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O CORRESPONDENTE

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O CORRESPONDENTE

27
Ago22

Lula no Jornal Nacional: leia a íntegra da entrevista

Talis Andrade

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O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu, na noite de quinta-feira (25/08), entrevista ao Jornal Nacional. A participação fez com que o termo “Lula” fosse o mais comentado no mundo nas redes sociais. Confira abaixo a íntegra da conversa com os jornalistas Wiliam Bonner e Renata Vasconcellos.

 

William Bonner: Olá, boa noite. Nós estamos entrevistando nesta semana os candidatos à Presidência mais bem colocados na pesquisa Datafolha de intenção de voto que foi divulgada no dia 28 de julho. Pela ordem determinada em sorteio, com a presença dos assessores dos partidos, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, é o entrevistado de hoje. Amanhã será a vez de Simone Tebet, do MDB. O candidato à reeleição Jair Bolsonaro, do PL, e o candidato do PDT, Ciro Gomes, já foram entrevistados na segunda e na terça-feira, respectivamente.

Renata Vasconcellos: Em 40 minutos nós vamos abordar os temas que marcam essas candidaturas e o candidato vai ter um minuto para as considerações finais. Candidato Lula, boa noite, obrigada pela presença.

Luiz Inácio Lula da Silva: Boa noite, Renata.

William Bonner: Obrigado por ter vindo, candidato, e nós vamos começar então essa entrevista, a partir de agora, contando o tempo, e vamos começar falando de corrupção. O Supremo Tribunal Federal lhe deu razão, considerou o então juiz Sérgio Moro parcial, anulou a condenação do caso do triplex, e anulou também outras ações por ter considerado a Vara de Curitiba incompetente. Portanto, o senhor não deve nada à Justiça. Mas, houve corrupção na Petrobras e, segundo a Justiça, com pagamentos a executivos da empresa, a políticos de partidos como o PT, como o então PMDB, e o PP. Candidato, como é que o senhor vai convencer os eleitores de que esses escândalos não vão se repetir?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, primeiro eu acho importante você ter começado esse debate com essa pergunta porque, durante cinco anos, eu fui massacrado e estou tendo hoje a primeira oportunidade de poder falar disso abertamente, ao vivo, com o povo brasileiro. Primeiro, a corrupção só aparece quando você permite que ela seja investigada. Eu queria começar dizendo para você uma coisa muito séria: foi no meu governo que a gente criou o Portal da Transparência, que a gente colocou a CGU com o ministro para fiscalizar, que a gente criou a Lei de Acesso à Informação. A gente criou a Lei Anticorrupção, a Lei Contra o Crime Organizado, a Lei contra a Lavagem de Dinheiro. A AGU entrou no combate à corrupção, criamos o COAF para cuidar de movimentações financeiras atípicas, e colocamos o CADE para combater os cartéis. Ou seja, foram todas as medidas tomadas no meu governo, além de que o Ministério Público era independente, e além do que a Polícia Federal recebeu no meu governo mais liberdade do que em qualquer outro momento da história. Porque você está lembrado que, em 2005, quando surgiu a questão do mensalão, eu cheguei a dizer o seguinte: só existe uma possibilidade de alguém não ser investigado nesse país, é não cometer erro. Se cometer erro, vai ser investigado. E foi isso que nós fizemos. Ora, se alguém comete um erro, se alguém comete um delito, investiga-se, apura, julga, condena ou absolve, e está resolvido o problema. O que é que foi o equívoco da Lava Jato? É que a Lava Jato enveredou por um caminho político delicado. A Lava Jato ultrapassou o limite da investigação e entrou no limite da política, e o objetivo era o Lula. O objetivo era tentar condenar o Lula. Não sei se você está lembrado que no primeiro depoimento que eu fui dar ao Moro, eu falei: Moro, você está condenado a me condenar porque você já permitiu que a mentira fosse longe demais, e você sabe do que é que eu estou falando. E aconteceu exatamente o que eu previa. Quando nós entramos com habeas corpus na Suprema Corte foi antes e bem antes do hacker. E se você pegar o nosso habeas corpus a gente está dizendo coisa que depois se descobriu com o hacker, investigado pela Polícia Federal. Então, eu vou te dizer uma coisa Bonner, eu vou dizer para você olhando nos olhos do povo brasileiro, não há hipótese, não há hipótese, eu quero voltar à Presidência da República e qualquer, qualquer hipótese de alguém cometer qualquer crime, por menor ou por maior que seja, essa pessoa será investigada, essa pessoa será julgada, e essa pessoa será punida ou absolvida. É assim que você combate a corrupção num país.

 

William Bonner: Agora, candidato, o senhor elencou aqui diversas medidas adotadas em governos do PT como instrumentos, mecanismos de controle da corrupção. Mas é fato que a corrupção a despeito disso ocorreu e ocorreu em grande escala. Por isso eu retomo a pergunta original que é: como o senhor pode assegurar que elas não se repetirão? Alguma medida nova foi estudada para evitar que aconteça?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, primeiro as medidas estão colocadas. Veja, eu poderia ter escolhido um procurador engavetador. Sabe aquele amigo que você escolhe, que nenhum processo vai para frente? Eu poderia ter feito isso. Eu não fiz, eu escolhi da lista tríplice. Eu poderia ter impedido que a Polícia Federal tivesse um delegado que eu pudesse controlá-lo. Não fiz. E permiti que efetivamente as coisas acontecessem do jeito que precisava acontecer. Ora, nós vamos continuar criando mecanismo para investigar qualquer delito que aconteça na máquina pública brasileira. Porque eu já disse 500 vezes que a corrupção… Eu poderia, por exemplo, fazer Decreto de cem anos, sabe, Decreto de Sigilo, que está na moda agora? Eu poderia, para não apurar nada. Decreto de cem anos de sigilo para o Pazzuelo, Decreto para os meus filhos, Decreto para os meus assessores, ou eu poderia não investigar. Pega um tapetão, coloca em cima de qualquer denúncia e nada vai ser apurado e não vai ter corrupção. E a corrupção ela só aparece quando você governa de forma republicana, que você permite que as pessoas sejam investigadas, independentemente de quem seja. E eu tive a alegria, eu tive a sorte de ter um ministro do porte do Márcio Thomaz Bastos, que era uma figura inatacável nesse país do ponto de vista da competência e da seriedade. Por isso, pode ficar tranquilo que quem cometeu o erro pagará.Image

 

William Bonner: Houve um momento, em mais de um momento aliás, o Partido dos Trabalhadores chegou a dizer que o prejuízo acumulado pela Petrobras com o escândalo do petrolão tinha sido reconhecido pela empresa e colocado no balanço da Petrobras, por uma imposição da Lava Jato. Isso foi dito pelo Partido dos Trabalhadores, e escrito. Hoje, o partido reconhece então que efetivamente houve esse prejuízo?

Luiz Inácio Lula da Silva: Deixa eu lhe falar uma coisa. Você não pode dizer que não houve corrupção se as pessoas confessaram. O que é mais grave é que as pessoas confessaram e por conta das pessoas confessarem ficaram ricos por conta de confessar. Ou seja, foi uma espécie de uma delação premiada. Você não só ganhava a liberdade por falar o que queria ao Ministério Público, como você ganhava a metade do que você roubou. Ou seja, o roubo foi oficializado pelo Ministério Público, o que eu acho uma insanidade e uma aberração com esse país. Ou seja, o correto era você fazer a investigação que tinha que fazer da forma mais correta possível, como fizeram no meu tempo que eu era presidente. E depois, se a pessoa for inocente você absolve, se a pessoa for culpada você culpa, você condena. O que acontece é que aqui no Brasil, Bonner, nós temos um problema sério. É que as pessoas são condenadas pelas manchetes de jornais e depois não se volta atrás.

 

William Bonner: É, mas voltaram 6 bilhões e 200 milhões de dólares para a Petrobras, foram devolvidos, muito desse dinheiro inclusive por diretores da Petrobras que não tinham como juntar uma fortuna dessa.

Luiz Inácio Lula da Silva: E ótimo que voltou. E o Ministério Público queria pegar 2 bilhões e meio para eles, criar um fundinho para eles, desses 6 bilhões. E mais ainda, a gente olha o que eles devolveram, mas vamos olhar os prejuízos que foram dados. Por conta da Lava Jato nós tivemos 4 milhões e 400 mil desempregados nesse país. Por conta da Lava Jato nós tivemos 270 bilhões que deixaram de ser investidos nesse país. E por conta da Lava Jato a gente deixou de arrecadar 58 bilhões. O que eu quero te dizer é o seguinte, é que você pode fazer investigação com a maior seriedade como foi feito na Coreia, na Samsung, como foi feito na França, na Alstom, como foi feito na Volkswagen da Alemanha. Você investiga. Se o empresário roubou você prende, condena, mas você permite que a empresa continue funcionando. Aqui no Brasil se quebrou a indústria de engenharia que nós levamos quase um século para construir. E nós agora é que vamos ter o prejuízo, porque se eu ganhar as eleições, a gente vai ter que fazer um grande plano de investimento de infraestrutura, a gente vai ter que recuperar muitas obras. Eu vou fazer uma reunião com os 27 governadores para saber quais são as obras prioritárias de cada estado, e esse país vai voltar a andar.

 

William Bonner: Nós vamos falar de economia daqui a pouco. Mas antes de passar a palavra para a Renata Vasconcelos eu gostaria de fazer só uma observação sobre os números que o senhor mencionou. Muitos economistas afirmam que esses milhões de empregos não criados, os investimentos que não foram realizados seriam consequência não da Lava Jato, mas da crise econômica herdada da gestão de Dilma Rousseff. Mas, Renata.

Renata Vasconcellos: O senhor mencionou mecanismos de controle da corrupção no seu governo, e de fato o senhor e a sua sucessora Dilma Rousseff sempre escolheram como procurador-geral da República o primeiro da lista tríplice elaborada pelo Ministério Público Federal, que em tese dá mais independência ao escolhido. Ano que vem termina o mandato de Augusto Aras na PGR, mas ultimamente perguntado, quando o senhor é perguntado sobre se vai cumprir respeitar a lista tríplice o senhor tem evitado responder. Por quê?

Luiz Inácio Lula da Silva: Porque eu quero que eles fiquem com uma pulguinha atrás da orelha. Eu não quero definir agora o que eu vou fazer. Primeiro, eu preciso ganhar as eleições. Esse negócio da gente ficar prometendo fazer as coisas antes da gente ganhar a gente comete um erro. Veja, eu respeito muito o Ministério Público. Uma das queixas que eu tenho da força tarefa da Lava Jato é que eles quase jogam o nome do Ministério Público na lama, porque houve muito equívoco e muitas aberrações. O Ministério Público é uma instituição séria, que eu sempre valorizei, da mesma forma a Polícia Federal. Se um dia Renata eu pudesse contar para você os vários depoimentos que eu prestei para a delegada, as perguntas insanas que eram feitas, numa instituição que eu respeito muito. E eu acho que o Estado brasileiro tem que ter instituições muito fortes para que o governo possa exercer a democracia.

 

Renata Vasconcellos: Exato, e a lista tríplice da PGR ela justamente evita uma situação que aliás ocorre atualmente, em que o procurador-geral da República é criticado, é acusado de lealdade ao presidente da República, seja essa acusação justa ou não, eu não estou entrando aqui nesse mérito. O senhor não teme que isso aconteça?

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu não quero procurador leal a mim. O procurador tem que ser real ao povo brasileiro. Ele tem que ser leal à instituição. Agora, pode ficar certa que se eu ganhar as eleições, antes da posse eu vou ter várias reuniões com o Ministério Público para discutir os critérios que eu acho que é importante para eles e para o Brasil. Para mim o que precisa é dar segurança para o povo. Como eu dei quando eu era presidente. O meu primeiro diretor-geral da Polícia Federal foi o Paulo Lacerda, que não era meu amigo e que trabalhava com o Tuma, que foi o cara que procurou a investigação do Collor. Ou seja, eu não quero amigo. Eu quero pessoas sérias, responsáveis, que falem em nome da instituição, porque as instituições que garantem o funcionamento da democracia têm que ser fortes, Renata.

