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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

20
Set22

Nós, sobreviventes do ódio

Talis Andrade

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por Cristina Serra

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Não vamos esquecer das 685 mil covas abertas como feridas na terra, nem da vida que se esvaiu pela falta de oxigênio que o seu governo não providenciou (e você ainda zombou), nem da dor dos que tiveram que ser amarrados por falta de anestésico nos hospitais.

Estão gravadas suas palavras ásperas como pedras: “e daí?”, “gripezinha”, “não sou coveiro”, “país de maricas”. Lembraremos sempre que você tentou manipular o suicídio de um voluntário de testes com a vacina, sabotou as máscaras e o isolamento social, mandou cancelar a compra da Coronavac, riu de tudo isso.

Será preciso lembrar do desespero na fila do osso e da carcaça e de quem revira o lixo para comer, enquanto seus generais compram filé, picanha, bacalhau, salmão, camarão, Viagra e próteses penianas.

Nada de esquecer seus amigos Adriano da Nóbrega e Fabrício Queiroz, os indícios de crime na formação de seu império imobiliário, as rachadinhas, sua ode à ditadura e a torturadores; a liberação das armas que nos matam. A propina cobrada em ouro no MEC, o orçamento secreto, liras, aras, kássios, mendonças, queirogas, damares, pazuellos, salles.

Não esqueceremos a aversão doentia de Paulo Guedes às empregadas domésticas que gostam da Disney e aos porteiros que sonham com seus filhos doutores. No acerto de contas, estarão florestas em brasa, bichos calcinados, agrotóxicos na comida, rios contaminados, Bruno, Dom, Genivaldo, Moise e tantos mais, os rios de sangue no Jacarezinho, na Vila Cruzeiro e no Alemão.

Acesos como tochas em nossas consciências estarão seus planos de golpear a Constituição, as eleições, a democracia e o Estado de Direito, suas ameaças contra cada um de nós que acreditamos num país em que a diarista Ilza, de Itapeva, possa comer sem ser humilhada.

Não haverá sigilo de 100 anos para esconder o seu Brasil de horrores. Você, Jair, não tem direito ao esquecimento. E nós, sobreviventes do vírus do ódio, temos o dever da verdade e da memória.

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29
Jan22

O governo Bolsonaro em 22 frases

Talis Andrade

Cercada de polêmica, a gestão bolsonarista ficou marcada por declarações controversas

O Brasil volta às urnas em 2022 para uma nova eleição presidencial. O presidente Jair Bolsonaro tenta a reeleição, desta vez sob a sigla do Partido Liberal (PL) e em meio a grandes índices de rejeição. A mais recente pesquisa do Datafolha, com 3.666 brasileiros maiores de 16 anos ouvidos entre 13 e 16 de dezembro do ano passado, mostrou que 60% dos eleitores não votariam no atual mandatário. Em outubro, uma mudança nas urnas: sai o 17 do PSL com o qual foi eleito em 2018, entra o 22 da nova sigla, que já elegeu José Alencar como vice de Lula em 2002.

A crise econômica e a condução da pandemia do coronavírus pesam no cenário pessimista no qual transita Bolsonaro, cercado de uma equipe que acumula polêmicas desde a posse. Relembre algumas frases marcantes que ajudam a ilustrar a trajetória do atual governo.

Covid-19

Gripezinha

Dias após as primeiras medidas de restrição contra a Covid-19 terem sido adotadas isoladamente por governadores e prefeitos, o presidente Jair Bolsonaro entrou em rede nacional para criticar a postura dos gestores e pedir volta à normalidade. No mesmo dia, o Comitê Olímpico Internacional (COI) comunicava o adiamento das Olimpíadas de Tóquio,  enquanto a Itália, um dos países mais afetados pela pandemia nos primeiros meses, voltava a acumular mais de 700 mortes diárias.

Em horário nobre, o presidente proferiu palavras interpretadas como um tira-gosto do que seriam suas políticas contra a crise:

Foto: Marcelo Camargo/ABr.

 

No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão. Enquanto estou falando, o mundo busca um tratamento para a doença. O FDA americano e o Hospital Albert Einstein, em SP, buscam a comprovação da eficácia da cloroquina no tratamento do Covid-19.”

Bolsonaro, em rede nacional de televisão.

Embora a tendência é que tenham organismo mais forte, atletas e ex-atletas não são imunes nem estão livres de sofrer consequências da infecção pelo coronavírus, vêm alertando especialistas ao longo da pandemia. O ex-jogador da seleção brasileira de futebol do tetra Claudio Ibraim, conhecido como Branco, foi intubado na UTI com Covid-19 e ficou 12 dias internado. No último dia 24, o ginasta campeão olímpico em Sydney, nos anos 2000, Szilveszter Csollány, morreu vítima da doença.

A cloroquina, desde o início incorporada pela ala política do presidente como a única saída possível da pandemia, já teve sua ineficácia comprovada. O próprio Ministério da Saúde reconheceu a impotência do medicamento para tratar do vírus Sars-Cov-2, embora a ala política da pasta continue insistindo no uso.

Não sou coveiro

A primeira morte pelo coronavírus no Brasil foi comunicada no dia 17 de março, pelo governo de São Paulo. O homem estava internado em um hospital da rede Prevent Senior – mais tarde investigada pela CPI do Senado sob suspeita de ter usado pacientes como cobaias do chamado “tratamento precoce”, com drogas como a hidroxicloroquina e ivermectina, de ineficácia comprovada contra o coronavírus.  

Um mês depois, os casos já haviam fugido do controle – e os óbitos, consequentemente, entravam na curva de ascendência vertiginosa. Estados e municípios começavam a retomar atividades, sem planejamento coordenado pelo governo federal.

Na saída do Palácio do Planalto, Bolsonaro se irritou com a pergunta de um repórter sobre as mais de 300 mortes registrada naquele 20 de abril de 2020.

Foto: José Cruz/Agência Brasil.

Ô, cara, quem fala de… Eu não sou coveiro, tá certo?”

Bolsonaro, em resposta a pergunta de um repórter sobre as 300 mortes registradas em 20 de abril de 2020.

Um dia antes, Bolsonaro havia participado de um ato pró- intervenção militar, que provocou grande aglomeração nos arredores do Quartel-General do Exército.

E daí?

Em 28 de abril de 2020, o Brasil rompe a barreira dos 5 mil mortos. La fora, começava a ser acompanhado com mais atenção por autoridades sanitárias e chefes de Estado. Aliado de primeiro grau de Bolsonaro, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, falou: “Se você olhar os dados, vai ver o que aconteceu, infelizmente, no Brasil”.

Aqui, respondendo à pergunta de um repórter sobre a nova marca de óbitos, o presidente não fingiu sutilezas.

Antônio Cruz/Agência Brasil.

E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.”

Bolsonaro, em resposta a uma pergunta sobre a marca dos 5 mil óbitos.

País de maricas

Durante o lançamento de um programa de turismo, em Brasília, o presidente disse que estava na hora do Brasil “deixar de ser um país de maricas”.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa? […] Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento, mas todos nós vamos morrer um dia.”

Bolsonaro, em 11 de novembro de 2020. No dia, o país chegava a 162,6 mil mortes provocadas pelo coronavírus e caminhava para os meses mais letais da crise.

Mimimi

Quem parecia longe de enfrentar seus problemas era, na verdade, o próprio governo.

O Brasil passava por sua pior fase da pandemia, sem uma política integrada contra o coronavírus, com os pagamentos do auxílio-emergencial suspensos em meio ao crescimento vertiginoso da pobreza, e sem artifícios – e licença – para lidar com tanto luto.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Vocês não ficaram em casa. Não se acovardaram. Temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”

Bolsonaro, em um evento no estado de Goiás, em 4 de março de 2021.

