ponto de vista de quem está bem acomodado e seco no convés do barco, não há motivo pra se debater tanto lá embaixo no mar só porque tem água entrando nos seus pulmões... SAI DESSA!

 

"Por que esses cadeirantes preguiçosos não deixam de se fazer de vítima e sobem as escadas como todo mundo, hein?"

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A meritocracia do Brasil, em uma charge.

Pior ainda são aquelas pessoas (muitas negras) que são contra as cotas (e similares) argumentando que "nunca precisaram delas".

E eu faço uma cara pensativa e respondo:

Concordo, claro, como não? E tem mais, também sou contra esse negócio de diálise em hospitais públicos e rampas para cadeirantes nos prédios.

Oras, se passei a vida inteira sem precisar de nenhuma dessas coisas, é porque não são tão importantes assim, certo?

Afinal, dado que eu sou o centro do universo e a medida de todas as coisas, as pessoas só deveriam receber o que eu recebi e as únicas necessidades válidas são as que eu também tenho!

(Sobre isso, leia meu texto O assunto não é você.)

Somos os melhores em esquecer nossos crimes

Durante sete anos, morei em Nova Orleans, principal porto escravista norte-americano. Assim como o Rio de Janeiro, uma bela cidade, sexy e musical, turística e carismática, construída nas costas de escravos desesperados e agonizantes.

Um dia, enquanto passeava com meu cachorro pelo bairro universitário, uma soccer mom enfiava cuidadosamente seus quatro filhinhos, todos brancos e roliços, em seu jipão utilitário de luxo, também branco e roliço. Era uma senhora baixinha e gorducha, bochechas rosadas e orelhas de abano, carregando mochilas e merendeiras, parecendo dotada daquela infinita paciência que só uma mãe de quatro meninos pode ter. E, em seu para-choque traseiro, discretamente, estava o adesivo:

The South Will Rise Again (“O Sul se Erguerá Novamente”)

Como não se sentir ameaçado? Não conheço o contexto dessas palavras. Por tudo que sei, é um inocente desejo de revitalizar a economia local. Mas, ainda assim, nenhuma racionalização poderia apagar o meu calafrio ao ler aquela frase; nenhuma explicação lógica faria aquele adesivo soar menos sinistro. De certo modo, era como se o ressurgimento do Sul fosse indistinguível e indissociável do reescravizamento de toda uma raça.

E pensei: o Brasil foi tão ou mais escravista do que o Sul dos Estados Unidos, e resistiu por muito mais tempo até libertar seus escravos. Ainda mais doloroso pra mim, dos nove únicos deputados que tiveram a cara-de-pau e a temeridade de votar contra a Lei Áurea em pleno maio de 1888, já na véspera do século XX e na contra-mão de todos os ventos filosóficos do XIX, oito eram do Rio de Janeiro. Legítimos representantes eleitos do meu estado.

Entretanto, não ficamos nem o Rio e nem o Brasil maculados por essa nódoa. Um adesivo “O Brasil Crescerá” despertaria calafrios? Claro que não. Nem o Paraguai tem medo do Brasil. E concluí, aliviado: ainda bem que pelo menos o bom nome do meu país e do meu estado não estão ligados à escravidão.

Um segundo depois, bateu o estranhamento: mas… por que não?

A falta de calafrios não corresponde à falta de crimes. O Sul dos EUA teve, no Norte, um vizinho incômodo que manteve viva a memória de seus crimes. Já em nosso caso, simplesmente varremos nossos crimes para debaixo do tapete.

Não somos mais virtuosos: somos melhores em esconder o corpo.

(Ao contrário do que muita gente pensa, a Abolição não foi um "presente da monarquia", mas uma lei disputada voto a voto no Parlamento, somente sancionada pelo Poder Executivo, naquele momento representado pela Princesa Isabel. Mais detalhes nesse meu rascunho de uma História da Abolição.)

 

"Shoah", um documentário impossível

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"Shoah", o fim da viagem.

Shoah é uma palavra íidiche que significa "calamidade". Para muitas pessoas, é um termo preferível à Holocausto – que, afinal, significa "oferenda aos deuses".

"Shoah" também dá título a uma das grandes obras de arte, de qualquer arte, do século vinte, realizado pelo boy-toy de Simone Bouvoir, Claude Lanzmann.

São nove horas de filme, sem nenhuma imagem de arquivo: são somente depoimentos, e depoimentos, e depoimentos. Lanzmann entrevista três tipos de pessoa: sobreviventes, algozes (oficiais de campos de concentração) e testemunhas (poloneses que moravam perto dos campos).

Com os sobreviventes, Lanzmann é implacável. Ele praticamente os obriga a falar:

“Não foi uma crueldade fazê-las reviver, através da fala, tudo o que sofreram, no caso dos judeus. Era absolutamente necessário. Não acho que tenha sido sádico, mas fraternal. Durante as entrevistas, eu toco suas mãos, seus ombros, seus braços. Uma forma de dizer ‘eu estou com você’. Não faço interrogatórios para que alguém se diga culpado. Eles sofrem. Mas eu também sofro. Eu não os torturei. Eles se sentiram liberados. Eu não estava falando com uma pessoa qualquer, mas com um grupo muito especial de sobreviventes – e não há mais do que um punhado deles no mundo”.

Abaixo, talvez a cena mais emocionante no filme. O barbeiro não consegue falar, mas Lanzmann pressiona (em inglês):

Link YouTube | "Shoah", e a impossibilidade de lembrar

"Shoah" é um filme de insuportáveis silêncios: das nove horas de filme, cinco horas e meia são de puro silêncio. Diz Lanzmann:

"Não é uma reconstituição, não é uma ficção, não é um documentário. O filme é uma ressurreição, uma reencarnação, tem uma arquitetura, uma construção em torno de uma obsessão pessoal. Eu fazia sempre as mesmas perguntas, geralmente referentes à primeira vez. E não tinha nenhuma intenção de acusar, denunciar, culpar. Nada disso, isso não me interessava.

Houve uma decisão consciente de fazer um filme sobre o presente, e não sobre o passado:

"O pior dos crimes, ao mesmo tempo de ordem moral e artística, quando se quer consagrar uma obra ao Holocausto, é considerá-lo como passado. Meu filme é uma anti-lenda, um contra-mito, vale dizer, uma investigação sobre o presente do Holocausto ou, ao menos, sobre um passado cujas cicatrizes estão ainda tão fresca e vivamente inscritas nos lugares e nas consciências que ele se dá a ver numa alucinante intemporalidade. ... Os homens e as mulheres que falam diante da câmera dão sempre a impressão de não estarem contando lembranças, mas de as viverem mesmo, com força e clareza, no presente. ... Enquanto fazia o filme, a distância entre o presente e o passado foi totalmente abolida. Em Treblinka só havia pedras, filmei as pedras como um louco, por todos os lados. Quando o espectador vê as pedras de Treblinka, ele vê os judeus sendo mortos. Da mesma maneira que quando o trem chega a Treblinka o espectador vê a tabuleta com o nome do campo exatamente como os judeus que iam para morte deviam ver. É um ato de cinema muito violento. Por isso o filme é fundamentalmente uma invenção, não uma lembrança. ... O filme é sobretudo uma ressurreição, as pessoas entrevistadas revivem aquele tempo de tal maneira que, quando falam, até alternam os tempos dos verbos – presente e passado. ... No filme, quando as pessoas falam, confundem presente e passado. Na mesma fala, dizem: eu estava lá e pouco depois: eu estou lá."

Mais do que tudo, é um filme sobre a impossibilidade de recordar, de conceber, de articular o Mal:

Comecei precisamente com a impossibilidade de recontar essa história. Situei essa impossibilidade bem no início do meu trabalho. Quando comecei o filme, tive que lidar, por um lado, com o desaparecimento dos vestígios: não havia coisa alguma, absolutamente nada, e eu tinha que fazer um filme a partir desse nada. E por outro lado tive que lidar com a impossibilidade, até mesmo dos próprios sobreviventes, de contar essa história; a impossibilidade de falar, a dificuldade que pode ser vista ao longo do filme de trazer luz e a impossibilidade de nomear: seu caráter inominável.

Para celebrar os 30 anos de sua estréia, "Shoah" está sendo lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles. Recomendo nos mais enfáticos termos.

Mas não assista sozinho. É muito duro.

(Sobre "Shoah", leia também: A dificuldade de falar de "Shoah" e It's a beautiful thing.)

 

O Holocausto foi terrível mas não foi único

Estudo raça e racismo há muitos anos. Um dos meus livros preferidos sobre o tema é The Racial Contract, de Charles W. Mills.

Segundo Mills, o racismo seria um sistema político e uma estrutura de poder baseados em um Contrato Social (na verdade, um Contrato Racial) no qual os membros da raça dominante formariam um acordo tácito de, ao mesmo tempo em que garantem para si a maior parte das riquezas/oportunidades/etc da sociedade, também consentem em não ver o próprio sistema, criando assim a “alucinação consensual” de um mundo sem raças, meritocrático e igualitário, que passa a mediar sua interpretação da realidade.

