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por Roberto Bueno
A herança dos golpes militares é o sangue que jorra de corpos abertos e segue escorrendo pela memória histórica até que difíceis processos de acordo político e social sejam concretizados, mas não sem que os devidos julgamentos nas barras dos tribunais reconheçam os crimes dos agentes públicos e, finalmente, prestando homenagem às vítimas, a sociedade possa redirecionar energias para o futuro, e não mais manter-se absorta no passado, senão através da viva memória dos que foram excluídos violentamente do convívio. Ao transgredir o pacto civilizacional alavancado pelo peso da insanidade do uso da violência como instrumento político resta interditada qualquer expectativa de futuro.
Sofrer, testemunhar ou resistir aos miseráveis poderosos e sua prática trituradora de corpos e esperanças humanas não é tarefa simples nem destituída de riscos. Nunca foi, nem poderá ser. Rodolfo Walsh (1927-1977) foi admirável intelectual e jornalista argentino, capaz de articular brilhantes textos e arregimentar sua inteligência para resistir ao regime ditatorial militar argentino imposto em 24 de março de 1976, e que se apresentou em sua quadra histórica como grande desafio e que deixou profundas marcas para toda uma geração. Em Walsh sua agudeza recheada de compaixão e solidariedade vieram temperadas pela ousadia para a ação, alguém que exerceu o seu ofício em tempos perigosos, nos quais a imprensa deveria alinhar-se no mesmo sentido que os fuzis apontassem, pois colocar-se contra eles equivalia a assumir a proximidade do fim.
A trajetória intelectual de Walsh entrou com destaque para as mais luminosas páginas da história do jornalismo investigativo argentino – é notável que seu livro “Operação Massacre” (1957) antecipa “A sangue frio” (1966) de Truman Capote – enquanto a de seus carrascos militares para a lista de longos processos criminais, e posterior condenação por crimes de todo o gênero, incluindo sequestro de bebês, tortura, violações, roubo de bens, sequestros e assassinatos em série, algo que, dada a amplitude dos fatos, veio a ser qualificado como crimes de lesa-humanidade, que renderia prisão perpétua a Jorge Rafael Videla. O jornalismo investigativo de Walsh encontraria decisivo momento ao dedicar-se a redigir e publicar notícias que a imprensa sob censura não podia veicular e, assim, informar a população sobre os primeiros desaparecimentos, sequestros e o surgimento de corpos estraçalhados lançados ao mar pelos militares e posteriormente encontrados na costa da Argentina e do Uruguai.
Walsh escreveu último e importante texto publicado no dia 24 de março de 1977. Intitulado “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”, um balanço crítico por ocasião do transcurso do primeiro ano da ditadura militar argentina encabeçada por Videla, secundada por Massera e Agosti. Regime classificado pelo distinto General Balza como violento e criminoso,as altas patentes como Videla traíram o instável regime de “Isabelita” Perón, sem embargo, legitimado constitucionalmente. Assestado o golpe que alguns setores de esquerda não acreditavam que poderia ocorrer, Videla e os seus logo dedicaram-se a organizar e implementar terrorismo de Estado para varrer o país do risco comunista, seguindo orientação similar a processo que iniciara no Brasil em 1964, assim como nos vizinhos Uruguai e o Chile– sob o sanguinário regime de Pinochet desde setembro de 1973 enquanto Perón era eleito em outubro do mesmo ano –, mas também no Paraguai e na Bolívia em suas diversas fases. No dia posterior ao da publicação de sua célebre “Carta aberta”, na esquina de ruas de Buenos Aires – San Juan e Entre Ríos –Walsh foi metralhado à luz do dia pelos sicários do regime militar cujo caráter homicida havia denunciado com todas as letras em sua “Carta aberta” no dia anterior. Walsh declarou fidelidade aos seus princípios mas também certeza e segurança das perseguições que sofreria por parte daqueles que, muitos anos depois, foram julgados e condenados por seus crimes contra a humanidade, dentre os quais Videla e Massera.