 

Renata Vasconcellos: É um assunto tão importante, o senhor vai manter suspense sobre uma questão tão fundamental? E é de fato as críticas, a falta de independência do Ministério Público, da Procuradoria Geral da República, é motivo de preocupação para os brasileiros. Por que manter esse suspense?

Luiz Inácio Lula da Silva: Em minha defesa eu tenho três indicações. Você está lembrada que eu indiquei o procurador-geral que estava julgando o Palocci, e eu mantive ele. Porque eu não quero amigo. Eu não quero amigo no Ministério Público, eu não quero amigo na Polícia Federal, eu não quero amigo no Itamaraty, eu não quero amigo em nenhuma instituição. Eu quero pessoas competentes, pessoas ilibadas, pessoas republicanas e pessoas que pensam, sobretudo, no povo brasileiro.

 

Renata Vasconcellos: Então, como fazer? Porque as Associações de Policiais Federais têm se queixado de tentativas de interferência na instituição, na PF. Como fazer para que esse tipo de interferência não ocorra?

Luiz Inácio Lula da Silva: Não, interferência não. Teve muitas interferências. O Bolsonaro troca qualquer diretor a hora que ele quer, basta que ele não goste. E eu não fiz isso e não vou fazer. O delegado não está lá para fazer as coisas que eu quero. Renata, você se lembra que em 2005 a Polícia, eu estava na Índia, a Polícia Federal foi na casa de um irmão meu, esse que morreu quando eu estava preso, esse cara ganhava R$ 2.900,00, aposentado na prefeitura, a Polícia Federal invadiu a casa dele. E eu sabia antes e eu falei: não vou interferir porque quem ficou sabendo não é o Lula, foi o presidente da República. Ela que cumpra com as suas funções. Sabe. Então, para mim, a seriedade das instituições é o que vai garantir o exercício da democracia nesse país. Então, você pode ficar certa que as coisas virão acontecer da forma mais republicana possível que possa acontecerDelegada memes. Best Collection of funny Delegada pictures on iFunny BrazilDelegada memes. Best Collection of funny Delegada pictures on iFunny Brazil

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William Bonner: Vamos falar de economia então candidato.

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu estou querendo voltar porque eu quero ser melhor do que eu fui. Eu quero ser melhor. Eu quero voltar porque eu quero fazer coisas que eu deveria ter feito, mas não sabia que era possível fazer. É por isso que eu fui escolher uma pessoa como o Alckmin de vice, para juntar duas grandes experiências na minha vida. Um cara que foi governador de São Paulo por dezesseis anos e vice seis anos, e um cara que foi considerado o melhor presidente da história do Brasil. É esses dois que vão governar esse país.

William Bonner: Vamos falar de economia então agora, candidato. Todos os economistas atualmente estão dizendo que o próximo governo vai ser obrigado a lidar com uma bomba fiscal, um desequilíbrio das contas públicas enormes. O senhor não tem sido claro quando fala dos seus planos para a economia. Mas o senhor ao mesmo tempo tem feito promessas. Como é que o senhor pretende recuperar o equilíbrio das contas?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, é que você não deve lembrar o que os meus economistas diziam para mim nas eleições de 2002. Naquela época o Brasil estava quebrado. Naquela época, vocês lembram, vocês lembram que o Brasil quebrou duas vezes no governo Fernando Henrique Cardoso. Naquela época o Malan, que era um homem sério, ele todo final de ano ia para o Washington tentar pegar dinheiro para fazer fechar o balanço, o caixa do governo. Vocês estão lembrados de duas pessoas do FMI que vinham para o Brasil investigar o Brasil todo dia e os meus economistas diziam: o Brasil está quebrado, o Brasil está quebrado. E eu falava: ‘então, por que vocês querem que eu ganhe as eleições?’ Então, eu vou dar um dado para você para você ver o seguinte: quando eu tomei posse em 2003, o Brasil tinha 10,5% de inflação, o Brasil tinha 12% de desemprego, o Brasil devia 30 bilhões ao FMI, nós tínhamos uma dívida pública de 60.4%. O que é que nós fizemos? Primeiro, nós reduzimos a inflação para a meta que era 4,5 mais 2, menos 2, durante todo o meu período de governo. Segundo, nós reduzimos a dívida pública de 60.4% para 39%. Nós fizemos uma reserva de 370 bilhões de dólares. E nós ainda emprestamos 15 bilhões para o FMI. Não sei se você está lembrado disso. Além do que nós fizemos a maior política de inclusão social que a história desse país conheceu. É assim que nós vamos governar esse país. Eu digo sempre, Bonner, que tem três palavras mágicas para governar o país. Três. A primeira delas é credibilidade, a segunda delas é previsibilidade, e a terceira é estabilidade. Você tem que garantir primeiro que quando você falar as pessoas acreditem no que você fala. Quando você fala na previsibilidade é porque ninguém pode ser pego de surpresa dormindo com mudança do governo. E a estabilidade é para você convencer, o governo cumprindo com a sua tarefa, que os empresários privados do Brasil e os empresários estrangeiros tenham condições e saibam que têm estabilidade para fazer investimento aqui dentro. E você sabe, eu vou terminar dizendo o seguinte: nunca antes na história do Brasil esse governo teve uma chapa como Lula e Alckmin para poder ganhar credibilidade interna e externa para fazer acontecer as coisas no Brasil.

 

William Bonner: Mas ainda na economia, depois dos seus dois mandatos, candidato, veio o governo Dilma. E o governo Dilma se notabilizou por tentar induzir o crescimento da economia brasileira fazendo, aumentando gastos públicos e também segurando aumento de preços de combustíveis, aumento de preço de energia. O resultado disso foi a maior recessão em 25 anos e uma explosão da inflação. Daí a pergunta: o senhor uma vez eleito presidente da República mais uma vez vai implantar na política econômica qual das receitas petistas, a do seu primeiro mandato, ou a receita petista do mandato de Dilma Rousseff?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, sábado eu estive com a Dilma no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, e a Dilma sabia que eu vinha aqui. E a Dilma falou assim para mim: ‘presidente, se perguntarem do meu governo não responda. Fala para me convidarem que eu vou lá para discutir com eles’. Mas o que eu quero dizer para você? Eu quero dizer para você primeiro que a Dilma é uma das pessoas que eu tenho o mais profundo respeito pela competência e pela ajuda que ela me deu quando era chefe da Casa Civil. A Dilma fez um primeiro mandato presidencial extraordinário, porque a crise se agravou, a crise internacional, e mesmo assim ela se endividou para poder manter as políticas sociais e para poder manter o emprego em 4.5%, que foi o menor desemprego que nós tivemos na história desse país. Era como se fosse padrão Noruega, padrão holandês. Eu acho que a Dilma sim cometeu o equívoco na questão da gasolina, ela sabe que eu penso isso, eu acho que cometeu o equívoco na hora que fizeram 540 bilhões de desoneração e isenção fiscal de 2011 a 2040, sabe. E eu acho que quando ela tentou mudar ela tinha uma dupla dinâmica contra ela, Eduardo, sabe, o presidente da Câmara, e o Aécio no Senado, que trabalharam o tempo inteiro para que ela não pudesse fazer nenhuma mudança. Ela mandou Medida Provisória para mudar. Como aconteceu com o Fernando Henrique Cardoso. Quando o Fernando Henrique Cardoso teve o segundo mandato ele mandou Medida para poder evitar que o Brasil quebrasse e ele tinha como presidente da Câmara o Temer, que ajudou a aprovar as coisas, não trabalhou contra. E o presidente da Câmara da Dilma ele trabalhou contra o tempo inteiro a Dilma.

 

William Bonner: Mas a então presidente Dilma, candidato, não agiu sozinha, havia uma equipe cuidando de economia para ela e tudo. Então este erro que o senhor reconhece ter havido lá não foi um erro pessoal, solitário dela, mas de uma corrente do PT. Por isso a pergunta se impõe, se a corrente do PT que amparou as decisões que o senhor reconhece terem sido equivocadas da ex-presidente Dilma, fizer valer a sua opinião num governo seu, vai-se por esse caminho. O senhor está dizendo então que o seu governo vai ser diferente do dela?

Luiz Inácio Lula da Silva: Se um dia entrar alguém no teu lugar para fazer o Jornal Nacional…

William Bonner: Entrará, sem a menor dúvida.

Luiz Inácio Lula da Silva: Você vai perceber o que é rei morto, rei posto. Você vai descobrir. Ou seja, quando você deixa o governo, quem ganha vai governar do jeito que entender. Quem está de fora não vai mandar. Eu vou voltar a governar esse país, se o povo assim permitir, para fazer as coisas melhor do que eu fiz. A minha obsessão, Bonner, a minha obsessão, um homem de 76 anos de idade, que digo todo dia que tenho energia de 30, de voltar a governar esse país, é porque eu acho que é possível recuperar esse país, a economia voltar a crescer, a gerar empregos, a gerar melhoria nas condições de vida da pessoa. Eu estou convencido disso. Se eu não acreditasse nisso eu não voltava, eu preferia ficar em casa vivendo os louros de ser o melhor presidente da história do Brasil. Não. Eu vou voltar para provar que é possível fazer mais. E eu espero que quando eu estiver no governo você me convide para vir aqui uma vez por mês para poder checar o que está acontecendo nesse país.

William Bonner: Só relembrando então, os números ruins ao fim do governo Dilma, na inflação em 2013 estava em 5,9%, ela chegou a 2015 a 10,6%, o PIB tinha subido 3% em 2013 e caiu 3,5 em 2015. Então assim, os números falam por si. Renata.

Luiz Inácio Lula da Silva: É importante lembrar que eu peguei a inflação a 12 e reduzi para 4,5.

William Bonner: Antes.

Luiz Inácio Lula da Silva: Não, mas nós vamos fazer o mesmo. Se tem uma coisa que eu sei fazer, Renata, é cuidar do povo.

William Bonner: O senhor deixou claro que pretende fazer uma gestão na economia diferente da que foi feita pela sua sucessora.

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu pretendo fazer uma gestão de acordo com aquilo que nós construímos. Eu hoje tenho dez partidos juntos comigo e ainda tenho a experiência do ex-governador Alckmin comigo. Muita gente pensava há um ano atrás que era impossível Lula se juntar com Alckmin. E eu me juntei para dar uma demonstração para a sociedade brasileira que política não tem que ter ódio. Política é a coisa mais extraordinária para você estabelecer convivência entre os contrários.

Renata Vasconcellos: Então pronto, é de política e de alianças que nós vamos falar agora. O senhor tem dito que o centrão se formou lá atrás na constituinte e que participou da base de todos os governos, no de Fernando Henrique Cardoso, do seu, de Dilma, de Temer e agora de Jair Bolsonaro. Só que o relacionamento de governos do PT com o Congresso resultou em escândalos de corrupção, como o mensalão, por exemplo. Como evitar que isso aconteça novamente?

Luiz Inácio Lula da Silva: Você acha que o mensalão, que tanto se falou, é mais grave do que o orçamento secreto?

Renata Vasconcellos: Vamos falar de orçamento secreto também.

Luiz Inácio Lula da Silva: Deixa eu lhe falar uma coisa. A vida política estabelecida em regime democrático é a convivência democrática na diversidade. Nenhum presidente da República num regime presidencialista governa se ele não estabelecer relação com o Congresso Nacional. O centrão não é um partido político. O centrão não é um partido político. Até porque hoje só tem partido político no Brasil o PT, o PCdoB, talvez o PSOL, o PSB, porque quase todos os outros partidos são cartoriais. Ou seja, são cooperativas de deputados que se juntam em determinada circunstância. Ora, então quem ganhar as eleições, quem ganhar as eleições se for a Renata ou se for o Bonner, ou se for o Lula, vai ter que conversar com o Congresso Nacional. Não conversar com o centrão, porque o centrão não é um partido político. Você vai conversar com os partidos separados e depois obviamente que o nome centrão foi cunhado para poder derrotar a gente na constituinte de 88, que a gente estava avançando muito na área social.

Renata Vasconcellos: Mas como evitar escândalos de corrupção como o que houve?

