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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

15
Out22

Quebrando mitos

Talis Andrade

Quebrando Mitos" leva masculinidade do Brasil de Bolsonaro ao divã

 

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Quebrando mitos é um documentário autoral e biográfico de Fernando Grostein Andrade, cineasta ativista que em 2011 ganhou notoriedade com o lançamento de Quebrando o tabu – filme que debate a guerra às drogas, e que se transformou em plataforma multicanal de curadoria e produção de conteúdo multimídia para discussão de temas sociais, ambientais e direitos humanos no Brasil. 

A partir da sua vivência pessoal, Fernando faz nesse novo longa um mergulho no passado recente do país para entender como a masculinidade frágil e catastrófica de Jair Bolsonaro culminou num contexto de acirramento e recrudescimento da violência, do ódio e do retrocesso da agenda de políticas públicas e sociais, principalmente, no que diz respeito a pessoas LGBTQs e mulheres.

O cineasta se encoraja a sair de trás da câmera e, propositalmente, se coloca no foco do filme, revelando detalhes de sua relação familiar, episódios marcantes da sua infância, adolescência e início da vida adulta. Com o relato particular de sua experiência, Fernando, tenta exemplificar as consequências nefastas da construção da masculinidade dentro da cultura patriarcal.

Mesmo com seu lugar legítimo de fala, por ser gay, o cineasta é um homem branco e bastante privilegiado, por ter nascido e sido criado em uma família rica de São Paulo. Fernando é filho do falecido jornalista Mário de Andrade – consagrado como editor-chefe da revista Playboy no Brasil na década de 1980 – e da urbanista Marta Dora Grostein Huck, que é mãe do empresário e apresentador de tv Luciano Huck.

Tais conexões familiares certamente garantem acessos facilitados de Fernando a espaços de poder que a maioria das pessoas LGBT no Brasil nem sequer chegam perto de conquistar. E é justamente esse o ponto do eu lírico do cineasta no seu documentário que pode incomodar o espectador. A estratégia dele para gerar identificação com o público é expor suas fragilidades e, principalmente, as violências de que foi vítima apenas por não se encaixar no padrão de masculinidade heteronormativa.

Grostein frisa seu lugar de privilégio e diz usá-lo para jogar luz sobre a lgbtfobia que ajudou a eleger Bolsonaro presidente. Quebrando mitos cumpre o esperado que é desconstruir a figura do ex-deputado de baixo clero que foi capaz de nomear um movimento político de extrema-direita. O bolsonarismo não foi criado por Bolsonaro. O documentarista reitera o que já é bastante óbvio: Bolsonaro somente deu voz a uma parcela da sociedade que coaduna com ideais ultraconservadores, violentos, machistas e misóginos.

Ocorre que o compilado de imagens de arquivo e entrevistas concedidas para o cineasta, não acrescenta nada de novo no debate da masculinidade tóxica de Bolsonaro e conversa com um público convertido e bastante consciente de tudo que está posto pelo bolsonarismo. É mais do mesmo, bastante atualizado, sem dúvida. O documentarista – que dividiu a direção do filme com seu marido, o ator e cantor Fernando Siqueira – chegou a incluir vídeos dos atos políticos do último 7 de setembro.

Ao posicionar sua estreia faltando apenas duas semanas para o primeiro turno das eleições presidenciais no país, na qual Bolsonaro disputa a reeleição, Quebrando mitos tende a causar pouco ou quase nenhum impacto midiático. Se o intuito era provocar reflexão e alertar o Brasil e o mundo para os perigos das violências fascistas do bolsonarismo, o timming para isso está, pelo menos, com uns quatro anos de atraso.

Em um país polarizado e com quase 80% de seus eleitores certos de quem vão escolher nas urnas, o filme surtirá pouco efeito mesmo depois de passado o pleito. A impressão que fica é que o ativismo de Fernando – que saiu do país para morar na Califórnia em 2018 – cobrou por sua ausência no debate. A solução encontrada por ele para colocar para fora seus sentimentos foi criar um filme autobiográfico, que soa como uma carta de desabafo, um relato de culpa.

