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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

15
Fev23

Publicado pelo Exército, livro que diz que yanomamis não existem inspirou políticas que levaram a crise humanitária

Talis Andrade
 
Teoria conspiratória do Exército guiou ataques de | Direitos Humanos
 
 
 por Mariana Alvim /BBC News

 

Em meio à grave crise humanitária que atinge os indígenas yanomami, textos com teorias conspiratórias sobre esse povo voltaram a ser lidos em blogs e compartilhados nas redes sociais.

Em comum, eles reproduzem citações e argumentos de um livro publicado em 1995 pela editora da Biblioteca do Exército e escrito pelo falecido coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto.

Com acusações não comprovadas e um conjunto de documentos controversos, A Farsa Ianomâmi  insinua, em linhas gerais, que um povo identificado como yanomami não existia antes que a fotógrafa Claudia Andujar e organizações internacionais com interesses na Amazônia o inventassem para, com isso, se beneficiarem da demarcação da terra indígena (leia abaixo informações que refutam esses argumentos do livro).

O Exército publicou 3.000 exemplares do livro em 1995, mesmo ano em que morreu Menna Barreto.

 

Capa do livro mostra homem loiro de olhos azuis segurando máscara com feições indígenas
 

Hoje, o livro circula em arquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi recomendado algumas vezes por Olavo de Carvalho (1947-2022), como mostram textos de seu site e seus programas de aula.

Além da influência de Carvalho, guru de parte da direita, dois especialistas entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em seus quatro anos de governo (2019-2022) é maior.

"Com certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaro em 2019 na ONU (Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa Ianomâmi como um de seus objetos de estudo no mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"Parece que o governo Bolsonaro fez um tipo de gestão de acordo com o livro porque, neste, os indígenas são colocados como uma massa de manobra de interesses estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem parte da ideia de Brasil que está presente no pensamento militar", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo yanomami.

Não se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau, afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca dos indígenas e da Amazônia.

No Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusações de descaso de seu governo com os indígenas eram uma "farsa de esquerda" e defendeu que a saúde indígena foi uma das prioridades da sua gestão.

A conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da sofrida situação da saúde de crianças, adultos e idosos yanomami.

No final de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso pediu a abertura de uma investigação sobre "a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas".

Na decisão, Barroso menciona haver evidências de "ação ou omissão" do antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial, de data e local de uma operação sigilosa contra o garimpo ilegal em território yanomami, o que pode ter alertado os invasores.

 

Indígenas vistos como 'ameaça'

 

Carlos Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no início de sua obra, como um “gaúcho natural de Porto Alegre, oriundo de tradicional família de militares”. Foi em 1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.

Em Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especial de Fronteira e do Comando de Fronteira e, após ir para a reserva, foi secretário de Segurança do Estado.

Nas páginas finais de sua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologada em 1992 —, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma segunda proposta consistia em “regulamentar a exploração do ouro, do diamante e de outros minérios por pessoas físicas e empresas”.

Talvez essas bandeiras lembrem posições de Jair Bolsonaro.

Quando deputado federal, o então capitão da reserva pediu, em 1993, a anulação da demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declarou em diversas ocasiões que não haveria mais demarcação de terras indígenas em seu governo.

Em fevereiro de 2022, o então presidente comemorou que na sua gestão no Planalto “não foi demarcada nenhuma terra indígena”.

Por longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpo em terras indígenas e, na presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projeto de lei de 2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a proposta acabou não avançando.

Autor de livros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel Le Tourneau identifica três grupos de pressão sobre o governo Bolsonaro que buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e os militares.

Para Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura emblemática de uma geração de oficiais e generais que vê a Amazônia como um ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.

“O fato de ter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para eles, se fomentava dentro da Funai um movimento de desmembramento do Brasil e se defendia que esses territórios estavam cheios de riquezas que precisavam ser exploradas”, diz o geógrafo, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, na França.

“Os índios do Brasil não têm nenhum interesse em independência política. Há uma confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”, explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.