Luiz Inácio Lula da Silva: É você punindo as pessoas, denunciando as pessoas. O que eu acho maravilhoso é denunciar a corrupção. O que é grave é quando a corrupção fica escondida. Por isso que eu acho importante uma imprensa livre, por isso que eu acho importante uma Justiça eficaz, porque se tiver um problema de corrupção, Renata, tem que ser denunciado. Em qualquer lugar tem que ser denunciado, na empresa privada e na empresa pública. Não é possível você ficar guardando a corrupção sem levar em conta o prejuízo que aquilo traz à sociedade brasileira. Então minha cara, é o seguinte, toda esse monte de coisa que eu li para vocês aqui, isso vai ser aperfeiçoado para fazer mais e melhor, para que a gente possa até descobrir. Mas quando eu descobrir as pessoas serão punidas, pode ficar certa disso.

Renata Vasconcellos: O senhor falou em orçamento secreto e a gente falou também corrupção, que não tem como se comparar porque não existem níveis…

Luiz Inácio Lula da Silva: O orçamento secreto é uma excrecência.

Renata Vasconcellos: Exato, não existem níveis de corrupção, corrupção é corrupção. Mas o senhor mencionou o orçamento secreto. Como negociar então com o centrão sem moedas de troca como essa do orçamento secreto que o senhor critica tanto?

Luiz Inácio Lula da Silva: Isso não é moeda de troca, Renata, isso aqui é usurpação do poder. Ou seja, acabou o presidencialismo, o Bolsonaro não manda nada. O Bolsonaro é refém do Congresso Nacional. O Bolsonaro sequer cuida do orçamento, Renata, sequer cuida do orçamento. O orçamento quem cuida é o Lira. Ele que libera verba. O ministro liga para ele, não liga para o presidente da República. Isso nunca aconteceu desde a Proclamação da República. E eu tenho consciência que uma das tarefas minhas e do Alckmin, se a gente ganhar, é a gente tentar primeiro trabalhar durante o processo eleitoral para que a gente eleja muitos deputados e muitos senadores com outra cabeça. Segundo, acabar com essa história de semipresidencialismo, de semiparlamentarismo num regime presidencial.

Renata Vasconcellos: Mas o senhor acha mesmo que o senhor vai conseguir?

Luiz Inácio Lula da Silva: O Bolsonaro parece o bobo da corte, ele não coordena o orçamento. Veja que engraçado. Ele agora acabou de aumentar o Auxílio Emergencial para R$ 600,00, correto? Ele queria R$ 200,00, a gente queria R$ 600,00, ele mandou R$ 500,00, agora mandou R$ 600,00. Até quando? Até dia 31 de dezembro. Porque na LDO que ele mandou para o Congresso Nacional agora não tem a continuidade. E ele, então, acaba de mandar a LDO e vem aqui mentir e dizer: ‘não, eu vou continuar, eu vou continuar’. Se ele vai continuar porque ele não colocou na Lei de Diretrizes Orçamentárias?Image

 

Renata Vasconcellos: Mas o senhor acredita mesmo que sobre o orçamento secreto o senhor vai conseguir convencer o Congresso a abrir mão de um mecanismo que dá tanto poder aos parlamentares?

Luiz Inácio Lula da Silva: Vamos. Vamos.

Renata Vasconcellos: Como?

Luiz Inácio Lula da Silva: Vamos. Conversando com eles. Primeiro, durante a campanha você vai perceber que eu vou trabalhar muito essa questão de eleição. E hoje não é só o presidente da República não, os governadores dos estados estão refém dessas emendas secretas também, porque antigamente o deputado ia conversar com o governador para fazer aplicação de verba. Hoje os deputados não conversam mais. Tem deputado liberando 200 milhões, 150 milhões, 100 milhões. Isso é um escárnio, isso não é democracia. Então, essas coisas, pode ficar certa, pode ficar certa, que nós vamos resolver. Eu estou olhando para você porque eu quero que você me cobre. Nós vamos resolver conversando com os deputados. E eu espero que a sociedade brasileira aprenda nessas eleições uma lição muito grande: o Congresso Nacional é o resultado da sua consciência política no dia das eleições. Então, quando você for votar você coloque esperança, coloque otimismo e não coloque rancor na urna porque não dá certo.

William Bonner: Candidato, o senhor está fazendo um discurso aqui muito claro em favor da negociação da composição política pela governabilidade. É do que se trata, negociações no Congresso nesse sentido. O senhor acha que a militância do seu partido concorda com essa necessidade de composição política? A minha pergunta é porque existe uma ala grande do seu partido que ainda não aceitou o Geraldo Alckmin como candidato a vice na sua chapa, e tem hostilizado o seu candidato a vice. O que o senhor diria para esses militantes do PT que ainda se recusam a aceitar Alckmin, depois das trocas de acusações pesadas que os senhores fizeram aí ao longo de alguns anos na política?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, nós não estamos vivendo no mesmo mundo. Eu estou até com ciúmes do Alckmin. Você tem que ver que sujeito esperto.

William Bonner: Não tem vaias para ele em comícios às vezes?

Luiz Inácio Lula da Silva: Ele fez um discurso no dia 07 de maio, quando ele foi apresentado oficialmente ao PT, que eu fiquei com inveja. Ele foi aplaudido de pé. Pergunta para a esposa dele, para a dona Lu, que anda com a Janja, para ver como ela está gostando da coisa. O Alckmin já foi aceito pelo PT de corpo e alma. O que eu não quero é que o PT peça para ele se filiar porque a gente não quer brigar com o PSB. Mas o Alckmin é uma pessoa que vai me ajudar, eu tenho 100% de confiança que a experiência dele como governador de São Paulo e depois mais seis anos como vice do Mário Covas vai me ajudar a consertar esse país. É a única razão pela qual eu quero voltar a ser presidente é a de consertar esse país. Esse país tem que voltar a crescer, tem que voltar a ser feliz, tem que voltar a gerar emprego. O povo, eu digo sempre, o povo tem que voltar a comer um churrasquinho, a comer uma picanha e tomar uma cervejinha.

William Bonner: Candidato, ainda a propósito desta intolerância manifestada em alguns momentos contra o seu candidato a vice, o senhor disse que isso está superado, mas é fato que durante muito tempo a militância do PT, estimulada muitas vezes pelo senhor ou por outros líderes do partido, essa militância foi muito agressiva com quem pensava diferente. E não só na internet, nas ruas também. Que lições o senhor e o PT tiraram disso?

Luiz Inácio Lula da Silva: Bonner, feliz era o Brasil e a democracia brasileira quando a polarização nesse país era entre o PT e PSDB. A gente era adversário político, a gente trocava farpas, mas a gente se encontrasse no restaurante. Eu não tinha nenhum problema de tomar uma cerveja com o Fernando Henrique Cardoso, com o José Serra ou com o Alckmin, porque a gente não se tratava como inimigo, a gente se tratava como adversário.

William Bonner: O senhor não teria problema, mas a militância do seu partido tinha problema sim, candidato.

Luiz Inácio Lula da Silva: Mas a militância é como torcida organizada. A torcida organizada não é a torcida do Flamengo, não é torcida do Vasco, aquela que briga, aquela que vaia o time. Não. Não sei se você viu o jogo do São Paulo ontem, o Rafinha que jogava no Flamengo ontem ele engrossou lá no jogo com o Flamengo e ele e o outro do Flamengo se abraçaram. Porque política é assim, política é exatamente assim. Você tem divergência, você briga, você diverge, você tem divergência programática, mas você não é inimigo. Não é inimigo.

William Bonner: Mas candidato, o senhor passou anos repetindo uma expressão que se consolidou no seu governo dividindo o Brasil entre nós e eles. É um fato.

Luiz Inácio Lula da Silva: Você já foi em campo de futebol? Você torce para algum time?

William Bonner: Muito pouco neste momento.

Luiz Inácio Lula da Silva: Você já foi junto com outros companheiros? É nós e eles. A torcida do Vasco é nós, a do Flamengo é eles. Na política é a mesma…

William Bonner: Mas o senhor não acha que isso estimula a polarização ainda mais?

Luiz Inácio Lula da Silva: Não, eu não acho que estimula. A polarização ela é saudável no mundo inteiro. Polarização tem nos Estados Unidos, tem na Alemanha, tem na França, tem na Noruega, tem na Finlândia, tem em tudo quanto é lugar. Toda vez que tem mais que uma pessoa participando de alguma coisa… Não tem polarização no Partido Comunista Chinês, não tinha polarização no Partido Comunista Cubano. Agora, quando você tem democracia, quando você tem mais que um disputando, a polarização é saudável, ela é importante, ela é estimulante, ela faz a militância ir para a rua, ela faz a militância carregar bandeira. O que é importante é que a gente não confunda polarização com estímulo ao ódio. Eu me dou muito bem com o PSDB, que foi o meu principal adversário durante tanto tempo. E depois é o seguinte, Bonner, eu aprendi na minha vida a conversar. Eu aprendi a conversar. Se tem uma coisa que eu aprendi a fazer foi negociar, foi conversar com os contrários. Tem uma frase do Paulo Freire que é fantástica que eu utilizei para mostrar aos militantes do PT a entrada de Alckmin no PT. De vez em quando a gente precisa estar junto com os divergentes para vencer os antagônicos. E agora nós precisamos vencer o antagonismo do fascismo, da ultradireita.

Renata Vasconcellos: Então, candidato, continuando, vamos para o agronegócio. No seu governo a política agrícola contribuiu muito para o crescimento do setor do agronegócio no Brasil, e foi também um período em que os preços internacionais das commodities, os grãos em geral, soja, milho, estavam bem altos. O seu ministro da agricultura foi um grande produtor rural. Mas hoje grande parte do setor agro não o apoia. O senhor atribui esse afastamento a desconfianças talvez geradas pelo relacionamento do seu partido com o MST?

Luiz Inácio Lula da Silva: Não. Renata, tem o seguinte, veja, eu queria que você trouxesse aqui o mais reacionário representante do agronegócio, e perguntasse para ele o que o Bolsonaro fez para eles que chegou perto daquilo que nós fizemos. Eu queria que você chamasse. Sabe por quê? Porque não tem nenhum governo que tratou do agronegócio como nós tratamos. Eu vou dizer para você, nós fizemos uma Medida Provisória, 432 se não me falha a memória, de 2008, que fez uma negociação com os produtores rurais, de 85 bilhões de reais, senão eles tinham quebrado.

Renata Vasconcellos: Então a que o senhor atribui que grande parte do setor agro não apoia?

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu vou dizer o que eles contribuem. A questão da nossa política em defesa da Amazônia, a nossa política em defesa do Pantanal, a nossa política em defesa da Mata Atlântica. Ou seja, a nossa luta contra o desmatamento faz com que eles sejam contra nós. É isso.

Renata Vasconcellos: Mas agronegócio e meio ambiente caminham juntos, em tese.

Luiz Inácio Lula da Silva: Não, eles são contra, eles possivelmente… outro dia eu fui numa reunião e eu perguntei para um fazendeiro, eu falei o seguinte: ‘eu queria que você me dissesse qual foi a terra produtiva que o Sem Terra invadiu. Qual foi a terra produtiva que o Sem Terra invadiu?’ Porque o Sem Terra invadia terras improdutivas. Quem fiscalizava a terra era o INCRA e quem pagava era o governo. Tinha hora que eu achava o seguinte, o Sem Terra acho que está fazendo favor para os fazendeiros porque está invadindo a terra para o governo pagar.

Renata Vasconcellos: Agora antes da gente abordar um pouquinho mais sobre o Sem Terra, é preciso fazer esse esclarecimento. Porque como o senhor colocou parece que o setor do agronegócio não tem a ver, é contrário, faz oposição ao meio ambiente, ao meio ambiente sustentável, o que não é verdade.

Luiz Inácio Lula da Silva: Faz, faz, não, você acabou de dizer. Veja, o agronegócio que é fascista e direitista, porque os empresários sérios, que trabalham no agronegócio, que têm comércio com o exterior, que exporta para a Europa, para a China, esses não querem desmatar. Esses querem preservar os nossos rios, querem preservar as nossas águas, querem preservar a nossa fauna. Esses não. Mas você tem um monte que quer. Você está lembrada que o atual presidente tinha um ministro do meio ambiente que dizia que era para invadir com a boiada para desmatar a Amazônia. Nós não precisamos plantar milho, soja ou cana nem criar gado na Amazônia. O que nós precisamos é explorar corretamente, cientificamente a biodiversidade da Amazônia, para que a gente tire daquela riqueza da biodiversidade produtos para a indústria de fármaco, para a indústria de comércio, e gerar emprego para aquelas pessoas.