Dois meses antes, em meados de janeiro de 2021, Manaus havia agonizado. A crise provocada pelo colapso do sistema de saúde da capital do Amazonas se converteu no tratado do desespero. Conseguir leito não diminuía as chances de morrer: o oxigênio hospitalar havia se esgotado; cabia aos familiares, se quisessem e pudessem, dar um jeito de abastecer cilindros por conta própria. A média de mortes saltou de 20 para mais de 100 em poucos dias. Há provas de que o Ministério da Saúde havia sido comunicado da iminência do caos, e pouco fez. As fotos das filas de carros funerários e dos corpos empilhados em valas comuns – ali também faltou “vagas” – estamparam capas de jornais nacionais e internacionais. Em abril, o Brasil atingiria o pico de mortes diárias, acima de 4 mil.

Clise mundial

O Brasil conseguiu tornar a pandemia um problema também de ordem diplomática. A China foi o grande alvo, por ter sido onde primeiro foi detectada a circulação do Sars-Cov-2.

Não foi preciso muito para que o governo demonstrasse simpatia extrema à hipótese de que o vírus foi criado em um laboratório do país asiático, comprando o discurso do então presidente Donald Trump, um dos maiores influenciadores da política de Bolsonaro e oponente furioso de Xi Jinping.

À época à frente do Ministério da Educação, Abrahan Weintraub usou um recurso pejorativo para endossar a tese interna do governo.

Foto: Agência Brasil.

Geopolíticamente, quem pode sail foltalecido, em telmos lelativos, dessa clise mundial? Podelia ser o Cebolinha? Quem são os aliados no Blasil do plano infalível do Cebolinha pala dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?”

Abrahan Weintraub, ex-ministro da Educação empostnoTwitter.

A publicação incorporou o detalhe fonético usualmente associado à fala dos chineses a uma ilustração da Turma da Mônica na muralha da China – nos quadrinhos, o personagem Cebolinha também troca o “erre” pelo “ele”.

Opostfoi apagado, mas se acumulou a várias falas acusatórias do governo contra os chineses – incluindo do presidente, de um dos filho dele, Eduardo Bolsonaro, e do ministro da Economia, Paulo Guedes. Os comportamentos geraram uma série de consequências para o Brasil e chegou a influenciar na liberação de insumos para a fabricação da vacina contra a Covid no país.  

Um relatório feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujos resultados foram publicados em março de 2021, não conseguiu concluir a origem do vírus, mas ressalva que a principal hipótese é que a circulação tenha se originado do contágio direto de animal para humano.

Liberdade

Há fatos suficientes para corroborar que o governo de Jair Bolsonaro nunca considerou a vacinação contra a Covid-19 uma política sanitária relevante. O próprio presidente afirma não ter se imunizado, e a decisão de sua equipe de recusar doses de vacina Pfizer suficientes para antecipar a campanha de imunização contra a Covid-19 no Brasil entrou em curso de investigação.

Em diferentes países, a chegada do fim do ano e uma nova variante com maior potencial de contágio, a Ômicron, levou governantes a exigirem o comprovante de vacinação na entrada dos aeroportos e no acesso a locais de uso público, como cinemas e restaurantes. O Brasil resistiu.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado.

Nós queremos ser, sim, o paraíso do turismo mundial. E vamos controlar a saúde, fazer com que a nossa economia volte a gerar emprego e renda. Essa questão da vacinação, como realcei, tem dado certo porque nós respeitamos as liberdades individuais. O presidente falou agora há pouco: ‘às vezes é melhor perder a vida que a liberdade’.”

Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em 7 de dezembro.

A fala foi na esteira da recomendação da Anvisa para que o Brasil também adotasse a medida. Só no fim de dezembro é que uma portaria interministerial implementou a prática por aqui.

Meio ambiente e economia

Passar a boiada

Problemas internos aceleraram a sequência de crises políticas enfrentadas pelo governo Bolsonaro em 2020, já então impactado pela pandemia. Em uma reunião que entrou para a história, veio a declaração mais marcante da passagem de Ricardo Salles pela chefia do Ministério do Meio Ambiente.

Foto: reprodução.

Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos.”

Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, em reunião ministerial.

A frase é da reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, tornada público pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O encontro foi usado pelo ex-juiz Sergio Moro como justificativa da sua saída da equipe ministerial de Bolsonaro. Ele acusou o presidente de tentar interferir na Polícia Federal, e mencionou uma fala do chefe do Executivo, nesta reunião, como prova.

A atual gestão federal tem sido duramente criticada por suas medidas de redução de controle ambiental. Sob o comando de Salles, o Pantanal viveu o maior incêndio da sua história e as áreas de desmatamento da Amazônia voltaram a bater recordes. No primeiro trimestre de 2020 – onde se encaixa a declaração de Salles -, alertas de desmatamento na Amazônia atingiram recorde, e repasses milionários ao fundo de manutenção de projetos de conservação da floresta foram suspensos já no primeiro ano do governo.  

Muita pobreza

Com o novo ministro da pasta ambiental não tem sido diferente. Em seu discurso na conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, em Glasgow, em novembro de 2021, Joaquim Leite relacionou áreas de florestas à falta do que comer.

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.

Onde existe muita floresta também existe muita pobreza.”

Joaquim Leite, ministro do Meio Ambiente.

Precisam comer

A simplificação do problema da fome não é rara no governo Bolsonaro. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já havia traçado a mesma conexão reducionista.

Foto: Alan Santos/Presidência.

“As pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer e têm outras preocupações, que não são as de pessoas que já destruíram suas florestas.”

Paulo Guedes, ministro da Economia, em um painel do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em 21 de janeiro de 2020..

Ricos x pobres

Embora tenha enfrentado pequenos terremotos, Guedes segue intacto desde o início do governo. O chefe da Economia vem acumulando frases polêmicas – mas não dissociadas da postura econômica da gestão.

Em entrevista àFolha de S. Paulo, publicada na edição de 3 de novembro de 2019, Guedes defendeu um novo regime trabalhista baseado em capitalização da aposentadoria – no qual cada trabalhador tem de fazer a sua própria contribuição, sem contrapartida. A medida, segundo ele, ajudaria as famílias mais pobres a aprenderem a economizar. 

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

“Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo.”

Paulo Guedes, ministro da Economia, em novembro de 2019

Em 2020, com a pandemia, o Brasil chegou a quase 52 milhões de pessoas na pobreza e 13 milhões na extrema pobreza, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo ano, o rendimento médio domiciliar per capita de 2020 foi de R$ 1.349.

Disneylândia

O dólar no Brasil já tinha começado a disparar, e o ministro da Economia minimizou o impacto da desvalorização do real, durante participação em um evento corporativo em Brasília.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

“O câmbio não está nervoso, (o câmbio) mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro de Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver.”

Paulo Guedes, ministro da Economia, em fevereiro de 2020.

Em maio do mesmo ano, resultado de um acúmulo de fatores, inclusive externos, o dólar colou na casa dos R$ 6. No ano passado, o Brasil acumulou inflação de 10,6%, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA). Foi a maior desde 2015.

Direito trabalhista atrapalha

O empresariado aderiu à campanha de Jair Bolsonaro. A promessa de uma política econômica mais autônoma, ou seja, mais liberta de deveres e taxação, soou como o caminho em direção ao pote de ouro. A CLT entrou no alvo.

Foto: Isac Nóbrega/PR.

“A mesma coisa é direito trabalhista. Tudo que é demais atrapalha. (…). É tantos direitos (sic).”

Bolsonaro, em entrevista à jornalista Leda Nagle, em agosto de 2019.

Na mesma conversa, comparou a dificuldade da vida dos patrões à da vida dos trabalhadores.

A retribuição da equipe econômica ao voto de confiança da classe empresarial seria encontrar caminhos para desburocratizar as contratações e fomentar o mercado de emprego. Criou-se a medida provisória da carteira amarela, editada em novembro daquele ano e que flexibilizava o recolhimento da contribuição do seguro-desemprego e do FGTS, por exemplo. Sem apreciação do Senado, a medida perdeu o efeito.

Educação

Elite intelectual

O primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro ficou no cargo apenas três meses. O período foi suficiente para determinar uma série de mudanças na pasta, como espaços para publicidade nos livros didáticos das escolas públicas.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

“As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica [do país].”