Para Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa interpretação de um segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.

“Por que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipo de teoria, ou até mesmo propagou esse tipo de teoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está fundamentando sobre a ideia de que as identidades indígenas de certa forma são uma ameaça ao Brasil.”

Segundo o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estão em colégios militares, que oferecem ensino fundamental e médio.

 

Reação militar à Constituição de 1988

 

O historiador João Pedro Garcez lembra de estudos que já demonstraram que, em 1988, ano de promulgação da Constituição, e em 1992, ano de realização da conferência Eco-92 no Rio de Janeiro, aumentou a produção acadêmica militar sobre a Amazônia.

“Eu acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorando em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O historiador aponta que o autor de A Farsa Ianomâmi usou muitos artigos de opinião publicados em jornais para validar seus argumentos, ao mesmo tempo em que se valeu de sua experiência em Roraima. O livro é escrito em primeira pessoa.

“Ele reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica autobiográfica”, explica Garcez.

Menna Barreto também traz no livro um documento datado de 1981 e atribuído ao Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto, reproduzido inicialmente pelo jornal O Estado de S.Paulo, expõe planos de “infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos, em todas as nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.

Em 1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar denúncias “formuladas pelo jornal O Estado de S.Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a região amazônica”, segundo documentos do Congresso.

Após investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundial de Igrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não teve sua existência confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecer sua existência”.

Menna Barreto recorreu também a relatos de viajantes europeus de séculos passados para sustentar o argumento de que a identificação yanomami não era citada. Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentos de seu livro: o de que os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.

“Ele ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”, afirma Garcez.

A antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é nada arbitrária.

“Por que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território, práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta Limulja.

“O fato de a gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”

 

Exército afirma que livro não é usado pedagogicamente

 

François-Michel Le Tourneau explica que boa parte do conteúdo de A Farsa Ianomâmi é uma “cópia” de teorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano Lyndon LaRouche.

“Para mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta o geógrafo.

A reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesar de exemplares de A Farsa Ianomâmi estarem em colégios militares, “a obra não consta da lista de livros paradidáticos constantes das Normas de Planejamento e Gestão Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.

Por isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos Colégios Militares”.

A BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas, em meio à crise humanitária no território, não pôde ser atendida por falta de disponibilidade.

Também foi oferecida uma oportunidade de posicionamento à fotógrafa Claudia Andujar, por meio do contato com uma galeria de arte que a representa. Não houve retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevista em que a artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.

Segundo ela, o livro foi construído em um período em que ela participou dos esforços para a demarcação da terra yanomami.

“Olha, naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência e nas diretorias da Funai. Apesar de tudo isso, e graças a bons contatos políticos em Brasília, conseguimos a demarcação das terras. Mas em Roraima continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim era de lá. Saíram tantas notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar, em entrevista a uma revista acadêmica.

 

Circulação deveria ser restrita?

 

Apesar de criticarem o conteúdo do livro e sua disseminação pelo Exército, os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver algum tipo de restrição à circulação de A Farsa Ianomâmi.

“Até pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomática de um pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativa de tirar ele de circulação seja o meio mais efetivo de combater ele”, diz Garcez.

“E algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocação de que há uma grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-o de circulação, talvez acabe validando mais esse ponto.”

François-Michel Le Tourneau concorda.

“Acho que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta. Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.

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13
Abr20

Covid-19, percentualmente a letalidade é baixa, mas em números absolutos é indecente

Talis Andrade

 

 

Mariana Alvim entrevista Ana Claudia Quintana Arantes (Continuação)

BBC News Brasil - Principalmente no início dos casos de covid-19, políticos e até médicos minimizaram o perigo desta doença, posição que foi mantida mais recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, que falou de uma "gripezinha". Sabemos das inúmeras perdas que essa doença já causou pelo mundo, mas também é um fato que a mortalidade dela é diferente de outras doenças infecciosas, por exemplo. Por que a reação a essa doença é diferente?

