O marco temporal e os Xokleng: das crianças espetadas em facas ao racismo do governo de Santa Catarina

MÁRCIA VAICOMEM VEI-TCHÁ TEIÊ COM A FILHA SOFHYA KOZIKLA PRIPRA, EM FRENTE À RÉPLICA DA CASA SUBTERRÂNEA USADA ANTIGAMENTE PELOS XOKLENG PARA SUPORTAR O FRIO NA ALDEIA BUGIO, EM JOSÉ BOITEUX. FOTO: DANIEL CONZI/SUMAÚMA
SUMAÚMA visitou os povos originários do território Ibirama-Laklãnõ, centro da ação julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Vítimas do extermínio há séculos, mais uma vez a violência ameaça os pequenos indígenas
Isabel Cutschó, 77 anos, uma das anciãs Xokleng, traz no rosto as marcas da luta do seu povo. As cicatrizes da perseguição histórica – simbolizada em matanças a tiros e no fio do facão com que os bugreiros, como eram chamados os milicianos da época, ganhavam dinheiro do Estado por orelhas decepadas de indígenas – marcam também os pés calejados de Isabel. Ela vive na aldeia Sede, a 20 quilômetros do centro da cidade de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina, Sul do Brasil. Sentada em um banco de madeira, Isabel mostra peças do artesanato que produz em forma de brincos, prendedores de cabelo, colares e pulseiras coloridas. Enquanto faz isso, a anciã relata não ter ideia das vezes em que deixou a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ para participar, em Brasília ou em Florianópolis, a capital catarinense, de longas reuniões e protestos barulhentos. Em 2021, ela dançou com os pés descalços num dos salões do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, em sinal de protesto. “Não é que queremos terra, nós queremos a nossa terra de volta”, corrige Isabel, casada com um ex-cacique do clã Patté, com quem teve sete filhas e se tornou avó de muitos netos. É com parte da família que ela estará mais uma vez na capital federal, 1.700 quilômetros distante, para acompanhar o que os indígenas consideram o “julgamento do século”.
Assim como seus parentes, Isabel aguarda, aflita, o dia 7 de junho, quando será retomado o julgamento no STF de uma ação que vai definir o futuro da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. Esse julgamento vai decidir se pode ou não ser aplicado na demarcação de terras do povo de Isabel e dos territórios indígenas de todo o Brasil o chamado “marco temporal” – tese que reduz os direitos dos povos originários ao determinar que só podem viver em suas terras ancestrais aqueles que as ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988. A determinação de um marco temporal para o reconhecimento dos direitos ancestrais dos povos originários ignora que muitos foram expulsos de suas terras por grileiros ou projetos de Estado ou obrigados a fugir para não morrer.

ISABEL CUTSCHÓ, AOS 77 ANOS, ACOMPANHARÁ O JULGAMENTO NO STF, EM BRASÍLIA. FOTO: DANIEL CONZI/SUMAÚMA
A trajetória de lutas do povo Xokleng atravessa gerações. Ela se reflete nas cicatrizes de Isabel e também no abraço de Sofhya Koziklã Teiê Priprá, de 5 anos, a um pé de canela-sassafrás nascido nos fundos da Escola de Ensino Infantil e Ensino Fundamental Vanhecu Patté, na aldeia Bugio. A espécie foi abundante na região, mas desde o início dos anos 1990, de tão explorada pela construção civil, entrou para a lista oficial de Espécies da Flora Brasileira Ameaçadas de Extinção. Além de ser uma madeira “nobre”, a sassafrás demonstrou outra qualidade que fez crescer o olho das empresas madeireiras: a imensa capacidade de produção do óleo essencial safrol, utilizado na fabricação de produtos medicinais e cosméticos. A árvore dá nome à Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, criada em 1977, com uma área de 5.229 hectares, dividida em duas glebas, nos municípios de Benedito Novo e Doutor Pedrinho.
A luta por esse território vem desde os anos 1990. Os Xokleng sempre defenderam que a terra era deles, mas na época as lideranças não tinham clareza de como agir. O caso em discussão no STF, cujo julgamento será retomado agora, teve início em 2009 com uma ação de reintegração de posse movida pela então Fundação do Meio Ambiente (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). A área reivindicada pelos Xokleng é sobreposta à da reserva e já identificada como parte da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. A linha de demarcação do território começou a ser desenhada, mas o estado de Santa Catarina entrou com o pedido de reintegração de posse. Desde 2013, o traçado encontra-se paralisado.
Em 2019, as coisas pareciam caminhar para um entendimento com uma audiência pública de conciliação no Supremo mediada pelo ministro Edson Fachin. Não houve acordo, porém. A votação agora está empatada, com voto contrário do relator Fachin aos pedidos do governo de Santa Catarina e favorável do ministro Kassio Nunes Marques, escolhido pelo extremista de direita Jair Bolsonaro quando era presidente.
O abraço de Sofhya na árvore, que leva anos para crescer e pode chegar a 25 metros de altura, carrega uma esperança que extrapola os limites territoriais dos Xokleng. Isso porque, em 2019, o Supremo deu status de repercussão geral ao processo, o que significa que a decisão que for tomada nesse julgamento servirá como diretriz para todas as instâncias da Justiça com relação à demarcação de terras indígenas no Brasil.

