As mulheres venceram o Preconceito Futebol Clube. Mais uma vitória histórica, porém incompleta. Medindo a desigualdade com o termômetro financeiro vale lembrar, segundo testemunho da ex-atacante da nossa seleção, Roseli, que na primeira edição da modalidade, em 1991, as convocadas ficavam sem receber. No relato bilionário da Forbes, persiste a desigualdade: Alex Morgan (San Diego Wave FC) e Megan Rapinoe (SeattleReign FC) recebem cada uma os maiores salários do futebol feminino US$ 5,7 milhões por ano e Cristiano Ronaldo(Al-Nassr) US$ 136 milhões.
Vão continuar vencendo a mais antiga, persistente e institucionalizada discriminação da história: a opressão masculina.
No Brasil, um tal José Fuzeira, em maio de 1940, escreveu uma carta pública à equipe ao governo Vargas alertando para os graves prejuízos provocados pela prática do futebol à saúde das mulheres. Parece incrível, mas o alerta idiota gerou o Decreto-Lei 3199/1941 da era Vargas e proibiu as mulheres de praticarem esportes que não fossem “adequados a sua natureza”. Revogado em 1979, o futebol feminino foi regulamentado em 1983.
Nos jogos da VIII Copa do mundo, cada gol transcende emoções: é o momento da celebração que confirma mais um passo na libertação feminina para o pleno exercício do papel social da mulher.
No futebol, o espaço se mostrava uma alternativa aparentemente inacessível à capacidade feminina de jogar e jogar em alto nível por conta de dois preconceitos: o estrutural, as jogadas ríspidas pareciam contrariar os atributos da docilidade e da leveza a partir da advertência que “futebol é para macho, deixa de frescura”; e o funcional, desenvolver habilidades com a relação conceber/executar o passe, o drible, a caneta, o rabo de vaca, o chapéu, a ginga, o bate-pronto, jogadas variadas decorrentes de uma intimidade com a bola estranha às aptidões da mulher.
Completo engano. O registro binômio bola/boneca que dividia a felicidade do menino e da menina não significava um hábito insuperável. O mundo mudou. Os estudiosos, pesquisadores e lideranças esclarecidas apontaram novos padrões de comportamento.
Neste sentido, o livro, AS MULHERES NO UNIVERSO DO FUTEBOL BRASILEIRO (organizado por Cláudia Samuel Kessler, Leda Maria Costa e Mariane da Silva Pisane – Editora UFSM SANTA MARIA, RS, BRASIL, 2020), composto por 17 textos acadêmicos multidisciplinares e uma entrevista, ilumina novas realidades.
Um dos textos que mais despertou minha curiosidade revelou, entre outras características, a resistência heroica de meninas nascidas e criadas no interior da Bahia, cidade de Jequié. Venceram a supremacia machista quando se dedicaram à recreação das “babas”, equivalente do “baianês” à “pelada” dos moleques brasileiros.
A história é longa (década de 70), um quase romance do vigor feminino aliado ao afeto de homens sensíveis que acolheram as meninas maliciosamente chamadas de “macho-feme”.
A então pacata Jequié foi um dos berços do futebol feminino no Brasil. Os personagens fundamentais que brincavam de correr atrás da bola, vibrar com o gol e maldizer a derrota prenunciaram o fenômeno mundial chamada Marta.
O pálio protetor e incentivador foi José Sampaio que formou um time de meninas (ele era pai de cinco filhos homens) e, dentre elas, cabe destacar Maria da Conceição Araújo, a Conça, nascida em Itapitanga, desde bebê morou em Jequié e foi uma das pioneiras em ocupar os terrenos baldios para as “babas”, tendo como companheiras Maria Neide Cruz Sampaio, Suely Morbeck Ribeiro, Nara Rubia Muniz Chaves Ribeiro, a Nara, numero 10 do time e se autodefinia “driblava pra caramba”.
“Jogadoras desbravadoras” e tantas outras que, submetida aos padrões preconceituosos, cumpriram um notável papel de abrir caminhos que desmentiram incapacidade feminina genética de se tornar uma craque da bola.
Nós brasileiro, por seis vezes, tivemos a alagoana Marta Vieira eleita a melhor jogadora do mundo, despedindo-se dos gramados a atual Copa do Mundo.
Merece nossa homenagem e gratidão. Em 04/10/07, encantado com estilo das jogadoras e admirador de Marta, publiquei um artigo em sua homenagem, agora repetido com inspiração cabralina: “Marta nasceu para ‘uma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de embocada antes dos vinte, de fome um pouco por dia’”.
Marta contrariou o destino. Tem a resistência do mineral. Foi educada pela pedra, adquiriu a leveza da flor, a velocidade mercurial dos pés alados e transformou o corpo franzino na funda de David.
Marta fez história como artista e líder de uma revolução que está mudando o mundo para um lugar em que a união, a solidariedade e a coragem sejam os valores de bem viver e saber conviver. O placar não importa.