Ricardo Vélez,ex-ministro da Educação,ao jornal Valor Econômico.

A declaração entra no contexto do fortalecimento do ensino técnico em detrimento do universitário, um dos focos da novo modelo de Ensino Médio implementado pelo ex-presidente Michel Temer.

O atual ministro da pasta, Milton Ribeiro, também já discursou nesse sentido. Disse àTV Brasilque “universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”.

Balbúrdia

O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub virou alvo de controvérsias por falar de botar os ministros do STF na cadeia e sugerir que a China inventou o coronavírus. Mas não só. Também foi processado pelo Ministério Público Federal por prometer corte de verba em universidades que promovessem “balbúrdia”.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

“Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas”

Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação,ao  jornal O Estado de S. Paulo em abril de 2019, logo após assumir o ministério.

Na gestão de Weintraub, as universidades federais sofreram reveses. Ainda em 2019, tiveram 30% da verba de despesas gerais congeladas. Em 2020, outros 20% contingenciados do orçamento das UFs apertaram a gestão financeira. Para este ano, o MEC terá 739,9 milhões a menos de recursos, e as universidades – principais espaços de produção de pesquisa científica no país – podem, de novo, ter um ano difícil.

Fazem tudo, menos estudar

A relação de Bolsonaro com as universidades federais é política. Na sua gestão, a lista tríplice para a escolha de reitores deixou de ter a ordem considerada – pelo rito clássico, o presidente da República apenas carimba o mais votado pela comunidade acadêmica. No entanto, desde 2019 reitores sem a maioria de votos passaram a ser considerados pelo governo federal.

Foto: Isac Nóbrega/PR.

“O que se faz em muitas universidades do Brasil, o que o estudante faz? Faz tudo, menos estudar.”

Bolsonaro, em resposta a um jornalista em um evento no Tocantins, no fim de 2019.

O presidente Jair Bolsonaro pronunciou a respeito da posição do Brasil no ranking que mede o desempenho dos estudantes em cerca de 80 países. Durante seu discurso, no lançamento do programa Governo Municipalista, em Tocantins, Bolsonaro aproveitou para criticar, também, as universidades brasileiras, declarando que os alunos “fazem tudo, menos estudar”.

As universidades públicas são responsáveis por mais de 95% da produção científica no Brasil. Pelo menos três UFs conduzem, hoje, importantes estudos de produção de vacina 100% nacional contra a Covid-19. Entre elas, a UFPR.

Excesso de professor

Aos apoiadores que o esperavam no Palácio do Planalto, em setembro de 2021, o presidente declarou que “o excesso de professores atrapalha”.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil.

“Não vou entrar em detalhes, mas o Estado foi muito inchado. Não estou dizendo que não precisa de professor, mas o excesso atrapalha.”

Bolsonaro, para apoiadores em frente ao Palácio do Planalto.

Em nota de contestação, o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) disse que, só no DF, mais de 10 mil vagas de professor da rede pública de ensino não estão hoje preenchidas por servidor público efetivo.

Direitos

Escória maldita

A época foi a mesma da reunião do governo em que ministros do STF foram chamados de bandidos e o então ministro do Meio Ambiente sugeriu aproveitar a atenção dada aos temas relacionados à Covid-19 para passar a boiada. Em uma sala não tão longe, o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, referiu-se ao movimento negro como “escória” e a Zumbi dos Palmares [que dá nome à instituição] como “filho da puta”.

Foto: reprodução/Fundação Palmares.

“Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares que, para mim, era um filho da puta que escravizava pretos. Não tenho que apoiar Dia da Consciência Negra. Aqui não vai ter zero” […] “Invadiram este prédio aqui para me espancar. Quem poderia ter feito isso? Invadiram com a ajuda de funcionários daqui. O movimento negro. Os vagabundos do movimento negro. Esta escória maldita.”

Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares,, em reunião a portas fechadas com servidores. Gravação divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas a Corte manteve o jornalista à frente da fundação, instituída para promover e preservar os valores da influência negra na formação da sociedade brasileira.

Novo AI-5

Jair Bolsonaro tem vínculo estreito com as Forças Armadas, uma de suas bases mais sólidas e fiéis.

Capitão reformado, sempre se manifestou favoravelmente à ditadura. Em polêmica recente, servidores que trabalham na formulação da prova do Enem denunciaram ao jornalFolha de S. Pauloum episódio em que o presidente teria pedido ao ministro da Educação questões da prova que tratassem o golpe de 1964 como uma “revolução”. Antes de ser eleito, enquanto deputado federal, chegou a dizer que o “erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Durante a campanha presidencial, um de seus filhos, Eduardo Bolsonaro, falou que um soldado e um cabo bastariam para fechar o STF. Já com o pai presidente, declarou não ser contra um novo AI-5, “se necessário”.

Foto: reprodução.

“Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália, alguma resposta vai ter que ser dada, porque é uma guerra assimétrica, não é uma guerra onde você tá vendo seu oponente do outro lado e você tem que aniquilá-lo, como acontece nas guerras militares. (…) Temos que ficar atentos.”

Bolsonaro, em declaração foi dada à jornalista Leda Nagle, aliada do governo.

Jornalistas foram duramente reprimidos durante a vigência do AI-5, o mais severo ato institucional implementado pela ditadura de 1964. A medida, baixada em 13 de dezembro de 1968, deu poder ilimitado ao militar presidente, aumentou a repressão e a censura e estabeleceu a tortura e assassinatos como práticas do regime.

Mulher submissa

A frase foi dita pela pastora e ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, uma das mais afinadas à ala ideológica do governo.

Ao ser questionada pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA) sobre a relação entre mulher e homem no casamento, durante audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres na Câmara, a ministra disse que a submissão é parte da doutrina cristã.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil.

“Dentro da doutrina cristã, sim. Dentro da doutrina crista, lá dentro da igreja, nós entendemos que um casamento entre homem e mulher, o homem é o líder do casamento. Então essa é uma percepção lá dentro da minha igreja, dentro da minha fé.”

 

Damares Alves, ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos.

A ministra, conhecida pela declaração “menina veste rosa e menino veste azul”, também chegou a dizer que a personagem princesa Elsa, do filme Frozen, terminou a história sozinha em um castelo de gelo porque é lésbica. “O cão está muito bem articulado e nós estamos alienados”, acrescentou em tom de crítica.

Comprar fuzil

A política de facilitação de acesso a armas se expandiu no governo de Jair Bolsonaro. Por meio de decretos, o mandatário aumentou de dois para quatro o total de registro de armas por pessoa e elevou de 50 para 550 o limite anual de munições, além de permitir a posse a moradores de áreas rurais e revogar portarias de rastreamento e controle de armamentos pelo Exército.

Foto: José Cruz/Agência Brasil.

“O CAC [Caçador, Atirador e Colecionador] está podendo comprar fuzil. O CAC, que é fazendeiro, compra fuzil, o 762. Tem que comprar é… tem que todo mundo comprar fuzil, pô. O povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Tem um idiota: ‘ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.”

Bolsonaro para seus apoiadores.

Imprensa

Levantamento feito pelaAgência Lupamostrou que o presidente Bolsonaro atacou a imprensa em 86% daslivesfeitas por ele ao longo de 2021. Os números reforçam o comportamento do mandatário com os veículos de comunicação.

Foto: reprodução/TV Brasil.

“O maior problema do Brasil não é com alguns órgãos, é a imprensa”,

Bolsonaro em janeiro de 2021.

Relatório “Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa”, com dados do ano passado, divulgado nesta quinta-feira (27) pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), repetem os dados alarmantes do período anterior e batem novo recorde da série histórica, iniciada na década de 1990.

Em 2021, foram 430 casos de agressões a jornalistas e a veículos de comunicação e ataques à liberdade de imprensa em todo o país. Censura encabeça a lista, com 140 ocorrências – das quais 138 foram naEmpresa Brasileira de Comunicação(EBC), de natureza pública e que coordena aAgência Brasile aTV Brasil.