Raça, para eles, sera invisível porque o mundo seria estruturado em função deles; eles seriam a norma em oposição a qual seriam medidas as pessoas de outras raças (“esses outros tem raça, não eu!”). Assim como o peixe não vê a água, os membros da raça dominante não veriam o racismo.

Mills também embarca em uma comparação perigosa, mas praticamente inevitável, entre o racismo e o Holocausto.

Visto de fora pelos não-europeus, que sabem na pele que a civilização européia se baseia em praticar barbarismo fora da Eueropa, o Holocausto não representaria “uma anomalia transcendental no desenvolvimento do Ocidente”, mas, pelo contrário, sua unicidade estaria apenas no aplicação do Contrato Racial contra europeus.

Ao colocar o Holocausto no contínuo cultural de outras políticas exterminatórias colonialistas européias, Mills não deseja negar o seu horror, mas somente sua singularidade histórica.

Tudo o que o nazismo tinha de operacional já vinha sendo aplicado, legitimado, tolerado, negado e esquecido pelos europeus há muitos séculos: a maior transgressão de Hitler seria aplicar contra europeus métodos que antes eram aplicados exclusivamente contra árabes, negros e índios.

A própria percepção do Holocausto, de um horror tão fora de escala e colocado num plano moral muito diferente de todos os outros massacres de não-europeus por toda a história, seria evidência da força ideológica do Contrato Racial.

Além disso, ao narrar o racismo como uma invenção aberrante de figuras como Gobineau e Goebbels, o Holocausto presta à intelligentsia européia do pós-guerra um importante serviço: sanitizou seu passado racial.

Link YouTube | "Nação do Medo", legendado, completo, um filmaço de ficção científica.

Por fim, Mills cita o romance de ficção científica “A Nação do Medo” (Fatherland), que mostra um futuro alternativo onde os nazistas ganharam a guerra e nunca existiu a memória do Holocausto.

Na verdade, aponta Mills, nós JÁ vivemos nesse mundo não-alternativo: a única diferença é que os vencedores foram outros, mas eles também apagaram a memória dos massacres que cometeram, esvaziando sua importância e subtraindo seu ultraje.

Daí o esquecimento dos horrores da escravidão.

(O livro de Mills é realmente brilhante: leia minha resenha completa.)

 

O Epcot da escravidão nos Estados Unidos

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Em Williamsburg, escravo é perseguido.

Mas se devemos lembrar sempre a escravidão... como?

Nos Estados Unidos, a cidade de Williamsburg oferece uma janela ao passado. Em troca do passe diário de US$36, o visitante passa o dia em uma "autêntica" vila colonial, onde tudo é como antigamente (menos os banheiros!), todos estão vestidos à caráter, em roupas de época, falando em vocabulário antigo, essas coisas. É um dos destinos turísticos e educacionais mais famosos do país.

Entretanto, sempre foi criticado por apresentar uma versão muito fácil, sanitizada e maniqueísta da história. Mais do que tudo, cadê os escravos? Afinal, na época da colônia, os Estados Unidos tinham escravidão e metade da população de Williamburg era negra.

Hoje em dia, o parque faz um esforço consciente (e polêmico, claro) para retratar a escravidão: além de incluir mais atores negros, criou-se também um "passeio" chamado Enslaving Virginia ("Escravizando a Virgínia") especificamente sobre os horrores da escravidão.

Deve ser horrível mesmo: vários atores negros já se recusaram a interpretar os escravos (por considerar muito humilhante), as crianças choram tanto que foram criadas sessões explicativas posteriores para enfatizar que era tudo faz-de-conta e já aconteceu de visitantes interromperem o passeio para "salvar os escravos".

Melhor assim. Preferível ser repelido por um simulacro do horror que nos gerou do que fingir que ele nunca existiu.

 

Encenação da escravidão à brasileira

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O guia do engenho, vestido de escravo, se oferece para ser chicoteado pelos turistas.

E no Brasil?

Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, já foi uma das cidades mais ricas do país, no centro da região que produzia a mais importante riqueza nacional: café. Hoje, é uma cidadezinha de vinte mil habitantes, que vive dos turistas que atrai com seus palacetes e fazendas coloniais – algumas com polêmicas encenações históricas.

Na fazenda São João da Prosperidade, há cinco gerações com a mesma família, a proprietária recebe os turistas vestida de sinhá e suas empregadas, de escravas:

Da janela, aponta a senzala: "Tenho 300 escravos" orgulha-se, voz impostada e dedo em riste. De repente, entra correndo pela varanda uma negrinha com remendos de algodão e cabelos presos em tranças. A menina, de apenas seis anos, se agarra à barra da saia da sinhá, põe o dedo polegar na boca e fixa os olhos nos visitantes. Basta um gesto da sinhazinha para que a pequena escrava abaixe a cabeça e saia da sala. "Não vê que estou com visitas?" – esbraveja a senhora. A menina vai brincar no alambique. Pouco depois, uma mucama adentra o salão, sob ordens de servir café aos convidados. (fonte)

Em uma fazenda próxima, Cachoeira Grande, que eu visitei agora em novembro, são só os empregados que estão vestidos à caráter: os proprietários se vestem e falam como se estivessem no século vinte.

Mais para o norte, na Zona da Mata de Pernambuco, o engenho Uruaé também encena a escravidão:

Vestido como "escravo da casa", o jovem guia mostra o "quarto da sinhazinha" e explica a genealogia da família proprietária do engenho através dos retratos na parede. Na senzala, que chegou a ter 300 escravos de uma vez, ele coloca uma peça de ferro no pescoço e anuncia, sorridente: "Quem era moreno como eu era aqui". O mais constrangedor vem depois, do lado de fora: o guia se amarra no tronco e pede que um voluntário simule açoitá-lo. Foi difícil arranjar alguém disposto a interpretar o papel. (fonte)

O engenho Uruaé também está na mesma família há sete gerações. Durante a visita, a proprietária afirma:

"A gente tem mais é que se orgulhar dos nossos que vieram antes. Nós ainda não fizemos nada."

Fui só eu que achei esse "ainda" um pouco sinistro? O que essa senhora ainda está planejando fazer, meu Deus? Re-escravizar todo mundo?

Mas isso é implicância minha. A raiz filosófica do problema é outra:

Como retratar os horrores do passado?

 

Qual é a medida certa do horror?

As encenações históricas da escravidão nas fazendas coloniais parecem não agradar ninguém.

Por um lado, argumenta-se que elas não são horríveis o suficiente. Que encenam somente os aspectos mais, digamos, reprodutíveis da escravidão, aqueles por definição mais doces e inofensivos. Que perpetuam a ideia de que a escravidão era somente uma forma de trabalho entre tantas outras.

Afinal, se a escravidão é algo que uma doméstica contemporânea pode reproduzir, se a escravidão se resumia a se vestir de branco e trazer café pra uma mulher que você chama de "sinhá", bem, então não era tão ruim assim, né? (Ou talvez ser empregada doméstica é que é horrível demais, mas não entremos nisso.)

Por outro lado, argumenta-se que são horríveis demais. Que mesmo doces e meigas, ainda mais quando encenadas pelos descendentes das vítimas, são sempre humilhantes:

Outros, no entanto, não sabem como reagir diante da interação realista dos 'escravos', que circulam vestidos em pobre algodão e, não raro, se curvam para obedecer às ordens da sinhazinha. "Será que esta criança tem idéia do que está fazendo? Ela ainda não tem idade para entender e pode ficar com a idéia de que deve se comportar como escrava, de que isso é normal" - indigna-se uma visitante paulistana, depois de recusar um copo d'água servido pela 'mucama'.

Já o historiador Milton Teixeira, que trabalha como guia de turismo nas fazendas do café, defende a prática:

Não é degradante representar um escravo. Se o turista se sente incomodado, muito bem. O passado de escravidão tem de incomodar bastante, e não deve ser esquecido. ... Ora, representações são feitas em toda parte do mundo. Na Europa, tem famílias pré-históricas; nos Estados Unidos, há simulação das batalhas da Guerra de Secessão, e, aqui no Brasil, é natural que haja uma encenação com escravos. Muito pior seria querer mostrar que não houve escravidão. (fonte)

Não deixa de ser simbólico que muitas dessas fazendas ainda estejam nas mãos das mesmas famílias. Ontem, lucraram nos ombros de seus escravos plantando cana ou café. Hoje, a mesma família continua lucrando nos ombos dos descendentes dos escravos, agora reduzidos a guias de turismo que reproduzem para turistas curiosos o horror da vida de seus avós.

Como escreveu o historiador e jornalista Fabiano Maisonnave, para a Folha:

De forma explícita ou não, as visitas aos engenhos transformam esses verdadeiros campos de concentração numa bufonaria, diluindo um dos piores crimes da humanidade, principal responsável pela imenso fosso social brasileiro, em um exemplo acabado do "racismo cordial". A escravidão é exaltada, a casa-grande, absolvida, e a cana-de-açúcar, revalorizada como "energia renovável", se torna bênção econômica do passado e do presente.

