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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

13
Ago23

Operações policiais e homicídio - parte 3

Talis Andrade

arma chacina.jpg

 

 

por Martin Magnus Petiz

A Terra É Redonda

3.

Anscombe afirmava ter conhecido um “garoto católico” que ficou estarrecido com a afirmação de que civis inocentes foram mortos em Hiroshima e Nagasaki pela bomba por “um acidente.”[xiv] No Brasil, temos a constante sensação de que as populações marginalizadas continuam sofrendo “acidentes” análogos em operações policiais nos grandes centros. A morte de civis por uma bomba atômica é um “efeito colateral” de uma guerra tanto quanto a tortura e o assassinato premeditado de inocentes o são.

Sob o pretexto da “guerra ao tráfico de drogas”, operações policiais homéricas como a Operação Escudo são levadas a cabo todos os meses no país, com alto custo de vidas – para a polícia e para as comunidades. As constantes mortes de pessoas pobres e negras nessas operações deveriam ser abarcadas sob a presunção de que o Estado é responsável por homicídio sempre que não puder justificar a ameaça iminente total de morte do policial sem o uso da violência, sobretudo agora que há disponível a tecnologia das câmeras nas fardas.

Obliterar uma cidade inteira com a arma mais destrutiva construída até 1945 pelo ser humano era definitivamente um caso de homicídio – ou de guerra injusta. Operações policiais têm de ser analisadas caso a caso, mas o princípio geral a ser aplicado na sua avaliação (pressupondo que o combate ao tráfico é uma “guerra justa”) deve ser o mesmo que Anscombe delimitou para julgar as ações dos EUA na 2ª Guerra Mundial, por uma questão de justiça: mesmo se for possível legitimar o uso da força com um fim legítimo de garantia da segurança pública, esse fim não justifica qualquer ação policial, e as circunstâncias razoavelmente previsíveis pelo Estado têm de ser levadas em conta na responsabilização dos agentes policiais.

Afinal, a presunção de inocência e o princípio penal da legalidade são questões de justiça, cujo respeito confere racionalidade à aplicação do direito. Sem isso, a autoridade jurídica degenera na imposição da mera força bruta, conduta típica de Estados policialescos e totalitários. [xv]

 


[i] 16 mortos em 6 dias: o que aconteceu na operação policial no Guarujá. BBC News Brasil, 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2x54ynjzx4o

[ii] MONCAU, Gabriela. Chacina no Guarujá reforça papel da polícia no genocídio negro, afirmam pesquisadores. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2023/08/03/chacina-no-guaruja-reforca-papel-da-policia-no-genocidio-negro-afirmam-pesquisadores

[iii] Ver HART, H.L.A. Prolegomenon to the principles of punishment. In: HART, H.L.A. Punishment and responsibility: essays in the philosophy of law. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 4 e ss.

[iv] RAWLS, John. Two concepts of rules. The Philosophical Review, v. 64, n. 1, p. 3-32, 1955, p. 11-12.

[v] Ibid., p. 6-7.

[vi] “Cláudia* chegou ao protesto [contra as mortes na Operação no Guarujá] poucas horas depois de enterrar seu tio, morto pela PM na última sexta (28). Evandro da Silva Belém, conhecido na quebrada como ‘Meu bom’, tinha 35 anos. Segundo sua sobrinha, ele estava recolhendo entulho quando policiais chegaram. Alguns saíram correndo. Ele não. ‘Ele não correu porque não devia nada. Arrastaram para um beco e mataram. Ele deixou duas filhas’, contou Cláudia, mostrando o braço arrepiado ao falar do tio. ‘Quer dizer que porque a gente é pobre, tem que ser tratado desse jeito?’, se indigna. ‘Não é operação, é opressão’, resume.” MONCAU, Gabriela. ‘É vingança’: moradores do Guarujá e movimentos sociais denunciam execuções e pedem saída de policiais. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/02/e-vinganca-moradores-do-guaruja-e-movimentos-sociais-denunciam-execucoes-e-pedem-saida-de-policiais.

[vii] LIPSCOMB, Benjamin J. B. The women are up to something: how Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch revolutionized ethics. Oxford: Oxford University Press, 2022.

[viii] Ibid., p. 156-157.

[ix] ANSCOMBE, G. E. M. Modern moral philosophy. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 31-33.

[x] ANSCOMBE, G. E. M. War and murder. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 52-53.

[xi] Ibid., p. 54.

[xii] LIPSCOMB, Benjamin J. B. The women are up to something: how Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch revolutionized ethics. Oxford: Oxford University Press, 2022, p. 158-159.

[xiii] ANSCOMBE, G. E. M. War and murder. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 58.

[xiv] Ibid., p. 59.

[xv] Agradeço aos comentários críticos de Caio Tolentino e Gilberto Morbach a uma versão provisória desse texto.

12
Ago23

Operações policiais e homicídio - parte 2

Talis Andrade
 
A ação no Alemão deixou 19 mortos, se igualando a outra registrada na mesma comunidade em 2007 - Mauro Pimentel/ AFP
 

 

por Martin Magnus Petiz

A Terra É Redonda

 

2.

