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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

07
Fev22

Modos de acabar com uma raça

Talis Andrade

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Por Urariano Mota

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Existem vários modos de acabar com os negros.

No primeiro deles, o mais cruel, é sob tortura e espancamento de ódio. Um linchamento público, com assistência sob o sol, chope e passividade. Se um negro está sendo morto a porrada, alguma ele fez. Aliás, os negros sempre estão fazendo qualquer coisa de errado.

Assim foi com Moïse Kabagambe, que trabalhava no Rio de Janeiro em um quiosque da praia. O seu erro, a sua petulância. a sua loucura foi não reconhecer o seu lugar, quando cobrou dois dias de pagamento por seu trabalho. Para quê? Foi brutalizado por cinco bárbaros que o destruíram com pedaços de madeira e um taco de beisebol. Um dos assassinos falou que "resolveu extravasar a raiva que estava sentindo" e que, por isso, bateu no congolês com um taco de beisebol.Image

Mas hoje mesmo, em qualquer cidade brasileira, jovens são amarrados em postes, numa recuperação dos velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento de marginais. Alguma coisa eles fizeram.

No segundo e frequente modo, acaba-se com negros, com crianças negras de preferência, pelo terrorismo mais elementar das “balas perdidas” nas favelas e comunidades mais pobres. Meninos e meninas negros, negríssimos, negros claros, negras mestiças, mas sempre negros. Esses são crimes sem criminosos, de mortes sem investigação, porque é o natural morrer em razão da natureza da cor e lugar. Alguma coisa essas crianças fizeram.

No terceiro modo, com aparência suave, mas igualmente infame, negros morrem por desprezo, por descaso, ou pela mais simples desconsideração. Assim foi o caso do menininho Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes. Ali, tivemos a revelação do horror da injustiça de classes no Brasil. E no seu crime, o costume em vigor de acabar com os negros entre brasileiros. Dessa morte típica não podemos nem falar em tragédia, tamanha é a vulgarização de como se anula a vida negra.

Minutos antes da queda da criança Miguel, madame estava pintando as unhas em casa. Havia ficado com o filhinho Miguel da empregada Mirtes, que saíra para a rua com a cadela da patroa. A criança ficou a brincar com a filha da madame. Mas a desgraça de Miguel foi ter amor demais por sua mãe. Quando ela se ausentou, ele se pôs a chorar, a pedir por seu abrigo e colo. Mas por que o menininho, além de amar a mãe, de repente sentiu tanta falta do seu carinho? Alguma ele fez! O fato é que o menino, teimoso, rebelde, “cheio de vontades” – como se não fosse filho de negra – incomodou tanto, que outro jeito não teve a patroa a não ser deixá-lo à própria sorte. Azar, azar, azar, azar. Ou seja: quer sua mãe? Nas imagens do vídeo, a madame aparece levando o condenado a seu destino de menininho negro. Deixa-o sozinho no elevador do arranha-céu no Recife. E volta para as belas unhas. Súbito, um baque, um pequeno estrondo. Ossos quando batem no chão, descidos de boa altura, soam como bombas.

Um terceiro modo de se acabar com negro é confundi-los com assaltantes. Eles não precisam estar armados ou com um objeto furtados. Mas alguma eles fazem, sempre. Porque eles furtam mais que valores materiais: furtam a paciência de quem vê aquela cor. Então não perguntem por que um homem honesto, trabalhador, é confundido com um ladrão sem nunca ter roubado. Pois não veem que é negro? Se não roubou, vai roubar. Se não foi ele, foi um seu comparsa, Portanto, é preciso acabar com a sua raça.

Escrevi lá em cima que existem vários modos de acabar com uma raça. Depois, no primeiro parágrafo, disse que existem vários modos de acabar com os negros. Mas aqui devo fazer uma ressalva: existem vários modos de acabar com as pessoas de pele preta. No Brasil, negro é uma cor. Se alguém descende de negros, mas possui uma pele clara, não é negro. Pode até ser promovido a papel de espancador e assassino da sua raça. Para um cão danado, todos a ele. Até mesmo os cães moreninhos vão pra cima, porque não possuem o mal de ser negro. Apenas possuem a raiva raivosa e ruim de acabar com um negro legítimo. Acabando-se, assim, na própria alma que entregam ao inferno. Pois todo fogo é pouco para os racistas.