Mas como reproduzir de forma correta e didática o verdadeiro horror da escravidão? Como mostrar os corpos jovens mas enfraquecidos e fragilizados pelo criminoso excesso de trabalho? Como mostrar as marcas da tortura? Como mostrar as frequentes mutilações causadas pelo machete durante o corte da cana ou pelas engrenagens dos engenhos durante a moagem? Como mostrar as feridas emocionais de famílias desfeitas e de vidas sem esperança? Como mostrar os escravos revoltosos que davam e tiravam vidas para não voltarem ao cativeiro?

Será possível mesmo começar a quantificar esse horror? Quem dirá reproduzi-lo?

Existem encenações históricas em Auchwitz? O que o mundo pensaria de ver sorridentes atores descendentes de arianos brincando de depositar chorosos descendentes de judeus dentro dos fornos? Mas é só mentirinha, gente! É educacional!

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Holocausto reencenado na Polônia. Grande idéia. Só que não.

(Na verdade, como o instinto humano da burrice é inesgotável, já houve tentativas de encenar o holocausto, como essa aqui na Polônia. Muitas vezes, dá merda e acaba em processo, como dessa vez no Texas.)

 

Escravidão: essa pica é nossa!

A escravidão africana nas Américas foi talvez a maior tragédia da Era Moderna.

Estima-se que cerca de 11 milhões de pessoas tenham sido transportadas à força da África para a América.

(Outras estimativas mais agressivas calculam que cerca de 40 a 75 milhões de vidas africanas tenham sido perdidas por causa do tráfico, entre mortos em guerras para obter escravos, em emboscadas para capturar escravos, ou em marchas forçadas para os portos exportadores de escravos no litoral.)

Dentre as muitas nações responsáveis por esse lucrativo e criminoso tráfico, os maiores culpados são os portugueses.

(Principais transportadores de escravos para as Américas: Portugal, 4,6 milhões; Reino Unido, 2,6 milhões; Espanha, 1,6 milhão.)

Dentre as muitas nações que receberam esses escravos e que construíram sua riqueza nas costas deles, o maior culpado é o Brasil.

(Principais destinos de escravos nas Américas: Brasil, 4 milhões; América Hispânica, 2,5 milhões; Índias Ocidentais Britânicas, 2 milhões.)

Reparem no tamanho da seta que nos cabe.

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Dentre os muitos portos brasileiros que receberam essa massa humana desgraçada, o principal foi o Rio de Janeiro. (Dos nove deputados que votaram contra a Lei Áurea, vamos lembrar, oito eram da província do Rio.)

Além disso, quem inventou esse lucrativo e terrível modelo de negócios foram os próprios portugueses – não por acaso, os primeiros homens brancos a explorar sistematicamente a África. Em 1441, Antão Gonçalves teve a dúbia honra de se tornar o primeiro europeu a comprar e trazer para casa escravos africanos.

Depois disso, a história se desenrolou rapidamente, comprovando o tino comercial dos portugueses: já em 1452, arrancaram do Papa uma bula autorizando-os formalmente à escravizar os infiéis; em meados de 1470, estavam comerciando escravos no golfo do Benim e no delta do rio Níger; e, finalmente, em 1482, construíram a Fortaleza de São Jorge da Mina, em Gana, que em 2009 seria indicada candidata a "maravilha de origem portuguesa do mundo".

(Por si só, a escravidão é mais antiga que andar pra frente. Todos os povos de todos os continentes de todas as épocas já tiveram algum tipo de escravidão, mas quase sempre cerimonial e economicamente insignificante. A escravidão africana nas Américas é um novo tipo de fenômeno humano porque, pela primeira vez, temos nações economicamente dependentes de milhões de escravos que compõem muitas vezes a maior parte de suas populações.)

Por fim, muitos e muitos séculos depois, no outro extremo dessa triste história, a última nação das Américas a abolir essa escravidão africana inventada pelos portugueses, a nação que mais teimosamente se agarrou aos seus escravos até o último minuto possível, foi justamente a nação gerada do ventre português: o Brasil. Nós.

De um modo bem real e doloroso, é difícil evitar a conclusão que esse enorme crime contra a humanidade é, em grande parte, uma responsabilidade lusófona e, dentro disso, brasileira. (E, mais especificamente ainda, e não que os outros estados sejam inocentes, carioca e fluminense.)

Passei seis meses na Alemanha durante a década de noventa. Mesmo cinquenta anos depois da Segunda Guerra, mesmo entre meus amigos adolescentes cujos pais nem eram nascidos durante a guerra, basta uma menção a nazismo, Holocausto ou Auschwitz para fazê-los abaixar a cabeça em silêncio, envergonhados, culpados, tristes.

Nós, brasileiros, se tivéssemos vergonha na cara, se tivéssemos um pouco mais de memória, faríamos a mesma coisa ao ouvir menções a senzala, navio-negreiro, escravidão.

Essa pica é nossa.

 

Cais do Valongo, o elevador de serviço do século XIX

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Desembarque de escravos no Cais do Valongo, pintado por Rugendas em 1835.

No Rio de Janeiro, o principal porto de desembarque de escravos foi o Cais do Valongo. Estima-se que, entre 1758 e 1843, tenham chegado por ele quase um milhão de pessoas. (897.748, segundo o The Transatlantic Slave Trade Database.)

Provando que não foi de repente que nos tornamos o povo que faz subir pelo elevador de serviço a doméstica que faz o nosso serviço sujo, em 1770 o desembarque de escravos é proibido no porto principal da cidade (onde hoje fica a Praça XV e o Paço Imperial) e transferido exclusivamente para o distante Valongo.

Afinal, quando se está chegando de um grand tour pela Europa, a última coisa que se quer ver é um escravo nu agonizando no cais perto de você! Pelo amor de Deus!

Por fim, em 1843, cada vez mais envergonhado com a escravidão que lhe pagava as contas, o Império desativa e aterra o Cais do Valongo, construindo por cima dele o elegante Cais da Imperatriz.

E fim de história. Assim esqueceu-se o Valongo. Afinal, nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país!

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Uma escavação arqueológica em pleno centro do Rio de Janeiro.

Fast-forward para o presente. Em meio a um frenesi de obras para preparar o Rio de Janeiro para a Copa e para os Jogos Olímpicos, a prefeitura acabou de descobrir e desencavar o Cais do Valongo em pleno centro da cidade.

Agora reformado e reembalado para turistas ("são nossas ruínas romanas!", disse o empolgado prefeito), o Cais do Valongo foi inserido no recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, ao lado de outras atrações como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos (onde eram enterradas as vítimas da travessia atlântica) e os Jardins Suspensos do Valongo, esses últimos uma das coisas mais lindas e surpreendentes que já vi nessa cidade. (Veja o mapinha abaixo.)

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O recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, no Rio de Janeiro.

Mas que não seja só um espaço para turista tirar fotos.

O que falta ao Brasil e ao Rio de Janeiro, e o que esse circuito histórico pode começar a timidamente fornecer, é uma verdadeira compreensão dos horrores que engendramos, um pálido retrato do terror que aconteceu (e ainda acontece) debaixo dos nossos olhos, nesse nosso chão, na nossa senzala, no nosso quartinho de empregadas.

O texto que você está lendo só existe porque calhei de visitar o Cais do Valongo no dia seguinte de assistir "Shoah".

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O Cais do Valongo, hoje, aberto à visitação pública.

 

É possível quantificar o horror?

O Holocausto perpetrado pelos alemães matou cerca de seis milhões de judeus, um terço de todos os judeus no mundo. Além de incontáveis milhões de outras pessoas.

Não é minha intenção negar nem suavizar esse horror.

Mas não foi nem de longe o único horror perpetrado por europeus em sua longa história de horrores.

É impossível visitar lugares de tortura e morte como Auschwitz, Treblinka, Sobibor sem uma atitude de respeito e reflexão, sem pensar na memória das centenas de milhares de pessoas que sofreram ali.

Mas por que nós, brasileiros, não temos a mesma atitude ao visitar uma senzala, o Pelourinho (onde os escravos eram castigados publicamente) ou o Cais do Valongo?

Auschwitz matou 1,1 milhão de pessoas, Treblinka, 900 mil, Sobibor, 200 mil.

Enquanto isso, o Brasil recebeu 4 milhões de escravos, sendo que um milhão só pelo Cais do Valongo, logo ali, no centro do Rio.

Quem consegue compreender a enormidade desses números? Quem consegue quantificar tamanho sofrimento?

 

O passado é presente

Por isso, ali de pé diante do Cais do Valongo, um dia depois de assistir "Shoah", eu tentei esquecer os números e somente imaginar como teria sido a experiência individual, una, indivisível, de pisar em terra firme ali, naquelas pedras, naquele chão.

Imagino que fui arrancado de minha família e de tudo que conheci; que atravessei o oceano cercado de pessoas agonizantes em um navio infecto; que não pude trazer uma roupa, um livro, nenhum objeto pessoal; que não sabia se jamais veria minha terra; que estava condenado a um castigo literalmente e potencialmente infinito, pois a escravidão não seria apenas minha, mas sim herdada por todos os meus descendentes até o fim dos tempos.