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04
Nov21

O indiciamento do presidente por crimes contra a humanidade

Talis Andrade

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por Marcelo Semer

O presidente da República está prestes a ser indiciado pelo cometimento de diversos delitos, inclusive crimes contra a humanidade, pela intencional e desastrada condução das políticas públicas em face da pandemia do coronavírus, que levaram o país ao podium mundial de mortos, com mais de seiscentas mil vidas perdidas. 

Até agora, Bolsonaro tem sido beneficiado por um conjunto de diques de contenção: de um lado, o Procurador Geral da República, escolhido a dedo, fora das indicações da carreira, e que tem levado o Ministério Público Federal, sempre tão combativo, ao silêncio, quando não à defesa do próprio governo; de outro, o presidente da Câmara dos Deputados, a quem aliou-se politicamente, mediante a concessão de cargos e verbas, que mantém devidamente engavetados dezenas de pedidos de abertura de impeachment. 

Outros presidentes não tiveram a mesma sorte: Michel Temer chegou a ser denunciado criminalmente pelo então procurador-geral Rodrigo Janot; Dilma Roussef sofreu a vindita do deputado Eduardo Cunha (afastado e condenado pela Justiça e por seus pares, mas só depois de comandar o impeachment) e Fernando Collor de Mello sofreu tanto o processo político quanto o criminal. 

Enfim, com um relatório altamente fundamentado, depois de seis meses de funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado, que ouviu mais de 60 pessoas, e nutrido por consistentes pareceres jurídicos, as acusações contra Jair Bolsonaro são em gênero, número e grau, muito mais lesivas e impactantes do que as que suportaram seus antecessores. 

É hora, então, de se aguardar para saber se, afinal de contas, as instituições permanecem mesmo funcionando. Ou se o sistema político-jurídico de blindagem vai jogar as mais sérias imputações até então deduzidas contra um presidente da República para debaixo do tapete. E se a mídia, que tanto se escandaliza com gastos além do teto, apontará, com igual destaque, a indignidade dos omissos.

O que se apurou em meses de comissão parlamentar, e paralelamente em fundados estudos a ela encaminhados, como por exemplo o do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP coordenado pelos professores Deisy Ventura e Fernando Aith, é que os drásticos resultados da pandemia no país decorreram de opções políticas tomadas pessoalmente pelo presidente da República. 

Assim, as enormes dificuldades para a efetivação do isolamento social por aqui foram consequências diretas do esforço em sentido contrário empreendido por Jair Bolsonaro, seja na edição de decretos que buscaram liberar atividades comerciais ao máximo, seja pela luta política e jurídica contra as medidas de isolamento nos Estados, seja no exemplo quase cotidiano do presidente, ele mesmo, sem intermediários, promovendo aglomerações à sua volta. 

O uso de máscara, talvez a mais bem sucedida das profilaxias não farmacológicas contra a disseminação do vírus, foi bombardeado diuturnamente pelo presidente, que: não a usava na maioria de seus eventos políticos (tanto que restou autuado em diversos deles); criticava sua eficácia, com base em fake news (como a live em que sugeria ser o apetrecho responsável pela redução da oxigenação do sangue); e como se não bastasse retirava à força, máscaras de crianças em plena aglomeração. Por fim, sugeriu inúmeras vezes que o ministro da Saúde providenciasse ato normativo para abolir a obrigatoriedade de seu uso, ainda sob patamares incipientes de imunização.

A imunização, aliás, foi o maior entre seus pecados capitais. 

Constituiu um gabinete paralelo que simulou subsídios científicos para dar sustentação à tresloucada tese da imunização de rebanho, pela qual nenhuma medida seria realmente necessária para contornar uma epidemia que se esvairia por si só, assim que atingisse um certo patamar de contaminação. O deputado Osmar Terra passou um ano e meio fixando datas próximas para o “fim da pandemia”, que o presidente repetia em rede nacional, sem se ater ao fato de que: a-) mesmo as pessoas já contaminadas poderiam ser novamente infectadas; b-) mais de um milhão e meio de brasileiros teria morrido na espera de que todos pudessem ser naturalmente imunizados -o que, aliás, não aconteceu em lugar nenhum do planeta mesmo depois de quase dois anos de pandemia.

À custa da defesa desta tese -inúmeras vezes enunciada pelo presidente- atrasou-se enormemente a aquisição de vacinas, postergando-se a imunização -e, com isso, ampliando exponencialmente o número de mortos. Bolsonaro disse não à “vacina chinesa”, o que atrasou por meses o início da imunização e, ao mesmo tempo, ignorou dezenas de ofertas da Pfizer, buscando pretextos jurídicos ou econômicos para negar sua compra. À inquietação da população que via o tempo passar e as mortes se multiplicarem, seu ministro da Saúde, aquele que expressamente dizia ser o homem que lhe obedecia, indagava: “para que tanta ansiedade?”.

Sua luta contra a vacina tem perdurado mesmo depois da inequívoca comprovação do sucesso contra o vírus. Bolsonaro fez questão de desfilar na Assembleia Geral das Nações Unidas como o único chefe de Estado não vacinado e, ainda após apresentação do relatório da CPI, teve tempo para a disseminação de mais uma mentira maliciosa, relacionando o vírus da AIDS à imunização. 

Considerando que ainda metade do país ainda não está totalmente vacinada e mais de vinte milhões de brasileiros estão com a segunda dose atrasada, a persistência da luta contra a vacina certamente significará mais mortes.  Estivesse o presidente já sendo processado criminalmente em alguma das milhares de varas pelo país, uma reiteração delituosa tão desbragada certamente justificaria a decretação da prisão preventiva.

Mas se isolamento, máscaras e vacinas eram ignorados de forma sistemática, o presidente da República, com o aval tabajara de seu gabinete paralelo, tentou construir com medicamentos sabidamente ineficazes, um álibi para o negacionismo: o kit covid, do qual o presidente foi, mais uma vez, o principal garoto propaganda. 

Para empurrar a cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina garganta abaixo dos brasileiros, ele fez anúncio em cadeia nacional, gastou fábulas por meio das coniventes Forças Armadas, demitiu dois de seus ministros da saúde resistentes à farsa e, sob o abrigo cúmplice da direção do Conselho Federal de Medicina, bateu-se pela “autonomia médica” como reforço a seu charlatanismo. Como a CPI expôs de forma contundente, o braço privado de seu gabinete paralelo, a Prevent Senior, obrigava seus médicos a ministrar tais remédios, ao mesmo tempo em que escondia números daqueles que morriam após o tratamento. 

De outro lado, uma falsa sobrenotificação de mortes, também havia sido propagandeada pelo presidente, após adulteração de suposto estudo do Tribunal de Contas da União, por meio de um relatório renegado, que chegou às suas mãos coincidentemente pelo filho de um grande amigo.

Conseguir o feito de ultrapassar a marca de 600.000 mortos (atrás apenas dos Estados Unidos, por enquanto) não foi fácil: foi um verdadeiro tour de force do governo Bolsonaro, capitaneado pelo presidente em pessoa: provocações a governadores, pressão sobre Judiciário, ostensiva publicidade paga com o dinheiro público e uma subterrânea rede de propagação de fake news, repleta de tentáculos em diversos veículos de mídia, blogs, templos etc.

Pode ser que essas milhares de almas tenham sido perdidas como um instrumento para vitaminar sua própria sobrevivência política, evitando que a desaceleração na economia colocasse à prova suas promessas eleitorais -teriam sido, ademais, mortes em vão, porque tem sido justamente o retardo na redução de mortes e casos, que mais prejudica o país, inclusive na economia.

