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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

14
Abr23

Governar é sofrer

Talis Andrade
 
 
 
Il Matto - O Louco - Clube do Tarô - Tarot
Carta de tarô
 
 

 

Governar é um constante aprendizado com uma precisa noção de tempo, com a paciência da escuta e com a força das virtudes

 

por Gustavo Krause

- - -

O título não é de minha autoria. Tampouco de um pensador com inclinações masoquistas, até porque governar, seja lá o que for, é a maior aspiração de quem envereda pelo caminho da Política. Tem o peso enorme de encargos e a feliz sensação do reconhecimento público quando o governante cumpre com dignidade a tarefa que lhe é delegada.

O autor é Mocidade, João da Costa e Silva, personagem famoso do folclore político da Paraíba, Estado-berço de brilhantes inteligências, grandes e eloquentes oradores. Mocidade, intitulava-se o Grande Tribuno das Calçadas e, com ou sem efeito do álcool, percorria a cidade, proferindo improvisos emocionantes para destilar impropérios contra o governo do Estado e, em especial, contra os governos militares.

Pois bem, médico e cronista José Mário Espínola (Blog do Rubão, em “Não me TOCs), ao registrar que o governador João Agripino se divertia com essas figuras folclóricas, relata o seguinte episódio: “Certa noite, João Agripino chegou à residência oficial do Governador, então no Cabo Branco, e ao passar pela cozinha encontrou ninguém mais, ninguém menos que Mocidade tomando uma sopa. Não conseguiu resistir: – Muito bem, seu Mocidade: passou a tarde discursando contra mim, e agora está aí tomando da minha sopa! Mocidade fez uma pausa segurando a colher, olhou blasé de soslaio, dizendo: – Ora governador: governo foi feito para sofrer! E voltou a se dedicar à sopa”.

“O sofrer” de Mocidade equivale para os doutos da ciência política ao grau de complexidade e exigências, impondo, a cada dia, mais dificuldades ao exercício da governança: demandas e expectativas crescentes frente a meios insuficientes; cobranças amplificadas pela unidade assustadora da palavra, da escrita, da imagem, tudo junto e misturado no impacto instantâneo das mídias sem se saber exatamente o que é o mundo real ou o mundo paralelo; o falso ou o verdadeiro; incertezas, cisnes negros e o aleatório seguem como ameaças permanentes aos que detém o leme do governo. No mínimo, acentuam-se rugas precoces como o retrato das responsabilidades.

O mais relevante: governar não se aprende na escola, melhor dizendo, é um aprendizado constante, iluminado pela noção de tempo, pela paciência da escuta e pela força das virtudes.

Tempo pode ser aliado ou inimigo: é um recurso perecível, deve ser compreendido na sua amplitude de que “há tempo para tudo” e acertar o passo para semear e colher, rápido, porém, devagar. Não perdoa quem não sabe trabalhar com ele.

Escuta exige atenção e respeito; ouvir e enxergar o outro; antes persuadir do que convencer, porque persuadir levam as pessoas a fazerem o que deveriam fazer sem ser persuadidas o que é mais leve do que conquistar (con)vencendo.

Virtude, a disposição adquirida para fazer o bem. É o que afirma a excelência de ser e agir humanamente. E aí se somam aos atributos supostamente viris (força, coragem, energia, dinamismo, ordem) à prática da “política do feminino” que é a política do afeto, da sensibilidade, da imaginação e do cuidado.

Mocidade não tinha pretensões de ingressar na galeria dos filósofos. Apenas externava o saboroso passatempo de falar mal do governo. A Democracia assegura este direito fundamental à oposição no exercício do contraditório e à liberdade de expressão dos cidadãos.

Por sua vez, uma das artes da Política, que é governar, oferece aos detentores do poder a vacina contra o que lhe pode causar sofrimento: a dimensão política da paixão que é o compromisso com valores, princípios e causas capazes de transformar a vida das pessoas; a perspectiva que é a dimensão histórica da esperança renovada no futuro.

A façanha de Mocidade, um ser pensante da sabedoria popular, aproximou-se do notável Millôr Fernandes que, com refinado humor, nos legou uma frase demolidora: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.

15
Ago21

Tanques esfumaçados como metáfora dos militares na democracia

Talis Andrade

A festa dos internautas para o desfile de blindados | Lu Lacerda | iG

 

Para compreender a gravidade e o contexto dos velhos tanques no Planalto é necessário olhar com atenção para o papel das Forças Armadas após a Constituição de 1988

 

por PEDRO ABRAMOVAY /El País
 
 

No final do século XVIII, muitos autores achavam absurda a ideia de Forças Armadas permanentes em tempos de paz. Uma extensão do poder do soberano, sempre pronta a servir a instabilidades e opressões, o corpo militar permanente seria, em si, uma ameaça à construção de sociedades democráticas que começavam a surgir na Europa naquele período.

Uma crítica ácida a um corpo militar em tempo de paz foi a grande pensadora Mary Wollstonecraft. Uma das mais interessantes e argutas pensadoras da época —provavelmente de todos os tempos— só não é mais conhecida porque filósofas mulheres não eram levadas a sério no século XVIII. E porque Wollstonecraft desafiava pontos muito essenciais das sociedades ocidentais, como a separação entre a razão e sentimentos. Homens devem ser racionais, mulheres sentimentais. A grande mentira que obriga os homens a esconderem seus sentimentos como se fossem razão e mulheres a esconderem suas razões em forma de sentimentos.

E é nesse contexto que Mary Wollstonecraft analisa que Exércitos permanentes são o oposto de uma sociedade baseada na razão. Alternam entre a obediência cega e uma certa admiração por coqueterias. Botas engraxadas, desfiles, cabelos bem cortados. Futilidades que a sociedade ao longo dos séculos parecia admitir para homens apenas se fossem soldados.

