Promessa de futuro (vídeo os filhos de Itaipu)

Ignoradas pelos pais e pelo estado, crianças eram colocadas para adoção ou abrigadas por vizinhos e outras mulheres. Foto Jean Pavão para o Intercept Brasil
V - OS FILHOS ESQUECIDOS DE ITAIPU
O GRANDE FLUXO DE CLIENTES e de dinheiro também abriu caminho para a exploração sexual infantojuvenil nos prostíbulos de Três Lagoas. “Como era muito famosa, de ganharem muito dinheiro, começou a surgir as meninas de menor, 15 anos, 16 anos. Aí começou o Conselho Tutelar vir junto com a polícia. Elas corriam e se abrigavam nas casas dos moradores da redondeza. Era tudo misturado, a família, a zona, a escola”, recorda Júlia Santos.
Corrupção e dissimulação alimentavam esse negócio ilegal. “A maioria mentia a idade. Tinha muito movimento, não dava tempo para procurar se era de maior ou não. Queria ficar, azar. Se a polícia levasse era problema delas”, esquiva-se Dalva. “Às vezes dava problema para a gente, tinha que pagar para não ir presa. Levava a menor, fechava a casa, ia lá e pagava a taxa, e eles liberavam de novo. O delegado fazia o papel e tinha que pagar no banco”, explica.
Segundo o policial aposentado Genésio Aparecido da Silva, que à época atuou na delegacia de Foz, o controle realizado nos prostíbulos não se resumia a coletar as taxas do alvará de funcionamento, servia também para evitar a presença de menores de idade nos bordéis. “Mas muitas arrumavam uma certidão fria, preenchiam e diziam que tinham 18 anos. Isso acontecia”, reconhece.
No Paraguai, do outro lado da fronteira, também havia adolescentes nas casas do bairro María Magdalena, que tinha 400 mulheres em 37 boates. “As proprietárias saíam ao interior para encontrar meninas e falavam aos pais sobre o futuro maravilhoso que elas teriam”, observa o jornalista Alcibiades González Delvalle. Ele foi à cidade de Hernandarias em 1979 para investigar a morte de uma adolescente e desvendou um esquema de corrupção envolvendo autoridades locais, o que acelerou o fim da área de prostíbulos.
A vítima seria Adriana da Silva, de 16 anos, de Medianeira, cidade paranaense a 60 km da fronteira. A morte não foi comunicada, e o corpo foi enterrado em um cemitério particular de um fazendeiro. A identidade não foi confirmada, e a investigação foi arquivada. Mas o jornalista descobriu que a esposa do juiz responsável pelo caso ia aos sábados à zona de prostíbulos para vender produtos de beleza às mulheres. “Ninguém mais podia vender, só ela. E os preços eram altos”, relata.
Assim como no Brasil, do lado paraguaio cada mulher tinha de pagar uma taxa à prefeitura para se registrar e outra mensal para trabalhar. Donos das boates pagavam todo mês para funcionar, além de um adicional ao delegado de polícia a título de “proteção especial”, que incluía o resgate das mulheres que porventura fugissem. “Ninguém podia sair”, recorda Delvalle.
As autoridades locais faturavam uma bolada com o comércio sexual de Hernandarias. O chefe do Centro de Saúde também cobrava uma quantia das mulheres a cada 15 dias, a pretexto de atendimento clínico. “Todos ganhavam, menos as meninas”, diz. O destino do que era arrecadado também nunca foi esclarecido.
A série de reportagens de Delvalle no jornal ABC Color marcou o início do declínio da zona de prostituição de Hernandarias. As casas foram sendo abandonadas, e as mulheres se espalharam por outros locais da fronteira. Algumas foram parar na zona de meretrício em Três Lagoas, em Foz do Iguaçu.

Jornal da época narra a derrocada da zona de prostituição, já no fim das obras da usina.
O fim da zona
O DECLÍNIO DA ZONA DE PROSTITUIÇÃO começou com a redução de clientes, o avanço da aids numa época em que a doença era tida como sentença de morte e o início da construção de um complexo penitenciário bem ao lado, hoje com quatro unidades. “Foi acabando, desmontando tudo”, conta Neusa, que trabalhou na boate Carinho da Noite, a última a fechar as portas, em 2018. As casas que não foram derrubadas ou queimadas hoje funcionam como moradias, oficina mecânica, marmoraria e até casa paroquial.
No canteiro de obras de Itaipu, mulheres eram exceção. A representação simbólica disso está expressa no painel de 25 metros de largura e dois de altura exposto no mirante da usina, uma homenagem aos barrageiros que ergueram a “obra do século”. Já as trabalhadoras do sexo que atendiam aos empregados de Itaipu vivem no esquecimento – a única lembrança são os filhos, já adultos, que surgiram daquelas relações.
Mas, sem elas, talvez as obras não tivessem sido as mesmas. “A prostituição foi considerada uma parte vital na construção da hidrelétrica”, diz o jornalista paraguaio Alcibiades González Delvalle. “Em uma lógica circular, os homens não poderiam trabalhar adequadamente sem relações regulares, e a hidrelétrica não poderia ser construída sem os trabalhadores da barragem”, concorda o historiador John Howard White. “Em suma, não poderia haver barragem hidrelétrica sem as profissionais do sexo”.
Delvalle descreve a hipocrisia e o descaso do alto escalão da Itaipu à época em relação a essas mulheres. A binacional planejou e construiu projetos habitacionais para seus trabalhadores, com educação, saúde, recreação, treinamentos. Os empregados, por sua vez, usufruíam da prostituição. “Itaipu não teve um papel direto, mas, sim, o ímpeto emanado de seus trabalhadores e como consequência indireta de suas atividades”, complementa White.
Para Delvalle, Itaipu e as subcontratadas deveriam ter reconhecido as prostitutas como uma categoria legítima de trabalhadoras, com os mesmos benefícios concedidos aos trabalhadores da barragem. Sugere ainda que o acompanhamento médico dessas mulheres deveria ter sido feito nos hospitais e clínicas operados por Itaipu, para evitar a exploração pelas autoridades de saúde.
Quarenta anos depois, Dalvalle lembra com certo desalento a confirmação da previsão que fez durante as obras: “quando a barragem for finalmente inaugurada, ninguém encontrará nenhuma placa para comemorar ou homenagear as jovens de Hernandarias”. Segundo ele, a prostituição era vista como uma necessidade, mas apenas tolerada enquanto permanecesse escondida.