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A política de extermínio dos índios no governo fascista é uma definição clássica do que é genocídio
“É preciso falar de esperança todos dias. Só para que ninguém esqueça que ela existe.” Mia Couto
por Antonio Carlos de Almeida Castro
Quando, no início da pandemia, eu chamei o então Presidente Bolsonaro de genocida, sofri muitas críticas pois havia uma indefinição sobre a pertinência técnica da tipificação do crime de genocídio. Reconheço que a discussão é séria e não podemos acusar sem o devido embasamento. Reconheço, também, que muitos exageraram do direito de criticar o enquadramento no tipo penal de genocídio por uma indisfarçável simpatia pelo então poderoso fascista. Mas, como advogado e militante dos direitos humanos, talvez eu tenha menos amarras que meus amigos professores e doutrinadores. É uma opção de vida e eu respeito, embora critique.
Agora, estamos em outro momento e a discussão sobre genocídio se dá pelo extermínio, deliberado e cruel, dos Yanomamis. Desta vez, o tipo penal parece que foi feito para responsabilizar o genocida Jair Messias Bolsonaro. Basta ler (Lei nº 2.889/1956):
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: (Vide Lei nº 7.960, de 1989):
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
O Presidente Lula é hoje, inquestionavelmente, o maior líder político do planeta. A visita do Presidente aos índios Yanomamis vai sensibilizar o mundo. Vamos expor a todas as nações civilizadas a vergonha e o massacre coordenado deliberadamente pelo governo fascista do Bolsonaro. A política de extermínio dos índios no governo fascista é uma definição clássica do que é genocídio. Volto, tempos depois, a clamar por um processo que condene esse monstro que optou pela morte, que exaltou a tortura, que disseminou o ódio e a violência. As evidências estão postas.
Com a palavra os professores e os doutrinadores. O povo originário agradece. Não só eles, mas toda a humanidade. Vamos aos Tribunais Internacionais.
“Mudar de conceitos sobre o tempo leva tempo. E quem fala de tempo fala de espera e da sua irmã gêmea, a esperança.” Mia Couto
O indivíduo para chegar ao status de cidadão eleitor percorreu longo e sofrido caminho. Dominado pelo poder, foi súdito, vassalo, servo, escravo, mercadoria até que revoluções libertárias e avanços civilizatórios transformaram seres oprimidos em pessoas que, em tese, passaram a ter o poder ou o poder-dever de eleger seus representantes nos governos democráticos.
Não está em discussão o nível ou a qualidade dos regimes representativos. Em tese, a passagem de súdito para a condição de cidadão assegurou a participação e proteção das pessoas quanto aos abusos do poder. O eleitor passou a ter um valor real no jogo da política.
No entanto, a cada eleição, o cidadão, liberto da servidão, passou a ser objeto do desejo e do crescente assédio dos competidores. O ambiente eleitoral virou uma arena em que o diálogo deu lugar à estridência das acusações, desaforos e ao mais poderoso dos argumentos que vem, literalmente, dos fundos.
Em todo embate político ou luta por causas, aparecem os militantes que assumem um destacado papel. Todo militante é chato. A chatice do militante é barulhenta, agressiva e onipresente. Qualquer que seja o sufixo ismo que defina doutrinas, o militante encarna a verdade absoluta e o ideal da perfeição. É insuportável.
Quem leu “O Tratado Geral dos Chatos” (Guilherme de Figueiredo, Ed. Civilização Brasileira, 1963), chega à conclusão de que todo ser humano tem uma propensão natural a ser chato. O alcance e o sabor da obra devia ser um capítulo da teoria de Darwin que, até hoje, chateia os adeptos do criacionismo. Ninguém escapa. É uma tipologia numerosa, com imenso e diversificado campo de ação.
O autor não poupa ninguém. Enuncia, inclusive, o axioma de Herodes: “Toda criança é chata” (exceto as nossas rsrs). Na extensa classificação, o militante se enquadra entre os chatos catequéticos aqueles que procuram converter no proselitismo que pregam (política, religião, dietas), se possível, a humanidade inteira.
O eleitor está sob o bombardeio, inclusive, dos militantes tecnológicos, linkados na WEB, o ciberespaço, com artefatos chatíssimos (porém, úteis, eis a questão), linguagem própria e uma rede de mídias sociais onde o máximo virtual pode criar a pós-verdade ou a transmentira.
O militante é perigoso porque propaga a intolerância e o fanatismo, impulsionado pelas mídias sociais. Porém, o eleitor brasileiro faz parte de um universo mais amplo, uma cidadania crítica, vigilante e uma sociedade civil que, reiteradamente, têm dado provas de que está mobilizada no apoio ao regime democrático.
Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte
Um dos gênios baianos do mundo, um dos gênios brasileiros portanto, Gilberto Passos Gil Moreira completou 80 anos. Estamos todos de parabéns por sua vida fecunda. Creio que não será excessiva a lembrança de uma complicada entrevista que ele me concedeu no Recife, há 15 anos. Vamos ao texto escrito e gravado.
As dificuldades de um repórter! Esta entrevista foi feita a duras penas com o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em fevereiro de 2007, mas merece ser relida também por revelar os ossos do ofício, e o périplo que é gravar em alguns minutos as opiniões de um superstar-ministro.
A entrevista que vão ler durou somente 17 minutos. Mas isso não foi conseguido com facilidade, nem foi construído em 17 minutos. O compositor, cantor, músico, agitador cultural, então ministro Gilberto Gil, pelo cerco e pelo assédio da imprensa, pela corte que lhe segue, pela roda de pessoas excitadas com a sua presença, pela quantidade de fotos e imagens que a todo minuto lhe tiram, pelos interesses econômicos, financeiros, culturais que o envolvem, que o desejam a todo instante, o senhor Gilberto Gil é um pop star. Com a diferença, em relação ao mundo pop, que o star é um homem que pensa, que teoriza, é um pop culto, e que está no poder político. Todos lhe sorriem. Todos lhe são simpáticos. Todos querem tocá-lo na aura, se possível com volta de algo mais concreto que a luz mística.