Renata Vasconcellos: E qual será o papel do MST no seu governo?

Luiz Inácio Lula da Silva: Não. O MST está fazendo uma coisa extraordinária, está cuidando de produzir. Eu não sei se você sabe, o MST hoje tem várias cooperativas. O MST é o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. Você tem que visitar uma cooperativa do MST, Renata, você vai ver que aquele MST de trinta anos atrás não existe mais. Agora, o Bolsonaro está ganhando alguns fazendeiros porque está liberando armas. Tem gente que acha que é bom ter arma em casa, acha que é bom matar alguém. Não. O que nós queremos é pacificar esse país, porque para mim o pequeno produtor rural, o médio produtor rural têm que viver pacificamente com o agronegócio. O Brasil tem possibilidade de ter os dois. Um produz mais internamente, o outro produz mais externamente. Ou seja, eu digo sempre o seguinte, o Blairo Maggi, que é o maior plantador de soja do Brasil, talvez ele não crie a galinha caipira que ele gosta de comer, talvez ele não crie o porquinho orgânico que ele gosta de comer, talvez ele vá comprar num pequeno proprietário. Então, é extremamente importante a convivência pacífica dessa gente. E nós já fizemos uma vez, Renata, e vamos fazer outra vez.

William Bonner: Candidato, o nosso tempo está quase acabando, ainda dá para fazer mais uma perguntinha sobre política internacional. Os seus adversários políticos costumam acusá-lo de apoiar ditaduras latino-americanas de esquerda. O senhor disse que se deve respeitar a soberania interna dos países, e o senhor evita criticá-los. Para um democrata isso não soa como uma contradição?

Luiz Inácio Lula da Silva: Não. Primeiro para um democrata a gente precisa respeitar a autodeterminação dos povos. Cada país cuida do seu nariz, é assim que eu quero para o Brasil, é assim que eu quero para os outros. Veja, você está lembrado que em 2003 eu tinha apenas um mês de governo, eu criei o Grupo de Amigos junto com os Estados Unidos, junto com a Espanha, para resolver as pendengas entre a Venezuela e a Colômbia. É o seguinte, você sabe que eu, Bonner, tenho na minha cabeça o seguinte, não existe ninguém imprescindível ou insubstituível. Quando o cara começa a pensar que ele é imprescindível ou insubstituível ele está virando um ditador. Você está lembrado que eu tinha 87% de bom e ótimo quando um deputado do PT resolveu propor uma Emenda no Congresso Nacional para um terceiro mandato e eu não quis. Eu sou favorável a rotação do poder. A alternância de poder é uma coisa importante. Hoje tem um cara de esquerda, amanhã tem um de direita, depois tem um de centro, é assim que a sociedade caminha. Por isso que eu estou muito tranquilo. Muito tranquilo com a minha relação internacional. Aliás, eu vou te dizer uma coisa, se eu ganhar as eleições você vai ver a enxurrada de amigos que estão desaparecidos que vão visitar o Brasil, porque o Brasil vai ser amigo de todo mundo, o Brasil não tem contencioso internacional.

William Bonner: Candidato Lula, nós não temos mais tempo para novas perguntas. Então chegou aquele momento em que o senhor tem direito a um minuto para se dirigir aos eleitores como quiser, para as suas considerações finais.

Luiz Inácio Lula da Silva: Eu nunca pensei que fosse tão rápido assim 40 minutos. Olha, eu queria dizer ao povo brasileiro que nós já provamos que é possível cuidar do povo brasileiro. Eu não gosto de utilizar a palavra governar, eu gosto de utilizar a palavra cuidar. Ou seja, tentar colocar o pobre no orçamento do país, tentar fazer com que as pessoas possam chegar à universidade. E vocês sabem que eu tenho orgulho de ter passado para a história como o presidente que mais fez universidade, que mais fez escola técnica. Nós pegamos o Brasil com 3 milhões e meio de estudantes universitários e deixamos com 8 milhões. Ou seja, esse país é um país do futuro que nós precisamos construir. Não existe nenhuma experiência de país que ficou rico sem investir na Educação. Então nós vamos voltar para poder investir na geração de emprego. Aliás, uma coisa importante, nós temos quase 70% das famílias brasileiras endividadas, e a grande maioria delas é mulher. 22% endividadas porque não podem pagar a conta de água, a conta de luz, a conta do gás. Nós vamos negociar essa dívida. Pode ficar certo que nós vamos negociar com o setor privado e com o sistema financeiro. Porque nós precisamos fazer com que o povo brasileiro volte a viver com dignidade.

William Bonner: Candidato, o seu tempo terminou. Mas eu antes de encerrar eu preciso fazer uma correção, cometi um erro aqui, eu me referi ao dinheiro devolvido a Petrobras como 6,2 bilhões de dólares. Não foram de dólares, foram de reais. Está feita a correção aqui. Muito obrigado mais uma vez por ter vindo candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Está terminando aqui a nossa entrevista.

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22
Mai21

'Salles deveria pedir exoneração, mas Brasil precisa é mudar política ambiental'

Talis Andrade

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O ministro brasileiro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi alvo de uma operação da Polícia Federal nesta semana. Ele é suspeito de ter atuado para facilitar a exportação de madeira ilegal para os Estados Unidos e Europa. O presidente do Ibama, Eduardo Bim, foi afastado devido à investigação. Na avaliação de Mariana Vale, professora da UFRJ e membro do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU), as acusações são graves e deveriam levar à exoneração do ministro. Ela argumenta, contudo, que o mais importante é que o Brasil mude sua política ambiental.

Em maio de 2020, o ministro Ricardo Salles defendeu durante uma reunião ministerial que o governo aproveitasse o momento da pandemia para, nas palavras dele, "ir passando a boiada  e mudando todo o regramento ambiental".

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O dito foi feito, de acordo com pesquisadores brasileiros. No artigo científico "A pandemia de Covid-19 como uma oportunidade para enfraquecer a proteção ambiental no Brasil" (em tradução livre), publicado em março, Mariana Vale, Erika Berenguer, da Universidade de Oxford, e outros quatro colegas fazem um levantamento das alterações de normas e regras que enfraqueceram as regras de conservação no país.

O grupo analisou o período do governo Bolsonaro até agosto de 2020 e encontrou que quase metade  (49%) dos atos legislativos que fragilizaram a proteção ambiental no país foram tomados nos primeiros sete meses da pandemia.

"A comunidade científica vinha sentindo que havia uma aceleração nessas medidas que diminuem a proteção e a gente resolveu fazer essa quantificação. O que a gente observou foi um aumento exponencial no número de ações que enfraquecem a proteção ambiental no Brasil nesse período", explica Vale. A professora diz que o estudo mostrou mudanças de naturezas muito distintas, de uma parte alterações de normas e de interpretação de normas, e de outro, desmonte da estrutura dos órgãos de proteção ambiental.

Em relação às normas, a pesquisadora elenca a redução da toxicidade de pesticidas, o que amplia o uso de agrotóxicos em diferentes tipos de cultura, afetando a alimentação, e interpretações criativas da legislação como a que tornou 110 mil quilômetros quadrados de mangues da Mata Atlântica suscetíveis a desmatamento. "[A regra dos manguezais] terminou sendo revista pelo Supremo Tribunal Federal e caiu", conta.

Também foi o STF quem derrubou nesta semana, em caráter liminar, um despacho realizado em fevereiro de 2020 por Bim, que facilitava a exportação de madeira ilegal e era contrário ao parecer dos servidores do Ibama. Esse despacho está no centro da investigação da Polícia Federal.

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Desmonte da estrutura de fiscalização

O desmantelamento da estrutura da fiscalização ambiental, com redução de recursos para fiscalização e a substituição sistemática do corpo técnico do Ibama, órgão responsável pela fiscalização, e do ICMBio, responsável pelas Unidades de Conservação no Brasil, por policiais e bombeiros, é algo que preocupa especialmente os pesquisadores.

Eles apontam que, apesar do aumento no desmatamento nesse período, o número de multas na região amazônica em agosto de 2020 é 72% menor que aquele aferido em março e, quando comparadas às multas ambientais de todo o Brasil, a queda é de 74%.

"A queda [de multas] aconteceu no mesmo momento em que foi colocado em vigor uma espécie de 'Lei da Mordaça'", explica Vale. "Os funcionários do Ibama já não podem se comunicar com a sociedade e trazer informações sem passarem pelo crivo de seus superiores. Então há um filtro, de modo que nós não temos conhecimento do que está acontecendo ali no terreno."

A situação está, segundo a pesquisadora, intimamente ligada à troca do corpo técnico por indicações políticas em diversos postos-chaves de conservação.

"A gente vive muitos casos de unidades de conservação que ficaram meses sem chefia, muitas estão simplesmente acéfalas. Então se você não tem chefia e, muitas vezes, o corpo técnico foi removido dessas unidades, elas ficam essencialmente à mercê de atividades ilegais. Isso é muito grave e aconteceu em várias unidades, inclusive com a Unidade de Conservação de Poço das Antas, que protege o mico-dourado, e o Parque Nacional da Tijuca, ou seja, áreas icônicas que ficaram simplesmente à deriva", denuncia.

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Um ministro contra seu ministério

No estudo, foram analisadas apenas as alterações até agosto de 2020, no entanto, o ritmo de enfraquecimento da política ambiental não se alterou, na avaliação de Vale.

"Segue [havendo] uma avalanche de alterações e ações que enfraquecem a proteção ambiental. Podemos mencionar bem recentemente a revisão da legislação que essencialmente enfraquece o licenciamento ambiental ou em abril a notícia-crime contra o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, acusado de fazer parte de uma organização criminosa em conjunto com madeireiros", cita.

Em final de abril, o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva enviou uma notícia-crime ao STF apontando que o ministro agiu para dificultar a ação de órgãos ambientais e favorecer madeireiros. O delegado era superintendente da PF no Amazonas e foi afastado do cargo após uma grande apreensão de madeira ilegal.

O último desdobramento do caso foi a operação da Polícia Federal que investiga as ações de Salles e servidores do Ibama para benefício de madeireiros. A investigação nasceu de uma grande apreensão de madeira sem documentação adequada nos Estados Unidos, de acordo com artigo de Jorge Pontes, ex-delegado da Polícia Federal, seriam 8.600 cargas apreendidas sob suspeição de serem fruto de desmatamento ilegal.

Para Vale, "são acusações gravíssimas que se, se mostrarem verdadeiras, evidenciam não só um desmonte da proteção ambiental, mas atividades realmente criminosas . É o que tem se chamado de anti-ministro. Parece que estamos vendo surpreendentemente um ministro que trabalha contra os objetivos da sua própria pasta".

Ela destaca que as consequências vão além dos pontos de enfraquecimento das regras. "Também uma consequência difusa, existe a sensação de impunidade em relação aos crimes ambientais e a consequência disso é um aumento dos crimes, e vemos claramente um aumento enorme do desmatamento da Amazônia. No último ano tivemos um aumento de 30 % no desmatamento, a maior taxa de crescimento da última década."

Em relação à possibilidade de saída do ministro da pasta devido às acusações, Vale considera necessária, mas não suficiente. "Tem que ser uma mudança que não seja como as que a gente observou no Ministério da Saúde. Não adianta mudar o ministro e não mudar a política. Frente às acusações que ele tem, eu acho que ele deveria pedir exoneração até que tudo se esclarecesse. Mas o que a gente precisa é não só de uma substituição de ministro, mas sobretudo uma mudança na política ambiental do atual governo", finaliza.

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20
Abr21

Ricardo Salles: 13 fatos que fazem do ministro uma ameaça ao meio ambiente global

Talis Andrade

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por Cida de Oliveira /RBA 

O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles é considerado uma ameaça global. Sua reputação não tem nada de exagero. Seguidor fiel da cartilha do presidente Jair Bolsonaro para o setor, Salles defende a exploração “capitalista” da Amazônia, a regularização de áreas griladas, inclusive na Amazônia, em benefício do agronegócio, da mineração e garimpo ilegal e invasão de terras indígenas. Ideias essas que em pouco mais de dois anos de governo estão sendo concretizadas por ações de desmonte do estado e do meio ambiente. Outras enfrentam resistência.