Convenhamos, de homens brancos e ricos que trazem para si o centro das discussões de todos os problemas do mundo, a produção cinematográfica já está farta. Fernando, sua intenção foi ótima. Infelizmente, o custo mais pesado das violências dessa masculinidade catastrófica bolsonarista não recaem na sua pele. Não é sobre você, apesar de ser sobre você. Ainda assim, sua obra não deixa de ser relevante e de conter um relato sensível, doloroso e bem apurado do Brasil de hoje. #paz

O filme pode ser assistido no link: www.quebrandomitos.com.br

Uma frase: “Os LGBTQs foram usados por Bolsonaro como alavanca eleitoral”

Uma cena: As imagens do funeral da deputada Marielle Franco alternadas com as dos protestos pela morte de Martin Luther King.

Uma curiosidade: Após finalizar a versão inicial do filme, o cineasta teve um burnout.

 

 

Libelo contra a “masculinidade catastrófica” | carmattos

Quebrando mitos

Direção: Fernando Grostein Andrade

Roteiro: Fernando Grostein Andrade; Carol Pires e Joaquim Salles; Gabriel di Millo e Ligia Mesquita (roteiro adicional)

Elenco: Fernando Grostein Andrade, Jair Bolsonaro, Carol Pires, Jean Wyllys, Marielle Franco, etc.

Gênero: Documentário

Ano: 2022

Duração: 92 minutos

15
Out22

“Quebrando mitos” revela a masculinidade catastrófica e frágil de Bolsonaro

Talis Andrade

Quebrando Mitos" leva masculinidade do Brasil de Bolsonaro ao divã

“Quebrando mitos” revela a masculinidade catastrófica e frágil de Jair Bolsonaro sob o ponto de vista de um casal LGBT – o cineasta Fernando Grostein Andrade (“Quebrando o Tabu”, Coração Vagabundo”, “Abe”) e o ator e cantor Fernando Siqueira.

Depois de ameaças anônimas por conta de críticas de Andrade à homofobia de Bolsonaro, o casal parte para a Califórnia e decide fazer um documentário que mistura biografias com a resistência ao fascismo no Brasil.

 

Crítica: Quebrando Mitos, a autobiografia de Fernando Grostein Andrade diz muito sobre a vida do Brasil com Bolsonaro

Os efeitos e consequências da masculinidade tóxica e catastrófica guiam os trajetos do cineasta e do atual presidente no documentário

Por Matheus Nascimento

 

As primeiras cenas do documentário Quebrando Mitos podem até preparar o telespectador para o que vem ao longo do filme. As imagens de arquivo já circuladas na mídia de Jair Bolsonaro junto às ilustrações satíricas representando o famigerado “gado”, indicam qual será o argumento. Mas, se engana quem acha que é “só” isso, já que permeada por esse contexto, e de forma nada paralela, a autobiografia de Fernando Grostein Andrade, um dos diretores, é construída e narrada por ele mesmo. A vida de um homem gay antes e durante a ascensão da extrema-direita, dialoga sobre a situação atual no país, ao mesmo tempo que flui a narrativa do autobiografado. Andrade usa sua história de trampolim, e escancara a capenga “vida” do país, a partir da sua.

Após a candidatura de Bolsonaro em 2018, Fernando enxergou seus alertas, entrevistas, declarações nas mídias sobre o perigo da figura messiânica de Jair chegar à presidência irem descarga abaixo. Hoje, por seu alcance, é assertivo dizer que o presidente é o maior representante da homofobia no país. Seus ataques e falas como deputado ou “peixe pequeno” na política já alarmavam os defensores dos direitos humanos, como Fernando Grostein, mas para a grande maioria, a postura do atual presidente era considerada cômica, uma piada. Vale creditar a responsabilidade de tal fama à mídia tradicional que dedicou holofotes sem precedentes ao então parlamentar. Com a piada eleita, o buraco estava mais cavado. O medo legítimo vindo de um vasto histórico de ameaças e ataques impulsionou Fernando Grostein a se mudar para a Califórnia, onde teve a ideia de voltar atrás no tempo e nos acontecimentos a fim de destrinchar quem foi e é Bolsonaro num contexto macro. 

