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O CORRESPONDENTE

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O CORRESPONDENTE

13
Fev23

'O brasileiro fala tupi o dia inteiro sem saber'

Talis Andrade
 
 
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Cidades, fauna, flora e cotidiano: o Tupi está em tudo

 

por Jamille Bastos /BBC News

Se você já falou para alguém que estava na pindaíba no final do mês ou que em determinado dia acordou um pouco jururu, esteve falando tupi e talvez não saiba.

Muito do que se fala hoje é herança de uma língua chamada geral, ou brasílica, que até o final do século 18 era a mais falada no território brasileiro, bem à frente do português.

A relação dos brasileiros com essa língua geral, que tinha origem no tupi e foi mapeada gramaticalmente pelos jesuítas, foi cortada à força quando a equipe do Marquês de Pombal a chamou de demoníaca em documentos oficiais de 1758, proibindo seu uso em todo o território.

Mas pouco mais de 200 anos não foram capazes de apagar a rica cultura das linguagens originárias brasileiras, que se mantêm presentes no português moderno e são alvo de uma luta indígena para a manutenção delas entre o seu povo.

Ao cruzar a fronteira com o Brasil pela primeira vez de carro, a paraguaia Liz Benitez diz que tomou um susto quando percebeu que, em todas as placas, ela lia nomes de lugares em tupi.

Liz é professora de guarani, uma língua derivada do tupi que é falada pela maior parte da população em seu país e reconhecida desde 1992 como língua oficial do Paraguai, juntamente com o espanhol.

“Eu me surpreendi que o tupi fosse tão nativo do Brasil. Desde a primeira cidade em que entrei, Foz do Iguaçu (fruto da junção do fonema ‘Y’, que significa rio, com a palavra ‘guaçu’, que significa grande), até por exemplo Ponta Porã (fruto da junção das palavras Ponta e ‘Porã’, que significa bonita). Eu via nossas línguas originárias em tudo”, diz.

Assim como Liz, que montou uma página no Instagram chamada Dicas de Guarani, o estudante de filosofia Matheus da Silva, é um apaixonado por descobrir a origem de palavras. Ele também criou a conta de Instagram Tupinizando para compartilhar com seus compatriotas brasileiros suas descobertas enquanto estudava tupi.

O vídeo de maior sucesso, que já foi visto por mais de 250 mil pessoas, mostra o significado dos nomes de cinco estados brasileiros que derivam do tupi.

“Pernambuco é o meu preferido em termos de sonoridade e significa ´fenda do mar´, em referência aos recifes presentes naquela área”, conta.

Matheus revela ainda que Paraná (mar ou rio muito grande), Paraíba (rio ruim), Sergipe (no rio dos siris) e Tocantins (bico de tucano) são todos exemplos que vêm do tupi e que mostram uma das características mais apreciadas nessa língua por quem a estuda: o seu caráter descritivo na hora de criar novas palavras.

A palavra pipoca (junção de ‘pira’, que significa ‘pele’ com ‘poca’, que significa ‘arrebentar’), por exemplo, descreve exatamente o que acontece com o milho quando é aquecido: sua pele arrebenta.

O mesmo vale para cutucar, originária de "kutuk", que significa furar e que, segundo Liz, até hoje é usada nas manchetes de jornais do Paraguai para descrever crimes à faca.

Muito da nossa fauna e flora também tem nomes que vieram do tupi. Alguns dos casos mais curiosos vêm de palavras que tiveram seus significados em tupi adotados em outras línguas, mas não vingaram no Brasil.

É o caso de ananas, que significa fruta excelente e foi adotado no francês pra definir abacaxi ou de jaguar, que é a palavra usada em inglês para definir o que chamamos de onça.

Para além da luxuosa marca de automóveis, o que não faltam são outras marcas no mercado brasileiro que têm suas origens no tupi.

Piracanjuba (peixe da cabeça amarela), mococa (casa do mocó, um roedor da Caatinga) e catupiry (muito bom) são apenas algumas delas.