Imagino que o Rio de Janeiro, para mim, escravo recém-chegado, era um lugar desconhecido e cheio de horrores. Era o porto onde meus companheiros mais fracos vinham morrer. Era o chão onde começava a escravidão do meu corpo. Era minha primeira experiência nesse novo mundo onde seria cativo e explorado.

Imagino então que hoje o Rio de Janeiro continua sendo um lugar de horror para os meus descendentes, que são ao mesmo tempo a maior parte das vítimas de assassinato e também a maior parte da população carcerária, e ainda têm que ouvir que racismo não existe no Brasil.

Tudo isso aconteceu ontem, e continua acontecendo hoje. O passado, como uma pedra jogada no lago, cria ondas concêntricas na água e repercute no presente. O passado é o presente.

As cotas raciais são necessárias hoje não para corrigir as injustiças históricas do passado, mas para corrigir as injustiças cotidianas de hoje. As cotas raciais são necessárias porque hoje a Polícia Militar não invade do mesmo jeito a cobertura do descendente do escravista e o barraco do descendente do escravo.

O que fica claro é que não dá pra pensar nesses fenômenos como se pertencessem a universos tão diferentes assim. Não faz sentido chorar assistindo A Lista de Schindler e depois ir espairecer tomando o milkshake do Senzala.

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Esse texto faz parte do livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Outrofobia, o espetáculo | alex castrooutrofobia | alex castro

 

05
Dez22

O que se passa com um homem quando caminha para a morte?

Talis Andrade

 

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por Urariano Mota

Nas pessoas que vi não houve mártires. Nelas jamais existiu a dor, a morte como um estágio para a vida futura, deles próprios, indivíduos, nunca. O futuro era para todos, seria para a humanidade. Tenho a visão de que os militantes massacrados foram heroicos, mas o heroísmo não estava nos seus planos. Ainda que proclamassem, em panfletos e discussões acaloradas, que a repressão não passaria, que eles, os guerreiros, iriam até as últimas na defesa das suas convicções, ainda assim, uma coisa é o que se fala, outra é o momento mesmo da definição real. E para essa última realidade nunca estamos preparados. Age-se ou morre-se. Pior, agimos e morremos.

Vargas estava apavorado. “Pavor, pavor, os olhos de Vargas eram só pavor”, registrou a advogada Gardênia no diário. E por ela, por sua palavra de verdade, registro nunca desmentido das páginas do seu diário, bem podemos vê-lo. Quando Vargas subiu no elevador do edifício Ouro, no Recife, ele era um homem apenas desesperado. Sem a certeza dos passos que daria a partir de então. Para ele havia ficado claro que Daniel, o simpático, prestativo e corajoso Daniel, não passava de um agente infiltrado. A informação lhe fora confirmada por pessoa de confiança, o primo Marcinho. E a sua pista e confirmação era a de que o bravo Daniel usava o carro de um coronel do Exército, militar anticomunista. Então Vargas soube que seria o próximo a cair. Mas não sabia para onde, nem a extensão precisa da altura do precipício onde seria empurrado. Ele era o “terrorista” a ser preso a seguir. “Preso”, era a sua esperança frágil e incerta. Ele se viu no elevador como uma chama de vela soprada por vento numa noite escura. A sua vida era uma chama que se curvava, diminuía, e ele com as mãos procurava proteger. Na verdade, nem tanto a ele próprio, porque já se via mesmo jogado na bagaceira como um resto de cana moída, mas a chama que não queria apagar era a da sua companheira, a terna e indefesa Nelinha, a pequena e única Nelinha. Que os malditos, os fascistas chegassem até ele, isso era previsível. “Eu sou um homem”, ele se diz no íntimo, mais como um desejo do que como uma certeza. “Se não sou um homem, eu o serei”, ele se diz depois, antes de apertar a campainha do apartamento da advogada Gardênia. Mas como as coisas, mesmo ali, possuem um acento irônico. Campainha, campa, ele aperta com as mãos trêmulas, que pode dar na outra campa, do cemitério.

A História não aceita desculpas 

 

O que se passa com um homem quando caminha para a sua morte? Ele entrou no prédio quase de um salto, como quem entra no consulado em área livre da guerra civil. Subiu no elevador como as pessoas sem saída vão, e agora aperta a campainha da advogada com a sua chama trêmula. Vida açoitada pelo vento em suas mãos. “Eu sou um homem”, e de tanto ódio pela tremedeira incontrolável, fecha os punhos, trinca a boca, pressiona os maxilares. “Eu sou um homem, porra. Eu não traio. Eu não trairei o que eu sou. Porra!”. E a porta se abre. À sua frente surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem naquele tempo, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos falar assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e os cadáveres que viu e denunciou, e o mundo abjeto contra o qual se indigna. Bem sei, ainda aqui não sou claro. Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira vem não só misturado ao respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos cadáveres de socialistas torturados. Então, se permitem um português mais chulo, ela desperta um tesão que é fora da genitália. Um tesão do espírito.

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Então Gardênia abre a porta e vê um jovem de cabelos crespos, assanhados, fronte suada e olhinhos miúdos, mas abertos além do normal.

– Doutora, eu preciso lhe falar urgente.

Vargas entra, olhando para trás. Gardênia fecha a porta, estica uma corrente de segurança no trilho.

– Sente-se. Pode falar.

Vargas desce para uma cadeira e se põe a gaguejar, um sintoma que nele é tensão e nervosismo, ele acha que não, acredita que é um tormento de palavras a se atropelarem na boca. A língua pesa, pouco flexível, como se anestesiada. Não lhe obedece:

– Dou-tô-tô-raaa!

– Calma. Fale devagar.

O que era pálido na face de Vargas enrubesce. Ele para a fala, inspira o ar com força e volta a iniciar mais lento, como lhe é possível:

– Dou-tôôra… Eu vou ser preso. Certe-eza.

– Por quê? Caiu algum conhecido seu?

– Nãao é…. é isso não. – E Vargas ganha uma fala retilínea, aos arrancos. – Só… só tem caído companheiro. E todo o mundo pensa que o culpado sou eu. Mas naão. A culpa, a entrega é de Daniel. Eu falava o contato pra Daniel e o companheiro caía. Eu sei, doutora! Eu tenho um primo que esclareceu pra mim. Daniel usa o carro de um torturador. E Daniel já notou que eu sei que ele é policial, doutora. Não tive como fingir, olhei pra cara dele e soube que ele estava mentindo. Doutora, eu tive que me controlar. Ele merecia um tiro na cara. Mas me controlei, não sei como. Acho que me controlei porque eu não queria acreditar que Daniel fosse infiltração. Mas agora não tenho mais dúvida. Vi Daniel na Rua da Aurora, com quem, doutora? Ele estava andando, conversando com um cara gordo, de óculos escuros, Fleury! Eu já vi foto desse assassino. Fleury está no Recife. Isso é missão, doutora. Fleury não sai de São Paulo pra fazer nada. Doutora, eu sou o próximo!

 

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Então Vargas arregala os olhos a ponto de quase saltá-los das órbitas. Não era só medo, essa palavra que ele evitava falar como expressão de um estado vergonhoso. Impossível de reprimir, não era só medo de ser preso. Agora, enquanto fala da presença da repressão cruel no Recife, Vargas tem a intuição do mais grave que se reserva para ele. Não será só preso. Ele vai ser morto. Executado, depois de infindável tortura. Então Vargas se vê dias adiante, e a cara que antevê não é a dele, mas de alguém inchado, tão largo, que não caberá no caixão encomendado para a sua altura e peso. Ele vê e recua com horror, bate com a mão no braço e espanta uma mosca.

Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”

21
Nov22

Padre do PR que declarou voto em Lula é encontrado morto com corte na garganta

Talis Andrade

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O agronegócio do Paraná tinha jurado o padre lulista de morte.“Se era vermelho, menos um”, festejaram. Este crime deve ser investigado pela Polícia Federal  depois de 1 de janeiro próximo. A polícia estadual é da extrema direita

 

O padre José Aparecido Bilha foi encontrado morto na manhã desta segunda-feira (21) no quintal da casa paroquial em Guaíra, no Oeste do Paraná. Ele tinha um corte profundo no pescoço e, ao lado do corpo, foi encontrada uma faca.

Bilha tinha 63 anos de idade e em março completou 28 de ordenação sacerdotal. Atuou no Seminário São Cura d’Ars, em Quatro Pontes, como promotor vocacional e diretor espiritual (1996-2000) e também como reitor (2000-2001). No mesmo período foi vigário paroquial na Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Quatro Pontes.

Bilha tinha 63 anos de idade e em março completou 28 de ordenação sacerdotal. Atuou no Seminário São Cura d’Ars, em Quatro Pontes, como promotor vocacional e diretor espiritual (1996-2000) e também como reitor (2000-2001). No mesmo período foi vigário paroquial na Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Quatro Pontes.