No filme Oppenheimer (2023), o diretor Christopher Nolan mostra uma tragédia em dois atos. No primeiro ato, ele mostra como o grande físico J. Robert Oppenheimer (1904-1967) coordena a construção da bomba atômica pelos EUA em circunstâncias desfavoráveis – os nazistas estavam dezoito meses à frente nas pesquisas, diz ele quando se inicia o Projeto Manhattan –, com o objetivo de impedir que o nazismo alcançasse tamanho poderio antes dos Aliados. O físico acreditava que, uma vez obtida a bomba pelos Aliados, os nazistas não usariam a bomba mesmo se conseguissem produzi-la, e teriam assim o seu poderio contido.

No segundo ato, Christopher Nolan mostra a grande angústia gerada no físico diante do uso da bomba no Japão, que gerou cerca de 110 mil mortes, somando Hiroshima e Nagasaki – civis, em sua grande maioria. O filme retrata como os conselheiros do Presidente Henry Truman (1884-1972) escolheram as cidades tendo conhecimento do alcance absurdo da bomba. O risco de se causar a morte em massa de civis é ponderado com considerações práticas sobre o custo de se manter a guerra. Uma invasão ao Japão provavelmente seria muito custosa em número de baixas estadunidenses, as quais poderiam ser evitadas com o uso da bomba. Oppenheimer estava nesse conselho, e deu aval ao seu lançamento.

O filme se encerra com a constatação de Oppenheimer de que teria contribuído para um possível fim do mundo via guerra nuclear – afinal, começava a Guerra Fria. Em certo momento, Truman recebe Oppenheimer na Casa Branca, e tenta o aliviar da culpa pela catástrofe atômica; ou melhor, Truman confessa a sua culpa: “ninguém se lembrará de quem fez a bomba; eu lancei a bomba [sobre os civis japoneses]”.

A confissão de Truman não apaga a culpa de Oppenheimer, que marca o filme até o seu belo diálogo com Einstein na cena final sobre o poder destrutivo que colaborou para construir por meio da física; mas faz justiça a Elizabeth Anscombe (ou G.E.M. Anscombe) (1919-2001), filósofa de Oxford e professora de filosofia em Cambridge (1970-1986) que marcou o cenário da filosofia analítica de língua inglesa na década de 1950. A sua fascinante biografia – pessoal e intelectual, dado que Anscombe era também uma das herdeiras intelectuais de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), talvez o maior filósofo do século XX, tendo colaborado para publicar o seu testamento literário – foi retomada em livro recente do historiador da filosofia Benjamin J.B. Lipscomb.[vii]

No livro, o autor narra o protesto de Anscombe contra a concessão do título de Doutor Honoris Causa a Truman pela Universidade de Oxford em 1956. O título foi concedido contra pouquíssima oposição – apenas Anscombe e as filósofas Iris Murdoch (1919-1999) e Philippa Foot (1920-2010) (junto do seu marido), co-protagonistas do livro, votaram contra. Anscombe ficou furiosa: seus colegas estariam admitindo que a morte intencional e deliberada de civis pelo Estado se justifica de acordo com a finalidade que se almejar com tal ação.[viii]

Anscombe foi uma grande crítica do que chamou de “consequencialismo”: a teoria segundo a qual toda ação é boa desde que suas consequências sejam boas. Segundo Anscombe, tal posição era perniciosa por justificar literalmente qualquer coisa. Não faria sentido, assim, sequer afirmar que “matar inocentes é um ato injusto” em si mesmo.[ix] Se matar inocentes implicasse no fim de uma guerra justa e cara, então a ação de lançar uma bomba atômica sob centenas de milhares de civis se justificaria.

Anscombe era uma católica ferrenha, mas não era uma pacifista. O seu texto teórico de reação à nomeação de Truman foi “War and murder”, de 1957. Nele, Anscombe afirmava considerar óbvio que a sociedade moderna ocidental é menos selvagem com o uso da força pelo Estado do que seria sem tal uso. A sociedade sempre conta com agentes recalcitrantes que não respeitam o direito de modo algum e demandam a intervenção do direito penal. E nem sempre é possível parar os recalcitrantes antes de se chegar ao ponto do uso da violência. Há casos em que a guerra e o estado de necessidade justificam a morte do outro. A grande questão é saber quem e quando se está justificado o uso da força nesse nível. Na guerra, o poder de matar é justificado ao extremo, e o risco de se matar inocentes também se maximiza.[x]

Outra doutrina que Anscombe atacou no campo da filosofia da prática era a “doutrina do duplo efeito”, que era uma implicação da teoria moral do consequencialismo. Ela dita que apenas as consequências previstas pelo agente poderiam lhe ser imputadas para fins de responsabilidade e descrição de uma ação. Para Anscombe, essa doutrina seria absurda: ninguém pode empurrar alguém de um penhasco sem a intenção de matar a pessoa apenas porque “o pensamento não lhe ocorreu.” No ato de homicídio, Anscombe defendia que se incluísse na esfera de aplicação do conceito todo caso de morte causada a inocentes sob circunstâncias que poderiam ser previstas por um agente racional naquelas condições[xi], o que lembra o nosso instituto de direito penal do dolo eventual.

Com base na rejeição dessas teses consideradas por Anscombe como “corruptoras”[xii], ela rechaçou completamente a ação dos Aliados de “obliterar cidades” inteiras para vencer a 2ª Guerra.[xiii] As pessoas cuja mera existência e atividade se dá no interior de um Estado considerado “não-inocente” em uma guerra não justifica a sua morte indiscriminada, mesmo se a guerra for justa. Essas pessoas são inocentes e seria assassinato matá-las, e não um exercício justo da guerra.

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