A abordagem era arriscada. As imagens de arquivo e as mais recentes como as do 7 de setembro, as entrevistas com jornalistas, políticos, pessoas que trabalharam com o presidente, e até de quem lhe conheceu na infância construíram um filme difícil de “engolir”. O ódio que rege a trajetória política de Bolsonaro se focado exclusivamente como a pauta principal, forjaria um filme sem respiros. E sem respiros, o diretor se sentiu afetado. É verdade que o cineasta já trabalhou com temáticas densas, como no documentário Quebrando o Tabu (2011), vindo dele o portal em defesa dos direitos humanos tão conhecido no país e no mundo. O longa de 2011 foi feito em parceria com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a fim de explorar a chamada “guerra às drogas” e defende que essa “guerra” deveria ser tratada como questão de saúde e não com punição criminal.

Com Quebrando Mitos, a temática doía num lado mais pessoal. O peso do material trouxe sequelas ao diretor. Porém, o fatídico burnout de Grostein afastá-lo da montagem foi crucial para a participação do marido Fernando Siqueira, que assumiu o roteiro e trouxe o foco (apontando a câmera mesmo) para o cineasta. Além de cantor e ator, Siqueira estudou roteiro na USC (University of Southern California), direção em cursos no Instituto de Sundance, atuação no William Esper Studio e mídias sociais no MIT (Massachussetts Institute of Technology). Neste comando, veio a respiração do documentário, garantindo momentos mais leves, humanizados dentro de uma narrativa que reflete o peso de ser brasileiro (gay, preto, indígena, pobre) num país com Bolsonaro na presidência. 

 

12
Mar22

Machismo publicitário: misoginia como tecnologia política na era do macho limítrofe

Talis Andrade

www.brasil247.com -

 

 

por Marcia Tiburi

1. Machismo estrutural é o nome que se dá à ordem dos discursos e atos dos agentes do patriarcado. O caráter estrutural do machismo tem relação com a “naturalização” dogmática da ideologia e da prática dos homens machistas. Como tudo o que é dogmático, o machismo aposta em verdades naturais e trata seus críticos como monstros “desnaturados”. 

2. Machismo publicitário é a forma do machismo na era da política reduzida à publicidade. 

3. Várias manifestações do deputado Arthur do Val recentemente envolvido no caso de assédio de mulheres ucranianas em situação de guerra, remetem à teatralidade para fins publicitários no jogo da eterna campanha política dos agentes da extrema-direita. Em 2018 Arthur do Val invadiu um evento vestindo uma roupa que imitava uma vagina, assediando e intimidando estudantes. Sempre usando de falácias, o texto do personagem, que pode ser visto na internet, prima pelo discurso grotesco, a saber, aquele que produz efeitos de poder por sua desqualificação. 

4. Para se defender da marca de assediador e de predador, o referido deputado teatralizou novamente ao ver a revolta da população e da mídia: diante das câmeras ele usou o argumento de ser um homem “jovem” e não ser “santo” como características naturais que deveriam ser aceitas por todos. O argumento falacioso da natureza masculina surge na tentativa de se defender do indefensável: as falas aporofóbicas e predatórias contra mulheres em situação de fragilização pela guerra. As multidões que criticaram a postura do deputado foram atacadas pelos agentes do MBL como se estivessem na contramão do machismo natural que, segundo o dogma patriarcal, deve ser aceito sem reclamação ou crítica. É o que vem sendo chamado de “construção da narrativa” e ela depende de teatralização e performance. 

5. A importância da teatralidade e da performance dos personagens políticos é cada vez mais evidente quando a publicidade ocupa o lugar da política. Em política sempre houve um cálculo sobre a percepção, as sensações, as emoções, os afetos e os sentimentos das massas. Mas desde que ela foi rebaixada à publicidade, tudo isso se tornou ainda mais intenso.