As mulheres lutaram bravamente e assumiram um protagonismo relevante na sociedade. Na política, se afirmam progressivamente
por Gustavo Krause
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Os antigos vazios urbanos do Recife eram os campos da molecada: espaço de lutas renhidas entre os times de ruas e bairros. Prevaleciam as regras do “bocão”, mas respeitavam a bandeira branca.
Uma entrada mais violenta tinha como sentença: “Futebol é jogo pra homem”. Grave engano. Não passava, de fato, pela minha cabeça que os mais simples fundamentos do futebol (matar a bola no peito, driblar, a caneta, ou seja, passar a bola entre as pernas dos adversários, o voleio, a bicicleta e por aí vai) fossem assimilados e executados com perfeição.
Marta, a franzina alagoana, fez tudo e bem-feito. Ícone do futebol feminino foi eleita por, seis vezes, a melhor jogadora do mundo. Tudo sem o menor apoio dos machos alfas da CBF. Dentro e fora do campo, lutaram no Brasil, no mundo e, hoje, são protagonistas respeitáveis e valiosas no mercado da bola.
Esta lembrança me veio à cabeça ao escutar uma aula sobre Hannah Arendt em que a professora destacou a tímida presença da mulher na longa da história da Filosofia, situação que permanece até os nossos dias.
Não é de estranhar: o berço da Filosofia, a Grécia, excluiu e amordaçou a mulher no mais essencial exercício do ser: pensar. Restavam a submissão, o espaço doméstico e a servidão sexual.
Silêncio era virtude; pensar, pecado mortal. Começou a ser pago por Hipatia de Alexandria, primeira filósofa (lógica e matemática), assassinada, em 415 por uma horda de cristãos.
Pensar diferente das ideias dominantes era fatal. Galileu abjurou o heliocentrismo. Escapou das fogueiras que era o destino implacável das “heresias” femininas.
Corajosamente, as mulheres não se intimidaram, lutaram e, hoje, ocupam, com destaque, carreiras profissionais, inimagináveis para a aversão misógina.
Recentemente, o livro de Wolfram Eilenberg (Todavia, 2022), “As Visionárias”, aborda a vida de quatro grandes mulheres, de modo leve e fluente, que, no conjunto, sintetiza a capacidade de transformar o cativeiro feminino e revelar o destemor pessoal e intelectual de romper as mais espessas barreiras da libertação.
Em comum, carregavam “graves” pecados: eram mulheres, judias (á exceção de Simone de Beauvoir), intelectuais, contemporâneas ou vítimas, dos tempos sombrios das guerras mundiais, com o foco na década 1933-1943.
De Beauvoir (1908-1986), autora de “O Segundo Sexo”, abriu as comportas do pensamento sobre o ego feminino e sua construção social. A partir dela, o tema da sexualidade segue crescentemente desafiador. Estabeleceu com o existencialista, Sartre, uma relação aberta e liberta: o amor necessário era o que os ligavava; o amor contingente era o laço das relações circunstanciais e fugazes.
Simone Weil (1909-1943), um espírito fraterno no frágil e debilidado corpo enfermiço: intelectualmente precoce; fervorosa defensora da utopia comunista, abominou os crimes stalinistas e aproximou-se de Trotsky; tentou convencer, sem sucesso, o comando francês para atuar no front da guerra como enfermeira ou paraquedista. Sob inspiração de profundas convicções religiosas e enorme produtividade intelectual, escreveu o memorável ensaio sobre a existência humana “O enraizamento” e a destruição da guerra sobre indivíduos e nações. Subnutrida, faleceu, tuberculosa, aos 34 anos.
Ayn Rand, judia-russa (1905-1982), deixou seu país de origem, sempre fugindo do que considerava uma tragédia: a submissão do indivíduo ao coletivo estatal e “ideal”. Em 1926, chega em Chicago. O seu pensamento se estrutura sobre a razão e os fatos. Polêmica, argumentava em favor do egoísmo ético e rejeitava firmemente o altruísmo como enobrecimento do autosacrifício, em favor de um coletivo sagrado pela propaganda e a minoria, um lixo. Construiu um sistema filosófico, chamado “Objetivismo”. E uma densa obra, “A Revolta de Atlas”. E “A Nascente”, virou filme.
Hannah Arendt (1916-1975) é uma das maiores filosófas e pensadoras do século XX. Mulher admirável. É dela a expressão “Banalidade do Mal” ao fazer a notável cobertura jornalística e reflexão filosófica sobre o julgamento de Adolf Eichmann, o monstro de Nuremberg. Mal compreendida, despertou a ira de parte da comunidade judaica e dos sionistas. Arendt, além do conjunto da obra, jamais foi superada na dimensão e compreensão das “Origens do Totalitarismo”, título do livro, esgotado em 2017, dado ao aumento de interesse no assunto quando Trump assumia a presidência dos EUA. Sob a desumanidade das guerras, Hannah sentiu na própria pele os efeitos do que significa a agonia de respirar em meio às referências destruídas.
Ainda não superamos o preconceito e, mais profundamente, a misoginia. Permanecem sutilmente. Os quatro exemplos demonstram que o mundo seria mais humano se houvesse harmonia social entre os Gêneros.