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06
Out21

Culpados por nascença

Talis Andrade

Crianças dormindo em calçada"A correlação entre ser negro e ser pobre parece suavizar ou diminuir o 'ser criança' no Brasil"

 

Os 150 anos da Lei do Ventre Livre me fizeram pensar no caso do menino Miguel e em como as crianças negras ainda nascem culpadas. No Brasil, meninos e meninas negros não são tão crianças quanto meninos e meninas brancos

 

por Ynaê Lopes dos Santos

Imagine esta situação: uma criança incomodada, e talvez manhosa, desconfortável num espaço que não lhe pertence. A criança quer a mãe. A criança quer o seu afago, seu colo, sua referência maior no mundo. O que o mundo faz? Uma parte bem representativa deste mundo coloca a criança incomodada e sozinha num elevador. A criança tem 5 anos. Não lê e não escreve ainda. Mal alcança os primeiros botões do elevador. Ela está sozinha. Ela busca a mãe. O elevador para, a criança sai. Ela quer a mãe, ela quer seu lugar no mundo. A criança vê um buraco. O buraco mostra a mãe que ela tanto quer, lá em baixo. A criança cai do buraco. O buraco é fundo, acabou seu mundo...

Nove andares: esse é o tamanho do buraco. A criança morre, sozinha, aos 5 anos, querendo a mãe. Alguém imagina o medo dessa criança? Alguém imagina a dor dessa mãe?

Essa é a história da morte do menino Miguel. No dia 2 de junho de 2020, sua mãe, a doméstica Mirtes Renata, foi trabalhar na casa da patroa – primeira-dama da cidade de Tamandaré, Pernambuco. Mirtes não tinha com quem deixar o filho, pois o Brasil estava em pleno isolamento social em meio à luta contra a covid-19, e levou o filho para o trabalho. Mirtes saiu para passear com o cachorro da patroa, que enquanto isso fazia as unhas. A patroa não quis lidar com o descontentamento de um menino de 5 anos, filho da empregada. A patroa deixou o menino sozinho, e o menino morreu.

Um detalhe que faz toda a diferença: o menino que morreu e sua mãe são negros. Tudo muito triste, tudo desesperador, mas que ganhou contornos de fatalidade.

Camadas do racismo

A história da morte do menino Miguel revela uma série de camadas do racismo que organiza a sociedade brasileira. A mãe, negra e pobre e que não tem onde deixar o filho, mas que também não pode faltar ao trabalho, mesmo numa pandemia. Uma trabalhadora cuja carteira de trabalho indica uma ocupação bem diferente daquela que ela executa diariamente na casa dos patrões, figuras públicas e políticas da região. A patroa que não quer aquele menino negro e pobre lhe incomodando. A mesma patroa que não vê problema algum em deixar um menino de 5 anos sozinho num elevador - afinal, ele não é apenas um menino, ele é um menino negro.

A patroa, Sari Corte Real, foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não se tem a intenção de matar. Conforme as leis nacionais, ela pôde pagar uma fiança de R$ 20 mil e responder ao processo em liberdade. A atuação rápida da polícia parece um alento em meio à dor. A Justiça, que se diz cega, parece estar atuando. Só que nessa história o racismo ultrapassou até mesmo a morte do menino Miguel e a dor de sua mãe. Sim, no Brasil o racismo pode matar quem já morreu.