6. O fascismo instrumentaliza o mau gosto de uma época e o incrementa para fins políticos. Nesse sentido, o fascismo (seja o Ur-Fascismo ou o neonazifascismo contemporâneo), mais que ideologia, é uma tecnologia política que se une a outra tecnologia política; o machismo, tão antiga quanto ele. Em termos simples se pode dizer que ambos se confundem. 

ribis- marielle consciencia negra quebra placa car

7. Dois homens rasgaram uma placa de rua com o nome de Marielle Franco em 2018 em um ritual de ódio durante a campanha política. Certamente esse ritual chamou a atenção para eles que foram eleitos com muitos votos. Daniel Silveira, um desses deputados, continuou sua estratégia publicitaria para aparecer usando da agressão e da ameaça contra tudo e todos, inclusive o STF, e acabou sendo preso. Na prisão ele mudou a cena: começou a chorar para parecer frágil. No contexto do aperto, amenizar a brutalidade natural do macho parecia o melhor na modulação da sua imagem. 

8. A báscula da cena do macho brutal para o homem sensível e fragilizado nos permite lançar a categoria do “macho limítrofe” como figura especifica da teatralidade na política na era do neonazifascismo. 

9. O fascismo é todo uma encenação performática caracterizada pelo enfrentamento à democracia em uma época. 

10. Na política machista habitual os homens precisavam apenas disputar entre si. Quando surgem mulheres que ameaçam seus cargos, ou ameaçam com a imagem de uma outra política, os homens partem para a ação violenta que faz parte da sua história e é essencial à performatividade política do momento. Lembremos da força da misoginia contra Dilma Rousseff e Manuela D’Ávila. O nome de Marielle Franco continua sendo usado por nazifascistas como se fosse um troféu que anuncia do que eles são capazes. 

11. O macho limítrofe é a assinatura de um design político que dá certo: ele fornece a imagem adequada ao poder. Jair Bolsonaro venceu Fernando Haddad com o apoio da mídia corporativa golpista usando uma imagem de violência adequada às massas, às quais não era possível escolher diferentemente diante do excelente trabalho de psicopoder, ou lavagem cerebral, produzida em uma campanha publicitaria midiática que não tem fim desde 2013. O trabalho de lavagem afetiva vem sendo bem produzido no Brasil desde o advento da televisão e recentemente com as redes sociais. A sociedade inteira vive tranquilamente sob o assédio publicitário promovido nesse contexto. 

12. A característica do macho limítrofe é a vociferação misógina que permite que os holofotes se voltem para ele. Foi o que Arthur do Val sempre fez até que deixou cair a máscara. 

3. O macho limítrofe é o ator de uma série de discursos e práticas em si mesmos misóginos: ele vocifera contra mulheres para chamar a atenção sobre si. A histeria é, para ele, uma espécie de método. Em 2018, muitos brutamontes se elegeram fazendo uso da gritaria. Hoje, nas redes sociais, mesmo o mais impopular dos homens, não se contém na hora de se manifestar contra mulheres. A histeria masculina avança como histeria de massa. 

14. A histeria pode ser espontânea, mas para os homens que buscam poder, ela vem sendo instrumentalizada para seus fins. A questão é “como se capitalizar politicamente na era do espetáculo?” ou seja, como aparecer no momento em que as mulheres estão em alta na esfera pública devido à luta feminista. 

15. Feministas são agredidas diariamente com todo tipo de discurso misógino por não se renderem ao dogma machista. Elas são hereges diante do culto do macho patriarcal em todos os ambientes, sejam analógicos sejam virtuais. Mas também são usadas como alavancas por polemistas cheios de ódio. 

16. O macho limítrofe é apavorante e ameaçador. Ele representa a ameaça machista, ela mesma uma estratégia em alta desde que Bolsonaro usou o sinal de “arminha” durante sua campanha de 2018. O sucesso da ameaça já tinha sido provado em 17-04-2016 ao usar o discurso de ódio contra Dilma Roussseff elogiando seu torturador e tocando o pavor no Brasil inteiro.

17. O machismo é a ideologia que estrutura o sistema patriarcal. A ideologia é um véu que acoberta as relações de poder. É o ofuscamento da verdade do poder patriarcal que deve permanecer inquestionado para seguir intacto. Nesse contexto, o feminismo, enquanto filosofia que desmascara a ideologia, está sempre na mira da destruição do patriarcado. 