Como Matheus relata ter descoberto desde que começou a estudar tupi antigo: “o brasileiro fala tupi o dia inteiro sem saber”

 

A mortandade progressiva das línguas originárias

 

Apesar do tupi antigo ser parte importante do português moderno, a língua foi deixando de ser falada após a proibição de 1758 e acabou sendo considerada morta no início do século 20.

Além dos brasileiros urbanos em geral, que perderam de vez essa conexão com suas origens, boa parte das comunidades indígenas hoje têm apenas o português como língua nativa. E esse processo de apagamento não parou no passado.

“Dentro de um idioma, toda uma visão de mundo é construída. Ao tentar destruir (a língua geral) tentava-se apagar os resquícios do que os europeus chamavam de barbárie, mas que na verdade era uma riqueza cultural incompreendida”, relata o indígena potiguara e professor de tupi Romildo Araújo.

Segundo ele, devido à violência desse processo, muitos conhecimentos desapareceram e continuam desaparecendo à medida que “a colonização avança”.

“Devido ao avanço em terras indígenas continua havendo esse processo em que os indígenas vão perdendo não só o meio ambiente, mas as formas de reprodução da sua cultura. Se não houver políticas de Estado que impeçam esse processo, aquilo que aconteceu lá no século 18 pode acontecer com os nossos povos também no século 21”, diz.

Romildo faz parte de um grupo de indígenas que tentam revitalizar as línguas originárias em suas comunidades.

Ele dá aula de tupi para crianças, adolescentes e adultos em uma escola estadual indígena do município de Marcação, na Paraíba, e diz que existem meios para inserir línguas originárias no currículo.

Segundo Romildo, a comunidade indígena se preocupa em cuidar do seu idioma e em criar meios para que ele se mantenha vivo ou seja fortalecido, mas precisa de ajuda.

“Isso envolve a participação do Estado. Ele pode ser responsável tanto pela preservação quanto pelo desaparecimento dos nossos idiomas. É um direito do povo indígena ter acesso a sua cultura, que foi suprimida pelo processo colonial”, diz ele.

“Esse processo (de desaparecimento dos idiomas) pode ser revertido através da formação de professores e contratação de professores indígenas e da criação dessas disciplinas em escolas indígenas. ONGs e universidades podem desempenhar ações como criação de dicionários, gramáticas, pesquisas, coletas e compartilhamento de dados referentes aos idiomas”, sugere.

No Paraguai, a inclusão da alfabetização em guarani no ensino formal a partir de 1994 foi um marco importante.

“Aqui o colonialismo não deu conta do apagamento da língua, e por isso o Paraguai é um fenômeno muito interessante que é estudado por pesquisadores. O guarani é falado em todo o país por indígenas e não indígenas”, conta Liz Benitez.

A professora considera que a reforma dos anos 1990, que reconheceu a língua como oficial do país, foi importante ao declarar que o guarani é tão importante quanto o espanhol.

Outro ponto importante, em sua opinião, foi a consequente aproximação da população com suas origens: “o guarani é a língua da privacidade, da família, e conseguir entender as histórias da sua avó com certeza te aproxima dos seus ancestrais”, acrescenta.

 

 
 

Década Internacional das Línguas Indígenas

 

 

O problema do desaparecimento das línguas originárias é tão grave que fez a ONU declarar, em 2022, a Década Internacional das Línguas Indígenas.

“Um ano não é suficiente para haver mudanças efetivas, para que mais línguas indígenas sejam reconhecidas, revitalizadas e mais utilizadas. Um período de dez anos parece ser mais adequado para criar uma mudança de longo prazo, para permitir que as gerações mais jovens usem suas línguas indígenas”, diz Jaco Du Toit, chefe da seção de Acesso Universal à Informação na Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), órgão que coordena as ações da iniciativa.

Jaco explica que, quando se fala em preservação de línguas indígenas não existe um só caminho.

“Existe uma gama muito ampla de campos em que precisamos intervir, vai da educação ao empoderamento digital, da saúde à Justiça, da cultura à igualdade de gênero, precisamos de uma abordagem muito holística quando olhamos para a década”, detalha.