SOFHYA KOZIKLA PRIPRA, 5 ANOS, ABRAÇA O PÉ DE CANELA-SASSAFRÁS, ESPÉCIE QUE DEU NOME À RESERVA CRIADA EM 1977. FOTO: DANIEL CONZI/SUMAÚMA
Gente do sol
Os Laklãnõ/Xokleng vivem no noroeste catarinense, no Alto Vale do Itajaí, aonde se chega pela movimentada rodovia BR-470. Eles se autodenominam “gente do sol”. Para alcançar a terra indígena, que se estende por quatro municípios – José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meireles e Itaiópolis –, é preciso viajar por estradas de chão. O traçado confunde: ora se está em terra indígena, ora em terras dos não indígenas com plantações de milho, de fumo, de árvores frutíferas. O tráfego de caminhões que transportam toras de pínus é intenso.
Estão vivendo na área em conflito 486 famílias de agricultores. Mas elas não a invadiram. Compraram a terra legalmente do Estado, com escrituras comprovadas em cartórios, em projetos governamentais que ignoravam os direitos indígenas, só totalmente reconhecidos na Constituição de 1988. Nesse universo de famílias, porém, 150 não teriam como provar alguma legitimidade porque agiram de má-fé ao invadir a área já cientes de que era um território indígena e, portanto, não têm direito a nenhuma indenização.
A comunidade Xokleng é composta de cerca de 2.300 pessoas que moram em nove aldeias, todas com autonomia política e lideradas por um cacique-presidente que dá unidade à comunidade. Os líderes são escolhidos por voto direto e periódico. Em uma das regiões mais frias do país, as casas são de alvenaria. Para vencer as estradas de chão, a maior parte das famílias tem carro. Além dos Xokleng, a imensa maioria, o território abriga famílias dos Guarani e Kaingang, outros dois povos originários que vivem em Santa Catarina com uma população estimada em 17 mil pessoas.
Durante séculos nômades e viventes da caça e da coleta, os Xokleng ocuparam as florestas que cobriam as encostas das montanhas, os vales litorâneos e as bordas do planalto no Sul do Brasil. Nesse passado distante, sofreram a competição de outros grupos indígenas pelo domínio dos campos e dos bosques de pinheiros. Depois, vivendo nas encostas do planalto e em vales litorâneos, viram aquelas terras serem aos poucos ocupadas por não indígenas. Proclamada a “Independência”, o Estado brasileiro passou a favorecer a imigração de europeus. Nesse processo, os indígenas sofreram as consequências de decisões políticas e econômicas executadas com extrema violência. “A saga dos Xokleng muitas vezes se confunde com a história da imigração no Sul do país, em particular em Santa Catarina, com grande fluxo de imigrantes de origem alemã. No Alto Vale do Itajaí, a colonização só se afirmou na medida em que os indígenas foram confinados na reserva”, escreveu o doutor em antropologia Sílvio Coelho dos Santos (1938-2008), que foi professor da Universidade Federal de Santa Catarina, em Os Índios Xokleng – Memória Visual (editoras da UFSC e da Univali, 1997). Continua
O comentarista da CNN Marco Antonio Villa analisou a retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal das terras indígenas. Villa criticou a lei, afirmou que o "marco temporal é uma falácia" e disse esperar que o "STF cumpra o seu papel". #CNNBrasil
Centenas de indígenas marcharam nesta terça-feira, 6 de junho, na capital do Brasil para protestar contra uma proposta que poderia colocar em risco a demarcação de centenas de terras ancestrais. O protesto ocorreu um dia antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) retomar o julgamento sobre o tema.