 

Ameaçado por bolsonaristas do agronegócio

 

Entre 2002 e 2003, o Padre Cido, como era conhecido, realizou uma especialização em Bogotá, na Colômbia. Em 2016 foi designado para acompanhar a formação seminarística junto ao Seminário São João Paulo II (Teologia), em Curitiba, permanecendo até o final de 2019, quando passou a atuar como pároco junto a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, em Guaíra.

Fieis dizem que ele estava sofrendo ameaças e pressão política por ter declarado voto em Lula. No sábado, houve uma reunião de empresários do agronegócio na cidade.

Num grupo de WhatsApp de moradores a que o DCM teve acesso, um homem que pediu para não ter a identidade revelada escreveu o seguinte: “Somos 35 mil habitantes, e a cidade é praticamente 95% bolsonarista. Vivemos reclusos, não postamos nada, não podemos ir na avenida comemorar a vitória do presidente, eles ficaram em seus caminhões fazendo rondas armados pra intimidar qualquer comemoração. Ele foi achado no pátio da igreja, como se alguém tivesse chamado e ele foi atender. Acho que essa história de suicídio é pra mascarar um homicídio”.

Um bolsonarista reagiu à morte de Bilha da seguinte maneira: “Se era vermelho, menos um”.

A Diocese de Toledo, por meio de seu bispo diocesano, D. João Carlos Seneme, se manifestou por meio de nota:

A Diocese de Toledo, por meio de seu bispo diocesano, D. João Carlos Seneme, e seu clero, manifestam o profundo pesar pelo falecimento do Pe. José Aparecido Bilha, 63 anos. Ele estava no exercício de seu ministério como pároco da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Guaíra, e foi encontrado morto por funcionários na abertura do expediente desta segunda-feira, 21 de novembro. Externamos condolências à família Bilha e à comunidade católica de Guaíra, especialmente desta paróquia, que foram surpreendidos pela triste notícia.

Informamos ainda que o caso está sendo investigado pelas autoridades de segurança pública e acompanhado pela Diocese. Rogamos a Deus que, na sua misericórdia, acolha este irmão no sacerdócio que dedicou sua vida pelo bem dos fiéis.”

Mensagem no grupo de WhatsApp de Guaíra sobre a morte do padre: “Se era vermelho, menos um”

 

04
Nov22

O caso da saudação nazista de bolsonaristas golpistas durante a execução do Hino Nacional em São Miguel do Oeste (SC)

Talis Andrade

 

Lenio Streck vê precipitação no MP de Santa Catarina e aciona o MPF

 

Por Rafa Santos

O jurista Lenio Streck, em parceria com Marcelo Cattoni, Ranieri Resende e Mauro Menezes, apresentou representação ao Ministério Público Federal sobre o caso da saudação nazista de bolsonaristas golpistas durante a execução do Hino Nacional em São Miguel do Oeste (SC).

Na petição, os autores afirmam que a saudação nazista é conduta criminosa, que merece ser apurada, com a identificação de seus autores e seu necessário enquadramento no tipo penal correspondente.

"Cumpre acrescentar que a matéria objeto da presente representação compõe obrigação internacional constante em recente tratado ratificado pelo Brasil, qual seja, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (2013), incorporada ao bloco constitucional com status de Emenda Constitucional (Decreto Legislativo nº 1/2021)", diz trecho do documento. 

Além de acionar o MPF, Streck também criticou o trabalho do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de Santa Catarina, que afirmou não ter identificado intenção de fazer apologia ao nazismo por parte dos bolsonaristas. 

"Muito estranha essa pressa do MP estadual em arquivar. Ao que consta, bastou ouvir o locutor que mandou um áudio para o coronel da polícia e fiat lux, tudo ficou esclarecido para o promotor. Ora, um fato dessa envergadura exige o máximo de cuidado. O mundo literalmente está de olho", disse Streck. "Essa explicação por WhatsApp aceita pelo MP não parece prudente e à altura da responsabilidade da instituição. O que o MP não entendeu, ou fez de conta que não entendeu, é que não interessa o ponto de vista interno subjetivo do autor ou mentor do gesto com a mão erguida. Importa é o que esse gesto representa na opinião comum dos olhares dos 'espectadores do evento', a aldeia global. A opinião pública é que importa. Por isso, esperamos que o MPF tenha mais cuidado com o fato ocorrido."

No áudio citado por Streck, uma das pessoas presentes ao ato, que se identifica como Itamar Schons, disse que pegou o microfone para tentar animar o grupo de bolsonaristas. "Era para erguer a mão em direção ao Exército como se estivesse pedindo ajuda", diz trecho do áudio. Ele ainda afirmou que a iniciativa buscava apenas passar uma "energia positiva" ao público.

 

 

 

Entidades repudiam gesto

 

Apesar da conclusão preliminar do MP-SC, o gesto foi repudiado por diversas entidades. A Confederação Israelita do Brasil condenou o episódio. "As imagens de manifestantes fazendo saudações nazistas em protesto em Santa Catarina são repugnantes e precisam ser investigadas e condenadas com veemência pelas autoridades e pela sociedade como um todo. O nazismo prega e pratica a morte e a destruição", diz trecho de nota divulgada pela entidade.

Já o embaixador da Alemanha no Brasil, Heiko Thoms, afirmou que o uso de símbolos nazistas e fascistas por "manifestantes" claramente de extrema direita é profundamente chocante. 

"Não se trata de liberdade de expressão, mas de um ataque à democracia e ao Estado de Direito no Brasil. Esse gesto desrespeita a memória das vítimas do nazismo e os horrores causados por ele."

A embaixada de Israel no país também divulgou comunicado em que condena qualquer forma de referência ao nazismo no Brasil. "Estamos preocupados com esse fenômeno aqui e contamos com as autoridades competentes para que tomem as providências necessárias para acabar com esse tipo de atos ultrajantes."

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25
Out22

Bolsonaro contra as crianças

Talis Andrade

Bolsonaro contra as crianças. Por Ilana Katz* | Combate Racismo Ambiental

CRIANÇA EMBAIXO DO VIADUTO: NINGUÉM VIVE BEM EM UM PAÍS QUE NEGLIGENCIA SUA POPULAÇÃO. FOTO: ISABELLA FINHOLDT/SUMAÚMA

 

A análise de fatos, vetos e políticas de governo mostra que o atual presidente determinou quem são as meninas e meninos “matáveis” do Brasil

 

por ILANA KATZ

As notícias sobre violências contra crianças costumam nos interromper. A gente para, pensa nos filhos, engole seco, lembra das crianças que vimos crescer e procura formas de lidar com a crueldade de um ato contra alguém com pouca ou nenhuma chance de se defender do ataque. Diante do horror que a humanidade pode produzir contra aqueles que deveria ser capaz de proteger, nos indignamos e fazemos a já clássica série de perguntas: como assim?, como pode?, com que coragem?. São interrogações que não têm fim e que não sossegam, porque a resposta que encontramos é contraintuitiva: sim, a humanidade é capaz de negligenciar, machucar, violar e matar crianças. A política da morte, no conceito de Achille Mbembe, a chamada necropolítica, não deixa as crianças de fora e escolhe entre aquelas a quem dá o direito à vida e à proteção social, e aquelas que considera “matáveis”. É preciso, porém, ir além da consternação. É preciso encarar por quais caminhos, hoje, o Brasil negligencia, desprotege e vulnerabiliza suas crianças. Análises dos quase 4 anos de Bolsonaro mostram que a lógica que guiou seu governo negligenciou a vida de determinadas crianças. É urgente agir para impedir que parte das infâncias brasileiras sigam na categoria de “matáveis” por mais 4 anos.

As crianças estão inscritas no artigo 227 da Constituição Brasileira como prioridade absoluta. Isso quer dizer que, de acordo com a Carta Magna, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Em 2022, ao examinarmos as condições de vida das crianças brasileiras, fica evidente que, diante do que está proposto, o fracasso é imenso. E, assim, torna-se monstruoso.

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11 em cada 100 brasileiros de 11 a 19 anos estão fora da escola e quase 50% saíram trabalhar e ajudar a família; entre os que ficaram, 21% já pensaram em desistir

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Crianças entre 4 a 10 anos que estão na escola sem conseguir aprender apresentam risco real de terem a vida escolar interrompida

Atos praticados de forma direta contra as crianças são estarrecedores. Os assassinatos hediondos, a violência sexual, ou coerções abusivas e violadoras, muitas vezes praticadas por representantes das instituições da República, como naquela oportunidade em que uma juíza ousou perguntar para uma menina de 11 anos, estuprada e grávida, se ela não podia aguentar mais um pouquinho para a criança nascer e evitar um aborto, chocam e indignam. A pergunta que não deveria dar descanso, porém, é sobre o que está sendo feito em termos de políticas efetivas contra a violência sexual que, de acordo com o Instituto Liberta, vitimiza 4 meninas por hora no Brasil.