Esta entrevista ocorreu na noite do sábado 10.2.2007. Era o último dia do Ministro da Cultura no Recife, onde chegara para a Feira Música Brasil. Ainda que houvesse acertado dois dias antes, e só o deus Mu Dança sabe que forças intestinas arranquei para isso, por várias vezes pensei desistir. Não fosse a minha mulher, eu teria desistido da entrevista. Fugido, corrido. Aos meus desabafos, enquanto caminhava ao longo de um préstito real, sufocado, quando eu dizia, “vou desistir”, a senhora Francesca era mais prática, como sói acontecer com todas as mulheres de indivíduos desastrados: “Você fez o mais difícil. Não pode mais desistir”. E por isso eu segui, com o mesmo sentimento dos que seguem a caminho da primeira viagem de avião. Talvez na porta, um segundo antes do voo, eu pudesse desistir, pensava. E por isso eu seguia e fui.
Entendam a razão. Quando o Ministro e Compositor desceu do palco no qual respondera a perguntas de um auditório, ao me acercar dele, recebi cotoveladas, discretos empurrões, golpes elegantes no ventre, passagens bloqueadas com ares de acaso. Todos cometidos pela elite cultural e artística. As pessoas educadas, finas, se agridem com etiqueta. Impossível não lembrar de O Anjo Exterminador. Com a diferença de que, agora, todos podiam sair e não queriam. Desejavam todos estar em torno, bem próximos, e o inimigo era quem pensasse igual e à sua maneira. Todos queriam estar perto, conversar, receber um olhar, um incentivo, sair na foto com o Ministro, que vem a ser a mesma pessoa do compositor mundialmente famoso. Senti-me sob constrangimento por ser um, mais um dos que lhe sorriem, que procuram ser simpáticos, úteis, camaradas. Tão íntimos somos, não é? Em resumo, o escritor que lhes fala era mais um dos que adulavam o pop star. O sorriso deles, o ar prestimoso, obsequioso, era o meu. Eu os censurava e os repetia. Que imagem, meus amigos. Isso não foi nem era o meu espelho inesquecível.
“Eu vou desistir, eu vou…”. A simpática assessora Nanan Catalão me concedeu: “Você tem um máximo de 20 minutos”. Certo. Mas onde? Iremos para algum lugar sossegado, uma reserva de paz nessa agitação? – A realidade tem a perversão de não ser conforme o nosso desejo. Eu não sabia que o mundo pop está acostumado a conversas sob luzes e câmeras e público ao redor. Para reforço do “eu vou desistir”, o compositor sentou-se em um banquinho, bem à vista de todos, à entrada do teatro. Um círculo de circo se abriu em torno de nós dois. Ficamos em uma arena. “Aqui mesmo”, Nanan apontou. Passei então a sorrir. Tiravam fotos do ministro, e se não houver uma segura edição, haverá um sujeito barbudo, perdido, a pensar em uma delas, “virei papagaio de pirata”. Aquele papagaio que aparece no ombro do pirata, bem sabem, no rótulo do Ron Montilla. Mas fotos não revelam pensamentos, podem apenas revelar caras assustadas, a sorrir. Menos mal. Ao trabalho. Já que chegaste até aqui…
Entre as minhas habilidades de repórter a pior delas é trabalhar com o gravador. Bom, eu estava com uma só fita cassete, cassete, isso mesmo, de uma entrevista com padres sobre a crise da Igreja em Pernambuco. Não havia outro remédio, eu deveria gravar por cima. Certo. Mas o que fazer com meu roteiro prévio, com a pesquisa feita durante todo o dia, em que alinhavei perguntas, intervenções, ditos espirituosos, que seriam ditos em sala fechada, eu e Gilberto Gil, quem sabe durante a noite inteira? “A sua vez é agora”, eu ouvi de Nanan. Era agora ou nunca, e eu não conseguia mais ler as perguntas anotadas em razão da miopia. Perguntas inúteis, naquela hora e circunstância. Então vamos, eu me disse, com uma resolução dos náufragos, se é que os náufragos têm alguma resolução. Notei então que a fita no gravador estava no fim – pelo menos à minha vista pareceu. E procurei, enquanto o Senhor Ministro esperava, achar o miserável e misterioso caminho por onde a fita seria retirada. Olhei para a minha mulher, e a sua cumplicidade me fez achar o caminho. Descobri, mudei o lado da fita. Muito bem, apertei a tecla vermelha. Gravando. Pergunto então ao compositor Gilberto Gil como foi o seu exílio em Londres, quando expulso pela ditadura. Ele me responde com um solo maravilhoso, a cantar em inglês. Que momento, que privilégio, eu me disse, e a fita parou de rolar, porque atingira o fim! Perdi a música. Um amigo então, o DJ e músico Tales, repôs a fita no lugar. E me avisou, gentil: “Está gravando”.
Não toquei mais no gravador, e por isso pude ver, ouvir e prestar atenção à pessoa do artista. Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte. Certo, dirão, isso é comum a toda e qualquer pessoa. Sim, mas observem esse trecho da entrevista: “Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez”, para concluir, “eu não quero”. Isso escrito não permite ouvir as modulações e melodia que ele imprime na voz. O ritmo, enfim. Quando ele se referiu a Paulo Francis, houve um trecho em que deu uma entonação ao adjetivo “inaceitáveis”, que procurei dar uma pálida ideia com um ponto de exclamação seguido de reticências. Ainda assim, se torna inaudível, na escrita. Direi então que o adjetivo “inaceitáveis” veio como uma ênfase, um trecho de um coco cantado por Jackson do Pandeiro. Percebem? Nele houve uma divisão silábica, que além da interpretação já é música. Inacei-táveis!… Diferente no entanto de Jackson, que era “esse jogo não é um a um, se o meu time perder eu mato um, é encarnado-preto-e-branco, é encarnado-e-preto”, para quem as coisas, os fenômenos se definiam por oposição, o que é típico da formação de um homem do povo, de modo diferente o compositor Gilberto Gil compõe. Tem idas e vindas a sua fala, sem jamais chegar a uma definição que não admita nuances. Para ele não existe A ou B, para ele, sempre, as coisas são A e B ao mesmo tempo. Por vezes pode chegar à metafísica, mas é metafísica agradável, que guarda uma dialética, se nos expressamos à sua maneira. Ele poderá dizer, por exemplo, que as coisas não existentes existem, e completar, para maior espanto, que o não existente é o que existe. Formulação ina-cei-tável em Jackson do Pandeiro.