É verdade que os tanques esfumaçados que ocuparam a Esplanada nesta terça-feira, 10 de agosto, estavam longe da tradição de pompas e vaidades militares. Mas era essa a inspiração, sabemos, de quem os desejou ali.

E o desfile, para além da cortina de fumaça, nos obriga a pensar sobre o papel das Forças Armadas em tempo de paz, como se pensava de forma mais livre sobre o tema há mais de 200 anos. Considerando que o Brasil não tem que defender seu território de invasores há mais de 150 anos e contou modestas participações nos conflitos globais nos últimos anos, faz-se necessário pensar: para que servem as Forças Armadas quando não estão lutando contra inimigos externos?

Não vou aqui pregar uma solução costarriquense. O pequeno país da América Central aboliu suas Forças Armadas há mais de sete décadas e desde então tornou-se a mais sólida e próspera democracia da região.

Mas não se pode fingir que não é um problema mal resolvido para o Brasil o pensamento sobre o papel de suas Forças Armadas em tempo de paz. Paz aqui compreendida como a ausência de guerra contra outro país.

Na nossa jovem e instável república, as Forças jogaram sem dúvida um um papel mais desestabilizador e antidemocrático do que o contrário. Sua participação em deposições tentadas e consumadas de presidentes e na repressão à cidadania são marcas indeléveis de sua história. Mas para compreender a gravidade e o contexto dos velhos tanques no Planalto é necessário olhar com atenção para o papel delas após a Constituição de 1988.

Para fazer isso, nada melhor do que ler o indispensável livro da jornalista Natalia Viana, Dano Colateral - a Intervenção dos militares na segurança pública. Natalia faz uma arqueologia da volta dos militares ao poder no pós-88. A primeira novidade é que a jornalista situa, bem mais do que na transição acovardada de 1979, na própria negociação sobre o texto da Constituição a origem da presença bastante desastrada das Forças Armadas nos últimos anos da Nova República.

A inclusão, por pressão principalmente do então Ministro do Exército, da possibilidade de atuação das Forças Armadas em caso de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) mantinha a ideia de um duplo papel das Forças: inimigos externos e perturbadores da ordem interna.

No fundo, a definição de um papel interno resolve um problema de identidade para uma organização que mobiliza tantos recursos e fica, em tempos de paz, sem função clara. Mas cria uma série de outros, como prova o Brasil das últimas décadas.

Em seu livro, Natalia mostra como as Forças foram utilizando as operações de GLO ao longo dos governos da Nova República para ir conquistando relevância política. E, durante o Governo Lula, aparece também a presença no Haiti como outro elemento fundamental de construção de um papel público.

Acontece que, tanto a presença em GLOs quanto o papel no Haiti são marcados essencialmente por uma lógica mais militar do que democrática em sua atuação. A lógica democrática é a de reavaliação constante de erros e acertos. Seja pela imprensa, pela sociedade civil ou pelas eleições, os atores políticos estão constantemente submetidos ao escrutínio público e é esse julgamento público que faz com que as instituições possam aprender com seus erros e produzir futuros melhores.

A lógica militar é a lógica da hierarquia. Como bem disse Wollstonecraft, da obediência cega e da vaidade extrema. Não admite nunca estar errada. A honra militar se ofende ao ser criticada. A ética da democracia é justamente a de reconhecer a falibilidade dos líderes.

participação dos militares na política brasileira é trágica. Foi trágica durante a ditadura (tanto no que diz respeito ao país que entregou nos anos 1980 quanto na violência e repressão empregada) e foi trágica no pós-1988.

Danos Colaterais reconstrói essa última tragédia. Mostra que a atuação das Forças por GLO, que se acelera ao longo das gestões Dilma Rousseff (2011-2016) e culmina na intervenção militar no Rio de Janeiro, constitui numa coleção de fracassos, marcados pela impunidade absoluta no caso de mortes de civis (chamados de danos colaterais), opacidade de gastos e de avaliações de resultados.

No mesmo sentido vai a atuação no Haiti: extremamente criticada pela sociedade civil local, é tratada como êxito absoluto pelas Forças, incapazes de uma avaliação crítica dos processos.

Esses fracassos claramente subiram à cabeça da geração de generais que estiveram no centro dessas experiências. Comandantes no Haiti, na intervenção fluminense e de GLOs assumem postos-chave no Governo do capitão que tinha por ídolo não os ditadores de 64-85, mas seus porões sangrentos. Reconciliando a geração da inépcia de gestão com o que houve de pior na ditadura.

bolsonaro herzog tortura.jpg

 

O Governo Bolsonaro militarizado é consequência dessa malfadada experiência dos militares com a democracia. Incapazes de se olhar no espelho a não ser para admirar suas fardas, tanques ou caças e submarinos comprados em governos comandados por civis. Incapazes de aprender com os erros, pois reconhecê-los vai contra a honra militar, esse grupo de militares entra no Governo ocupando os espaços civis no meio de uma pandemia. E, mais uma vez, agem com a esperada arrogância incompetente com a qual têm atuado quando chamados a assuntos que, evidentemente, não deveriam competir a militares.

Os tanques esfumaçados que ocuparam a Esplanada não poderiam ser melhor metáfora do desconforto dos militares brasileiros com a democracia.Um teatro que ocorre no dia da votação do voto impresso na Câmara dos Deputados após reiteradas declarações de líderes militares e do presidente da República ameaçando o processo eleitoral. Seria patético, como são os desfiles militares, já nos alertava Wollstonecraft. Mas os danos colaterais à nossa democracia já são sérios demais para que possa ser tratado como mero exercício da vaidade masculina.

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