Ana Claudia Quintana Arantes - Esse papo furado de estatística só pertence a quem está interessado no resultado da estatística. Sou médica, e no nosso meio, quando falamos de estatísticas em congressos, mestrados, doutorados, estamos nos distanciando da experiência humana do processo.

Estatisticamente, o percentual de morte é baixo. Concordo. A questão é: é um vírus que contamina muito rápido. Então, percentualmente, a letalidade é baixa, mas em números absolutos, é indecente. É inimaginável pensar que pode haver 200 mil mortes em uma semana.

Aí vem o papo: ah, a dengue mata também, o H1N1 mata também. Mata, mas a proporção está diluída ao longo do tempo. E o serviços de saúde bem ou mal se acomodam em viabilizar os cuidados.

O que está acontecendo é inviável.

Então, a estatística é linda para publicar artigo, para palanque político.

Mas se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta.

(Nota da redação: Hoje, a estimativa da OMS é que 3,4% das pessoas infectadas pelo vírus morrem, mas alguns cientistas estimam que esse índice gire em torno de 1%.)

 

BBC News Brasil - O luto já é difícil, e o coronavírus está mudando algumas partes do processo.

Ana Claudia Quintana Arantes - Para cada pessoa que morre, a gente estima dez enlutados. O processo de luto é de altíssima complexidade quando você tem um adoecimento traumático como é o coronavírus.

Uma pessoa pode estar bem, até ter doenças crônicas, é infectada e em três semanas morre. E sem poder ter contato com a família.

É traumático porque foge de todos os parâmetros de organização da perda: não tem acesso ao remédio, não tem acesso ao teste, não tem acesso à entubação, não tem acesso à família. É uma desorganização diante do que antes era considerado normal, esperado.

E pra quem fica, o processo de luto pode inviabilizar uma vida — por meses, anos, afetando no trabalho, os relacionamentos...

Então, se você pensa mais ou menos dez enlutados para cada morte, imagina os milhões de pessoas que ficarão inviáveis ou terão dificuldade de reabilitação para sua própria vida (por ter perdido alguém para a covid-19).

Essa é a complexidade da situação.

 

BBC News Brasil - Por que fazer velórios normalmente, ou ter contato com o corpo, coisas inviabilizadas agora pela covid-19, podem fazer falta no processo de luto?

Ana Claudia Quintana Arantes - A ritualização, como o funeral, faz parte de uma elaboração da nova etapa da pessoa que fica. Cada cultura vai ter seu ritual.

Quando você vê o corpo, enterra, chora, faz a missa de sétimo diz, faz as rezas, isso estrutura o processo. É como se você fosse fazer uma trilha, e tem uma sinalização. A ritualização dá seguranças.

Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora.

quitana porque eu importo.jpg

 

BBC News Brasil - Nas situações em que um paciente internado não pode receber visitas, o profissional de saúde que estará ao lado dele terá ainda mais importância, certo?

Ana Claudia Quintana Arantes - Ainda mais importância, porque possivelmente será a única forma de conexão humana ainda disponível.

 

BBC News Brasil - Para profissionais como esses e que nunca tiveram muito contato com as noções dos cuidados paliativos, o que você daria como orientação?

Ana Claudia Quintana Arantes - Quando elas verem que uma pessoa está morrendo, idealmente antes de entubar o paciente, eu diria: farei o melhor que eu puder para a sua vida.

Se eu falo isso na hora de entubar uma pessoa, cria-se uma conexão muito forte, de confiança.

Se a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido à pena. No momento que você estava na sua maior fragilidade, teve alguém que falou: farei o possível pela sua vida. Não é nem para salvar sua vida, mas o possível pela sua vida.

Se o paciente realmente estiver morrendo, já foram tomadas todas as medidas e ele não está respondendo, você fala para ele: você é muito corajoso.

São duas coisas que acredito precisarem fazer parte da experiência humana. Uma delas é saber que você é importante para alguém; e outra é se ver como alguém de valor.