Essa maneira, dizendo melhor, esse conteúdo de expressão, porque nele a forma é sempre o conteúdo, leva-o a evitar os substantivos mais simples, como se fossem primitivos, toscos, poderia ser pensado. Mas não. Isso é tático, quando não estratégico. Ou ambos, para escrever à sua maneira. Vocês irão ver nesta entrevista como ele se refere a uma parcela do público brasileiro que admirava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele dirá que eram jovens militantes da luta armada, do foco. Ou melhor, dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. E no entanto, saibam, isso não é descoberta desses dias. Eu mesmo conheci jovens que aliavam sua prática de combate à ditadura a palavras do tropicalismo. Contrários ao mundo dos olhos claros, de Carolina e Januária na janela, do Chico Buarque daqueles anos, naquele tempo. E eram típicos, digamos assim, esses bravos militantes. Daí, também, que nessa busca Gilberto Gil crie neologismos, em mais de uma oportunidade. Ele está compondo, sempre. Como vocês verão, agora.
Desta vez é à vera. Gravando
(Vozes, murmúrios, de outra entrevista, palavras ao fim, de Gil: “Manda um beijão pra ele….”.)
Urariano Mota entrevista Gilberto Gil
Urariano Mota – Em 1969, você e Caetano foram expulsos do Brasil pela ditadura militar. Como é que você vê hoje, quando deu a volta por cima, primeiro com sua música, depois politicamente, porque é um ministro do governo. Que lembranças lhe dão o golpe de 1964?
Gil – Das lembranças que a gente tem normais, do passado. Com as boas e más lembranças do passado. Com a recordação dos bons momentos e dos maus momentos, do que os bons momentos fizeram de mal à minha vida, do que os maus momentos fizeram de bem à minha vida … (Ri) Tudo isso.. (E faz um gesto amplo, circular, com os braços.)
UM – Depois, quando saiu do Brasil, você compôs “Aquele abraço”.
Gil – Foi… Eu fiz já aqui no Brasil ainda, saindo. Na semana que eu estava indo embora, eu gravei. Na véspera de eu ir embora, eu gravei.
UM – “Alô, alô Realengo”… Paulo Francis, de quem a gente nunca pode dizer que era um amor de pessoa, ele chegou uma vez no Pasquim…
Gil – Não, até que um amor de pessoa a gente pode dizer. A gente pode dizer que talvez ele não fosse uma pessoa do amor. (Risos) Que ele era amável, em tudo. Mas renitente com esse exercício irrestrito da amorabilidade. Ele tinha coisas das quais ele não queria mesmo gostar e não queria que aquelas coisas fossem aceitáveis, que eram pra ele inaceitáveis!…
UM – Ele chegou uma vez a te elogiar num artigo no Pasquim, quando escreveu mais ou menos assim, “o Gil poderia estar mais do que rico depois de ‘Aquele abraço’, mas ele não é homem de repetir a fórmula que deu sucesso”.
Gil – Eu nunca fiz música pra, pra…
UM – Tocar no rádio?
Gil – Não, pra estabelecer uma linha de montagem, ou estabelecer uma reprodução do mesmo modelo, pra explorar os filões de mercado, coisa desse tipo nunca foi preocupação minha. Eu gosto de fazer sucesso, eu gosto de vender disco também, tudo, mas não, por exemplo, eu gosto de fazer sucesso, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes, por exemplo. (Risos) Eu não gosto muito. (Risos.) Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez, eu não quero. (Risos)
UM – Você esteve aqui no Recife em 67, passou dois meses, travou contato com o pessoal do Teatro Popular do Nordeste…
Gil – Com Leda Alves, Hermilo Borba Filho…
UM – Como foi essa sua passagem pelo Recife?
Gil – Ah, um mês eu fiquei aqui, aí eu conheci Teca Calazans, eu conheci Geraldinho Azevedo, eu conheci Marcelo do Quinteto Violado, conheci Toinho do Quinteto Violado, os meninos, conheci tanta gente, conheci Carlos Fernando, conheci tanta gente…
UM – Visitou Caruaru?
Gil – Fui a Caruaru. Ainda hoje eu fui a Caruaru com Fernando Lyra, que me recebeu em Caruaru, daquela vez, há 40 anos, enfim. Naquela época Carlos Fernando me levou pra Zona da Mata, me levou pra Nazaré da Mata, me levou pra os lugares todos, eu andei por tudo isso aqui. E ali o centro era o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, era, toda a noite eu me apresentava lá, durante pelo menos duas semanas eu fiquei lá cantando, toda noite, e ali iam os músicos, e ali apareceu o percussionista, o nosso querido Naná Vasconcelos, que era baterista da banda da Aeronáutica naquela época.
UM – E você gravou Pipoca Moderna, não foi isso?
Gil – Gravei… Eu na verdade eu não gravei. Pipoca Moderna eu pus a gravação, abri meu disco Expresso 2222 com a gravação da Banda de Pífanos de Caruaru, que eu tinha feito em um gravadorzinho como este seu (aponta para o meu pré-histórico gravador da Sony), com Carlos Fernando, na época em que nós fomos a Caruaru. Há 40 anos. E eu pus essa música na abertura do disco Expresso 2222. Mais tarde Caetano fez uma letra para o Pipoca Moderna, e aí ele próprio gravou, e outros artistas gravaram Pipoca Moderna, como canção, cantada. Mas a primeira publicação dela foi feita através do disco Expresso 2222 com uma gravação doméstica da Banda de Pífanos de Caruaru.
UM – Você tem uma coisa interessante, que é como você une o popular à vanguarda. Como é que é isso?