Mas o fato é que olhando retrospectivamente, todos os pilares que o governo Bolsonaro apresentou a partir de 2019, quando iniciou sua gestão, justificavam as condutas que viriam a desenvolver na pandemia: 

a-) a ânsia pela desregulamentação e esvaziamento do poder fiscalizatório, e o predomínio de uma suposta liberdade de matar e desmatar, se casam perfeitamente com a repulsa tão consistente quanto inexplicável, ao uso da máscara protetora e do respeito às regras sanitárias; 

b-) o terraplanismo com que se tentou reescrever a história do país -e por mais incrível que parecesse, também a geografia- reflete-se no contínuo negacionismo acerca da gravidade da pandemia, aliada à propagação de inúmeras teorias da conspiração, com as quais, entre outras providências grotescas, propagou-se o boato de enterros com caixões vazios, emulou-se a invasão a hospitais para desvelar a “mentira” da lotação dos leitos e reproduziu-se a abjeta expressão “vírus chinês”, propositadamente hostil; 

c-) o pensamento mágico que circunda a imagem do presidente (a consideração de “mito” mesclado com a visão de um escolhido) incorporam-se no apego desmesurado ao tratamento precoce e a ideia de um fármaco salvador que ajudaram a compor a tônica do negacionismo (não é tão grave se é curável); 

d-) o darwinismo social, a ideia de que só os mais fortes sobrevivem impulsiona a aceitação da imunidade de rebanho, traduzida pela lógica de que todos os brasileiros iriam pegar a doença e apenas os mais fracos, os que tem comorbidade ou não tem “histórico de atleta” seriam mortos ou sequelados. A ânsia de cravar essa diferenciação levou o presidente a reclamar, em reunião ministerial, de atestado de óbito de um militar (por não darem destaque às comorbidades), a chamar de “bundões” os jornalistas pelo sedentarismo e aduzir a repulsa ao “país de maricas”; 

e-) a inserção no horizonte internacional, a partir da adesão ao antiglobalismo trumpista, conduzido, sobretudo, pelo então chanceler Ernesto Araújo, levou o governo à colisão com a OMS e o desprezo a quaisquer iniciativas globais, o que viria também a dificultar a inserção no mercado das vacinas. 

A visão de mundo do bolsonarismo é um conjunto destes elementos: a política da destruição, a lógica da irracionalidade que estimula o fanatismo, o retorno a um passado idílico sem amarras politicamente corretas, em que os fortes possam prevalecer sem perder tempo para cuidar dos ficam pelo caminho. A reverência às milícias e o desprezo aos indígenas mostra bem de que lado da morte o presidente se posiciona. 

Mas seja por fidelidade à racionalidade da destruição, seja para minorar desgastes eleitorais, o fato é que milhares de vidas foram sacrificadas por interesses menores, políticos ou pessoais, a partir de decisões que nasceram no círculo mais íntimo do poder. 

Rigorosamente todas as ações contrárias ao bom senso e lesivas à saúde, ostentam as digitais de Jair Bolsonaro -as mesmas que, por justiça, agora se espera sejam colhidas em seu indiciamento.

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19
Jul21

VÍRUS VERBAL: DW SELECIONA FRASES DE BOLSONARO SOBRE A PANDEMIA

Talis Andrade

 

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"Chega de frescura, de mimimi"

Em 4 de março de 2021, após o país registrar um novo recorde na contagem diária de mortes diárias por covid-19, Bolsonaro afirmou que era preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia, e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.Charge – Angelo Rigon

 

"Europa vai ser mais atingida que nós"

A declaração foi dada em 15 de março. Precisamente, ele afirmou: "A população da Europa é mais velha do que a nossa. Então mais gente vai ser atingida pelo vírus do que nós." Segundo a OMS, grupos de risco, como idosos, têm a mesma chance de contrair a doença que jovens. A diferença está na gravidade dos sintomas. O Brasil é hoje o segundo país mais atingido pela pandemia.Relembre as charges que marcaram 2020 no Brasil | Cultura

 

"Gripezinha" e "histórico de atleta"

Ao menos duas vezes, Bolsonaro se referiu à covid-19 como "gripezinha". Na primeira, em 24 de março, em pronunciamento em rede nacional, ele afirmou, que, por ter "histórico de atleta", "nada sentiria" se contraísse o novo coronavírus ou teria no máximo uma “gripezinha ou resfriadinho”. Dias depois, disse: "Para 90% da população, é gripezinha ou nada."Bolsonaro e o descaso com a pandemia de Covid-19

 

"Todos nós vamos morrer um dia"

Após visitar o comércio em Brasília, contrariando recomendações deu seu próprio Ministério da Saúde e da OMS, Bolsonaro disse, em 29 de março, que era necessário enfrentar o vírus "como homem". "O emprego é essencial, essa é a realidade. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós vamos morrer um dia."Charge do Zé Dassilva: um santo remédio? | NSC Total

 

"A hidroxicloroquina tá dando certo"

Repetidamente, Bolsonaro defendeu a cloroquina para o tratamento de covid-19. Em 26 de março, quando disse que o medicamento para malária "está dando certo", já não havia qualquer embasamento científico para defender a substância. Em junho, a OMS interrompeu testes com a hidroxicloroquina, após evidências apontarem que o fármaco não reduz a mortalidade em pacientes internados com a doença.Melhores charges Bolsonaro x Covid 19

 

"Vírus está indo embora"

Em 10 de abril, o Brasil ultrapassou a marca de mil mortos por coronavírus. No mundo, já eram 100 mil óbitos. Dois dias depois, Bolsonaro afirmou que "parece que está começando a ir embora essa questão do vírus". O Brasil se tornaria, meses depois, um epicentro global da pandemia, com dezenas de milhares de mortos.Charge Erasmo Spadotto – Capetão Coveiro - Portal Piracicaba Hoje

 

"Eu não sou coveiro"

Assim o presidente reagiu, em frente ao Planalto, quando um jornalista formulava uma pergunta sobre os números da covid-19 no Brasil, que já registrava mais de 2 mil mortes e 40 mil casos. “Ô, ô, ô, cara. Quem fala de... eu não sou coveiro, tá?”, afirmou Bolsonaro em 20 de abril.Chargista Duke concorre na categoria arte do Prêmio Vladimir Herzog com  trabalho feito no DomTotal

 

"E daí?"

Foi uma das declarações do presidente que mais causaram ultraje. Com mais de 5 mil mortes, o Brasil havia acabado de passar a China em número de óbitos. Era 28 de abril, e o presidente estava sendo novamente indagado sobre os números do vírus. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre...”AsTirasDoCaos a Twitter: "Carnificina... 10.000 mortos e ele faz um  churrasco... - #astirasdocaos #quadrinhos #comics #charge #brasil #bolsonaro  #carnificina #pandemia #genocida #necropolitica #forabozo #churrasco  #diadasmaes #fiqueemcasa… https://t.co ...

"Vou fazer um churrasco"

Em 7 de maio, o Brasil já contava mais de 140 mil infectados e 9 mil mortes. Metrópoles como Rio e São Paulo estavam em quarentena. O presidente, então, anunciou que faria uma festinha. "Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha...". Dias depois, voltou atrás, dizendo que a notícia era "fake".Humor Político on Twitter: "Formação de quadriga por Renato Aroeira  #GovernoBolsonaro #Bolsonaro #cartum #charge #EnestoAraújo #JairBolsonaro  #OnyxLorenzoni #PauloGuedes #SergioMoro… https://t.co/9Ofi1ivbe6"

 

"Tem medo do quê? Enfrenta!"