Quando nos damos conta de que 76,5% dos crimes sexuais acontecem na família da vítima, não escapamos de considerar o papel fundamental que as escolas assumem nesse processo. A educação sexual, que ali pode e deve ter lugar, não é o único, mas é, certamente, um meio poderoso de agir contra a exploração sexual de meninas e meninos. Nublar esse debate com o argumento vazio e contracientífico que ficou conhecido como “ideologia de gênero”, dizendo que falar sobre sexo com crianças é o que as vitimiza, não faz nada mais do que perpetuar a violência contra as crianças. Negando informação, nega-se acolhimento e a possibilidade de emancipação dos jovens, que, sem isso, seguirão submetidos aos que os violentam. Os dados são muito claros: apenas 10% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são notificados.

O que vemos é que está em curso um outro nível de violência contra crianças: a que se institui por negligência deliberada e que impede o acesso a direitos básicos, como aconteceu no caso das crianças Yanomami, em áreas invadidas por garimpeiros ilegais, que morreram por excesso de vermes, que morreram “do que um comprimido poderia evitar”. Havia vermes – e não havia medicamentos. Crianças indígenas foram então condenadas a vomitar vermes – e, das 9 crianças que morreram por doenças básicas entre julho e o início de setembro, 2 delas morreram nessa condição.

A denúncia, mostrada na primeira edição de SUMAÚMA, explica muito bem como atos deliberados de negligência, praticados pelo governo que escolheu proteger apenas algumas crianças e vulnerabilizar outras, afeta populações determinadas. Essas negligências, porém, atingem a todas as crianças brasileiras – e não só as que estão marcadas pela desigualdade decidida por marcadores sociais de raça, classe, gênero e deficiência. Atinge mesmo as que poderiam se pensar protegidas pelo privilégio que é acessar direitos no Brasil. Ninguém vive bem em um país que negligencia o cuidado de sua população.

Nos últimos anos, o Brasil assistiu às mais diversas formas de desmantelamento de políticas de proteção e cuidado que vinham sendo construídas por disputas de ideias, e avançando pela pactuação democrática. As notícias recentes são estarrecedoras e, embora não deem conta de descrever tudo o que perdemos, revelam os efeitos diretos do desinvestimento público sobre a vida das crianças.

No campo da saúde, um levantamento sobre a queda da imunização no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra o impacto da desproteção de alguns sobre a vida de todos. Neste ano, 3 em cada 5 crianças brasileiras menores de 5 anos estão desprotegidas contra a poliomielite, a doença que causa a paralisia infantil. Segundo Bernardo Yoneshigue, repórter da Folha de S.Paulo, “os dados preocupam especialistas, que avaliam uma possibilidade real da volta do vírus ao país, porque, para manter o vírus sob controle, 95% do público-alvo deve estar imunizado, e, no ano de 2021, apenas 69,9% da população foi protegida”. O Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações mostra que a última vez que o Brasil alcançou a meta foi em 2015, ano anterior ao impeachment de Dilma Rousseff (PT). Vale lembrar também que, em 2019, o Brasil perdeu o certificado de erradicação do sarampo.

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Em 2019, o Brasil perdeu o certificado de erradicação do Sarampo

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Em 2022, 3 em cada 5 crianças brasileiras menores de 5 anos não estão protegidas contra poliomielite e há risco real de o vírus voltar

Na educação, o relatório da Unicef Educação Brasileira em 2022 — A Voz dos Adolescentes denuncia que 11 em cada 100 brasileiros com idades de 11 a 19 anos estão fora da escola em 2022. Quase metade deles deixaram a escola para trabalhar e ajudar a sustentar suas famílias. O Brasil que colocava cada vez mais gente na sala de aula não existe mais, tornou-se uma imagem do passado. Mais grave ainda é constatar que acessar a escola não quer dizer a mesma coisa que acessar o direito fundamental à educação. Este mesmo relatório mostra que, entre os que permanecem na escola, 21% pensaram em desistir nos últimos 3 meses, e, entre esses, o motivo principal de metade deles é a dificuldade de acompanhar as explicações ou atividades propostas. Para calcular o crescimento da evasão escolar, será ainda necessário somar as crianças de 4 a 10 anos que estão na escola sem conseguir aprender e que, portanto, apresentam risco real de terem a vida escolar interrompida.

Na segurança pública, a lógica segregacionista está explícita. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2021, o assassinato de crianças e adolescentes que vivem na Amazônia Legal foi 34,3% superior à média nacional. E a média nacional é alarmante: 8,7 mortes violentas de crianças e adolescentes a cada 100 mil pessoas de 0 a 19 anos. A desigualdade racial é mais do que evidente: 66,3% das vítimas são negras e 31,3%, brancas. Entre os adolescentes, a proporção de vítimas negras salta para espantosos 83,6%.

A violência contra crianças produzida por negligência deliberada fica muito clara quando constatamos que a verba federal para a compra de merenda escolar não sofre reajuste desde 2017, enquanto nos últimos 5 anos a inflação acumulada (de setembro de 2017 a setembro de 2022) foi de 31,26%. Não é novidade que parte significativa da população de crianças brasileiras tem, na merenda escolar, a garantia de alimentação diária. Em agosto deste ano, porém, o reajuste para 2023 foi novamente vetado pelo governo Bolsonaro.

Como fica explícito na análise das escolhas do governo Bolsonaro, no campo das infâncias não é preciso fazer muita coisa para desproteger: a escolha pode ser, apenas, não fazer. É o que aprendi com Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré: como a negligência de Estado vulnerabiliza determinadas populações. Um governo que protege suas crianças não as deixa morrer de fome. Segundo dados dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), porém, mais de 65 milhões de brasileiros passam fome. Outra pesquisa, esta feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostra que, entre os anos de 2019 e 2021, o Brasil ultrapassou, pela primeira vez, a média mundial de pessoas sem condição de se alimentar. O jornal Nexo, ao esmiuçar as políticas públicas, mostrou que “o percentual de residências com crianças abaixo de 10 anos com insegurança alimentar grave praticamente dobrou de 2020 para 2022, passando de 9,4% para 18,1 %. Quando nessas casas há 3 ou mais pessoas com até 18 anos, o número sobe para 25,7%”.

Sequer mencionamos lazer, acesso à cultura, promoção de saúde mental e o cenário já é mortífero. Muita gente no campo social e, principalmente, no campo da política partidária, acredita — ou, pelo menos, tenta nos fazer acreditar que acredita — que se dedica à proteção das infâncias. Mas para levar as infâncias a sério e sustentar compromissos de cuidado com cada uma das crianças brasileiras é necessário muito mais do que discursos em tom caridoso de dedicação às criancinhas. É como diz aquele provérbio africano que repetimos à exaustão, no curso da crise sociossanitária resultante da pandemia de covid-19: “É preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança”. A questão é que esse provérbio precisa ser lido, também, pelo seu avesso: é preciso cuidar da aldeia para cuidar de crianças.

A precisão dessa constatação pode ser vista no caso da mãe e do filho encontrados mortos, dentro de casa, em Uberlândia, em 13 de outubro de 2021. Segundo a imprensa, ela era cardíaca e provavelmente passou mal. O filho, tetraplégico, dependia dela e não pôde nem socorrê-la e nem sobreviver sem o cuidado da mãe. Morreram ambos, em dor e solidão, porque não havia uma aldeia, o que significa que não havia uma rede de proteção social para nenhum dos dois. É por fatos brutais como este que, se as violências contra crianças nos fazem parar, é imperativo que realmente paremos com a ladainha e passemos à ação. Não existe a possibilidade de cuidar de uma criança sem lhe oferecer um contexto que promova a vida — a sua, a dos seus, a dos outros.

O que temos como a mais dura e violenta realidade, porém, é que no país em que quase metade das famílias é chefiada por mulheres, a crise agravada pela pandemia produziu a feminização da fome. Os dados da já mencionada pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apontam que, ao produzir 4,6 milhões de novos pobres, o contexto da pandemia produziu também um aumento de 14 pontos percentuais entre as mulheres que estão em situação de insegurança alimentar. “Como resultado, a diferença entre gêneros da insegurança alimentar em 2021 é 6 vezes maior no Brasil do que na média global.” Como o próprio relatório da pesquisa aponta, as mulheres estão mais próximas das crianças, e isso gera consequências para o futuro do país: a subnutrição infantil deixa marcas físicas e mentais permanentes.

A negligência comprovadamente deliberada do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de covid-19 deixou, até agora, mais de 680 mil mortos no Brasil. Isso significa muitas filhas e filhos, milhares de netas e netos sem suas figuras de referência e proteção, lançadas precocemente na perda e no luto. Segundo a renomada revista de medicina Lancet, entre março de 2020 e abril de 2021, ao menos 130.363 crianças e adolescentes brasileiros, com até 17 anos, ficaram órfãos. Entre março de 2020 e setembro de 2021, os cartórios do Brasil registraram mais de 12 mil crianças de até 6 anos de idade na orfandade. Entre essas, 25,6% ainda não tinham completado 1 ano de idade quando perderam pai e/ou mãe. Esses números nos obrigam a questionar a ideia, que circula entre muitos, de que as crianças seriam a população menos afetada pela covid-19. As crianças órfãs são vítimas da covid porque são vítimas da chamada “pandemia oculta”, que, na verdade, está escancarada na nossa cara.