Gil – Em todo o mundo a gente faz isso. Cada um tem o seu modo de fazer. O Chico faz isso, o Caetano faz isso, os Beatles faziam isso na Inglaterra, Bob Dylan fez isso nos Estados Unidos. Muita gente faz isso, é uma prática que se tornou comum, os artistas não querem ficar isolados, em um segmento só, confinados a um determinado só único mundo musical, música é um trânsito permanente entre… Todos nós tivemos música clássica em nossa infância, ouvimos Bach, ouvimos Beethoven, ouvimos isso, ouvimos aquilo, somos influenciados por esses contextos, e ao mesmo tempo temos a música da rua, a música de nossas cidades, a música de nossas feiras, de todos os lugares. Enfim, queremos misturar tudo isso, queremos fazer com que esses espaços dialoguem, uns com os outros, não é? Então eu tenho o meu modo de fazer isso. Às vezes, antigamente, por exemplo, naquela época aqui, eu peguei duas cirandas, utilizei excertos dessas cirandas, não é?, e complementei com canções que eu fiz. É o caso do Pé da Roseira, é o caso da Barca Grande, é… (Canta)
Isso é uma ciranda. (Canta)
Também é uma ciranda. E no entanto essas cirandas viraram trechos iniciais de canções mais longas que eu fiz. Há muitas maneiras.
UM – Villa-Lobos fazia isso.
Gil – Fazia isso também. Bartók fazia isso, Bach, não é?
UM – Você é um compositor que sem alarde, ou como se dizia naquela época, “sem dar bandeira”, você é um compositor muito político. Pelo que eu lembro da juventude da época, na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?
Gil – Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso… (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais … mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.
UM – Quando você diz que pegava uma linha política mais aberta, menos amarrada a programas tradicionais, eu lembro que a sua trajetória de diálogo com a esquerda nem sempre foi ausente de conflitos.
Gil – Foi tangencial sempre. (Riso) Eu nunca mergulhei em nenhuma corporação, em nenhuma unidade da política das esquerdas, porque eu sempre fui uma coisa que o Partido Comunista naquela época costumava classificar como “linha auxiliar”. (Riso) Eu ajudava, mas eu não era propriamente um …
UM – Era um aliado?
Gil – Eu era um aliado. Eu tinha esse trabalho tangencial, onde nos pontos onde havia tangenciamento entre meu processo e o processo deles, a gente caminhava junto. Nos outros, eu ia solto.
UM – Você sabe o que ocorreu com Geraldo Vandré?
Gil – Não tenho tido notícias recentes dele… Notícias até tenho, não tenho tido contatos recentes com ele. Os últimos contatos que eu tive com Vandré já vão alguns anos atrás. Ele se envolveu num processo de mais reclusão, de mais afastamento…
UM – Esquizofrenia, parece.
Gil – É o que dizem dele. Ele teve o conjunto das questões dele, teve esse aspecto também de uma problematização psiquiátrica também. De formas que ele descontinuou um pouco o trabalho, propriamente. Vandré não deu continuidade ao trabalho dele.
UM – Você chegou a ser parceiro dele.
Gil – Muito, em algumas canções. Umas quatro ou cinco fizemos.
UM – Como estão hoje as suas relações com Caetano Veloso?
Gil – Isso é fácil. As mesmas de sempre. (Riso)
UM – As relações de amizade são ótimas.
Gil – São ótimas. As relações de convívio, nem tanto… por causa dos descaminhos, os nossos caminhos cruzam pouco hoje, porque eu estou com o Ministério, eu viajo muito, estou muito fora… (Tosse) do Brasil, fora do Rio, e tal. Então são muito poucas as oportunidades de sentar, conversar, conviver. Outro dia, a última vez em que nós estivemos juntos foi numa situação muito auspiciosa, que era um show dele em Porto Alegre, eu tinha ido a Porto Alegre para uma atividade ministerial, e havia um show de Caetano naquela noite em Porto Alegre. E eu fui, e depois do show, além de ter tido esse momento extraordinário de poder assistir a um show dele, ainda saímos juntos pra noite porto-alegrense depois.
UM – Fumaram o cachimbo da paz.
Gil – Fumamos … Não, não, o cachimbo da paz já está. A paz nunca deixou de existir entre nós. Mas nós pudemos conviver durante algumas horas numa forma como a gente não vinha podendo conviver.
UM – Agora, a pergunta que eu venho guardando desde o começo: se você não fosse um homem negro, que artista você seria?
Gil – Eu não faço a menor idéia. (Risos.) Eu não faço a menor idéia. Eu não teria essa sestrosidade rítmica que eu tenho, isso é uma coisa que eminentemente muita gente tem, outras raças, outros contextos étnicos propiciam, mas a vivência negra, da cultura negra… e quando eu digo raça, digo nesse sentido, de mais no sentido da cultura, de ser negro culturalmente negro me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo enfim que eu não teria não sendo negro, e portanto não seria o artista que eu sou. Seria outro. Outra pessoa. (Riso e sorriso.)
UM – E se você não fosse músico, o que você seria?
Gil – Arquiteto, talvez.
UM – Nada a ver com administração de empresas.
Gil – Não, porque eu me formei em administração de empresas, mas na verdade o campo de aplicação do meu talento mesmo, o campo de interesse da minha expressividade interior, etc. , se não na música se daria mais proximamente de uma coisa como Arquitetura.
UM – Seria ligado à arte de qualquer maneira.
Gil – É isso o que eu quero dizer. Mais do que administração. Ainda que eu goste de administração, tanto que eu fiz administração, e tanto que eu tentei aproveitar o que aprendi na formação, no campo prático, criei minha própria empresa, e coisas desse tipo. Me interessei por esse lado do empresarial, eu fui sem dúvida alguma muito estimulado pela formação da universidade.
UM – Eu visitei seu site oficial, e pude ver que você nasceu em Salvador, mas teve uma infância rural.