“Os governos precisam estar envolvidos no processo, a sociedade civil e o setor privado também são importantes, mas os agentes mais significativos e que precisam sempre fazer parte do processo são as pessoas indígenas.”

Adauto Candido Soares, que é coordenador do setor de Comunicação e Informação da UNESCO no Brasil, considera a Funai como o parceiro mais estratégico nesse processo.

“Nós temos uma parceria com a Funai, que administra o Museu do Índio e nesse espaço eles têm uma base de dados enorme com gramáticas, publicações, gravações e documentos com relação às línguas indígenas”, revela Adauto, que diz ver no governo atual uma chance de avançar mais na questão.

O professor Romildo lembra que, enquanto ainda não existem muitas políticas públicas voltadas para resolver a questão do desaparecimento das línguas indígenas, a Funai é realmente uma parceira-chave no resgate dessa cultura.

“Estamos esperando para os os próximos quatro anos da Funai uma maior contribuição nessa parte de resgate e fortalecimento da linguagens indígenas”, diz.

Como um exemplo de como a iniciativa privada pode ajudar, Adauto cita o caso da Motorola.

Em parceria com a Unesco, a empresa de telefonia anunciou em dezembro, na abertura da Década Internacional das Línguas Indígenas, em Paris, que adicionou duas novas línguas aos seus aparelhos: o kaingang, língua de uma etnia indígena numerosa que vive no Sul do Brasil e o nheengatu — variação da língua geral nascida na Amazônia que, diferentemente do que aconteceu no resto do país, não morreu e é tão falada até hoje que foi considerada a língua oficial dos municípios São Gabriel da Cachoeira (AM) e Monsenhor Tabosa (CE).

“Estamos até buscando uma parceria com a Anatel, para fazer com que essas línguas possam estar também nos outros fabricantes de celulares. Eles gostaram muito da iniciativa, e a gente está tentando articular com eles. A Motorola disponibilizou, inclusive, toda a base de dados aberta para que as outras empresas possam utilizar e colocar em seus celulares essas duas línguas”, revela o coordenador.

Adauto diz que esse é um reconhecimento importante para as línguas indígenas, mas que essa não é a principal conquista dessa ação.

”Nós temos um bom número de falantes de línguas indígenas no território brasileiro, essas pessoas não podem ser excluídas digitalmente”, declara, exemplificando um problema que a simples adição dessas línguas a aparelhos celulares pode ajudar a resolver.

 
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15
Mai21

“A linguagem inclusiva irá prevalecer”

Talis Andrade

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Em entrevista, o mestre em Linguística pela Unicamp Gustavo Conde analisa que a adoção de uma linguagem inclusiva é um “processo que nos torna mais fortes enquanto sociedade e enquanto sujeitos”

Em um dos filmes mais importantes produzidos por Hollywood, na década de 1990, Malcolm X (Spike Lee, 1992), os atores Denzel Washington e Albert Hall interpretam a que talvez seja a cena mais significativa do filme: a que condensa a biografia do ativista, que marcaria a história política contemporânea. Nessa cena, o personagem Baines, interpretado por Hall, coloca em jogo a importância da ordem simbólica na sustentação de um sistema racista que distorce a percepção que o negro tem de si mesmo. Para trazer à tona a ideia, ele faz Malcolm ler a definição de negro que aparece no dicionário da prisão. No dicionário, “negro” aparece associado a conceitos como trevas, malvado, perverso e sujo, entre outras associações pejorativas. Malcolm percebe que existe um plano invisível, ou imaterial, no qual o racismo se manifesta de forma plenamente impune: no plano da construção de sentido. Um território pouco explorado, e por consequência, atravessado pela subjetividade. O militante intelectual, que logo se tornaria a conhecida figura política, inicia sua viagem de desconstrução do mundo branco, decodificando seu próprio ato de fala. Na época do lançamento do longa-metragem, a epifania chegou para todo ocidente: o racismo está no ato de fala. O cinema ajudou a popularizar a luta histórica do movimento negro, que teve Malcolm X como um dos seus exponentes mais proeminentes nas décadas de 1950 e 1960.

