Impunidade da ditadura contribuiu para violência golpista no Brasil

Human Rights Watch aponta em relatório que Bolsonaro, entusiasta de torturadores, promoveu ataques às instituições e incitou apoiadores a pedir golpe militar; pesquisadores recomendam revisão da Lei da Anistia
Os ataques às instituições e à imprensa e o descrédito do processo eleitoral promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) são a ponta do iceberg que ensejou atos golpistas com pedidos de intervenção militar, acampamentos em frente a quartéis e a violência perpetrada às sedes dos Três Poderes em Brasília, no domingo (8/1). Mas há também um capítulo da história do Brasil que não foi resolvido e que se reflete nesse cenário: a ditadura civil-militar de 1964, de acordo com a organização Human Rights Watch (HRW), que elencou uma série de retrocessos em políticas do governo brasileiro em relatório publicado nesta quinta-feira (12/1), englobando uma análise da situação de direitos humanos em 100 países em 2022.
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
A organização aponta que a Lei de Anistia protege abusadores e que deveria ser revista. “O Supremo Tribunal Federal, em contradição à decisão internacional, manteve essa lei válida”, declarou a diretora Maria Laura Canineu em referência uma decisão do STF, de 2010, que sacramentou a lei de 1979 que impede a punição de militares por crimes cometidos no período, embora a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que ela viola as obrigações legais internacionais do Brasil.
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
Entre os efeitos no campo da segurança pública, por exemplo, está o fato de que o Brasil tem um dos maiores índices de letalidade policial no mundo, com 6.145 mortes em 2021, das 84% das vítimas eram negras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
“Para se ter uma comparação, são 1.000 pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos por anom um país que tem maior população que o Brasil”, declarou Muñoz. “Existe uma vinculação clara da impunidade em casos de violência e a corrupção na polícia porque a possibilidade de matar com a impunidade faz com que a polícia tenha um enorme poder.”
Por isso, os pesquisadores indicaram, dentre diversas recomendações para a gestão do presidente Lula (PT), para que seja elaborado um plano nacional de redução de letalidade policial, indicador que foi excluído por Bolsonaro em 2021, e também a garantia de independência e fortalecimento de instituições, como o Ministério Público que tem previsão de constitucional de controle externo das polícias.
“A gente tem certeza que as instituições devem funcionar em conjunto, mas existe uma responsabilidade fundamental de um ente, que é muitas vezes deixado de lado da conversa, que é o Ministério Público para o controle da atividade, seja na ação, quando mata não em legítima defesa e comete excessos, seja na omissão, como no caso dos atos antidemocráticos no Brasil no domingo”, afirma Maria Laura Canineu.
"SEM ANISTA"
Ela faz alusão ao papel das forças de segurança pública que realizaram a proteção dos edifícios, sendo que alguns policiais militares do Distrito Federal foram flagrados abandonando barreira e comprando água de coco enquanto bolsonaristas invadiam o prédio do STF. Outra figura que ela destaca é a da procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice fornecida pelo Ministério Público Federal e que se comportou de maneira omissa às condutas do ex-presidente, que envolvem desde a condução da pandemia de Covid-19 à investigação dos protestos golpistas e o enfraquecimento ao combate à corrupção. Não à toa, durante a posse de Lula, o público fez um coro das palavras de ordem “sem anistia” durante o discurso.
Entre as recomendações da HRW, Canineu destacou que o novo governo terá de reforçar os pilares da democracia “para recuperar a credibilidade das pessoas e a realização dos direitos fundamentais”, que envolvem o respeito à liberdade de expressão e de imprensa, tendo em vista os ataques a jornalistas feitos por Bolsonaro; a promoção da transparência e fortalecimento dos poderes, como “eleger um procurador-geral da República que seja independente”; “fazer uma política externa que não seja carregada de vieses ideológicos”, já que Bolsonaro criticou governos da Venezuela e Cuba, mas apoiou líderes autoritários como o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban; e promover os direitos humanos para todos, tendo em vista o recrudescimento de políticas voltadas ao meio ambiente, aos povos indígenas, às mulheres, às pessoas com deficiência, privadas de liberdade e comunidade LGBT+.