Gil – Nasci em Salvador circunstancialmente, em uma família que já habitava, que já morava no sertão. Ituaçu. Minha mãe veio pro parto em Salvador, porque era de família de lá, meu pai também, minha mãe ainda viva, está com 93 anos agora, meu pai já é falecido, mas eram ambos de Salvador, tinham ido pro sertão e casaram e foram pro sertão. Na hora em que nasceu o primeiro filho, voltaram para Salvador, porque era lá que as famílias deles estavam. Então era mais seguro, mais aconchegante… (Faz um gesto a indicar que está na hora de encerrar)
UM – Só uma última pergunta. Não existe um Gil. Existem Gis. Há muitas imagens físicas, fases, variações na sua vida…
Gil – Isso é comum a todos os seres humanos. Não existem indivíduos. Existem divíduos, como diz Gilles Deleuze. (Ri.) Ninguém é um. Todos nós somos muitos, somos múltiplos.
UM – Muito obrigado, Ministro.
Por Altamiro Borges
Em votação nesta sexta-feira (18), a Justiça de São Paulo manteve a condenação em primeira instância que obriga o deputado estadual André Fernandes (Republicanos-CE) a indenizar em R$ 50 mil a jornalista Patrícia Campos Mello. A repórter da Folha entrou com uma ação judicial após ser alvo de ataques misóginos do parlamentar bolsonarista pelas redes sociais.
A decisão foi tomada por consenso pelos desembargadores da 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo Erickson Gavazza Marques, Mônaco da Silva e James Siano. Ainda cabe recurso às cortes superiores, mas tudo indica que a sentença será mantida em função da debilidade dos argumentos apresentados pela defesa do deputado.
Segundo a Folha, “a repórter acionou a Justiça após ser insultada pelo deputado no Twitter, que acusou Patrícia de trocar sexo por informações prejudiciais ao presidente Bolsonaro (PL)... O recurso de Fernandes voltou a dizer que a declaração feita por ele era protegida pela imunidade parlamentar, que lhe daria ‘supraliberdade de expressão’”.
Tuite asqueroso e criminoso
O tuite do bolsonarista foi asqueroso: “Se você acha que está na pior, lembre-se da jornalista da folha de SP [sic] que oferece SEXO em troca de alguma matéria para prejudicar Jair Bolsonaro. Depois de hoje, vai chover falsos informantes pra cima desta senhora. Força, coragem e dedicação Patrícia, você vai precisar”. Ele ainda acrescentou: “Sou tão inocente, que até hoje pensava que FURO JORNALÍSTICO se tratava de outra coisa”.
Diante dessa agressão, o André Fernandes foi condenado pela primeira vez em julho de 2011 em sentença dada pelo juiz Vitor Frederico Kümpel, da 27ª Vara Cível de São Paulo. O bolsonarista recorreu e agora sofre nova derrota. Para a advogada jornalista, Taís Gasparian, “o valor de R$ 50 mil nem de perto poderá recompor o sofrimento da jornalista, mas é simbólico o suficiente”.
Aumento de 79% nos ataques contra mulheres jornalistas
A premiada Patrícia Campos Mello não é a única jornalista a sofrer agressões das milícias bolsonaristas. Segundo um mapeamento publicado no início de março pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), o ano passado registrou um aumento de 79% no número de ataques contra mulheres jornalistas ou com viés de gênero.
Ao todo, foram 119 ocorrências desse tipo – o que corresponde, em média, a um episódio de violência a cada três dias. A pesquisa ainda revelou que 52% dos autores identificáveis pelos ataques eram autoridades públicas. Nesse segmento, os que mais agrediram mulheres jornalistas foram o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o deputado federal Carlos Jordy, com oito ataques cada, o vereador Carlos Bolsonaro e o assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, contabilizando sete ataques cada, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro, responsável por cinco outros ataques.
Ainda segundo reportagem de Mônica Bergamo na Folha, “os termos mais utilizados nos insultos às profissionais fazem referência a aspectos de gênero, como ‘vagabunda’, ‘puta’, ‘fofoqueira’, e a supostos vieses ideológicos das jornalistas, como ‘militante’, ‘esquerdista’ e ‘comunista’. ‘O apelo ao gênero e à sexualidade não é incidental: em sociedades com presença de valores conservadores, esse tipo de ataque é uma forma de minar a credibilidade do jornalismo profissional e de desviar a atenção do conteúdo da notícia’, afirma a Abraji”.
Homenagem a vereadora carioca assassinada a tiros teve 17 votos contra e só 11 a favor; oito vereadores de Curitiba se abstiveram
Dois fatos densos de reminiscência e que se articulam de modo a nos trazer à situação em que hoje atravessamos no Brasil
Por RONALDO TADEU DE SOUZA /A Terra É Redonda
“grande parte do que fez a grandeza dessa obra [Em Busca do Tempo Perdido] permanecerá oculta ou inexplorada até que essa classe [a burguesia aristocratizada] na luta final, revele seus traços fisionômicos mais fortes.” (Walter Benjamin, A Imagem de Proust).
“Justiça por Assata” (Ato 19/03 Goiânia informações: instagram: ayah_akili e pensar.africanamente).
Muito já se disse sobre a memória na formação de nossas existências. São inúmeros os teóricos sociais, filósofos, críticos da cultura e psicanalistas que afirmam ser a lembrança de uma vida de então o aspecto fundamental não só de indivíduos, mas da sociedade ao qual estão inseridos. Seja no soerguimento da identidade de cada um, seja nas disposições de organização das relações sociais, seja nos modos em que lidamos com eventos políticos significativos – o passado é parte constitutiva do ser em sentido amplo.
Não foi sem razão que Marx disse no início de O 18 Brumário de Luís Bonaparte que o espírito do passado e as tradições de outros tempos influenciam as ações do presente – mesmo que do ponto de vista da linguagem. E que Benjamin nas Teses sobre o Conceito de História, ter reivindicado que fossemos ao pretérito como um salto de tigre naquele mesmo. Tanto Marx como Benjamin estavam a escrever seus respectivos textos para aqueles e aquelas em condições de serem explorados, oprimidos pelas classes dominantes, humilhados no cotidiano por circunstâncias impostas pelo capital e suas figuras representativas e sacrificados cruelmente pela violência estatal.