A principal linha assumida pela defesa da patroa se concentra em culpabilizar o menino Miguel Otávio de Santana. Isso mesmo. Pouco mais de um ano depois, os advogados de defesa estão argumentando que uma criança de apenas 5 anos, que foi abandonada por um adulto, seja responsabilizada pela sua queda de um prédio de nove andares e pela morte decorrente dessa queda. E sabe por que os advogados de defesa tem a pachorra de desenvolver essa linha de raciocínio? Porque Miguel era um menino negro. E, no Brasil, meninos e meninas negros não são tão crianças quanto meninos e meninas brancos.

Quando lida assim, de supetão, a constatação de que existem infâncias e infâncias pode parecer desmedida. Um exagero de quem enxerga racismo em tudo – algo de que fui acusada recentemente numa dessas discussões de redes sociais. Sim, infelizmente eu enxergo racismo em tudo. E tanto a realidade quanto a história brasileiras me dão razão. Seria capaz de apostar que os advogados de defesa traçariam outro caminho caso Miguel fosse um menino branco. Na realidade, é bem possível que a própria Sari jamais deixasse um menino branco de 5 anos sozinho em um elevador.

Mas o menino era negro. O menino era pobre. O menino era o filho da empregada. O menino teve culpa.

História longa e violentaMirtes se emociona ao lembrar do filho; "sinto uma falta terrível", diz — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Mirtes se emociona ao lembrar do filho; "sinto uma falta terrível", diz — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

 

 

O encadeamento dessas condições teve um desfecho funesto no caso de Miguel. A correlação entre ser negro e ser pobre parece suavizar ou diminuir o "ser criança", como se a infância fosse um lugar interditado para crianças negras e pobres, que têm que nascer sabendo por onde e com quem andar, quando e se podem brincar, cientes dos perigos do mundo, da culpa que carregam por serem quem são. Uma correlação que tem uma longa e violenta história no Brasil.

Nesta semana, foram comemorados no dia 28 de setembro os 150 anos da Lei do Ventre Livre. Promulgada em 1871, essa foi uma das mais importantes leis abolicionistas do Brasil. Uma lei que não só estabelecia o fim gradual para a escravidão, como também reconhecia que os escravizados tinham direito ao pecúlio, que a alforria era um direito, e que a partir de então haveria um fundo de emancipação para acelerar o processo de abolição da escravidão no país.

Todavia, essa mesma lei estava calcada em uma premissa: as crianças, que a partir de então eram filhas de ventres negros e livres, não eram assim, tão crianças. Elas eram filhas de mulheres negras e escravizadas. O nascimento continuava sendo uma espécie de mácula, que permitia que os proprietários das escravizadas pudessem escolher se a liberdade do recém-nascido seria paga por dinheiro ou pelo trabalho dessa criança, até que ela completasse os 21 anos. Essas crianças ainda eram vistas como propriedades, como bens, e por isso não tinham os mesmos direitos, não ocupavam o mesmo lugar das brancas. Essas crianças negras continuavam nascendo culpadas.

O que tornou possível que a vida dessas crianças fosse experimentada sob o signo da liberdade foram as ações de mães negras (por vezes escravizadas) que criaram diferentes estratégias, redes de afeto e de apoio, lutando incessantemente para que seus filhos não fossem culpados. Mulheres que, como Mirtes, queriam justiça, mesmo quando já não podiam embalar seus filhos.Miguel Otávio, de 5 anos, morreu após cair de um prédio de luxo, no Recife, em 2 de junho de 2020 — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press

Miguel Otávio, de 5 anos, morreu após cair de um prédio de luxo, no Recife, em 2 de junho de 2020 — Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press / G1

 
06
Jun20

Miguel, os 5 anos mortos, e a escravidão

Talis Andrade

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20 mil reais por um negrinho foi de graça

por Urariano Mota

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O caso do menininho Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes, revela o horror da injustiça de classes no Brasil. E no seu crime, o costume em vigor de morte aos negros entre brasileiros. 

Não exagero. Não é possível exagero diante da criança negra que foi desprezada para cair do nono andar até o chão. Dessa morte não podemos nem falar em tragédia, tamanha é a vulgarização de como se anula a vida negra, das favelas no Brasil onde são caçadas, às domésticas que trabalham e servem sob relações “amigáveis”, e portanto falsas. O caso de Miguel Otávio e Mirtes Renata, filho e  mãe, é um modelo de crime que não se pune, crime didático antes do sangue do menino, durante e depois.