 

BBC News Brasil - E, como aconteceu em outros países, pode ser que estes profissionais tenham que fazer o que tem sido chamado de escolha de Sofia. Há algum preparo para este tipo de situação?

Ana Claudia Quintana Arantes - Nenhum preparo. Tem muitos jovens que estão sendo nomeados chefes de UTI e não têm condições de saber escolher; vão fazer escolhas com bases intuitivas, ou minimamente qualificadas... E vão sofrer muito por isso.

Mesmo as pessoas mais experientes, ninguém está preparado.

 

BBC News Brasil - No ramo dos cuidados paliativos, tem iniciativas pelo mundo na atual pandemia que têm te chamado a atenção?

Ana Claudia Quintana Arantes - Existe um movimento mundial em cima dessas prerrogativas de paliativos de emergência. Centros de referência de cuidados paliativos estão promovendo documentação, treinamentos, para que agir no meio desta emergência.

Está tendo também uma campanha de doação de tablets em Portugal para uso em despedidas (entre pacientes e pessoas queridas).

Aqui no Brasil, estamos orientando profissionais de saúde que podem oferecer cuidados paliativos via Casa do Cuidar, Associação Nacional de Cuidados Paliativos, várias Unimeds que têm a rede de cuidados paliativos...

Estamos formalizando treinamentos para manejo de sintomas respiratórios, como tosse e falta de ar. O acesso a medicações como morfina, a midazolam, que é um ansiolítico para controlar a falta de ar...

Mas o Brasil já tinha muito pouco perto da necessidade que já tínhamos. Havia a estimativa de só 0,3% dos pacientes que precisariam de cuidados paliativos tinham acesso. Então estamos muito atrasados em números de equipes, mas a qualidade delas costuma ser muito boa.

(Nota da redação: A médica menciona também que colaborou com a criação de uma guia para despedidas à distância, que está sendo desenvolvida por Tom Almeida, fundador do movimento inFinito. Procurado depois da entrevista, Almeida contou que o Guia de Rituais de Despedidas Virtuais será lançado em 15 de abril na internet, oferecendo orientações e dicas de plataformas que permitem, por exemplo, chamadas de vídeo para conectar pacientes internados e familiares).

 

BBC News Brasil - Sendo geriatra, como você vê o tratamento, cultural mesmo, aos idosos nessa pandemia?

Ana Claudia Quintana Arantes - Penso que a forma com a gente lida com os idosos no Brasil é bastante... imatura. A gente olha para o idoso como uma pessoa incapaz de compreender e como alguém que precisa obedecer um adulto jovem.

Só que esse idoso é capaz e começa a se revoltar com isso (a tutela).

O idoso, que está sendo muito agredido, tratado de forma pejorativa sobre o isolamento social, quando exige um espaço de escuta, está sendo massacrado.

Eu não tive problemas com os idosos que cuido. Eu conversei com cada um deles, fiz consultas por vídeo (a médica diz que seus pacientes já eram atendidos por conta de outras condições de saúde, mas alguns têm suspeita de coronavírus; estes casos estão sendo monitorados).

Também precisamos entender que alguns idosos também têm seu processo de negação, assim como os adultos.

quintana historias lindas de morrer.jpg

 

12
Abr20

Estão lutando pela retomada de economia em cima de cadáveres

Talis Andrade

Mariana Alvim entrevista Ana Claudia Quintana Arantes (Continuação)

quintana a morte é um dia que a pena viver .jpg

 

BBC News Brasil - A atual pandemia de coronavírus está impactando a relação das pessoas com a saúde e a morte?
Ana Claudia Quintana Arantes - É como se o mundo todo estivesse com o resultado de uma biópsia na mão, para abri-lo, com um possível diagnóstico de uma doença que ameaça a continuidade da vida.

Com o coronavírus, está todo mundo com a possibilidade de se contaminar e, se contaminando, a possibilidade de perder sua vida. Ou alguém da sua família. A questão de risco de vida está batendo na porta de todo mundo ao mesmo tempo. É o mundo inteiro na mesma página agora, pode ser americano, canadense, sul-americano...

