Operações policiais e homicídio - parte 3
por Martin Magnus Petiz
3.
Anscombe afirmava ter conhecido um “garoto católico” que ficou estarrecido com a afirmação de que civis inocentes foram mortos em Hiroshima e Nagasaki pela bomba por “um acidente.”[xiv] No Brasil, temos a constante sensação de que as populações marginalizadas continuam sofrendo “acidentes” análogos em operações policiais nos grandes centros. A morte de civis por uma bomba atômica é um “efeito colateral” de uma guerra tanto quanto a tortura e o assassinato premeditado de inocentes o são.
Sob o pretexto da “guerra ao tráfico de drogas”, operações policiais homéricas como a Operação Escudo são levadas a cabo todos os meses no país, com alto custo de vidas – para a polícia e para as comunidades. As constantes mortes de pessoas pobres e negras nessas operações deveriam ser abarcadas sob a presunção de que o Estado é responsável por homicídio sempre que não puder justificar a ameaça iminente total de morte do policial sem o uso da violência, sobretudo agora que há disponível a tecnologia das câmeras nas fardas.
Obliterar uma cidade inteira com a arma mais destrutiva construída até 1945 pelo ser humano era definitivamente um caso de homicídio – ou de guerra injusta. Operações policiais têm de ser analisadas caso a caso, mas o princípio geral a ser aplicado na sua avaliação (pressupondo que o combate ao tráfico é uma “guerra justa”) deve ser o mesmo que Anscombe delimitou para julgar as ações dos EUA na 2ª Guerra Mundial, por uma questão de justiça: mesmo se for possível legitimar o uso da força com um fim legítimo de garantia da segurança pública, esse fim não justifica qualquer ação policial, e as circunstâncias razoavelmente previsíveis pelo Estado têm de ser levadas em conta na responsabilização dos agentes policiais.
Afinal, a presunção de inocência e o princípio penal da legalidade são questões de justiça, cujo respeito confere racionalidade à aplicação do direito. Sem isso, a autoridade jurídica degenera na imposição da mera força bruta, conduta típica de Estados policialescos e totalitários. [xv]
[i] 16 mortos em 6 dias: o que aconteceu na operação policial no Guarujá. BBC News Brasil, 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2x54ynjzx4o
[ii] MONCAU, Gabriela. Chacina no Guarujá reforça papel da polícia no genocídio negro, afirmam pesquisadores. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2023/08/03/chacina-no-guaruja-reforca-papel-da-policia-no-genocidio-negro-afirmam-pesquisadores
[iii] Ver HART, H.L.A. Prolegomenon to the principles of punishment. In: HART, H.L.A. Punishment and responsibility: essays in the philosophy of law. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 4 e ss.
[iv] RAWLS, John. Two concepts of rules. The Philosophical Review, v. 64, n. 1, p. 3-32, 1955, p. 11-12.
[v] Ibid., p. 6-7.
[vi] “Cláudia* chegou ao protesto [contra as mortes na Operação no Guarujá] poucas horas depois de enterrar seu tio, morto pela PM na última sexta (28). Evandro da Silva Belém, conhecido na quebrada como ‘Meu bom’, tinha 35 anos. Segundo sua sobrinha, ele estava recolhendo entulho quando policiais chegaram. Alguns saíram correndo. Ele não. ‘Ele não correu porque não devia nada. Arrastaram para um beco e mataram. Ele deixou duas filhas’, contou Cláudia, mostrando o braço arrepiado ao falar do tio. ‘Quer dizer que porque a gente é pobre, tem que ser tratado desse jeito?’, se indigna. ‘Não é operação, é opressão’, resume.” MONCAU, Gabriela. ‘É vingança’: moradores do Guarujá e movimentos sociais denunciam execuções e pedem saída de policiais. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/02/e-vinganca-moradores-do-guaruja-e-movimentos-sociais-denunciam-execucoes-e-pedem-saida-de-policiais.
[vii] LIPSCOMB, Benjamin J. B. The women are up to something: how Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch revolutionized ethics. Oxford: Oxford University Press, 2022.
[viii] Ibid., p. 156-157.
[ix] ANSCOMBE, G. E. M. Modern moral philosophy. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 31-33.
[x] ANSCOMBE, G. E. M. War and murder. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 52-53.
[xi] Ibid., p. 54.
[xii] LIPSCOMB, Benjamin J. B. The women are up to something: how Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley, and Iris Murdoch revolutionized ethics. Oxford: Oxford University Press, 2022, p. 158-159.
[xiii] ANSCOMBE, G. E. M. War and murder. In: ANSCOMBE, G. E. M. (Ed.). The collected philosophical papers of G. E. M. Anscombe. Vol. 3: Ethics, religion and politics. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981, p. 58.
[xiv] Ibid., p. 59.
[xv] Agradeço aos comentários críticos de Caio Tolentino e Gilberto Morbach a uma versão provisória desse texto.