Na primeira lição, vemos a confortável felicidade das relações entre patrões e empregadas domésticas. Devo dizer, a felicidade confortável de patrões que a traduzem para a felicidade das suas empregadas. “Não têm do reclamar. Dou tudo a elas”, chegam a falar. “Aqui em casa, empregada é pessoa da família”, sem vergonha se gabam. O curioso é que eles, nessas bondosas falas, são quase sinceros. Eles querem dizer, sem  a ousadia da expressão, que para negrinhas elas têm mais do que recebem por aí, de outros cruéis de caricatura. E, de fato, em suas casas as empregadas comem – “e como comem!”, observam. Elas comem feito animais, isso quer dizer, elas têm uma fome secular, que nunca foi satisfeita. As empregadas dormem! Ora, até dormem – “dormem melhor que eu, pobre de mim, pois tenho insônia”. Muito bem. E neste capítulo, nesta lição, vê melhor quem ganhou a visão da experiência do sofrer.

Um motorista de uber já me contou uma vez, assim do nada, como se fosse de repente: “Eu reconheço na rua, só de olhar, quem é e quem não é empregada doméstica”. Mas como assim? perguntei. E ele: “No ponto do ônibus, elas estão sempre de cabelo molhado e com uma sacolinha. Sabe o que é? No fim do dia, tomam banho e levam pra casa os restos do almoço da patroa. Até hoje,  não errei uma. Eu sei, porque minha esposa é faxineira”. E seguiu em frente: “Ela é uma explorada! Muitas vezes, de 7 da noite, na hora de largar, a madame chega e pede pra ela aprontar a janta do patrão. Isso quando não vem com umas amigas pra tomar umas. Aí a minha mulher vai de faxineira a cozinheira. Faz tudo pra dondoca”. 

No caso de Mirtes Renata Santana de Souza, e da patroa Sari Corte Real, o afeto, a boa amizade merecia até casa de praia. Em Tamandaré, litoral sul de Pernambuco, onde o patrão Sérgio Hacker Corte Real é prefeito. Acompanham a excelência? Isso quis dizer: para fugir do surto do coronavírus no Recife, a patroa foi para a casa na praia e levou as empregadas e filhinho Miguel. Notem como se reproduz a casa-grande dos bons tempos. Os patrões “empregavam” uma família em sua casa: Mirtes, a sua mãe e Miguel. Que receberam, além do afeto, o coronavírus, pois o prefeito adoeceu e se curou. Enquanto isso, as empregadas contaminadas seguiam no trabalho, porque a faxina e a cozinha não podem parar. Madame ia trabalhar como uma negra? Era só o que faltava. E que se dane a civilização!  Image

Segunda lição de sangue. Minutos antes da queda da criança Miguel, madame estava pintando as unhas em casa. Havia ficado com o filhinho da empregada Mirtes, que saíra para a rua com a cadela da patroa. A criança ficou a brincar com a filha da madame. (Lembram dos escravozinhos negros que distraíam os filhos dos senhores de engenho? ) Mas a desgraça de Miguel foi ter amor demais por sua mãe. Quando ela se ausentou, ele se pôs a chorar, a pedir por seu abrigo e colo. Mas por que o menininho, além de amar a mãe, de repente sentiu tanta falta do seu carinho? Só os que sentem e sentiram essa falta saberiam contar. O fato é que o menino, teimoso, rebelde, “cheio de vontades” – como se não fosse filho de negra – incomodou tanto, que outro jeito não teve a patroa a não ser deixá-lo à própria sorte. Azar, azar, azar, azar. Ou seja: quer sua mãe? Vá lá. Boa sorte. Nas imagens do vídeo, a madame aparece levando o condenado a seu destino de menininho negrinho. E volta para as belas unhas. Súbito, um baque, um pequeno estrondo. Ossos quando batem no chão, descidos de boa altura, soam como bombas. Eu já vi o som de um homem que se jogou do alto do Edifício Holiday em Boa Viagem. Mas de um menininho, nunca. Daí que lhe ponho um pequeno estrondo no seu barulho de ossinhos quebrados.     