No dia em que sua filha María Victoria (Vicki), resistente Montonera, foi cercada juntamente com seus outros quatro companheiros por 150 militares, a opção de todos foi o suicídio antes do que deixar-se apanhar. A resistência lutou com as armas de que dispunha, poucas ante Forças Armadas treinadas, bem armadas e sem limites legais para o enfrentamento. Lutaram com os meios e possibilidades contra o regime político que se orientava e aplicava política econômica que ampliava a escala de suas atrocidades, realidade para a qual o texto de Walsh apontava ao dizer que “debe buscar se no solo la explicación de sus crímenes sino una atrocidade mayor que castiga a millones de seres humanos com la miseria planificada”. A miséria não era, como não continua sendo, uma variável casual em países ricos como a Argentina e o Brasil, mas sim fruto de planejamento para potencializar a concentração de riquezas.
A produção da miséria em países ricos como o Brasil requer efetivo planejamento, e no caso argentino Walsh também identificava uma variável para além da política econômica, a saber, a política sanitária, pois então, como hoje, são reduzidos os orçamentos sob a completa ciência de que são potencializadas as estatísticas de produção da morte, e assim concluía Walsh acusando a Junta Militar argentina: “Como si essas fueran metas deseadas y buscadas, han reducido ustedes el presupuesto de la salud pública a menos de un tercio de los gastos militares, suprimiendo hasta los hospitales gratuitos mientras centenares de médicos, profesionales y técnicos se suman al éxodo provocado por el terror, los bajos sueldos o la «racionalización»”. O propósito de matar era patente, e foi sempre evidente entre militares latino-americanos e os grupos de poder de ultradireita e sua indisfarçável aproximação neonazista.
Era contra este quadro de infâmia e opressão que grupos de resistência se insurgiram, mas em frente à selvageria do sistema era corriqueiro na época que os membros dos grupos resistentes ao regime tivessem em seu poder cápsula de cianeto para dispor da opção de não ter as suas vidas expostas a sofrimentos indescritíveis e escolher, assim, se, quando e como morrer. O grupo montonero com o qual se encontrava Vicki quando deparado com o massivo cerco dos chacais fardados após inexitosa resistência armada optou por colocar fim às suas vidas valendo-se de pistolas antes do que deixar que seus corpos fossem tomados pelos criminosos fardados cuja barbárie praticada nos seus aproximados 500 campos de concentração (“Centros Clandestinos de Detención” [CCD]) logo se tornaram amplamente conhecidos. Eram espaços onde a única regra era a exceção à ordem jurídica nacional. Ali tudo era possível, não havia lei nem sequer Deus, e talvez seja dubitável que o próprio Diabo ousasse adentrar naquele espaço gerido por militares treinados para a tortura e assassinato pelos EUA, “habilidades” também ensinadas aos seus colegas brasileiros, uruguaios, bolivianos, chilenos, paraguaios etc.
Impossibilitado de despedir-se fisicamente, Walsh escreveu emotiva carta a sua filha, ciente de que a sua opção pelo suicídio juntamente aos demais companheiros se devia ao pleno conhecimento do tratamento que era reservado aos aprisionados pelo regime dos criminosos fardados, posto que já corriam múltiplos testemunhos a respeito do que sucedia aos milhares que haviam caído, tratamento que não seria admitido aos prisioneiros de verdadeira guerra como aquela em que intervieram os militares no enfrentamento com a Inglaterra pelas ilhas Malvinas, na qual não se contou sequer um caso próximo de tratamento de militares ingleses como as Forças Armadas argentinas reservaram aos seus próprios cidadãos.
Aos assassinos fardados decorados com altas patentes e baixo caráter que ocupavam posições de mando nas Forças Armadas argentinas durante o regime instaurado em 24 de março de 1976, assim como aos seus “colegas” latino-americanos, não lhes interessava submeter-se a quaisquer convenções internacionais, códigos de honra ou a celebração prática das virtudes militares, e nem sequer a preceitos cristãos. O seu exclusivo dínamo era o sangue vertido de corpos dilacerados, que lhes servia como trágico líquido cujo poder embriagante ocorre tão somente em mentes bárbaras. São estas que decidiram pela aplicação da violência militar sobre objetivos não militares, algo injustificável, criminoso e punível como o mais grave dos delitos, em não menor escala quando perpetrados contra populações civis, e através da aplicação do direito interno quando as vítimas são a sua própria gente.