É ainda mais brutal. Em 7 de junho de 2021, o Brasil conquistou o título macabro de segundo país com mais mortes de crianças por covid-19 no mundo. Bolsonaro, porém, no dia 14 de outubro, em sua campanha à reeleição, disse que “a molecada” não morreu de covid, desmentindo os dados oficiais de seu próprio governo, que apontam 2.500 crianças e adolescentes de zero a 17 anos mortos pelo vírus. O extremista de direita diz que esses dados, dispostos pelo Ministério da Saúde de seu governo, foram fraudados. Como de hábito, não apresenta provas. Aqui na terra redonda, porém, cuidar das famílias enlutadas e proteger as crianças órfãs, necessariamente, demandam política pública e funcionamento efetivo da rede de proteção social. É por essa razão que Maria Thereza Marcílio, presidente da instituição Avante – Educação e Mobilização Social, sintetiza muito bem quando diz que “lugar de criança é no orçamento”.

A pauta racial é incontornável quando se discute a orfandade no Brasil. Pesquisas realizadas pela Rede de Pesquisa Solidária e pelo Instituto Pólis informam que pessoas negras morreram mais de covid-19 do que pessoas brancas. Portanto, a pandemia não foi democrática, como tentaram nos fazer acreditar no início. Ao contrário, a negligência deliberada do governo na gestão da crise reproduziu e ampliou as desigualdades sociais e raciais. Na base do mercado de trabalho, no qual se incluem os serviços domésticos, os números revelam o que já sabemos: “Não apenas as mulheres negras têm maiores chances de mortalidade pela covid-19 em comparação aos homens brancos em praticamente todas as ocupações de menor instrução, como também são maiores as chances em relação às mulheres brancas”.

A violência desses dados indica quais são as crianças que o Estado escolheu não proteger: na sua maioria, são as crianças filhas das mulheres negras. A hipótese de que muitas mulheres morreram como Cleonice Gonçalves, a empregada doméstica que foi uma das primeiras vítimas de covid no Brasil, faz sentido. Ela morreu porque não lhe foi concedida a possibilidade de isolamento social, morreu porque continuou servindo sua patroa, morreu porque não foi informada de que a patroa tinha covid-19. Quantas outras não cuidaram das crianças e da casa para os patrões se dedicarem ao home-office, que, já na expressão importada, revela a que classe social e a que raça serviu? Com as escolas fechadas, as filhas e filhos destas mulheres ficaram ou desamparadas ou protegidas por práticas de cuidado inventadas nos territórios considerados periféricos, que, diante da negligência do governo, buscam criar soluções para sobreviver.

Quem entrar no site da Câmera dos Deputados pode verificar que há um projeto de lei, de autoria do deputado Alexandre Padilha (PT), que desenha uma política de atenção integral às vítimas e familiares de vítimas da pandemia de covid-19, articulando toda a rede de proteção social (saúde, educação e assistência social). Mesmo aprovado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados em junho de 2022, o projeto tramita lentamente: ainda precisa ser aprovado em mais duas comissões e só depois vai para o Senado. A pergunta indignada insiste: por que esse projeto de lei não está em ação, cuidando de crianças e adolescentes órfãos que o Brasil deveria ser capaz de proteger?

Talvez as razões sejam muito próximas dos motivos que levaram o atual governo a cortar 90% do orçamento da verba destinada ao combate à violência contra mulher, 80% do investimento destinado à construção de creches e pré-escolas (de 2018 até hoje) e 45% da verba destinada ao tratamento do câncer, a segunda doença que mais mata no país. Mata as crianças, mata suas mães, seus pais, suas pessoas de referência.

A criança é um medidor das políticas de cuidado do Estado para promover justiça social. Nesta operação, o Brasil no qual vivemos nos últimos anos está reprovado. Como pesquisadora no campo das infâncias, há quatro anos me apoio na luta de Bruna Silva para situar os efeitos da necropolítica, a política que escolhe as crianças dignas de proteção e as que serão deixadas para morrer. Bruna é a mãe de Marcos Vinícius, o menino que, em 2018, aos 14 anos, levou um tiro e morreu com a roupa da escola, numa operação policial na favela da Maré. A última fala do filho impede a mãe de dormir: “Mãe, eles não viram que eu estava com a roupa da escola?”. Nem as marcas mais óbvias e universais da infância, como o uniforme da escola, foi capaz de protegê-lo.

Segundo o instituto Fogo Cruzado, de 2016 a 2022, ações e operações policiais mataram 47 crianças na Grande Rio e outras 87 foram vitimadas pelas chamadas “balas perdidas”, que parecem sempre achar os mesmos corpos negros. Em 26 de setembro, há poucos dias do primeiro turno das eleições no Brasil, José Henrique da Silva, o Careca, foi uma das 7 pessoas mortas em outra operação policial realizada nas favelas da Maré. Careca, 53 anos, era testemunha da morte de Marcos Vinícius. Com seu assassinato, parte importante da história de Marcos Vinícius desapareceu. Esta morte interrompeu a vida de um brasileiro que deixou muita saudade e também revitimizou Marcos Vinícius e sua família, ao ferir seu direito à memória e à justiça. A articulação destas duas mortes vitimiza o Brasil, ao reproduzir injustiça para as crianças e para os adultos, fragilizando qualquer experiência de cidadania.

Quando recebi a notícia da morte de Careca, era noite de Rosh Hashaná, ano-novo judaico. Nessa oportunidade, nós, judeus, nos desejamos um ano bom e doce. Porém, para brasileiras e brasileiros que sonhamos e lutamos por justiça social, é impossível dormir sem fazer a pergunta: em quais famílias o ano começa bom e doce?

Marcos Vinícius, Careca e a fome que se tornou feminina expõem dimensões diversas do horror a que estamos todas e todos submetidos. Difícil mesmo, sob essa condição, é justificar o discurso que diz defender a família quando parte das crianças foram convertidas pelo atual governo em “matáveis”, desprotegendo assim todas as infâncias. Suas mães, já condenadas à tristeza e à injustiça, voltaram a sentir fome, muita fome.

O primeiro turno mostrou que 51 milhões de brasileiras e brasileiros, ao escolher Bolsonaro nas urnas, elegeram também, conscientes ou não, tudo isso que aqui está descrito. Outros 5,4 milhões, ao votar nulo ou branco, se omitiram diante da vida de crianças. O mesmo se poderia dizer das quase 33 milhões de pessoas que não compareceram às urnas. Neste caso, porém, precisamos lembrar de Ana Mirtes, que não pode votar porque precisou escolher entre pagar o ônibus que a levaria à sua zona eleitoral em São Paulo ou dar comida ao filho de 10 anos. Ana Mirtes escolheu a vida imediata do filho e, assim, teve roubado seu direito de escolher quem ela acredita que cuidará melhor das infâncias nos próximos anos. Ana Mirtes votaria em Lula, mas preferiu adiar a fome do filho para o dia seguinte, retrato eloquente do que aconteceu com a população dos considerados “matáveis” nos últimos anos. O resultado das urnas, em 30 de outubro, no segundo turno das eleições, definirá o destino das crianças brasileiras. Definirá também quem somos nós, os adultos que escolhemos que tipo de governo vai cuidar delas.

*Ilana Katz. Psicanalista, doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pós-doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP; assessora do projeto Primeira Infância na Maré: Acesso a Direitos e Práticas de Cuidado” (Redes da Maré), no Rio de Janeiro; conselheira do Projeto Aldeias, no Médio Xingu, na Amazônia brasileira; integrante do conselho consultivo do Instituto Cáue — Redes de Inclusão; supervisora do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) e integrante da Rede de Pesquisa Saúde Mental Criança e Adolescente

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Entre 2019 e 2021, o país ultrapassou pela primeira vez a média mundial de pessoas sem condição de se alimentar

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O percentual de residências com crianças abaixo de 10 anos em insegurança alimentar grave foi de 9,4% (2020) para 18,1 % (2022)

24
Set22

Carta a um homem mau

Talis Andrade

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Não desejo a você o mal que você produz, mas sei que ele te encontrará, para além do mero fato de ele já estar em você

 

Marcia Tiburi

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Eu não posso começar essa carta dizendo “Prezado”, como se faz com pessoas que não conhecemos pessoalmente, também não posso escrever “desprezado”, que seria o contrário, porque, de fato, o conceito de desprezível é, ele mesmo, algo desprezível.  

Não tenho certeza que você esteja entendendo o que quero dizer, mas mesmo assim vou confiar na possibilidade de que sua maldade não tenha afetado sua inteligência de modo irrecuperável.  

É um fato que tanto a inteligência, que podemos designar por uma espécie de virtude cognitiva, quanto a bondade, que podemos designar como uma virtude ética, estão intimamente conectadas. Então, quando me refiro à sobrevivência de algum grau de inteligência na sua pessoa, refiro-me também à possível sustentação de algum grau de bondade. Evidentemente, tais conceitos complexos não podem ser assumidos de um ponto de vista dado no senso comum, espaço mental e linguístico no qual estamos todos mergulhados, principalmente porque no momento atual, o senso comum é um território de confusão mental e cognitiva. Em vez de ser um espaço onde buscamos entendimento, tornou-se um lugar onde o desentendimento e a perturbação tomaram conta. Você tem tudo a ver com isso.  