O impacto de suas políticas tem escala global, como não poderia deixar de ser quando se trata do meio ambiente e suas interações. E a pressão é crescente em todo o mundo. Na última sexta-feira (16), senadores do Partido Democrata dos Estados Unidos enviaram carta ao presidente Joe Biden, alertando que Bolsonaro e Salles abriram a porteira para o crime ambiental. No âmbito interno, o ministro a serviço da devastação ambiental é acusado de dificultar investigações de uma operação da Polícia Federal na Amazônia envolvendo extração recorde de madeira ilegal para proteger os criminosos.

Nesta quinta-feira (22), Dia da Terra, e no dia seguinte, acontece a reunião de cúpula sobre o clima, organizada pelo governo Biden. Os olhos do mundo estão cada vez mais voltados para Jair Bolsonaro e Ricardo Salles.

Relembre os principais ataques de Salles ao Meio Ambiente:

Desmatamento recorde

O desmatamento da Amazônia tem batido recordes. Em março voltou a crescer. Segundo o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), a floresta registrou o maior desmatamento para o mês de março nos últimos 10 anos. De acordo com o boletim, a destruição na Amazônia Legal totalizou 810 quilômetros quadrados no mês passado, um aumento de 216% em relação a março de 2020.

Desmatamento é sinônimo de perda de biodiversidade e emissão de gases de efeito estufa – temas prioritários da agenda do governo democrata dos Estados Unidos.

Incêndios florestais com Salles

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Em 2020, o número de queimadas foi o maior desde 2010, segundo medição do Inpe até outubro. Foram 222.798 focos de incêndio registrados, 12% a mais que os 197.632 registrados em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro/Salles.

O destaque do relatório foi o incêndio no Pantanal, com 22.119 focos, 120% a mais que em 2019. O maior número desde que as medições começaram a ser feitas, em 1998. Em termos proporcionais, segundo o Inpe, foi o maior aumento entre todos os biomas (Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e Pampa).

Até outubro, 28% do território pantaneiro foi atingido, com a morte de animais que ganharam repercussão internacional. Mas a Amazônia teve o maior número de focos: 103.134 incêndios registrados, 15% a mais que em 2019, o maior número desde 2017, que ultrapassou o total registrado de janeiro a dezembro do ano passado. Um total de 89.604 focos de calor detectados pelos satélites monitorados pelo Inpe, Em 2019 foram 89.176 em 2019.

Os biomas queimaram também por cortes orçamentários, que em parte poderiam ter sido atenuados com os recursos do Fundo Amazônia, que o governo paralisou.

Aliança com madeireiros ilegais

Na última semana, o ex-chefe da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) queixa-crime denunciando Ricardo Salles por crimes de advocacia administrativa, organização criminosa e obstrução a operações. Na representação são listadas todas as ações do ministro, e do senador Telmário Mota (Pros-RR), para dificultar a investigação de órgãos ambientais em operação sobre a apreensão recorde de madeira ilegal no final de 2020.

Trata-se da operação Handroanthus, que apreendeu mais de 200 mil metros cúbicos de toras extraídas ilegalmente, com valor estimado em R$ 130 milhões. Em suas declarações e postagens nas redes sociais, Salles defendeu a “legalidade” da extração e da ação dos madeireiros investigados.

Segundo o delegado, Salles e Telmário alegaram que as terras de onde foi retirada a madeira é legal e a extração foi autorizada, o que não corresponde aos fatos.

Negacionismo climático

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Em dezembro, o ministro apresentou nova meta climática ao Acordo de Paris, para chegar a 400 milhões de toneladas de gases de efeito estufa até 2030. A ideia era manter o mesmo percentual de redução definida em 2015, em 43%, que significava emitir 1,2 bilhões de toneladas de gases até 2030. O problema é que o governo brasileiro desconsiderou atualizações ocorridas na base de cálculo. Pela revisão recente, a meta apresentada corresponde 1,6 bilhões de toneladas no mesmo período.

Para Ricardo Salles, que não tem no currículo nenhuma formação ambiental, o aquecimento global não é uma questão prioritária e serve apenas ao “debate acadêmico”. Em maio de 2019 ele tentou cancelar a realização da Semana do Clima da América Latina e Caribe (Climate Week), em Salvador. Seria apenas uma “oportunidade” para se “fazer turismo em Salvador” e “comer acarajé”, argumentou Salles sobre o evento. Mas não resistiu à pressão do então prefeito ACM Neto.

Desmonte da fiscalização

Em abril de 2019, entre as medidas dos 100 dias de governo, foi baixado decreto aumentando a burocracia da autuações, favorecendo assim a prática de crime ambiental. Na prática foi o cumprimento de promessa de campanha de Bolsonaro, sobre o fim da “indústria de multas”. O decreto instituiu os núcleos de conciliação, nas quais as infrações ambientais são previamente analisadas.

Ou seja, mesmo antes de qualquer defesa do autuado, esses núcleos poderão analisar a multa para confirmá-la, ajustá-la ou anulá-la, caso se entenda que houve alguma irregularidade. Isso levou a uma queda de 34% nas autuações naquele mesmo ano. Atualmente há cerca de 130 mil processos de infração no Ibama, totalizando R$ 30 bilhões.

Insatisfeito com as regalias aos infratores ambientais, Salles determinou novas mudanças na apuração de multas. A partir de agora, as infrações terão de ser autorizadas por um superior do agente de fiscalização que aplicar a punição. Se essas chefias confirmarem, a autuação segue a tramitação anterior com os próprios fiscais.

Aliança com garimpeiros ilegais

Em 6 de agosto último, o Ibama havia solicitado aeronaves à Força Aérea Brasileira (FAB) para apoiar uma operação de combate a crimes ambientais, garimpo ilegal inclusive, em terras indígenas Munduruku e Sai Cinza. Os aviões levariam lideranças indígenas até Brasília, para reunião com Ricardo Salles. Em vez disso, foram usados para transportar garimpeiros ilegais, com quem o ministro tinha havia se encontrado na véspera.

Com o uso do transporte pelos garimpeiros ilegais, cuja ação deveria ser combatida, as lideranças não foram levadas ao encontro de Ricardo Salles e a operação foi cancelada. O caso foi parar no Ministério Público Federal (MPF), sob suspeita de improbidade administrativa por desvio de finalidade.

Desmonte do Ibama e do ICMBio

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O aumento do desmatamento, das queimadas e da ação de madeireiros e garimpeiros ilegais é registrado em meio ao enxugamento dos órgãos de fiscalização. O Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram reestruturados desde a posse de Salles, favorecendo assim o agronegócio.

De cara, exonerou 21 dos 27 superintendentes do Ibama. Pouco tempo depois, exonerou José Olímpio Augusto Morelli, agente fiscal que havia multado o então deputado Jair Bolsonaro que pescava em uma unidade de conservação em Angra dos Reis (RJ). Cinco meses depois já havia reduzido em 34% o número de multas aplicadas.

O ICMBio, responsável pelas unidades de conservação e dos centros de pesquisas ficou sem suas 11  coordenações regionais. Deixou uma gerência para cuidar de cada região. No Norte, onde está a maior parte do bioma Amazônia, foram fechadas três.

Como se fosse pouco, Salles pretende fundir os dois órgãos. Um grupo de trabalho, composto apenas por militares, além do ministro, estuda a fusão, que na prática representa a extinção de ambos.

Extinção de unidades de conservação

Outra medida para favorecer ruralistas proposta por Ricardo Salles e a revisão de todas as 334 unidades de conservação do país. A mais antiga, o Parque Nacional de Itatiaia, criado em 1934, e mais recente, o Refúgio da Vida Silvestre da Ararinha Azul, criado em 2018, também serão revistos. Para o ministro, faltou “critério técnico” na criação dessas unidades. Estão em estudo mudanças no traçado, com redução da área, e até mesmo a extinção.

Manchas de óleo no litoral do Nordeste

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No final de agosto de 2019 surgiram as primeiras manchas de óleo nas praias de estados dos Nordeste. A faixa foi aumentando até cobrir três mil quilômetros do litoral, chegando ao Espírito Santo, com cerca de 5.000 toneladas de óleo de origem ainda desconhecida. Em vez de mandar equipes e utilizar tecnologias disponíveis para evitar o espalhamento do óleo, o governo preferiu acusar o governo da Venezuela como responsável. Dias depois, sob críticas de ambientalistas e entidades que passaram a limpar as praias com as próprias mãos, Salles passou a bater boca com o Greenpeace.

Enquanto isso, um dos maiores crimes ambientais afetou manguezais e corais, matando parte da vida marinha e deixando sem renda pescadores e populações inteiras que retiram do mangue, dos estuários e costões o seu sustento. Quase dois anos depois, o meio ambiente ainda não se recuperou. Tampouco foram identificados os responsáveis.

Extração de petróleo em Abrolhos

Em abril de 2019, Salles ordenou ao presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, a contrariar um parecer técnico feito por um comitê especializado dentro do próprio órgão para autorizar o leilão de campos de petróleo ao lado do Parque Nacional de Abrolhos. A exploração petrolífera colocaria em risco o santuário ecológico no sul da Bahia, que reúne recifes de corais e manguezais, locais de reprodução da fauna marinha.

Sua preservação acabou ditada por interesses comerciais e não ecológicos. Nenhum dos blocos situados na região foi arrematado em leilão. As petrolíferas temia problemas devido à falta de informações sobre a viabilidade ambiental. Pesou também a repercussão da crise ambiental causada pelas manchas de óleo no Nordeste.

Ataque aos manguezais e restinga

Em setembro passado, em reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) presidida por Ricardo Salles, foram revogadas resoluções que protegem restingas, faixas de vegetação sobre faixas de areia, e manguezais, onde há reprodução de vida marinha. Segundo o ministro, as resoluções foram abarcadas por leis que vieram depois, como o Código Florestal. Na verdade, o objetivo era favorecer o mercado imobiliário e o setor de criação de camarões.

A resolução que revogou as anteriores só foi possível graças à até então nova configuração do Conama. Em maio de 2019, Salles baixou decreto reduzindo o número de integrantes do Conama, que passou de 96 para apenas 23. A representação do governo aumentou, enquanto que a sociedade civil perdeu mais de 80% de representatividade.

Ouvindo as críticas de especialistas e ambientalistas, o PT foi ao STF no início de outubro, pedindo a anulação da decisão da reunião comandada por Salles. Dias antes, a Justiça Federal no Rio de Janeiro havia suspendido a resolução do Conama. No final de outubro, a ministra Rosa Weber acatou, em caráter liminar, ação movida por parlamentares petistas.

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Em abrir de 2010, Salles assinou despacho determinando aos órgãos ambientais federais a adoção de regras do Código Florestal na Mata Atlântica. Na prática, invalidava a Lei da Mata Atlântica e abria caminho para a anulação de multas, embargos e desmatamentos ilegais para favorecer o mercado imobiliário e setores do agronegócio.

O Ministério Público dos 17 estados onde há remanescentes de Mata Atlântica foram acionados e surgiram dezenas de ações judiciais, pedindo a paralisação de processos que anistiassem desmatadores. Em junho o ministro recuou e revogou o despacho, cuja elaboração seguiu parecer da Confederação Nacional da Agricultura.

Condenado por improbidade

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Em dezembro de 2018, antes de assumir seu postos no governo, Ricardo Salles foi condenado em primeira instância por improbidade administrativa. O juiz acatou acusação do Ministério Público paulista, segundo o qual Salles modificou os mapas de zoneamento e a minuta de instrumento normativo (decreto) que institui o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) Várzea do Tietê, em fase de elaboração e discussão. Isso para favorecer empresas de mineração ligadas à Fiesp.

O crime foi cometido em 2016, quando o atual ministro era secretário estadual de Meio Ambiente de São Paulo, na gestão do tucano Geraldo Alckmin. A condenação embasou diversas ações que visavam proibir a posse do ministro, que recorreu da decisão. Ainda não houve julgamento em segunda instância.