É logo por esses anos que surgem as primeiras críticas feministas para denunciar as marcas masculinas da língua espanhola. A linguagem é apresentada como “neutra” ao mesmo tempo que reúne referências sucessivas ao homem e nega às mulheres. Quando as feministas apontaram para “todos”, a fim de questionar onde as mulheres estavam, elas avançaram em direção a uma compreensão da linguagem como tecnologia de governança de gênero. Até a atualidade, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) orienta a utilização de expressões inclusivas e a incorporar o feminino aos genéricos masculinos.

Nos dias de hoje, essa discussão vê-se revitalizada pela crítica queer e trans dos essencialismos. Aqui, nem uma marcação de gênero, nem duas – nem todas são suficientes para uma “linguagem inclusiva”. Tais usos alertam que a linguagem é finita e reducionista em suas marcações masculinas ou em sua dose de visibilidade feminina. O questionamento tenta trazer para a cena variações irredutíveis ao entendimento cisheterocentrado. Quando utilizamos o “todes” nos distanciamos de uma presunção do mundo dividido em “homens” e “mulheres”. Essa aposta política não foi compreendida por aqueles que a criticam como uma nova forma de invisibilidade das mulheres. Pelo contrário, não se trata de colocar a transvisibilidade antes da das mulheres cisgênero, e sim de assumir a impossibilidade de conter, pela linguagem, as múltiplas experiências de gênero.

 

Juan Manuel P. Domínguez entrevista Gustavo Conde

 

Um dos intelectuais mais importantes do século XX, Antonio Gramsci, desenvolveu como ninguém antes o conceito de “hegemonia cultural”, que revela a importância do plano simbólico para a consolidação de um poder dominante dentro de um sistema social. Até que ponto você vê a língua fortalecendo uma hegemonia de poder em um setor social?

A língua é a tecnologia mais avançada já produzida pelas sociedades humanas. Quando se fala em tecnologia no sentido corrente – redes sociais, algoritmo, nanotecnologia, engenharia, astrofísica, botânica – é preciso ter em mente que uma tecnologia muito mais complexa precede todas estas: a língua humana. Ela possibilita a existência de todos esses campos do conhecimento e, a rigor, é ela quem apresenta o potencial mais devastador – ou restaurador – para mexer no “sistema”, seja ele social, tecnológico ou político. Se o algoritmo colapsar, a vida continua. Se a língua colapsar – a Babel bíblica – a história cessa e os sujeitos se estilhaçam. Em suma, falar da língua com a própria língua é o grande desafio.

Respondendo objetivamente a sua pergunta, a língua não apenas fortalece hegemonias de poder, ela cria essas hegemonias. Um exemplo comum: achar que o estudo formal é a referência máxima no campo do conhecimento e na dimensão intelectual não corresponde à “verdade” mas a um discurso. Este discurso, no entanto, é tratado como verdade e, na dança dos sentidos e das argumentações ad hoc, tem-se a consolidação de uma hegemonia, a “hegemonia do estudo formal”. Não é possível afirmar que o estudo formal seja o grau máximo da performance cognitiva, ou que ele seja superior a outros tipos de manifestação do intelecto humano. As tradições de oralidade presentes na cultura dos povos indígenas são mananciais extraordinários de conhecimento e percepção de mundo. A rigor, poder-se-ia questionar, expandindo a semântica da palavra “formal”: afinal, o que é ser “formal”?

Essa é a engrenagem linguística básica de toda e qualquer disputa por hegemonia social: mobiliza-se uma série de pressupostos, verdadeiros ou não, e defende-se um tipo de prática simbólica-técnica e seus adeptos, numa quase-repetição do que ocorre na difusão das religiões, com diferenças de procedimento quase invisíveis de tão sutis, se contempladas à lupa teórica dos estudos contemporâneos da linguagem. Alguns podem questionar: mas não se trata de “argumentação”? A resposta não é tão simples. Há um conjunto de fatores que “pressionam” e “controlam” o sentido, como a imprensa, os governos, as instituições e, hoje, o algoritmo e as big techs – que instauraram um novo problema para os estudos linguísticos que é a massificação da produção de sentido via interação digital.