18. O machismo se renova, avançando como tecnologia política do patriarcado. Na história dos feitos políticos masculinos, os homens sempre eliminaram mulheres, lembremos de Olympe de Gouges que em 1793 desafiou o machismo com sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã já que as mulheres, que haviam lutado tremendamente na Revolução Francesa, haviam sido apagadas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ela acabou na guilhotina por não se calar. Ora, na democracia burguesa que é, na verdade, a democracia machista, não há democracia real. Hoje falamos em uma democracia radical que possa ultrapassar os limites teóricos e práticos da democracia burguesa machista e, como tal, falsa. 

19. A luta das mulheres é uma luta complexa: luta de classes, luta antirracista, luta ecologista, luta anticapacitista, luta pelo direito de existir, por igualdade, equiparação e reconhecimento. Mulheres são maioria populacional, porém até o momento são minoria política porque a violência politica de gênero é gigantesca e mortal. 

20. O jogo político masculino é um jogo narcísico e seu paradigma é homossexualista masculinista. Os homens se entendem e jogam entre eles. Ou seja, encenam entre eles. Nessa cena, mulheres são vistas como intrusas e indesejáveis. Os gays são aceitos, desde que não manifestem seu orgulho gay, pois essa manifestação tende a prejudicar o velamento, o aspecto de uma homossexualidade que só pode ser exercida se for ocultada. É todo um jogo de cena que fará o macho limítrofe aparecer e calibrar seu capital. A imagem do macho heterossexual é um valor da política e, no contexto dos extremismos, é o macho limítrofe que urra e baba que aparece para garantir a sustentação do poder masculinista.

21. A masculinidade está em crise em diversas esferas. Aos sacerdotes do machismo não basta aparecer como o macho heterossexual. O novo valor do macho limítrofe no mercado da política reduzida à publicidade vai demorar para ser superado. 

17
Jul21

A paixão dos homens pela masculinidade tacanha de Bolsonaro

Talis Andrade

Image

 

por Isabela Venturoza

- - -

 

Bolsonaro participou sábado (26), em Chapecó, Santa Catarina, de mais uma de suas “motociatas”. A última edição havia acontecido no dia 12 de junho, em São Paulo, e reuniu milhares de homens em apoio ao presidente. Tal evento foi definido pela escrita cirúrgica de Durval Muniz Albuquerque Jr. como “um verdadeiro desfile de adictos da testosterona”.

Para o historiador, como também foi sinalizado em outros meios de comunicação, grande parte dos presentes na “motociata de Jesus” eram homens, em sua maioria brancos, conduzindo motocicletas de marcas e modelos nada semelhantes àquelas que os entregadores de aplicativo utilizam, e que pareciam muito à vontade ao seguir o capitão, materializando uma grande manada fascista.Bolsonaro vincula Cristo a passeio de moto em SP - Blog da CidadaniaEditorial | Por que o Fora Bolsonaro? | Opinião

Que me perdoem os cientistas políticos pelo uso indiscriminado do termo “fascista”, mas não consigo pensar em uma palavra melhor ao observar milhares de homens se sentindo representados por um governo autoritário como o de Bolsonaro. 

Essa adesão fervorosa de alguns à figura de um homem intelectualmente limitado, cujas ações destrutivas e o temperamento descontrolado fazem manchete semana a semana, me impressiona ao mesmo tempo que agrava a dificuldade que encontro para dormir quando deito a cabeça no travesseiro à noite.

O fato é: Bolsonaro e o que ele representa ao desfilar pelo mundo gritando com jornalistas, minando relações diplomáticas, numa cruzada em defesa da cloroquina em detrimento da ciência, entre tantas outras trapalhadas cujos efeitos serão sentidos fortemente nos próximos anos, dizem muito.

Dizem muito porque foram eleitos por uma parcela significativa da população e porque mesmo hoje, com uma economia em frangalhos e 500 mil mortes na conta, seguem encontrando defensores apaixonados. Por que o presidente e o que ele representa provocam tanta paixão no imaginário de alguns?