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07
Jan21

Uma campanha para plantar árvores e esperança

Talis Andrade

Bosques da Memória | Reserva Ecológica de Guapiaçu

 

por Cristina Serra

Uma árvore para cada pessoa que morreu de covid-19 no Brasil. Esse é o objetivo dos “Bosques da Memória”, que estão sendo plantados em áreas de Mata Atlântica nos estados brasileiros com a presença do bioma. A campanha foi criada por três redes de ongs para homenagear as vítimas da pandemia e, ao mesmo tempo, estimular a restauração da floresta. A meta é plantar pelo menos 200 mil árvores em seis meses.

Os “Bosques da Memória” serão plantados em áreas que precisam recuperar o vigor da vegetação e o habitat para a fauna. As ongs criaram uma plataforma (www.bosquesdamemoria.com) para que os plantios sejam registrados num banco de dados: a localização, a quantidade de árvores, as espécies e fotos para monitorar seu crescimento. “Vamos manter os bosques vivos. Esse é um compromisso com as famílias”, explica Ludmila Pugliese, coordenadora do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, uma das redes na organização da campanha.

As outras duas são a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e a Rede de Ongs da Mata Atlântica, que reúne 280 organizações que trabalham com conservação. É esta capilaridade e a experiência de décadas que permitiu estabelecer a meta de plantio num dos ecossistemas mais degradados do Brasil, hoje reduzido a 11,73% da vegetação original.

Os plantios podem ser feitos por empresas, instituições públicas, governos e outras entidades. Vinte bosques já foram plantados. Um deles fica num assentamento de reforma agrária, em Presidente Epitácio, oeste de São Paulo, e receberá duas mil mudas. O plantio está sendo feito pela ong Apoena (Associação em Defesa do rio Paraná, Afluentes e Mata Ciliar), com espécies nobres da Mata Atlântica como: aroeira, jequitibá, jatobá, peroba rosa e os ipês amarelo, branco e roxo. “A ideia é fazer com que cada pessoa que morreu possa, de certa forma, renascer numa árvore”, explica Djalma Weffort, presidente da Apoena.

Em alguns plantios, as mudas recebem uma placa com o nome da pessoa homenageada. Foi assim que uma goiabeira branca – espécie não nativa, mas já incorporada à Mata Atlântica –  passou a se chamar Aldir Blanc, no bosque plantado pela Associação Mico-Leão-Dourado, em Silva Jardim (RJ).

A homenagem ao compositor, morto em maio, aos 73 anos, teve a presença da viúva, Mary Sá Freire. Ela escolheu a goiabeira branca porque a espécie foi personagem da infância de Aldir Blanc. “Cada árvore a ser reproduzida será nossa forma de dizer que as pessoas arrancadas da vida pela Covid se transformarão em símbolos de esperança”, afirmou Mary. A goiabeira era tão importante para o compositor que aparece em crônicas como “A árvore da vida”, texto, de certa forma, premonitório: “Sair de Vila Isabel foi muito parecido com morrer e me ocorre que ao escrever o presente texto, me aproximo, de forma cada vez mais rápida da árvore, transformada, agora sim, na goiabeira branca, que me recolherá definitivamente em seus galhos”.

A campanha coincide com os preparativos da Organização das Nações Unidas (ONU), para o lançamento da Década da Restauração de Ecossistemas (2021-2030). É um esforço da ONU, com aprovação dos países membros, para criar um movimento global de recuperação, reverter a perda de espécies e ajudar no cumprimento de metas de redução de emissões de carbono. 

Por se encaixar no espírito dessa ação, a campanha brasileira foi reconhecida pelo PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e será divulgada para outros países. “Os bosques mostram as múltiplas dimensões da restauração. A restauração cura a nossa relação com a natureza e ao mesmo tempo é uma experiência de cura para nós mesmos”, disse Tim Christophersen, da divisão de Ecossistemas do PNUMA, em Nairobi, Quênia.

 

07
Nov20

A ciência confirma novamente a importância da restauração da Mata Atlântica

Talis Andrade

 

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Estudos apontam a Mata Atlântica entre os biomas de maior prioridade para a restauração no mundo

por Luís Fernando Guedes Pinto e Rafael Bitante Fernandes
 
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Um estudo internacional liderado pelo pesquisador brasileiro Bernardo Strassburg e publicado na renomada revista Nature chamou a atenção novamente para a restauração de ecossistemas. A partir de uma sofisticada modelagem matemática planetária, ele identificou as áreas prioritárias para a restauração que combinam a conservação da biodiversidade, a mitigação de mudanças climáticas e os custos para a recuperação dos ecossistemas. 

A pesquisa apontou que a restauração de 30% das áreas prioritárias do mundo evitaria a extinção de 71% das espécies ameaçadas, sequestraria 49% do aumento total de carbono na atmosfera desde a revolução industrial e reduziria 41% dos custos. O cenário que otimiza aspectos ambientais e econômicos poderia alcançar uma relação custo-benefício de até treze vezes, principalmente se incluir vários biomas da Terra.

Confirmando outros estudos, os resultados apontam a Mata Atlântica entre os biomas de maior prioridade para a restauração no mundo. Afinal, ela reúne uma altíssima diversidade de espécies vegetais e animais e tem somente 12,4% da sua área original com vegetação nativa, segundo o Atlas do monitoramento do bioma produzido pela SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) desde 1990.   

Além de ciência, não faltam acordos, compromissos e políticas para acelerar a restauração da Mata Atlântica e de outros biomas no Brasil e no mundo. A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o período de 2021 a 2030 como a Década da ONU sobre Restauração de Ecossistemas. O Desafio de Bonn definiu a meta de restaurar 350 milhões de hectares de ecossistemas degradados até 2030, com a adesão de diversos países, governos locais e empresas. 

No plano nacional também temos compromissos, leis e políticas que se relacionam com essas iniciativas internacionais. A nossa contribuição ao Acordo de Paris (NDC) prevê a restauração de 12 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030. O Pacto pela Restauração da Mata Atlântica é uma inciativa voluntária que reúne empresas, governos locais e ONGs pela meta de restaurar 15 milhões de hectares do bioma até 2050. 

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Boa parte dessas metas podem ser alcançadas somente com o cumprimento do Código Florestal, já que, dos 19,5 milhões de hectares de déficit de matas para cumprir com a lei no Brasil, a maior parte está localizada na Mata Atlântica. São 6,8 milhões de hectares ou 35% do total do déficit nacional, sendo quase 4 milhões de hectares somente de Áreas de Preservação Permanente (APPs) hídricas (matas no entorno de nascentes ou beira de rios). 

Para apoiar o cumprimento do Código Florestal, foram criadas ou aprimoradas outras políticas públicas, como o Planaveg (Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa) e o próprio plano Safra. Neste, o Programa ABC passou a financiar a recuperação de APPs e reservas legais. Já os Programas de Regularização Ambiental (PRAs) colocam os Estados no papel de regulamentar e colocar em marcha o Código Florestal. 

Finalmente, temos a Lei da Mata Atlântica, que protege o bioma em escala nacional e tem a inovação dos planos municipais como instrumento para a conservação e a recuperação da vegetação localmente.

A restauração dos milhões de hectares de APPs tem o papel fundamental de conectar outros remanescentes de Mata Atlântica, incluindo os das ainda poucas unidades de conservação do bioma. São 2.595 unidades de conservação federais, estaduais ou municipais, que ocupam 17,3 milhões de hectares, o que representa apenas 13% da área total da aplicação da Lei da Mata Atlântica. E vale destacar que esse valor desconsidera as diversas sobreposições entre as unidades de conservação do bioma e inclui as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), onde a atividade agropecuária é permitida. Além disso, ignora a fragilidade da demarcação e da real efetivação das UCs para alcançarem seus objetivos de conservação.  

A restauração também é muito importante para contribuir para a quantidade e a qualidade da água. Temos bacias hidrográficas com menos de 10% de vegetação nativa, o que está diretamente relacionado com as nossas crises hídricas. O projeto Observando os Rios reúne 3,5 mil voluntários que monitoram a qualidade da água de 240 corpos d´água em 111 municípios dos dezessete estados do bioma e apresenta o grave retrato de que nenhum destes tem qualidade ótima e quase 20% têm qualidade ruim ou péssima. Isto é, além de faltar matas, temos rios mortos e muitos na UTI na nossa Mata Atlântica.

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Finalmente, o relatório “Restauração de Paisagens e Ecossistemas no Brasil”, organizado pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos e o Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), aponta que a restauração da Mata Atlântica pode gerar três milhões de empregos no campo. 

Com todo o arcabouço regulatório da esfera internacional para a local e do robusto conhecimento acumulado sobre o papel estratégico da Mata Atlântica para mitigar as mudanças climáticas e a provisão de serviços ambientais essenciais para a economia e para a saúde das pessoas e do planeta, é urgente a sua restauração em grande escala. Não há tempo a perder. Mãos à obra! 

 

 
03
Out20

Naturalizamos o horror?

Talis Andrade

 

Por Maria Rita Kehl, nos sites da Fundação Lauro Campos, Marielle Franco e Altamiro Borges

É noite. Sinto que é noite/
não porque a treva descesse/
(bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/
no fundo de mim, o grito/
se calou, fez-se desânimo//

Sinto que nós somos noite/
que palpitamos no escuro/
e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/
E de que adianta uma lâmpada?/
E de que adianta uma voz?…

Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo (1943-45)

Nós, humanos, nos acostumamos com tudo. Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.

Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.

Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.

Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.

Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.

Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.

Tolerantes, mas nem tanto

Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais. Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no antigo programa Praça da Alegria.
 
Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladas fiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.

Também achamos normal que o melhor presidente que o país já teve tenha sido preso – por que, mesmo? Ah, um pedalinho num sítio em Atibaia. Ah, um apartamento no Guarujá, calma lá!

Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…

Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.

Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.

Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de Monteiro Lobato.
 
Então, em 2018…

… naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fake news contra ele e sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista! Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.

Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.

E os que não têm pão? Que comam bolo…

E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.

Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. Os R$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua. Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?
 
Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936:

Viva la muerte!

P.S. Uma pergunta, para terminar: por que o Queiroz depositou 89 mil na conta de Michele Bolsonaro?
 
02
Out20

Passando a boiada: 5 momentos nos quais Ricardo Salles afrouxou regras ambientais

Talis Andrade

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por André Shalders /BBC News

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"Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas".

A frase é famosa: foi dita pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22 de abril, e tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Apesar disso, segundo ambientalistas e procuradores ouvidos pela BBC News Brasil, Ricardo Salles já está trabalhando para "passar a boiada" desde o começo de sua gestão, em janeiro de 2019, muito antes da pandemia do novo coronavírus.

Desde que assumiu a pasta, o ministro criou regras que dificultaram a aplicação de multas; transferiu poderes do Ministério do Meio Ambiente para outras pastas; e tentou mudar o entendimento sobre normas como a Lei da Mata Atlântica.

A última tentativa de Salles de remover regulamentações ambientais aconteceu nesta segunda-feira (28). Em reunião convocada dias antes pelo ministro, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) revogou quatro resoluções que tratavam de diferentes áreas da política ambiental do país.

Duas das resoluções eliminadas restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas. Na prática, o fim das resoluções, que estavam em vigor desde 2002, criou a possibilidade de ocupação em áreas de restinga numa faixa de 300 metros a partir da praia. Antes, essas áreas eram consideradas como sendo de proteção ambiental.

Na mesma reunião, o Conama também permitiu a queima de lixo tóxico — como embalagens de defensivos agrícolas, por exemplo — em fornos usados originalmente para a produção de cimento. Além disso, o conselho também derrubou uma resolução que criava normas para projetos de irrigação.

A decisão do Conselho é controversa.

Segundo o advogado especializado em direito ambiental Rodrigo Moraes, a decisão foi juridicamente correta, pois as resoluções que foram revogadas seriam ilegais.

As normas foram criadas para regulamentar uma versão anterior do Código Florestal, de 1965, que foi revogado com a edição do novo código, em 2012. Assim, estas também teriam perdido a eficácia, argumenta Moraes. Além disso, diz ele, a exigência de preservar a faixa de 300 metros depois do mar não estava presente na lei original — assim, o Conselho de meio ambiente teria "legislado" de forma indevida ao criar a norma, em 2002.

Já ambientalistas argumentam que a decisão do Conselho foi feita sob medida para atender a setores econômicos.