Em julho, o presidente anunciou que estava com covid-19. Disse que estava "curado" 19 dias depois. Fora do isolamento, passou a viajar. Ao longo da pandemia, ele já havia visitado o comércio e participado de atos pró-governo. Em Bagé (RS), em 31 de julho, sugeriu que a disseminação do vírus é inevitável. "Infelizmente, acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta!”Jari Bolsonaro e seu 'país de maricas'

 

"País de maricas"

Em 10 de novembro, ao celebrar como vitória política a suspensão dos estudos, pelo Instituto Butantan, da vacina do laboratório chinês Sinovac após a morte de um voluntário da vacina, Bolsonaro afirmou que o Brasil deveria "deixar de ser um país de maricas" por causa da pandemia. "Mais uma que Bolsonaro ganha", comentou.Humor Político – Rir pra não chorar | Página: 5

"Chega de frescura, de mimimi"

Em 4 de março de 2021, após o país registrar um novo recorde na contagem diária de mortes diárias por covid-19, Bolsonaro afirmou que era preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia, e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

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23
Mai21

A CPI da Poesia: os poetas mortos

Talis Andrade

 

por José Ribamar Bessa Freirea /Taqui Pra Ti

“Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia”
 (Mário Quintana)

Quem está tentando matar a poesia no Brasil? Para identificar os autores de tais ações foi criada na Câmara de Deputados a CPI da Poesia, que tem o poder de convocar até os mortos. No entanto, como seu foco abrange narrativas literárias e outras formas de expressão artística, indo além do ato poético em si, talvez devesse se chamar a CPI da Poética. De qualquer forma, sua presidente, a deputada federal Joênia Wapixana (Rede/RR), intimou várias testemunhas, advertindo que os mentirosos podiam sair dali presos.

O primeiro depoente vivo foi o cartunista e poeta Ziraldo, 88 anos, criador na época da ditadura militar de uma cor denominada Flicts, que servia de vacina contra a tristeza e a depressão e era o encanto das crianças. Ele fez um histórico da quadrilha poeticida cujo comandante, nascido em 1955 em Glicério (SP), odiava versos, uivava e latia cada vez que via um poeta vivo. O seu lema era “Ódio a Ode”. Perseguia ferozmente o Flicts, ameaçando-o com uma “arminha”, quando então exibia cor e esgar estranhos. Por isso, foi apelidado de Grrrr-au-au.    

Convocado do céu, onde reside há quase dois anos, o cantor João Gilberto, inventor da bossa nova e celebrado no mundo inteiro, confirmou à CPI que Grrrr-au-au abominava aquilo que ignorava. O comandante da quadrilha nunca havia ouvido uma música sua, não decretou luto oficial por sua morte, limitando-se a comentar: “Parece que era uma pessoa conhecida”. Citou Caetano Veloso que na ocasião se manifestou chocado com o tom de desprezo e a ignorância de Grrrr-au-au. No final, o depoente indagou à presidente se podia cantar “Chega de Saudade”.

–  Não. Quem tem que cantar aqui é o MC Reaça – interrompeu aos berros o Pit Bull Rachadinha, que nem era membro da CPI, mas sugeriu que fosse convocado do inferno, onde reside, o autor do Proibidão do Grrrr-au-au para quem “as feministas merecem ração na tigela e minas de esquerda tem mais pelo que cadela”. Instaurou-se uma balbúrdia e a sessão foi suspensa. 

O idiota e os bocós

Os trabalhos foram retomados com o depoimento de um vizinho de João Gilberto no céu. Era o poeta e cronista Aldir Blanc, vascaíno doente, coautor de A Cruz do Bacalhau, morto em decorrência do Covid-19, sem que houvesse qualquer manifestação da então fugaz secretária de cultura Regina Duarte, emudecida também diante das mortes do escritor Rubem Fonseca, do cantor Moraes Moreira, do ator Flavio Migliaccio e do teatrólogo Jesus Chediak.

Aldir, autor de Mestre Sala dos Mares e O Bêbado e a Equilibrista, chutou o pau-da-barraca ao traçar o perfil do chefe da quadrilha com aquele estilo que desenvolveu em sua coluna nos semanários O Pasquim Bundas:

– Grrrr-au-au nunca leu um único soneto em sua vida e queixou-se dos livros “que têm excesso de palavras”. Taxou as publicações com impostos altos, mas eliminou a tributação para a compra de armas. Quando se apropriou da cor verde-amarela foi para enganar os incautos e trouxas e, dessa forma, disfarçar a sua baba gosmenta, o seu olhar alucinado de cachorro doido, como no poema de Zeca Baleiro. Declarou guerra à literatura, alegando que o Brasil tem que deixar de ser um país de maricas. Destilou preconceitos homofóbicos ao afirmar que quem gosta de poesia é gayzinho. Chamou de idiotas as pessoas que em razão da pandemia até hoje ficam em casa escutando música e lendo poemas.

Em seguida, a CPI quis ouvir o poeta Manoel de Barros, vindo do Pantanal do Olimpo, a toca de Zeus. O relator Mário Juruna indagou se a poesia merecia ser exterminada como pregava o Imbrochável Grrrr-au-au e se era mesmo diversão de “idiotas”.

– Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas.  Bocó é aquele homem que fala com as árvores e com as águas como se namorasse com elas – respondeu o poeta. 

– Mas afinal, o que é poesia? – perguntou o relator.

– Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas, é de poesia que estão falando. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. A linguagem da poesia força a realidade a se manifestar, escava suas profundezas e traz à tona as situações fundamentais da condição humana, como queria Alfred Doblin. Por isso ela é odiada pelo Grrrr-au-au.

O outro capitão 

O último a depor nesta primeira etapa da CPI foi o ator estadunidense Robin Williams, que reside hoje no andar de cima, mas viveu na tela o papel do professor de literatura no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. Ele declarou que rompeu com o autoritarismo do colégio tradicional, uma espécie de “escola sem partido”, combatendo seu caráter castrador e repressivo. Seu depoimento forneceu elementos para a CPI dimensionar a poesia:

– Nós não lemos e escrevemos poesia porque é algo bonitinho, mas porque somos membros da raça humana, existe um poeta dentro de cada um de nós – ele disse.

Confessou ainda que orientou seus alunos a escreverem poemas, lidos em um clube secreto que funcionava numa caverna perto da escola. Lá, escondidos da repressão, promoviam saraus de poesia. O diretor, que estudou na mesma cartilha de Donald Trump, demitiu o professor e mandou-o recolher seus pertences na sala de aula. Ali, ele recebe uma homenagem dos estudantes, que sobem nas carteiras da sala seguindo a lição de rebeldia contra a autoridade burra, saudando-o e reconhecendo sua liderança: “Captain, my captain”. Esse era o “outro capitão”, o capitão inteligente.

– É simples assim – disse o professor aos membros da CPI. Um manda e os outros desobedecem. Ordens que atentam contra a espécie humana não devem ser cumpridas.

A CPI da Poesia vai ouvir ainda inúmeros poetas e músicos: Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, Castro Alves, Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Clementina de Jesus, Patativa do Assaré, Cecília Meirelles, Adélia Prado. Cora Coralina, os poemas eróticos de Hilda Hilst e tantos outros.  Drummond vai dizer por que perguntou em A Flor e a Náusea: “Crimes da terra, como perdoá-los?” e explicar se existe ódio sadio expresso nos versos: “Meu ódio é o melhor de mim, com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima”. Qual a diferença deste para o ódio do Grrrr-au-au?

Serão convocados poetas amazonenses, entre eles Thiago de Mello para saber se continua cantando no escuro, além de Luiz Bacellar, Elson Farias, Aldizio Filgueiras, Dori Carvalho, Luiz Pucu, que devem se pronunciar sobre as ameaças à Zona Franca feita por Grrrr-au-au com o objetivo de impedir que a CPI da Poesia identifique os autores do poeticidio.

Por último, a CPI ouvirá poetas indígenas, entre eles Eliane Potiguara, Graça Graúna, Zélia Puri, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Dauá Puri, Ademário Payayá, Cristino Wapixana, Tapixi Guajajara e Daniel Munduruku que acaba de se apresentar para uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). Eles dirão se o poema abaixo de Miguel Panemaxeron Surui está mesmo anunciando o fim dos latidos de Grrrr-au-au e do pesadelo vivido pelo Brasil.

Passam os anos, passa a vida
Passa o tempo, passam as coisas,
Passam perto de mim as pessoas,
Passa dentro de mim o amor.
Por que isso comigo se passa,
Se já nem sei mais quem sou?