Um e outro pretenderam chamar a atenção da importância para os subalternos de toda ordem da força da recordação; não da recordação que se faz patíbulo e extirpa o impulso da transformação ao prender, astutamente por vezes, as paixões políticas no passado e sim daquela que vislumbra a fusão com o contingente (essa foi a mensagem de Frantz Fanon no fim do Peles Negras Máscaras Brancas) e transfigura-se em subjetividade insubmissa, radical, revolucionária por assim dizer, e torna o futuro presente. Faz do horizonte de expectativas princípio dialético-objetivo. Ainda assim, por vezes se esquece daquilo que ocorreu no decurso da vivência.
É por isso que devemos ter em nossas mentes dois fatos que ocorreram nos últimos dias, mas que são densos de reminiscência, e que se articulam, de modo a nos trazer à situação em que hoje atravessamos no Brasil. Essa semana completaram-se quatro anos do assassinato a mando de Marielle Franco, e dias atrás presenciamos um dos acontecimentos mais terríveis da vida pública brasileira – a ida à Ucrânia de Arthur do Val, e os áudios vazados com suas declarações sobre as mulheres ucranianas em meio ao sofrimento humano de uma guerra. (Guerra essa que é promovida por aqueles que de maneira geral personagens como esse cidadão é porta voz, as classes dominantes das potências mundiais – as burguesias e elites imperialistas, Vladimir Putin e a Rússia inclusive, que já disse para quem tem ouvidos para ouvir, escutar e atentar que a região da Ucrânia foi uma equivocada invenção do Lênin e dos bolcheviques após 1917.)
É preciso lembrar que Marielle Franco, mulher negra, lésbica, de esquerda, militante socialista do PSOL (partido ao qual era filiada e atuava em defesa dos pobres, negros e negras que passam todo tipo de violência policial no dia-a-dia), foi exterminada covardemente pelas forças policiais-políticas que de uma maneira ou de outra hoje governam o país, com um programa econômico-político que visa a devastação literal daqueles considerados descartáveis para a ordem do capital atualmente (e Arthur do Val é irrefutavelmente um dos mais importantes políticos e representantes desse bloco no poder). Marielle sem dúvida seria uma das vozes a gritar pelos seus e pelas suas. Mas isso não foi possível a ela.
Em 2018 o Brasil já estava completa e moralmente conquistado (faltava apenas a consolidação material do poder estatal, pois não nos esqueçamos, a presidência de Michel Temer iniciou em 2016 com o golpe institucional, e que 9 de 10 que não sejam de esquerda qualificam com a dicção da legitimidade política de Impeachment) pela direita de todos os matizes. Hoje ninguém quer se associar ao bolsonarismo, ao Arthur do Val e com alguma timidez cínica acreditam no MBL (nossos liberais, ou liberais mesmo). No arco da contrarrevolução brasileira de 2014-2021, nosso 18 Brumário para lembrar o ensaio de Bruno Cava, rememoremos que liberal-conservative, conservadores, liberais, tradicionalistas, neoliberais e sociais-liberais, obviamente em nenhum momento se posicionarem contrários ao que vinha ocorrendo, está inserida a morte tramada de Marielle.
As descrições do assassinato planejado racionalmente estão disponíveis para quem quiser averiguar, não as farei aqui (já o fiz nos três anos da morte de Marielle no site A Terra é Redonda); basta dizer que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz a espreitaram por mais de três meses antes do dia do crime. E é esse arco, em fase de estabilização agora, uma vez que estamos às vésperas da eleição – eleição que por vezes, nem sempre e não consegue de fato, tem a função de (re)estabelecer o equilíbrio instável com a competição pelo voto (Schumpeter) –, que impossibilita as investigações e a revelação de quem efetivamente exigiu o extermínio na vereadora negra e carioca. Ora, de posse do poder de Estado e sem nenhuma das veleidades democráticas (Marx) bem pensantes da esquerda legalista, era e é natural que o grupo de direita que o detém fez, faz e fará de tudo para ocultar os responsáveis: dos 9 tiros disparados pelos sicários a soldo contra Marielle Franco.
Arthur do Val – que se diga era até bem pouco tempo aliado de Sérgio Moro – foi uma das figuras mais representativas do que alguns chamam de a nova direita brasileira. De certo modo, entendidas as coisas com ponderação aqui, ele é um dos “responsáveis”, responsável indireto e com um grau significativo de distanciamento desse indireto, pelo que ocorreu no dia 14 de março de 2014 no Rio de Janeiro. É preciso lembrar que naquele contexto a cidade do Rio estava ocupada pelas forças militares sob o comando de Braga Neto; a Lava Jato estava com o prestígio absolutamente incólume dado os vínculos com a mídia empresarial; as ideias de mercado organizam o debate sobre o futuro do país; a esquerda era sem trégua alguma qualificada de corrupta (que bela é a vingança da história); e os personagens da direita eram recebidos em todos os salões sociais e do poder como os jeovás da pátria: era na verdade o Katechon da vez. Arthur do Val era um deles.
Hoje a classe média, seja a conservadora, a de profissões liberais, a intelectualizada, a progressista, tem comportamentos de aversão à figura de do Val – mas no arco em questão se felicitavam e regozijavam de quando ele ia a manifestações de movimentos e grupos de esquerda os mais variados, que na maioria das vezes compunha-se de pessoas a lutar por uma vida minimamente mais digna, e fazia questões aos presentes, questões e perguntas para tentar humilhar os já humilhados, para tentar desprezar os já desprezados, às mais absurdas, como: “você sabe o que é mais-valia?”, “o que você acha do Che-Guevara?”, “você sabe o que é déficit fiscal?” etc. (Sim caro Arthur do Val! Todos e todas sabem o que é “mais-valia”, sabem quem “foi Che”, e “entendem” das implicações do não-déficit fiscal.).