E vamos então para a terceira lição didática de um crime de classe em Pernambuco. Na primeira entrevista, um dos investigadores, ao ser perguntado se havia pessoas no apartamento onde a mãe da criança trabalhava, ele respondeu um tanto contrariado: “isso vai depender ainda da investigação”. Pergunta simples, resposta que oculta. Vamos esperar o que o chefe vai dizer, seria o melhor entendimento para o que investigador respondeu. Então o caso passou a ser tratado como uma tragédia, uma fatalidade, vale dizer, um destino de menininhos negrinhos que se metem onde não devem brincar. Então vêm as declarações de familiares da vítima de 5 anos, que falam: “no apartamento estavam a patroa e sua manicure”. Ah, bom, diante do clamor, o diabo de rumo inesperado. Havia que se investigar mais, ir até a inimputável família de elite. Então, é verdade, a patroa foi responsabilizada por crime culposo. Quem não é do mundo das leis até acha que crime culposo é o crime de culpa mesmo. Mas não, é um crime menor, pois nele o autor não teve a intenção de matar. Matou sem querer, por um acidente, uma “fatalidade”, como declarou o delegado em entrevista. Então dona Sari pagou uma fiança de 20 mil reais e foi embora.

Mas a justiça das gentes do Brasil exigem mais investigação e menos morte fatal. Em lugar da tristeza e do ar compungido, todos desejam saber: o que declarou a manicure, testemunha dos “esperneios” da criancinha e das palavras da madame, antes de levar Miguel para o seu cadafalso? Se a manicure foi ouvida, o que declarou? Mais; alguma psicóloga foi chamada para entrevistar a filhinha da madame que brincou com o menininho no apartamento minutos antes da queda? São caminhos que poderiam ser trilhados, anteriores à tipificação menor para o crime da patroa, que poderia receber a pena de um crime de dolo eventual, porque ela assumiu o risco de se desfazer de uma criança, jogando-a para a última viagem em um elevador.  

E por último e por fim, a quarta e terrível lição. As sucessivas entrevistas de Mirtes Renata Santana de Souza revelam uma progressão de luzes na sua consciência. O que no começo lhe pareceu um acidente trágico, revelou-se depois uma estranheza, quase que de piedade, quando a querida patroa lhe falou que ia ser presa. E Mirtes lhe perguntou: “Como a senhora vai ser presa se não cometeu crime?”.  Na pergunta havia uma desconfiança que passava ao longe, mais alta que o nono andar das Torres Gêmeas, de onde Miguel caiu. Mas desconfiança é dor que dá e passa, ainda que deixe umas pistas confusas. Nesse primeiro tempo, Mirtes não quis ver as imagens do último minuto de Miguel no elevador. Mas depois viu, e o que viu lhe causou uma revolta: a madame conduziu o negrinho mais lindo da vida e apertou um andar do elevador. Apertou ou mostrou, o que não diminui o seu crime. E voltou para a sua manicure. Súbito, um pequeno estrondo. Mas não tão súbito, porque era previsível. 

20 mil reais por um negrinho foi de graça.  

 

06
Jun20

'O Brasil encontrou formas perversas que transformaram o racismo em algo não dito'

Talis Andrade

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II - Caso Miguel: morte de menino no Recife mostra 'como supremacia branca funciona no Brasil', diz historiadora 

Camilla Costa entrevista Luciana Brito

 

BBC News Brasil - O que a morte de Miguel Otávio revela, em sua opinião, sobre o racismo no Brasil?

Luciana Brito - É trágico que uma criança tenha que morrer para mostrar isso, mas é assim que a ideia de supremacia branca funciona no Brasil. Eis a principal diferença entre a questão racial aqui e nos Estados Unidos.