"Mesmo com a revogação das resoluções, a proteção dos mangues, dunas e restingas continuarão a existir pelas regras do Novo Código Florestal, pela Lei da mata Atlântica e ainda pelas regras constitucionais", argumenta o advogado.

Segundo o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso, o "revogaço" agrada ao mercado imobiliário, que deseja erguer prédios em áreas protegidas à beira-mar; a criadores de camarão que querem construir seus tanques dentro de manguezais; e ao agronegócio, que deseja menos regulamentações nas suas operações com irrigação e agrotóxicos.

Agostinho também rebate o argumento de que as resoluções seriam ilegais. "Tivemos algumas decisões do Judiciário confirmando que as resoluções tinham sido recepcionadas (pelo novo Código Florestal) e estavam em vigor. Agora, ficou uma lacuna. A regulamentação que tinha para manguezais e restingas deixou de existir", disse ele à BBC News Brasil.

No começo da noite desta terça-feira (29/09), a decisão do Conama que revogou as resoluções foi anulada pela Justiça Federal. É uma decisão liminar (provisória) da juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Ela atendeu a uma ação popular formulada por um grupo de advogados. Cabe recurso.

Em entrevista ao canal de TV CNN Brasil, nesta quarta-feira (30/09), Salles disse que a pasta vai recorrer da decisão. Ele também lembrou que já existiam estudos para revogar as resoluções desde a gestão da ex-ministra Izabella Teixeira (2010-2016), ainda nos governos do PT. (Continua)

 

 

 

28
Set20

Nonsense no governo Bolsonaro comanda e sufoca todo resquício de gravidade

Talis Andrade

 

por Janio de Freitas

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O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco; e rir

 

Um riso mal contido, pode ser, talvez envergonhado. Como na extravagância de alguns tombos, sobretudo os vistos. E é disso mesmo que se trata: cenas patéticas de um tombo, o deste país.

O Brasil a ameaçar de represália os grandes países que sustem importações de produtos brasileiros, em reação à sanha destruidora na Amazônia. Cada grão de soja e grama de carne que deixem de importar é um rombo na economia bolsonara. E logo quem a propalar a ameaça, o general Heleno, não propriamente do alto de sua lucidez.

Fiel ao sentimento de que o cinismo não tem limite, nem para traição à memória de seus ídolos torturadores e matadores, Bolsonaro a dizer à ONU que “a liberdade é o bem maior da humanidade”. Depois de atribuir a interesses internacionais na riqueza da Amazônia uma campanha para “prejudicar o governo e o próprio Brasil”. No que foi corrigido pelo general Heleno, que, a partir do nível um tanto prejudicado da sua visão do mundo, identificou outra motivação etérea do mundo: é uma “campanha internacional para derrubar Bolsonaro”.

Tamanho nonsense sufoca todo resquício de gravidade que se queira atribuir-lhe, consideradas as responsabilidades funcionais dos emitentes. O possível é apenas sondar os traços anedóticos que lhe dão forma e grotesco. E rir.

Acima e abaixo dos delírios, o problema é que os militares influentes do Exército não compreenderam que a Amazônia é um amálgama de características de flora e de fauna, geológicas, climáticas, fluviais e pluviais, todas em mútua dependência. E que a entrega desse mundo de peculiaridades interligadas à exploração humana resultará, é inevitável, em que não será mais a Amazônia.

Da mata atlântica, por exemplo, restam no máximo 16%, em estimativa otimista. Do Nordeste ao Sul, por toda a costa e por entradas até o interior profundo, o que há são terras descascadas, depauperadas, ocupadas do modo mais desordenado. Cidades em que tudo se amontoa com vastidões vazias em torno. Poluição, agravamentos climáticos —é a realidade que tomou o lugar da mata atlântica. Assim seria com a entrega da Amazônia à exploração humana: não mais Amazônia.

A “exploração racional e planejada” é balela. Iniciado o processo, será o mesmo de sempre. Os aldeamentos logo se transformam em vilas, daí em cidades, a necessidade de infraestrutura e mais exploração transformam mais áreas, e assim em sucessivas destruições ambientais. A entrega da Amazônia à exploração industrial terá, porém, consequências climáticas muito maiores no Brasil todo, e por extensão no mundo, do que o miserável fim da mata atlântica.

Apesar disso, a ocupação da Amazônia é uma tese dita estratégica dos militares do Exército. Ricardo Galvão, cientista e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, desmontou o argumento do vice Hamilton Mourão para criação de uma agência para concentrar todos os monitoramentos da Amazônia. Uma agência sob controle militar. “Como o norte-americano NRO” é um argumento aqui muito forte. Mas errado, se de boa ou má-fé, fica por clarear. A verdade é que o NRO está proibido de atuar no território dos EUA. E o monitoramento por lá é civil.

Mas a agência militarizada seria apenas a porta-estandarte do Exército. Atrás viria o que consiste no projeto real: não só o monitoramento, mas o controle absoluto da Amazônia pelo Exército. Um grande território militar, sonhado como o meio eficaz de neutralizar a presumida ganância de uma ou de outra potência sobre a posse da Amazônia. Até décadas recentes, e por muito tempo, o delírio era a guerra inevitável com a Argentina —motivo até de promoção a general por mérito de planejamentos, como foi o caso do último algoz de João Goulart, o seu amigo Amaury Kruel. No mapa, da Argentina para a Amazônia são centímetros possíveis.

Enquanto o nonsense comanda, o fogo está autorizado a antecipar o serviço.

Paraíso

O Conselho Nacional do Ministério Público vai decidir se suspende por 90 dias o procurador Diogo Castor de Mattos, como proposto pelo corregedor Rinaldo Reis Lima. Ex-integrante do grupo de Deltan Dallagnol em Curitiba, Castor patrocinou enorme outdoor na cidade com fotos do seu chefe e de Sergio Moro. Falta disciplinar e, entre nós outros, ética.

Mas não só. Castor o fez com identidade falsa, usando nome de pessoa que nem ao menos foi informada. No paraíso corporativista, mesmo para tal fraude bastam 90 dias de suspensão. Para os de fora da patota, processo criminal e possibilidade até de cadeia.

Mais que ironia

Bolívia tem na América Latina, como constatado pela ONU, a segunda melhor condição para as mulheres em direitos políticos e em paridade política com os homens (só o México a supera, sendo o Brasil o 3º pior). As bolivianas vieram das últimas colocações para o topo com as conquistas introduzidas, muitas, e outras incentivadas, por Evo Morales como presidente eleito e legítimo, caso raro na história boliviana.

As mulheres congressistas foram uma força decisiva no golpe que derrubou Morales. E uma delas usurpou-lhe a Presidência, que exerce até hoje ilegalmente, com apoio da OEA e de muitos países latino-americanos. Entre os quais, é claro, o Brasil.

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08
Set20

Lula: Discurso da Independência ou Morte do Brasil

Talis Andrade

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Minhas amigas e meus amigos.

Nos últimos meses uma tristeza infinita vem apertando meu coração. O Brasil está vivendo um dos piores períodos de sua história.

Com 130 mil mortos e quatro milhões de pessoas contaminadas, estamos despencando em uma crise sanitária, social, econômica e ambiental nunca vista.

Mais de duzentos milhões de brasileiras e brasileiros acordam, todos os dias, sem saber se seus parentes, amigos ou eles próprios estarão saudáveis e vivos à noite.

A esmagadora maioria dos mortos pelo Coronavírus é de pobres, pretos, pessoas vulneráveis que o Estado abandonou.

Na maior e mais rica cidade do país, as mortes pelo Covid-19 são 60% mais altas entre pretos e pardos da periferia, segundo os dados das autoridades sanitárias.

Cada um desses mortos que o governo federal trata com desdém tinha nome, sobrenome, endereço. Tinha pai, mãe, irmão, filho, marido, esposa, amigos. Dói saber que dezenas de milhares de brasileiras e brasileiros não puderam se despedir de seus entes queridos. Eu sei o que é essa dor.

Teria sido possível, sim, evitar tantas mortes.

Estamos entregues a um governo que não dá valor à vida e banaliza a morte. Um governo insensível, irresponsável e incompetente, que desrespeitou as normas da Organização Mundial de Saúde e converteu o Coronavírus em uma arma de destruição em massa.

Os recursos que poderiam estar sendo usados para salvar vidas foram destinados a pagar juros ao sistema financeiro.

O Conselho Monetário Nacional acaba de anunciar que vai sacar mais de 300 bilhões de reais dos lucros das reservas que nossos governos deixaram.

Seria compreensível se essa fortuna fosse destinada a socorrer o trabalhador desempregado ou a manter o auxílio emergencial de 600 reais enquanto durar a pandemia.

Mas isso não passa pela cabeça dos economistas do governo. Eles já anunciaram que esse dinheiro vai ser usado para pagar os juros da dívida pública!

Nas mãos dessa gente, a Saúde pública é maltratada  em todos os seus aspectos.

A substituição da direção do Ministério da Saúde por militares sem experiência médica ou sanitária é apenas a ponta de um iceberg. Em uma escalada autoritária, o governo transferiu centenas de militares da ativa e da reserva para a administração federal, inclusive em muitos postos-chave, fazendo lembrar os tempos sombrios da ditadura.

O mais grave de tudo isso é que Bolsonaro aproveita o sofrimento coletivo para, sorrateiramente, cometer um crime de lesa-pátria.

Um crime politicamente imprescritível, o maior crime que um governante pode cometer contra seu país e seu povo: abrir mão da soberania nacional.

Não foi por acaso que escolhi para falar com vocês neste 7 de Setembro, dia da Independência do Brasil, quando celebramos o nascimento do nosso país como nação soberana.

Soberania significa independência, autonomia, liberdade. O contrário disso é dependência, servidão, submissão.

Ao longo de minha vida sempre lutei pela liberdade.

Liberdade de imprensa, liberdade de opinião, liberdade de manifestação e de organização, liberdade sindical, liberdade de iniciativa.

É importante lembrar que não haverá liberdade se o próprio país não for livre.

Renunciar à soberania é subordinar o bem-estar e a segurança do nosso povo aos interesses de outros países.

A garantia da soberania nacional não se resume à importantíssima missão de resguardar nossas fronteiras terrestres e marítimas e nosso espaço aéreo. Supõe também defender nosso povo, nossas riquezas minerais, cuidar das nossas florestas, nossos rios, nossa água.

Na Amazônia devemos estar presentes com cientistas, antropólogos e pesquisadores dedicados a estudar a fauna e a flora e a empregar esse conhecimento na farmacologia, na nutrição e em todos os campos da ciência – respeitando a cultura e a organização social dos povos indígenas.

O governo atual subordina o Brasil aos Estados Unidos de maneira humilhante, e submete nossos soldados e nossos diplomatas a situações vexatórias. E ainda ameaça envolver o país em aventuras militares contra nossos vizinhos, contrariando a própria Constituição, para atender os interesses econômicos e estratégico-militares norte-americanos.

A submissão do Brasil aos interesses militares de Washington foi escancarada pelo próprio presidente ao nomear um oficial general das Forças Armadas Brasileiras para servir no Comando Militar Sul dos Estados Unidos, sob as ordens de um oficial americano.

Em outro atentado à soberania nacional, o atual governo assinou com os Estados Unidos um acordo que coloca a Base Aeroespacial de Alcântara sob o controle de funcionários norte-americanos e que priva o Brasil de acesso à tecnologia, mesmo de terceiros países.

Quem quiser saber os verdadeiros objetivos do governo não precisa consultar manuais secretos da Abin ou do serviço de inteligência do Exército.

A resposta está todos os dias no Diário Oficial, em cada ato, em cada decisão, em cada iniciativa do presidente e de seus assessores, banqueiros e especuladores que ele chamou para dirigir nossa economia.

Instituições centenárias, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES, que se confundem com a história do desenvolvimento do país, estão sendo esquartejadas e fatiadas – ou simplesmente vendidas a preço vil.

Bancos públicos não foram criados para enriquecer famílias. Eles são instrumentos do progresso. Financiam a casa do pobre, a agricultura familiar, as obras de saneamento, a infraestrutura essencial ao desenvolvimento.

Se olharmos para o setor energético, veremos uma política de terra arrasada igualmente predadora.