Entretanto, eis que o (ex)aliado de Moro, e que é preciso e necessário divulgar, ainda falava e fala pelas forças de direita, pelos agentes de mercado, o capital e/ou a burguesia na boa teoria socialista clássica, (ele foi um contundente defensor das reformas previdenciárias contra funcionários públicos em São Paulo), e pelos conservadores do momento parte em uma viagem para a Ucrânia, junto com Renan dos Santos (e seu rosto menino de baladeiro das boas casas noturnas de São Paulo). Lá, no país com sua população, a maioria de trabalhadores e setores médios sofrendo a realidade de uma guerra não planejado por eles, muito pelo contrário, ele “revela” a que tipo de grupo e setor político e social estamos a enfrentar. Misoginia será pouco para qualificarmos as palavras de Arthur do Val (que diga-se alguns setores fingem que não é com eles de que se trata, é vergonhoso como meios de comunicação e outros setores do espectro político trataram o caso, se fosse alguém de esquerda que no Brasil se quer pode cometer o menor deslize, mesmo que de avaliação sincera e de tomada de posição as exigências seriam bem outras).
O chefe do MBL (Movimento Brasil Livre), que tramou junto aos seus – a saber, o próprio Sérgio Moro, Aécio Neves, o Vem pra Rua, Kim Kataguiri, Brasil Paralelo, o Instituto Mises, o Instituto Millenium, Eduardo Cunha, Pondé e outros colunistas de livre pensamento e democratas (são tantos), os economistas das muitas XP’s espalhadas pelas Farias Limas a fora (André Esteves do BTG à frente), Olavo de Carvalho, PSDB, DEM, Jair Bolsonaro e o espírito-Ustra – a deposição de Dilma Rousseff, um golpe palaciano lapidado como quem lápida cuidadosamente uma pedra de diamante para a Vivara (e que agora, claro, exercita a diversidade racial), com a idêntica alma-santa que o fez mentir e criar Fake News sobre Marielle Franco, mas à época a santa aliança deu de ombros, foi à Ucrânia demonstrar de fato o que pretende como político brasileiro.
Quer, não nos esqueçamos disso, o esmagamento prático e simbólico de todos os subalternos: mulheres, negros, trabalhadores, LGBTQI+ e indígenas. Lembrar que há 1500 dias Marielle nos deixou pelas mãos e mentes de figuras-tipo como Arthur do Val e seus consortes, novamente entendidas as coisas ponderadamente, ou seja, cultivarmos a memória como irrupção do passado no presente-futuro, pode nos levar não só a redimir a vereadora negra de esquerda, como a de todas e todos que caíram e caem na luta de classes-raça árdua, às do cotidiano e às da emancipação radical.
Por Miguel Paiva /Jornalistas pela Democracia
Confesso que fui um dos que achava que Nara Leão cantava mal, que era desafinada. Depois de um tempo refiz meu julgamento e passei a curtir a Nara como ela era. Forte, apesar de parecer frágil, potente, apesar de insegura e militante, apesar de vir da classe média de Copacabana. O documentário O Canto Livre de Nara, da Globoplay ajuda a entender esse fenômeno. Nele vemos, por exemplo, o quanto a Nara passou pelos diversos movimentos da nossa música. Começou antes da bossa-nova, mudou para o samba, inaugurou a MPB e acabou naquele lugar onde o que você cantar está legal. Além disso mostra um Rio meio mágico, moderno, vivendo uma era de crescimento, de afirmação democrática e de grande criatividade.
Na época em que criticava Nara ainda não havia desenvolvido em mim o chamado senso crítico alternativo. Era um purista que jamais aceitaria, por exemplo, Nara gravar Roberto e Erasmo num lindo disco. Mas que bom que isso acontece e passa. A Nara política do show opinião, do Zé Kéti, do João do Vale é a Nara que cabia perfeitamente nela, naquele momento da nossa história. Com isso ela desloca aquela classe média pequeno burguesa para a realidade das favelas e do interior do Brasil.
O documentário nos mostra uma Nara sempre avançada, sempre moderna e muita vezes segregada por conta disso. Ela não ligava muito, mas era evidente o que acontecia. A Nara do samba também me faz tentar entender o que houve com o Rio de Janeiro.
Naqueles anos 60 o Rio era a Zona Sul que dividia o espaço de cidade com o subúrbio e a zona norte. Isso incluía a Mangueira, as favelas e o resto da cidade de origem pobre que convivia com a dita cidade rica. O que acontecia de fato? Não tínhamos informação sobre a zona norte? A zona norte e as favelas faziam parte de um folclore que esses artistas fizeram existir? A grande imprensa filtrava as informações e só líamos sobre o lado bom de tudo.
Nara e o espetáculo Opinião, além de terem sido politicamente importantes, abriram uma espécie de Túnel Rebouças, antes mesmo do túnel em si, para o que acontecia do outro lado do Corcovado. E mais, abriu a estrada para o resto do Brasil, completamente ignorado pela burguesia dominante, seja ela autoritária e fechada com o regime militar, ou bem pensante, morando na zona sul e cantando João Gilberto.
Mas o que aconteceu com o Rio é o que mais me intriga. Essa divisão ficou mais acentuada justamente depois do regime militar. Os pobres foram recolocados nos seus lugares de origem e o país foi preparado para ser conduzido e saboreado pelos ricos.
As favelas já delimitavam essa diferença e passaram a ser, depois de conduzidas e estabelecidas bem longe da zona sul, como uma espécie de campo de concentração da classe trabalhadora. Mas a arte acabou sendo mais forte e quebrando essa barreira. O Rio meio que se entregou a esse comando miliciano, mas a arte resistiu nas favelas, nas escolas de samba e hoje nas periferias.
A internet instrumentalizada ajudou a divulgar e ao mesmo tempo demonizar o que vinha de lá. O funk é o retrato de um Brasil pobre e orgulhoso. O samba resiste sempre ameaçado pela institucionalização e a nossa história vai sendo contada, e ainda bem, para que possamos ter na memória o que de fato aconteceu.