Nem posso dizer que não temos aqueles supremacistas brancos clássicos, porque agora vemos aqui passeatas inspiradas na Ku Klux Klan, por exemplo.

Nós tivemos teses racialistas no Brasil, no início do século 20, dizendo que brancos seriam superiores a negros. Mas depois de um certo momento, essa ideia começou a se enraizar nos costumes.

Enquanto a ideia de supremacia branca nos Estados Unidos se transformava em leis, nos anos 1940, 1950 e 1960, aqui ela já estava profundamente nos costumes da população brasileira. Esta é a nossa supremacia branca.

Mesmo que não tenhamos tido as mesmas leis segregacionistas que os EUA, temos o mesmo princípio de que algumas pessoas são mais humanas e mais cidadãs do que outras.

 

BBC News Brasil - Que elementos do caso, na sua opinião, o tornam tão emblemático desse princípio?

Luciana Brito - Desde o início da pandemia estamos falando das trabalhadoras domésticas. Elas foram as primeiras a ser infectadas sem sair do país. Foram as primeiras a aparecer no fundo das lives (transmissões ao vivo) das celebridades. Então essa mulher, Mirtes Renata, a mãe de Miguel, foi infectada, não tinha onde deixar o filho e o levou para o local de trabalho, que era um local de infecção — já que os patrões dela estavam infectados. Esse é o primeiro ponto.

Depois temos a cena da patroa em casa rodeada de serviçais. Eu chamo isso de "delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira". É o saudosismo do Brasil escravocrata colonial. É o sentimento que faz uma pessoa se rodear de serviçais num contexto de pandemia e de isolamento social. Ainda que esses serviçais, a doméstica, a manicure e o menino, estivessem correndo risco de vida.Miguel Otávio Santana da Silva

Também há o fato de que a mãe da criança teve que sair para levar o cachorro para defecar, coisa que qualquer pessoa poderia fazer, inclusive a dona do cachorro. Ela não abre mão de fazer as unhas para que o cachorro vá defecar. O cachorro tem um pouco da extensão da humanidade da dona. Ele tem uma atenção mais qualificada, que é a da trabalhadora doméstica.Image

O menino fica (em casa). Ele incomoda a patroa porque chora pela mãe, e ela o deixa no elevador sozinho. Eu vi a cena do elevador (no vídeo das câmeras de segurança exibido pela Polícia Civil). A forma como a patroa se dirige ao menino de 5 anos é como se estivesse falando a um adulto impertinente.

Se a gente quer falar nos Estados Unidos, isso me lembrou Tamir Rice, que morreu em 2014. Ele estava em um parque brincando com uma arma de brinquedo, uma pessoa viu da janela e ligou para a polícia. Disse para a polícia que ele aparentava ter 20 anos. Ele tinha 12. O carro da polícia chegou e ainda estava em movimento quando o policial atirou e matou Tamir. Crianças negras, especialmente meninos, não têm infância.

A patroa de Mirtes fala com um menino de 5 anos sem cuidado. Essa é a idade do meu filho. Ele não fica em momento algum fora de nossas vistas. Meu filho nunca andou sozinho no elevador do meu prédio, nem nos meus momentos de maior cansaço e preguiça.

A mulher bota o menino no elevador, aperta o botão, como dá para ver no vídeo, e aparentemente volta e continua a fazer as unhas. Não conseguimos ter uma ideia exata de tempo pela entrevista da mãe na imprensa, mas entendi que quando a mãe volta do passeio com o cachorro, ela fica sabendo pelo zelador que alguém caiu, e descobre o filho morto no chão.

Ou seja, a patroa colocou o menino no elevador e sequer ficou vigiando pra saber se ele tinha voltado ou não. Ela não sabia que ele tinha caído. Isso revela um desprezo por um ser humano. E é aí que eu vejo uma noção de supremacia branca. Não precisa vestir roupa da Ku Klux Klan. (Continua)

 

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