Depois de colocar à venda por valores ridículos as reservas do Pré-Sal, o governo desmantela a Petrobrás. Venderam a distribuidora e os gasodutos foram alienados. As refinarias estão sendo esquartejadas. Quando só restarem os cacos, chegarão as grandes multinacionais para arrematar o que tiver sobrado de uma empresa estratégica para a soberania do Brasil.

Meia dúzia de multinacionais ameaçam a renda de centenas de bilhões de reais do petróleo do Pré-Sal – recursos que constituiriam um fundo soberano para financiar uma revolução educacional e científica.

A Embraer, um dos maiores trunfos do nosso desenvolvimento tecnológico, só escapou da sanha entreguista em função das dificuldades da empresa que iria adquiri-la, a Boeing, profundamente ligada ao complexo industrial militar dos Estados Unidos.

O desmanche não termina aí.

O furor privatista do governo pretende vender, na bacia das almas, a maior empresa de geração de energia da América Latina, a Eletrobrás, uma gigante com 164 usinas – duas delas termonucleares – responsável por quase 40% da energia consumida no Brasil.

A demolição das universidades, da educação e o desmonte das instituições de apoio à ciência e à tecnologia, promovidos pelo governo, são ameaça real e concreta à nossa soberania.

Um país que não produz conhecimento, que persegue seus professores e pesquisadores, que corta bolsas de pesquisas e nega o ensino superior à maioria de sua população está condenado à pobreza e à eterna submissão.

A obsessão destrutiva desse governo deixou a cultura nacional entregue a uma sucessão de aventureiros. Artistas e intelectuais clamam pela salvação da Casa de Ruy Barbosa, da Funarte, da Ancine. A Cinemateca Brasileira, onde está depositado um século da memória do cinema nacional, corre o sério risco de ter o mesmo destino trágico do Museu Nacional

Minhas amigas e meus amigos.

No isolamento da quarentena tenho refletido muito sobre o Brasil e sobre mim mesmo, sobre meus erros e acertos e sobre o papel que ainda pode me caber na luta do nosso povo por melhores condições de vida.

Decidi me concentrar, ao lado de vocês, na reconstrução do Brasil como Nação independente, com instituições democráticas, sem privilégios oligárquicos e autoritários. Um verdadeiro Estado Democrático e de Direito, com fundamento na soberania popular. Uma Nação voltada para a igualdade e o pluralismo. Uma Nação inserida numa nova ordem internacional baseada no multilateralismo, na cooperação e na democracia, integrada na América do Sul e solidária com outras nações em desenvolvimento.

O Brasil que quero reconstruir com vocês é uma Nação comprometida com a libertação do nosso povo, dos trabalhadores e dos excluídos.

Dentro de um mês vou fazer 75 anos.

Olhando para trás, só posso agradecer a Deus, que foi muito generoso comigo. Tenho que agradecer à minha mãe, dona Lindu, por ter feito de um pau-de-arara sem diploma um trabalhador orgulhoso, que um dia viraria presidente da República. Por ter feito de mim um homem sem rancor, sem ódios.

Eu sou o menino que desmentiu a lógica, que saiu do porão social e chegou ao andar de cima sem pedir permissão a ninguém, só ao povo.

Não entrei pela porta dos fundos, entrei pela rampa principal. E isso os poderosos jamais perdoaram.

Reservaram para mim o papel de figurante, mas virei protagonista pelas mãos dos trabalhadores brasileiros.

Assumi o governo disposto a mostrar que o povo cabia, sim, no orçamento. Mais do que isso, provei que o povo é um extraordinário patrimônio, uma enorme riqueza. Com o povo o Brasil progride, se enriquece, se fortalece, se torna um país soberano e justo.

Um país em que a riqueza produzida por todos seja distribuída para todos – mas em primeiro lugar para os explorados, os oprimidos, os excluídos.

Todos os avanços que fizemos sofreram encarniçada oposição das forças conservadoras, aliadas a interesses de outras potências.

Eles nunca se conformaram em ver o Brasil como um país independente e solidário com seus vizinhos latino-americanos e caribenhos, com os países africanos, com as nações em desenvolvimento.

É aí, nessas conquistas dos trabalhadores, nesse progresso dos pobres, no fim da subserviência, é aí que está a raiz do golpe de 2016.

Aí está a raiz dos processos armados contra mim, da minha prisão ilegal e da proibição da minha candidatura em 2018. Processos que – agora todo mundo sabe – contaram com a criminosa colaboração secreta de organismos de inteligência norte-americanos.

Ao tirar 40 milhões de brasileiros da miséria, nós fizemos uma revolução neste país. Uma revolução pacífica, sem tiros nem prisões.

Ao ver que esse processo de ascensão social dos pobres iria continuar, que a afirmação de nossa soberania não iria ter volta, os que se julgam donos do Brasil, aqui dentro e lá fora, resolveram dar um basta. 

Nasce aí o apoio dado pelas elites conservadoras a Bolsonaro.

Aceitaram como natural sua fuga dos debates. Derramaram rios de dinheiro na indústria das fake news. Fecharam os olhos para seu passado aterrador. Fingiram ignorar seu discurso em defesa da tortura e a apologia pública que ele fez do estupro.

As eleições de 2018 jogaram o Brasil em um pesadelo que parece não ter fim.

Com ascensão de Bolsonaro, milicianos, atravessadores de negócios e matadores de aluguel saíram das páginas policiais e apareceram nas colunas políticas.

Como nos filmes de terror, as oligarquias brasileiras pariram um monstrengo que agora não conseguem controlar, mas que continuarão a sustentar enquanto seus interesses estiverem sendo atendidos.

Um dado escandaloso ilustra essa conivência: nos quatro primeiros meses da pandemia, quarenta bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em 170 bilhões de reais.

Enquanto isso, a massa salarial dos empregados caiu 15% em um ano, o maior tombo já registrado pelo IBGE. Para impedir que os trabalhadores possam se defender dessa pilhagem, o governo asfixia os sindicatos, enfraquece as centrais sindicais e ameaça fechar as portas da Justiça do Trabalho. Querem quebrar a coluna vertebral do movimento sindical, o que nem a ditadura conseguiu.

Violentaram a Constituição de 1988. Repudiaram as práticas democráticas. Implantaram um autoritarismo obscurantista, que destruiu as conquistas sociais alcançadas em décadas de lutas. Abandonaram uma política externa altiva e ativa, em favor de uma submissão vergonhosa e humilhante.

Este é o verdadeiro e ameaçador retrato do Brasil de hoje.

Tamanha calamidade terá que ser enfrentada com um novo contrato social que defenda os direitos e a renda do povo trabalhador.

Minhas queridas e meus queridos.

Minha longa vida, aí incluídos os quase dois anos que passei em uma prisão injusta e ilegal, me ensinou muito.

Mas tudo o que fui, tudo o que aprendi cabe num grão de milho se essa experiência não for colocada a serviço dos trabalhadores.

É inaceitável que 10% da população vivam à custa da miséria de 90% do povo.

Jamais haverá crescimento e paz social em nosso país enquanto a riqueza produzida por todos for parar nas contas bancárias de meia dúzia de privilegiados.

Jamais haverá crescimento e paz social se as políticas públicas e as instituições não tratarem com equidade a todos brasileiros.

É inaceitável que os trabalhadores brasileiros continuem sofrendo os impactos perversos da desigualdade social. Não podemos admitir que nossa juventude negra tenha suas vidas marcadas por uma violência que beira genocídio.

Desde que vi, naquele terrível vídeo, os 8 minutos e 43 segundos de agonia de George Floyd, não paro de me perguntar: quantos George Floyd nós tivemos no Brasil? Quantos brasileiros perderam a vida por não serem brancos? Vidas negras importam, sim. Mas isso vale para o mundo, para os Estados Unidos e vale para o Brasil.

É intolerável que nações indígenas tenham suas terras invadidas e saqueadas e suas culturas destruídas. O Brasil que queremos é o do marechal Rondon e dos irmãos Villas-Boas, não o dos grileiros e dos devastadores de florestas.

Temos um governo que quer matar as mais belas virtudes do nosso povo, como a generosidade, o amor à paz e a tolerância.

O povo não quer comprar revólveres nem cartuchos de carabina. O povo quer comprar comida.

Temos que combater com firmeza a violência impune contra as mulheres. Não podemos aceitar que um ser humano seja estigmatizado por seu gênero. Repudiamos o escárnio público com os quilombolas. Condenamos o preconceito que trata como seres inferiores pobres que vivem nas periferias das grandes cidades.

Até quando conviveremos com tanta discriminação, tanta intolerância, tanto ódio?

Meus amigos e minhas amigas,

Para reconstruirmos o Brasil pós pandemia, precisamos de um novo contrato social entre todos os brasileiros.

Um contrato social que garanta a todos o direito de viver em paz e harmonia. Em que todos tenhamos as mesmas possiblidades de crescer, onde nossa economia esteja a serviço de todos e não de uma pequena minoria. E no qual sejam respeitados nossos tesouros naturais, como o Cerrado, o Pantanal, a Amazônia Azul e a Mata Atlântica.

O alicerce desse contrato social tem que ser o símbolo e a base do regime democrático: o voto. É através do exercício do voto, livre de manipulações e fake news, que devem ser formados os governos e ser feitas as grandes escolhas e as opções fundamentais da sociedade.

Através dessa reconstrução, lastreada no voto, teremos um Brasil um democrático, soberano, respeitador dos direitos humanos e das diferenças de opinião, protetor do meio ambiente e das minorias e defensor de sua própria soberania.

Um Brasil de todos e para todos.

Se estivermos unidos em torno disso poderemos superar esse momento dramático.

O essencial hoje é vencer a pandemia, defender a vida e a saúde do povo. É pôr fim a esse desgoverno e acabar com o teto de gastos que deixa o Estado brasileiro de joelhos diante do capital financeiro nacional e internacional.

Nessa empreitada árdua, mas essencial, eu me coloco à disposição do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores e dos excluídos.

Minhas amigas e meus amigos.

Queremos um Brasil em que haja trabalho para todos.

Estamos falando de construir um Estado de bem-estar social que promova a igualdade de direitos, em que a riqueza produzida pelo trabalho coletivo seja devolvida à população segundo as necessidades de cada um.

Um Estado justo, igualitário e independente, que dê oportunidades para os trabalhadores, os mais pobres e os excluídos.

Esse Brasil dos nossos sonhos pode estar mais próximo do que aparenta.

Até os profetas de Wall Street e da City de Londres já decretaram que o capitalismo, tal como o mundo o conhece, está com os dias contados. Levaram séculos para descobrir uma verdade inquestionável que os pobres conhecem desde que nasceram: o que sustenta o capitalismo não é o capital. Somos nós, os trabalhadores.

É nessas horas que me vem à cabeça esta frase que li num livro de Victor Hugo, escrito há um século e meio, e que todo trabalhador deveria levar no bolso, escrita em um pedacinho de papel, para jamais esquecer:

“É do inferno dos pobres que é feito o paraíso dos ricos…”

Nenhuma solução, porém, terá sentido sem o povo trabalhador como protagonista. Assim como a maioria dos brasileiros, não acredito e não aceito os chamados pactos “pelo alto”, com as elites. Quem vive do próprio trabalho não quer pagar a conta dos acertos políticos feitos no andar de cima.

Por isso quero reafirmar algumas certezas pessoais:

• Não apoio, não aceito e não subscrevo qualquer solução que não tenha a participação efetiva dos trabalhadores.

• Não contem comigo para qualquer acordo em que o povo seja mero coadjuvante.

• Mais do que nunca, estou convencido de que a luta pela igualdade social passa, sim, por um processo que obrigue os ricos a pagar impostos proporcionais às suas rendas e suas fortunas.

E esse Brasil, minhas amigas e meus amigos, está ao alcance das nossas mãos.

Posso afirmar isso olhando nos olhos de cada um e de cada uma de vocês. Nós provamos ao mundo que o sonho de um país justo e soberano pode sim, se tornar realidade.

Eu sei – vocês sabem – que podemos, de novo, fazer do Brasil o país dos nossos sonhos.

E dizer, do fundo do meu coração: estou aqui. Vamos juntos reconstruir o Brasil.

Ainda temos um longo caminho a percorrer juntos.

Fiquem firmes, porque juntos nós somos fortes.

Viveremos e venceremos.

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