Você ajudou, com palavras e atos, a corromper a mentalidade e a sensibilidade de muita gente.  

É justamente isso o que me faz desconfiar que você não seja tão desinteligente como parece. É que, seja por intuição, seja por hábito, você entendeu desde muito cedo que a esfera pública é onde se constrói o poder político, algo que você sempre desejou ter, mesmo que não soubesse exatamente por quê. E você atuou para dominar a esfera pública. Você queria a alma de cada um, mas queria também a alma de todos e, como deixou claro, a morte para quem não concordava com você. E você sabia que, ao falar assim, conquistaria espaço, assim como quando tocou no profundo sentimento de medo que paralisa as pessoas, ao elogiar um torturador como quem diz: vejam do que sou capaz.  

Desde que você começou a ter alguma fama, você parece atuar para perturbar a mentalidade e a sensibilidade das pessoas com o objetivo de possui-las. E você conseguiu. Em termos muito simples, você descobriu que o discurso de ódio funcionava com as massas. No começo foi algo meio intuitivo. Você percebia que ao falar coisas ruins e propor ações também ruins, você conseguia seguidores e era ovacionado. Depois vieram as redes sociais e nelas você repetiu tudo o que já havia experimentado na vida analógica ao longo de décadas de exercício de falcatruas. Bastava falar grosserias, dizer coisas ofensivas e confiar que ninguém acreditaria no que você estava dizendo e fazendo e assim ir avançando, sem que ninguém percebesse muito bem o que você fazia, até chegar ao topo. Você era parte da democracia e, para muitos, inimputável antes de se beneficiar de um foro privilegiado.  

Você tinha um projeto de poder tanto econômico quanto político e o levaria adiante a qualquer custo.  

Você usou os preconceitos que dão compensação emocional a pessoas toscas e conseguiu os piores aliados, gente disposta a fazer o pior, como você.  

Gente que também tinha um projeto de poder econômico e politico, idêntico ao seu, que, no entanto, não tinha o seu carisma e a sua estranha expressão diabolicamente sedutora. Eles sabiam exterminar desafetos, mas quem sempre soube pregar a matança e incitar à morte foi você. Foi com essa gente sem respeito, sem dignidade, gente capaz de usar o nome de Deus como se fosse uma banana, que você se associou, ou melhor, que você encontrou o seu rebanho. Ninguém diferente de você se tornaria seu sócio. Você é o líder de uma legião de pessoas em tudo idênticas a você.  

Teus aliados, sejam perenes, sejam momentâneos, te adulam, mesmo que no fundo te odeiem, e isso não por que sejam melhores do que você, mas porque têm inveja de você. Se gostam ou não de você, não importa. Fato é que eles idolatram o poder que você tem, assim como você idolatra o poder de outros que você considera superiores a você. De fato, esses aliados são usados por você, mas também te usam. Para muitos você não passa de um espantalho em uma plantação. Você não é o dono de nada, mas aproveita para alimentar o narcisismo que é comum a muitos que almejam cargos importantes.  

 

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Nos rostos dos seus comparsas, pode-se ver que carregam a tristeza infinita das pessoas que se sentem um nada e, de vez em quando, se satisfazem com o fracasso e o sofrimento do outro, o máximo que conseguem sentir. Talvez você não lembre, mas eu lembro quando você riu dos doentes, dos mortos e também dos que restaram vivos chorando seus mortos. Eu lembro porque é impossível esquecer a dor de tanta gente, ao mesmo tempo e por um mesmo motivo.  

Não creio que nenhum ser humano consciente possa esquecer. Mesmo assim, não esquecer, não quer dizer alimentar o ressentimento.  

Mesmo que você seja a expressão perfeita da miséria humana, sobretudo porque hoje você encarna o poder que poderia salvar vidas, salvar a natureza e melhorar o mundo através de palavras e atos, a sua miséria espiritual, intelectual e afetiva, que reverbera ao redor provocando ondas de muitas outras misérias, eu me pergunto se você não poderia mudar. Mesmo que não seja possível, porque a vida é um ato de autorrealização constante, ou seja, nosso devir é, de fato, o que somos, eu ainda gostaria de acreditar que você poderia sair desse circuito de ódio que você cria e alimenta e, assim, liberar também aqueles que foram hipnotizados por suas palavras envenenadas. 

Escrevo para você, sem a intenção de te chamar de estúpido, mesmo que a estupidez não seja um xingamento e apenas uma categoria de análise. Ao contrário, escrevo porque tenho uma suspeita e como pessoa que ama o próximo, você não me é desprezível como eu disse desde o começo, por mais crítica que eu possa ser da sua linguagem, do seu modo de se apresentar e dos seus atos. Na verdade, por mais que você me cause horror. Por mais que você seja um criminoso que cometeu crimes contra a humanidade, eu não gostaria de abandonar o meu desejo de compreender o que levou você a ser quem você é. Eu me pergunto, como você se tornou essa pessoa?  

É por isso que lanço uma singela pergunta ligada à minha suspeita: onde está a sua dor? 

No meio da noite, quando todos dormem e você não tem a quem chamar, ou na cama do hospital, quando seus intestinos param de funcionar e você fica à beira da morte, sendo sempre salvo por médicos que cumprem com o dever humano de salvar vidas, lá no silêncio ao qual toda alma viva faz jus, naquele momento solitário no qual entramos em contato com a gente mesmo e vemos surgir os mais absurdos e indesejáveis sentimentos e monstros da imaginação, aqueles que escondemos de todos porque sentimos vergonha, o que vem à sua mente?  

Eu mesma me autorizo a responder: nada.  

É o nada.  

Contudo, o nada tem uma origem. Ele não é o vácuo.  

O nada é a dor de cada um, com a qual ele não pode entrar em contato.  

Seres humanos são seres de múltiplos sentimentos, alegres e tristes, como dizia um filósofo do passado. Quem é humano sofre em intensidades diversas. O sofrimento é algo que devemos afastar, evitar, contornar, amenizar conforme seja possível. Sofrer não é bom e ninguém precisa sofrer.  

Sem dúvida, o sofrimento em si é um problema, mas a falta de contato com o próprio sofrimento, ou com a própria dor que é uma imagem do sofrimento, não é um problema menor. A falta de contato com a própria dor obriga à escravidão no vazio que nos proíbe de saber sobre a dor. Presos ao vazio, somos incapazes de conhecer o outro.  

A dimensão da alteridade nos escapa quando caímos no vazio.  

Se não há alteridade, não há compaixão. É a impossibilidade de sentir a própria dor que impede que possamos sentir a dor do outro. Contudo, a ausência da alteridade moral, ética e política anda junto com a ausência de abertura para a alteridade cognitiva, ou seja, o conhecimento. Talvez por isso, você não possa deixar de ser diferente do que é e eu tenha que me resignar a esse triste fato. Tomado por esse vazio, que faz pensar que sua alma está morta, embora seu corpo esteja ainda vivo, você explode em mil vazios diariamente destruindo tudo o que estiver pela frente. O seu vazio é uma bomba nuclear explodindo a cultura e a natureza ao redor, a vida em geral que não pode mais ser simplesmente vivida desde que você, por esporte ou perversão, elogia a morte.  

Da experiência de tê-lo encontrado sobre a face do planeta Terra, tão próximo de nós, falando a nossa língua e respirando o nosso ar, saímos todos um pouco machucados. Você é uma ferida. Fica em aberto a questão da bondade da qual você nunca foi capaz, mas talvez em um sentido místico haja algo que possamos compreender. E compreender, mesmo as coisas ruins, é sempre algo bom.  

Contudo, preciso dizer, por mais que você não demonstre compaixão, é curioso como a sua falta de compaixão causou ainda mais compaixão em muita gente. Do mesmo modo, a sua falta de respeito fez muita gente sentir ainda mais respeito por tudo o que você desrespeita. Onde o seu ódio chegou, o amor de muita gente produziu forças de resistência existencial, moral e econômica. Muita gente passou por uma alquimia subjetiva e objetiva fortíssimas. No meu caso, ela foi tão intensa que me permitiu escrever essa carta modesta tentando te olhar de frente e sabendo que você está se desmanchando como uma estátua de sal.    

Talvez possamos sair também mais sábios desse encontro com o mal que você representa se soubermos fazer um projeto de mundo capaz de superar a imensa dor que constitui a condição de possibilidade de existências como a sua.  

Não lhe desejo o mal, seria uma redundância desejar você para você mesmo.  

Desejo mais que justiça, desejo que sejamos capazes de superar o mundo de matança e guerra, de desamor e rancor, de tristeza e preconceito que você propõe.  

Um dia você será passado, assim como eu e como todos. De minha parte, eu terei aprendido várias coisas, pois me esforço em viver para isso. Talvez você não tenha tempo para isso, pois sua última experiência nessa vida será com a justiça que não vai poupá-lo.  

Não desejo a você o mal que você produz, mas sei que ele te encontrará, para além do mero fato de ele já estar em você.  

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