Para refletir sobre essas questões, é preciso olhar para a história e perceber que por mais que ainda convivamos com inúmeras desigualdades sociais, é inegável que muita coisa mudou nas últimas décadas. Muito se alterou no mundo e no Brasil especificamente. O “lugar das mulheres” foi em certo sentido desestabilizado. Não estamos mais esperando em casa, reduzidas ao papel de mães e esposas. Somos parte importante do mercado de trabalho e nossos interesses e atividades ultrapassam em muito a figura de um companheiro e o espaço doméstico.

No Brasil, inclusive, uma mulher foi eleita presidenta. E é sintomático que ela tenha sido destituída para ser sucedida mais tarde por um sujeito como Jair Bolsonaro. Em outras esferas, políticas de caráter afirmativo e uma real discussão sobre as desigualdades raciais e de classe no Brasil se refletiram em transformações na composição dos estudantes de ensino superior e no poder de consumo de brasileiras e brasileiros. Passamos a andar de avião.

Contudo, tais mudanças – ver pretos, pobres, mulheres e homossexuais em espaços antes negados a eles – incomodou a alguns. Principalmente aqueles a quem antes eram reservados os lugares de excelência na sociedade. Mas não só. Além dos privilegiados, também aqueles que sonhavam em ganhar entrada VIP nessa festa se sentiram atacados pela ideia de que toda brasileira e brasileiro têm direitos e devem ter acesso a oportunidades.

Homens brancos de classe média se tornaram os principais ressentidos com a “bagunça” que havia se tornado o Brasil e Bolsonaro caiu como uma luva ao prometer restituir a norma: não apenas “Deus acima de tudo, Deus acima de todos”, mas pisar no pescoço e esmagar qualquer fração de discurso a favor da equidade. 

O avanço dos conservadorismos, das bancadas da “bala, boi e bíblia”, não veio junto à exaltação dos direitos das mulheres ou de uma defesa de sua participação irrestrita na sociedade. A mensagem transmitida por essa política contemporânea vem reafirmar as fantasias de poder e de identidade de homens brancos, nas quais eles falam mais alto, eles ocupam o espaço público e eles tomam as decisões.

Mulheres cuidam de coisas menores ou figuram como Carla Zambelli ao lado de Bolsonaro como aquela única garota que fica com os meninos no recreio e olha com certo desdém para as outras meninas.

A cruzada dessa masculinidade de Bolsonaro, atenuada em outros homens que fazem parte de seu círculo ou que com ele se relacionam para receber uma fatia do bolo, objetiva trazer de volta algo que nunca existiu plenamente, mas que sempre alimentou as fantasias dos homens e, por consequência, as assimetrias entre eles e as mulheres. 

 

Não é a primeira vez que um
homem se sente ameaçado
por um mundo mudando à
sua volta e não é a primeira
vez que ele recorre a alguma
mitologia perdida de um
poder patriarcal anterior
ou de um supermacho
infalível para restituir a
“ordem” desse mundo.

 

A literatura no campo das masculinidades, tanto em termos de livros de autoajuda quanto de uma bibliografia científica, registra ao longo da história o que alguns vão chamar de “crise da masculinidade”. Ela inclusive fala de respostas que vão variar em termos de resgatar um “masculino mítico” e sua força baseada na homossociabilidade entre homens fazendo “coisas de homens” ou mesmo de um movimento organizado pelos direitos dos homens.

De qualquer forma, estamos falando de uma masculinidade que não aceita ter suas bases alteradas. E sua base muitas vezes é o poder inconteste, principalmente por subalternos. 

Nesse sentido, a expressiva presença de homens nas motociatas de Bolsonaro e sua adesão a uma narrativa que muitas vezes nega a vida de quem não lhe é espelho, na verdade, não surpreende. Ela é uma resposta desesperada e ao mesmo tempo zombeteira aos nossos avanços.

A fantasia deles se erige sobre motos potentes e barulhentas, mas nós estamos aqui há muito tempo, à pé. Nunca foi fácil. O mundo segue girando e continuará mudando.

Claudio Mor on Twitter: "MORtoon - Genociata #mor #charge #governobolsonaro  #jairbolsonaro #bolsonaro #motociata #motoqueiros #pandemia #coronavirus  #covid_19 #forabolsonaro #foragenocida… https://t.co/XMOtxvnw2C"

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