 

Em Racismo e linguagem, Virginia Zavala e Michele Back expõem as relações existentes entre linguagem e racismo, algo que já era questionado pelos movimentos antirracistas liderados por Malcolm X, os Black Panters e outros mais. Existem pontos de encontro entre aqueles que buscam uma “neutralização” e a sua “desracialização”?

Neutralização é o que busca a hegemonia branca heteronormativa. O sentido não pode ser neutro porque a sociedade não é neutra. O sistema empurra essa ilusão da neutralidade para sua própria perpetuação. “Desracializar”, a meu ver, é um outro processo, mas pode ser lido de maneira ambígua. De um lado, trata-se, justamente, de tirar as marcas de racismo presentes na língua. De outro, de “apagar” as marcas semântico-gramaticais de racismo. A literatura antirracista parece tratar este verbo majoritariamente na primeira acepção. Eis aí mais uma disputa de sentido que não pode ser ignorada.

Eu diria – para escapar dessa questão específica e ao mesmo tempo tentar respondê-la – que a língua social ainda guarda marcas profundas de racismo, e que talvez esse seja o maior desafio técnico e ético do nosso tempo: É preciso re-formatar a linguagem para que ela não pressione a perpetuação do racismo, do machismo e da transfobia.

Isso implica em mexer, de fato, na questão do gênero gramatical e nas expressões arraigadas, presentes em redações de jornal que destacam um entrevistado, por exemplo, com o sintagma “pesquisador negro”. Por que destacar “pesquisador negro” se não destaco “pesquisador branco”? Nesse sentido, as pautas identitárias são uma resposta espontânea da saturação racializada da atividade linguageira. Muitos intelectuais torcem o nariz para elas sem sequer tentar entender as razões de seu surgimento. Sentem-se desautorizados. E a questão é exatamente esta: eles perderam a autoridade para tratar deste tema, justamente porque estão radicalmente imersos no estudo formal – o que lhes tirou a percepção concreta da realidade social que, ademais, acelerou-se de maneira vertiginosa nos últimos dez anos.

 

Dentro da linguística se estipula que a linguagem é algo como um “produto de um inconsciente coletivo”, que tem um corpo mutante, difícil de regrar. Nesse sentido, todo movimento que pretenda intervir no ato da fala pode chegar a parecer uma frustrada tentativa de “exorcizar” a língua. Porém, cada vez mais vemos que os Estados modernos garantem instituições para resguardar as pessoas de serem discriminadas e injuriadas, que combatem o sexismo ou a discriminação por cor de pele ou gênero. Você acha que a língua pode ter tido mudanças, que algumas sentenças perderam força, algumas palavras viram seu sentido transmutado a partir dessas ações institucionais?

A língua tem seu aspecto selvagem, “indomesticável” como diria Lacan. É exatamente por isso que fomos obrigados ao longo da história a tentar domesticá-la com relativo fracasso – uma vez que a padronização de certas práticas é condição sine qua non para a atividade social. Você não controla a língua, você controla o sentido, e controlar o sentido significa mexer no regime de ocorrência das palavras. Palavras marcadas podem ser banidas, assim como neologismos e novas expressões podem ser adotadas. Esse é o curso natural do avanço civilizatório, que deu um salto violento no século XX, não por acaso, o século de surgimento da linguística moderna – e da consequente organização mais acelerada das ciências humanas e dos campos epistemológicos.

Não é à toa a catástrofe social e linguística que se abateu no Brasil nesses últimos anos. Há um descompasso nítido entre aquilo que foi banido de nossas práticas linguageiras e sociais e sua não aceitação por determinados setores da sociedade. Bolsonaro e sua trupe ainda vivem na ditadura militar racista dos anos 1970. Eles não aceitam que o mundo mudou, não aceitam a democracia (deturpam o sentido de democracia de maneira crassa). Mudanças sempre são traumáticas para a espécie humana, mas é justamente a assombrosa capacidade de adaptação e aperfeiçoamento da espécie que caracteriza sua incidência hegemônica no planeta (falemos também de hegemonia entre as espécies?).