Numa época que o documentário Get Back sobre os Beatles vira fenômeno de audiência e nos ajudar e recompor essa memória, assistir O Canto Livre de Nara também ajuda. Eu, na época me aventurando com meu amigo e parceiro Zé Rodrix na carreira de compositor, fiquei extremamente feliz ao saber que uma versão que havíamos feito para um sucesso dos irmãos Gerswhin, Someone to Watch Over me, seria gravado por Nara no que acabou sendo seu último disco, My Foolish Heart, onde ela só cantava versões para grandes sucessos americanos. Eu e Zé estamos lá com “Alguém que Olhe Por Mim”. Muita alegria que até hoje me emociona.
por Reinaldo Azevedo
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Reconheça-se que há uma mudança importante de status no caso do ataque covarde de um destacamento de choque da Polícia Militar de Pernambuco a manifestantes pacíficos. Vanildo Maranhão, comandante da PM, foi substituído, e o então secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, pediu demissão na sexta-feira. O governo acompanha o atendimento a dois feridos graves por bala de borracha — um deles teve um dos olhos extraído, e outro passou por cirurgia também ocular. Documento interno da corporação informa que a ordem partiu de Maranhão. Mas o imbróglio permanece, e ainda não se sabe exatamente o que aconteceu na cúpula da Segurança Pública do Estado no dia 29. Vamos ver.
Um documento oficial de comunicação interna acabou vazando. Atribui a decisão criminosa ao então comandante da PM; informa ainda, querendo ou não, que se usou de um procedimento ardiloso com o propósito, tudo indica, de atacar os manifestantes. E também conta uma mentira descarada, fartamente desmentida por vídeos que circulam em toda parte. Como ao menos uma das informações é falsa, é preciso que se pense na qualidade das outras.
O EX-COMANDANTE-GERAL
Comecemos por Maranhão. Segundo o tal documento, "por determinação do comandante-geral da PMPE", a Tropa de Choque deveria dispersar os manifestantes recorrendo aos "meios dispostos" -- isto é, "à disposição". E tais meios incluíam balas de borracha. Duas ordens teriam chegado a quem estava em campo, ambas oriundas de Maranhão: às 10h20 e às 11h30. A ordem era a mesma: dispersão.
Há algo bastante relevante no tal documento, de impressionante perversidade se verdadeiro: deram a ordem para que Batalhão de Choque se dirigisse para a Praça da Independência, conhecida como "Praça do Diário", local marcado para o término da manifestação. Vale dizer: a PM resolveu atacar os que protestavam quando o ato já estava chegando ao fim. Teria sido uma arapuca.
E agora a mentira. Esse comunicado interno afirma que os policiais reagiram a agressões. Teriam sido atacados com paus e pedras. Não há um só registro desse tipo de comportamento. O que todos os vídeos revelam até agora são os policiais fazendo uma barreira de contenção para impedir a passagem. Entre os dois grupos, havia uma distância considerável. Não se veem objetos sendo lançados — até porque seria impossível.
De repente, do nada, os policiais avançam disparando balas de borracha e bombas de efeito moral. Vídeos mostram policiais atirando até contra prédios, de cujas janelas moradores assistiam à barbárie.
SALA DE MONITORAMENTO
Pádua, que deixou a Defesa Social, acompanhava o protesto de uma sala de monitoramento e, supõe-se, tomou conhecimento da ação da PM. Muito bem: digamos que a ordem tenha partido do coronel Maranhão, demitido do comando geral. Questão óbvia e básica: quem decide se a polícia reprime ou não uma manifestação é o secretário de Segurança -- que, em Pernambuco, tem o pomposo nome de "Defesa Social" -- ou, acima deste, o governador.
Será que, em Pernambuco, é o comandante-geral da PM que dá ordem para reprimir manifestantes? A ser assim, então o governador não tem o controle da corporação. E Pádua diz, com todas as letras, que não foi ele. Ao se demitir, emitiu a seguinte nota:
"Os fatos ocorridos no último sábado foram graves e precisam ser investigados de forma ampla e irrestrita. Minha formação profissional e humanística repudia, de forma veemente, a maneira como aquela ação foi executada. Seis dias depois do episódio, com um novo comandante à frente da PM, com todos os procedimentos investigatórios instaurados e após prestar contas à Assembleia Legislativa, à OAB e ao Ministério Público, entreguei meu cargo ao governador Paulo Câmara, com a certeza do dever cumprido e mantendo nosso compromisso com a transparência e o devido processo legal".
CONCLUINDO
1: documento diz que ordem partiu do então comandante-geral. Se partiu, agiu à revelia do governador e do secretário?;
2: em Pernambuco, quem decide quando a PM reprime ou não protestos dessa natureza: o comandante-geral, o que seria uma absurdo!, ou o secretário, a mando do governador?;
3: se Maranhão agiu por conta própria, não pode ser apenas afastado; tem de sofrer também uma punição disciplinar severa;
4: documento mente sobre agressão de manifestantes a policiais;
5: é possível que tanto o comandante-geral como o secretário tenham recebido informações falsas, induzindo-os a erro?
Essa última indagação não livra a cara da PM, não. Muito pelo contrário! Podemos estar aqui a falar de uma corporação infiltrada por proselitismo de extrema direita, que faz da indisciplina uma forma de intervenção política.
O tal documento, aliás, chama os manifestantes de "militantes". Não é linguagem adequada. Temos só de pensar como poderia chamar os bolsonaristas — talvez "patriotas"...
Sim, o comandante-geral e um secretário caíram. Mas estamos longe de saber o que aconteceu naquele dia 29. O cheiro que emana do imbróglio é o pior possível.
UFRJ vai fechar por falta de recursos
Ora essa! Um governo que passa o trator em 39kg de cocaína, em 89 mil do cheque pra Michele, em 6 milhões da mansão em Brasília, em 105 reais do botijão de gás, em 15 mil de leite condensado, em 3 bi para comprar o Centrão, também passa trator tranquilo em picanha de 1.799 reais
Oportunista. Se viesse o comunismo, como eles anunciam, mudava o nome para 'o véio da Havana'
O IMPACTO do fechamento da UFRJ
A UFRJ vem sofrendo sucessivos cortes que parecem querer inviabilizar a ciência. Em 2020, o orçamento era de R$ 386 milhões. Agora, caiu para R$ 299 milhões e, destes, apenas R$ 146 milhões estão disponíveis. bit.ly/3nNDYky
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