P.S. 1 – O ódio de Grrrr-au-au aumentaria se soubesse que no sábado (22) foram lançados dois novos livros. De manhã Pequenas conquistas perdidas com 45 crônicas do poeta Dori Carvalho. E logo onde? Nada menos que no Amazonas, que ele sonha deixar sem uma árvore em pé. E à tardinha, no Rio, o romance Morte Certa de Dau Bastos, professor de literatura na UFRJ.

P.S. 2 – Este texto se inspirou numa conversa telefônica com meu amigo Guillermo David, diretor nacional de Coordenação Cultural da Biblioteca Nacional da Argentina. Ele está relendo Guimarães Rosa e eu revisitando Julio Cortazar. “Os que amam a literatura estão salvos porque têm onde se refugiar nesses tempos sombrios” – ele disse. Daí a ideia de que a poesia é uma vacina de esperança. 

09
Mai21

O assassinato do Brasil

Talis Andrade

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por Alvaro Penteado Crósta

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Enquanto o número de casos e de mortes por COVID19 avança sem controle pelo país, vemos o presidente da República crescer o tom em suas ameaças à democracia. Da mesma forma, aumentam os ataques de seu governo a outros países, notadamente à China.

Ao final da primeira semana de maio as mortes ultrapassaram o chocante número de 420 mil, com mais de 15 milhões de pessoas infectadas. Já a vacinação, em um país que contava há décadas com um sistema-modelo de imunização operado pelo SUS, continua avançando a passos de tartaruga. Apenas 15,7% da população recebeu até agora a 1ª. dose e 7,5% a segunda dose.

Ao analisar essa lentidão vê-se que o motivo é basicamente a insuficiência de vacinas importadas, ou do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) igualmente importado, usado na fabricação local de vacinas pelo Butantan e pela Fiocruz. Como a China é o país fornecedor da maior parte do IFA, torna-se algo absurdo e incompreensível que o presidente, seus filhos e seu ministro da economia, entre outros membros do governo, persistam nos ataques praticamente diários dirigidos à China.

Esses ataques, além de serem baseados em comprovadas mentiras, vêm solapando as relações diplomáticas e comerciais com o maior parceiro internacional do Brasil. A China, por sua vez, reage com reciprocidade, atrasando a exportação do IFA para o Brasil, o que faz com que a vacinação evolua lentamente. A China é também a principal fornecedora de outros itens utilizados na prevenção da doença, como materiais de proteção individual (máscaras cirúrgicas, luvas, aventais, entre muitos outros), e no seu tratamento, como equipamentos respiradores e medicamento usados nos procedimentos de intubação.

Assim, além de praticar internamente uma necro-política que está levando seus cidadãos à morte, o governo, em uma atitude aparentemente desconexa e absurda, pratica também uma política suicida no plano externo.

Ainda nesse mesmo plano externo, enquanto o presidente Biden anuncia que os Estados Unidos enviarão 10% do seu estoque de vacinas a outros países1, o jornal The Washington Post publica no dia 30/04 matéria cuja manchete já antevê o que se descortina para o país: “Bolsonaro insultou a maior parte do mundo. Agora o Brasil precisa da sua ajuda” 2. Não resta dúvida de que o Brasil, caso venha a ser considerado para receber parte desse estoque de vacinas, certamente estará no final da lista. 

Recorde-se ainda que Bolsonaro e seus filhos sempre prestaram subserviente apoio a Donald Trump. Ao comentar o ataque e a invasão do Congresso norte-americano por um grupo de fanáticos apoiadores de Trump quando da homologação da eleição de Joe Biden, Bolsonaro justificou aquele ato insano dizendo que havia ocorrido fraude na eleição de Biden. Não satisfeito, o presidente brasileiro delongou por várias semanas o envio de mensagem ao novo presidente eleito dos Estados Unidos, período em que continuou a prestar apoio a Donald Trump e a reafirmar a ocorrência de fraude.

Uma análise feita pela revista científica Nature no dia 04 de maio3 mostra o altíssimo custo que dois países estão pagando com vidas humanas vítimas da COVID19. Os casos analisados, não surpreendentemente, são os do Brasil e da Índia. Em ambos, destaca a revista, os respectivos dirigentes falharam em não seguir as recomendações dos cientistas, provocando desnecessariamente mortes que, somados os dois países, ultrapassam 660 mil pessoas até agora.

Isso leva à reflexão sobre as causas por detrás dos atos e discursos do presidente do Brasil, seus filhos e sua equipe de governo. Somente uma combinação dos seguintes fatores me vem à cabeça nessa reflexão.

O primeiro deles é um total e absoluto desprezo pela vida humana, já amplamente demonstrado por Bolsonaro com relação às minorias étnicas (indígenas, quilombolas), às mudanças nas leis para permitir o fácil acesso a armas de fogo, às suas declarações públicas sobre a COVID19, bem como sobre as mortes por ela causadas (“É só uma gripezinha.”, “E daí? Eu não sou coveiro!”, “Somente os maricas ficam em casa.”, entre inúmeras outras), bem como sua famigerada ligação com as milícias cariocas. Este vínculo com tais organizações criminosas é agora reforçada pelo massacre ocorrido esta semana na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro. Em mais uma ação policial, desta vez pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, 28 cidadãos foram assassinados no que já é chamado de “A chacina de Jacarezinho”, amplamente repercutida pela mídia nacional e internacional. 

Vale lembrar que o massacre de Jacarezinho foi feito em clara afronta à decisão do STF, de que operações policiais em comunidades só poderiam ser feitas em casos absolutamente excepcionais. Mais ainda, esta ação letal foi precedida de uma reunião, ocorrida no dia anterior à operação no Jacarezinho, entre Bolsonaro e Claudio Castro, governador do Rio, a quem se subordina a Polícia Civil. Merece ser lembrada a existência da guerra pela conquista de territórios em curso no Rio de Janeiro, guerra essa que tem, de um lado, bandos de traficantes e, pelo outro, as milícias cariocas, ambas igualmente assassinas.

O segundo fator é algo sobre o qual se comenta desde que Bolsonaro surgiu na vida pública há mais de três décadas, mas que parece não ser devidamente levado a sério. Trata-se do evidente quadro mental do presidente, já analisado por especialistas médicos4,5 e apontado como um caso de psicopatia grave por muitos deles. Assim, na mesma semana que é instalada pelo Congresso a CPI para investigar responsabilidades pelas mortes causadas pela COVID19, dois anúncios devem ser destacados: o da realização de um curso ministrado por psiquiatras que analisará a saúde mental do presidente6, e um discurso feito pelo deputado Fausto Pinato que, paradoxalmente, pertence à base aliada do presidente na Câmera dos Deputados, no qual ele afirmou que Bolsonaro pode ter uma doença mental grave e sugere uma interdição para tratamento médico7!

Que a chacina do Jacarezinho possa ter sido usada por Bolsonaro e seu fiel aliado Claudio Castro como uma “cortina de fumaça” para desviar o foco da CPI que ele e seus ministros tanto temem não é uma hipótese a ser desconsiderada.

Está, portanto, nas mãos, mentes e corações dos senadores e deputados o encargo de evitar que se consume o assassinato do Brasil, cometido por seu próprio presidente. 

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1 Biden: U.S. to Send 10% of Coronavirus Vaccines to Other Countries By July 4 | National News | US News 

2 Bolsonaro’s Brazil seeks coronavirus aid as US, EU help India - The Washington Post

3 India, Brazil and the human cost of sidelining science (nature.com)

4 Psicanalistas veem Bolsonaro com atitude paranoica e onipotente diante da pandemia - 04/04/2020 - Poder - Folha (uol.com.br)

Psiquiatra forense Guido Palomba faz análise preliminar das condutas do presidente Jair Bolsonaro | Diário da Manhã (dm.jor.br)

6 Comitê de psiquiatras anuncia curso para analisar saúde mental de Bolsonaro - Politica - Estado de Minas

7 Deputado fala em doença mental e pede interdição de Bolsonaro (msn.com)

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22
Mar21

CABELOS AZUIS, por Luis Fernando Veríssimo

Talis Andrade

Pode ser uma ilustração de texto

por Luis Fernando Veríssimo

 
Quando as histórias de quadrinhos começaram a ser impressas em cores, notou-se que seus heróis ou tinham cabelos loiros ou, estranhamente, cabelos azuis. Vez que outra aparecia alguém de cabelo preto nas historinhas coloridas, mas era raro. O comum era o azul.
 