Em tempo e mais uma vez – para responder diretamente à excelente questão: as práticas linguísticas seguirão sendo moldadas de acordo com as necessidades sociais de turno. Aliás, é bom que se diga: sempre foi assim. Desde sempre, setores sociais hegemônicos disseram o que poderia e o que não poderia ser dito – e todo mundo aceitou. A única diferença, agora, é que setores não hegemônicos (negros, mulheres, comunidades LGBTQI+) estão replicando essas formas de controle.

[Em 17 de agosto de 1758, o Marquês de Pombal proibiu o uso da língua geral (indígena) falada no Brasil, e decretou a língua portuguesa como idioma oficial e único, através de um decreto] 

 

Do ponto de vista acadêmico, que inconvenientes pode provocar o avanço da linguagem inclusiva em uma sociedade como o Brasil?

Inconveniente nenhum. A linguagem inclusiva é uma realidade irreversível. A academia terá de entendê-la, absorvê-la e aperfeiçoá-la (quando não, “deturpá-la”, mas isso seria outro debate). A língua e sua prática linguageira correlata moldam, em conjunto, a realidade social que a fundamenta e cerca. Em outras palavras, a língua cria a realidade. Não é, de forma alguma, extravagante dizer isso. Trata-se de uma máxima teórica amplamente aceita por pesquisadores do campo.

A hipótese Sapir-Whorf, que inspirou o filme A chegada, lida diretamente com esse processo de criação de realidade pelas línguas humanas. Nesse sentido, a linguagem, inclusive, tende a produzir uma sociedade e um conjunto de práticas inclusivas – e democráticas. O dilema é similar àquele falso dilema do neoliberalismo, com relação à distribuição de renda: esperar o bolo crescer para, depois, dividir. O mundo já entendeu que não é assim que funciona. É preciso fazer crescer o bolo e ir dividindo ao mesmo tempo, por razões técnicas e éticas. Traduzindo, essas são práticas sociais que devem ser trabalhadas em primeiro lugar para que a linguagem se torne depois, espontaneamente, mais inclusiva. São práticas sociais somadas a práticas de modelação da linguagem, juntas, que irão produzir algum tipo de avanço no que diz respeito à inclusão social e combate à desigualdade. Há uma formulação muito auspiciosa dentro desta espiral de composição mais democrática da sociedade, via intervenções no plano simbólico: a língua passou a fazer parte do processo. Agora, ela é protagonista, geradora de políticas públicas – e não apenas o suporte fragilizado e vulnerável ao domínio do poder retórico hegemônico instalado em parte considerável de setores acadêmicos. A formulação de um novo paradigma foi para as ruas, e isso é muito bom.

 

Alguns linguistas acreditam que já não tem ponto de retorno e que a linguagem inclusiva irá se impor. Qual sua visão sobre o assunto?

Esta questão está, em parte, contemplada na resposta anterior. Eu diria ainda: eu sou um destes linguistas. Há um prazer, um gozo, em repovoar as próprias práticas linguageiras. É maravilhoso deixar de ser machista. É um processo poderoso combater o racismo estrutural que lhe habita o pensamento. Quem combate e vence o próprio racismo passa a ser capaz de realizar qualquer desafio cognitivo e intelectual. Não é, portanto, uma certeza no limiar da lamentação oriunda de nossos fantasmas estruturais do passado, entender que a linguagem inclusiva irá prevalecer. Trata-se de um processo que nos torna mais fortes enquanto sociedade e enquanto sujeitos. Se a tarefa for a perpetuação da espécie – e uma perpetuação que nos signifique como seres gregários e simbióticos e não parasitas virais – estamos no caminho certo.

Entrevista publicada originalmente Le Monde Diplomatique Brasil

 

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