Quando você tem a consciência de que está em risco, muitos sentimentos vêm. O medo é o principal deles; mas também a urgência pela vida.

Quando você tem essa percepção, você pensa: por que eu não disse que amava? Por que eu não dei valor a essa vida quando ela era acessível?

Quem nunca pensou nesse assunto antes, está agora vivendo um sofrimento muito intenso.
Além da questão de ficar em isolamento. Quando havia problemas de ansiedade, uma crise dentro de si mesmo, você podia fugir para fora. Agora, tem que ficar dentro de casa.

Ficar em casa para muita gente significa ficar em si mesmo. Só que muita gente habita um mundo interno muito hostil. Além das questões da convivência, das pessoas entrando em contato com uma realidade afetiva que nunca foi de fato enfrentada, como os casais. Agora é a hora da verdade.

 

BBC News Brasil - Você lida em seu trabalho com pessoas diagnosticadas com doenças difíceis, incuráveis. Mas agora estamos falando de uma doença nova e desconhecida. Isso traz implicações diferentes?
Ana Claudia Quintana Arantes - Sim, porque não haverá a oportunidade de um paciente grave ter tempo com as pessoas. No meu livro A morte é um dia que vale a pena viver, eu fiz um convite às pessas refletirem sobre sua finitude, tornando a vida digna, para que não se precise pensar em uma morte digna, e sim na vida. Para que pessoas, mesmo gravemente enfermas, possam estar presentes no encontro com as outras.

Mas agora, a gente vive um momento em que isso não é possível.

Por isso, a reflexão é muito mais urgente, porque ela diz respeito a uma vida que não está acessível agora.

Nós vamos passar por um processo de reabilitação da vida. Para ninguém a vida será a mesma depois disso. Mesmo quem não perder ninguém, que tiver só perdas econômicas, vai ter uma experiência de olhar para as condições dela, materiais, profissionais, de outro jeito.

No mundo médico, até outro dia era uma crise absurda contra a telemedicina, "que absurdo os profissionais não terem contato com o paciente". Uma epopeia. E aí, do dia pra noite, a telemedicina é liberada, publicada no Diário Oficial.

É uma quebra — uma quebra não, uma dissolução de paradigmas. Eles de repente desapareceram por conta das necessidades.

 

BBC News Brasil - Para algumas pessoas, essa pandemia ampliou a possibilidade do teletrabalho, mas pra outras, tornou ainda mais urgente questões sociais como condições precárias de moradia.
Ana Claudia Quintana Arantes - Também é uma realidade que ninguém se importava antes e estamos falando dela agora.

Vou te falar minha opinião, que não sei se vale muita coisa, mas sobre essa demanda dos empresários para que se volte a trabalhar logo.

Se as pessoas voltam a trabalhar, vai ter morte aos milhares. E essas pessoas em subcondição de vida vão morrer em maior número. Essas pessoas (empresários que adotam esse tipo de discurso priorizando a economia) não entendem que não vai ter chão de fábrica, porque as pessoas vão morrer. Estão lutando pela retomada de economia em cima de cadáveres.

Podem falar: mas é pior para as pessoas pobres ficarem em casa. Na verdade, o pior já aconteceu: um total descaso da sociedade em viabilizar uma vida digna para essas pessoas. De ter um lugar habitável, estrutura de saneamento básico, escolas, segurança, saúde.

As pessoas destruíram o sistema de saúde, inviabilizaram a ciência e agora a única forma de sobreviver é retornando a condições de acesso à saúde que estavam sendo destruídas.

De repente, em poucas semanas, tem que reconstruir toda a assistência de saúde e o investimento na ciência porque existe uma necessidade de resposta que as grandes corporações não trazem.

São os cientistas que têm que decidir sobre a dosagem de anticorpos, ou a produção de uma vacina. Quem estava dedicado a isso, perdeu sua bolsa de pesquisa. (Continua)

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