Não me lembro de, garoto, dar muita atenção ao fato. Era natural que, além dos seus poderes, os super-heróis também pudessem escolher a cor dos seus cabelos, inclusive o azul, por que não? Só anos mais tarde, me dei conta: cabelos pretos significavam que o personagem era negro ou latino, amarelo ou azul que o personagem era indiscutivelmente branco. Naquele tempo, na América, a distinção racial era importante. Continua sendo, mas confesso que sei pouco sobre o que os super-heróis de hoje têm na cabeça, e de que cor. Talvez ainda seja o azul.
 
Corte rápido. Li que, no ano-novo, o céu de Trancoso, na Bahia, se encheu de aviões particulares querendo descer, a ponto de criar um problema para as autoridades da Aeronáutica. Que, sem entender de hierarquia social e da lista da Forbes, não sabia a quem dar prioridade para o pouso. Felizmente não houve uma tragédia, que eliminaria boa parte do PIB nacional. O pessoal chegava a Trancoso para se divertir em várias aglomerações e quem aparecia com máscara era vaiado e chamado de maricas. As festas atravessaram a noite de ano bom e qualquer um podia entrar, desde que mostrasse prova de ter sonegado impostos no ano que acabava e de saber a senha da elite brasileira. Que - isto pouca gente sabe - é “cabelos azuis”.
 
A senha não significa que a elite brasileira tenha cabelos permanentemente azuis que a identificam e garantem seus privilégios. Os cabelos azuis do código dos ricos significam o mesmo que significavam nas historias em quadrinhos: são fronteiras bem definidas e intransponíveis de classe. E, se você protestar que estas fronteiras protegem uma elite criminosa na sua inconsciência, vai ver é por inveja das festas que eles dão. Sem falar nos aviões particulares.
Pode ser uma captura de ecrã do Twitter de 1 pessoa e texto que diz "Luis Fernando Verissimo @verissimolf "O Brasil é formado por uma classe dominante e uma classe ludibriada" #verissimas #comediasdavidapublica"
22
Mar21

'O caos vem aí', diz Bolsonaro em meio à atmosfera caótica que ele criou

Talis Andrade

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Janio de Freitas

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Ficou todo mundo desobrigado de fazer sentido no Brasil depois que Bolsonaro disse, na última sexta-feira, que "o caos vem aí". No tempo em que as palavras ainda tinham significado, um país que executa um plano de vacinação sem vacinas, está na bica de contabilizar 300 mil mortos por um vírus, envia para a fila de espera doentes que precisam de UTI e já não consegue assegurar sedativos e oxigênio para todos os pacientes que conseguem chegar à fase da entubação... um país assim já está mergulhado no caos.

Ao projetar para o futuro um caos que já inferniza o presente dos brasileiros, Bolsonaro revela que, no seu governo, até os fatos já ocorridos tornaram-se imprevisíveis. Num regime presidencialista, caberia ao capitão governar a pandemia que sua inépcia agravou. Mas Bolsonaro é desgovernado pelos acontecimentos. Ao falar em "gripezinha", mercadejar a cloroquina, apelidar de "conversinha" a segunda onda de contágio e dizer que a pandemia "está no finalzinho", Bolsonaro injetou empulhação no caos, potencializando-o.

No meio de uma crise sanitária que mata em escala industrial, o pior cego é aquele que finge que não vê. Nada pode ser mais visível do que uma pilha de corpos que não para de crescer. Quando a cegueira é encenada pelo presidente da República, fica entendido que o político conduzido ao Planalto como solução dos quase 58 milhões de brasileiros que o elegeram, virou parte do caos. Assim como sua sensatez, também a capacidade gerencial de Bolsonaro é invisível a olho nu.

 

Ao trocar o papel de presidente da República pelo de pregoeiro da desgraça, o capitão tenta se dissociar do problema. Dedica-se à atividade que mais gosta: transferir as culpas para alguém. Depois de retardar a compra de vacinas, critica governadores e prefeitos por adotar medidas restritivas que a vacinação a conta-gotas torna inevitável. Chama de "mídia funerária" a imprensa que exibe a mortandade que a cloroquina não foi capaz de deter. Culpa o STF por liberar estados e municípios para tomarem providências que a União se abstém de adotar.

Não foi Bolsonaro quem criou o vírus. Mas é inegável a contribuição do suposto presidente do Brasil à proliferação do contágio e das mortes. Em plena era da informação e da ciência, os brasileiros tornaram-se objetos de um sujeito sem limites, cujo anti-cientificismo rompeu as barreiras do humanismo e da civilidade. Na aparência, o sujeito ambiciona a fama de presidente valentão de um país de "maricas". Na prática, a retórica apocalíptica denuncia o medo de Bolsonaro.

A única morte que Bolsonaro parece temer é a morte do seu projeto de reeleição. Ele disse isso, com outras palavras, em março de 2020, quando o coronavírus começou a matar no Brasil. "Está havendo uma histeria. Se a economia afundar, afunda o Brasil", disse ele na ocasião. "Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta pelo poder".

Paulo Guedes já ensinou: não haverá crescimento econômico sem vacinação em massa. Afora o vírus, quem mantém a economia brasileira na UTI é Bolsonaro, não a "turma do fique em casa". Bolsonaro se finge de desentendido, mas foi ele quem retardou a compra de vacinas, se auto-convertendo em estorvo do Programa Nacional de Vacinação.

Bolsonaro considera-se um político predestinado para os grandes voos. Deveria se familiarizar com a célebre metáfora de Hegel, a "Coruja de Minerva", que só voa quando o crepúsculo chega. Significa dizer que só iremos entender o tempo em que vivemos quando ele já tiver se esgotado. A compreensão só virá quando for tarde demais. No caso de Bolsonaro, que não consegue enxergar o caos que viceja sob o seu nariz, a ficha cairá com um atraso de milhares de cadáveres.

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16
Mar21

Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente? Por Juan Arias

Talis Andrade

 

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar

No El País

A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.

Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.

Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.

Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.

Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.

Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.

Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.

A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.

A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.

presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).

Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.

Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.

Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.

O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.

Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.

As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.

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Cuidado Brasil!

Quem mandou matar Marielle?

Hoje, 14 de março, completam-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.

Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.

08
Mar21

Eliane Brum: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro

Talis Andrade

Manifestantes protestam, em Brasília, contra Jair Bolsonaro e a forma em que o presidente tem lidado com pandemia.

Manifestantes protestam, em Brasília, contra Jair Bolsonaro e a forma em que o presidente tem lidado com pandemia.UESLEI MARCELINO / REUTERS
 

A população brasileira se tornou —e grande parte se submeteu— a ser cobaia de um experimento de perversão inédito na história

 por Eliane Brun /El País 

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Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.

O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260.000 mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.

Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.

O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.

Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.

Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.

Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.

As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.

Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.

Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.

Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.

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Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.

Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.

O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.

O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.

E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.

Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.

Nos deixaremos matar?

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Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.

O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.

O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.

A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.

Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”

“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.

O “nós” é um nó

Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.

A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.

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Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos, como grande parte dos europeus, passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.

Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.

Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica.Não apenas custo financeiro, mas o custo de um projeto, o custo de um plano, o custo de um sonho, o custo de aguentar a angústia entre quatro paredes, o custo da solidão, o custo de não passar na frente da fila mesmo que as regras permitam mas a ética não. Enfim, se cada um olhar para dentro com honestidade, e não precisa contar para ninguém, sabe muito bem o que realmente lhe custa e prefere não deixar de fazer.

A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior. Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento da covid-19 colocando toda a humanidade em risco.

Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.

É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.

Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.

Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.


E se decidirmos lutar contra quem nos mata?

A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.

O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?

Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.

Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.

A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?

O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.

 

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