Amor, Luta e Luto tem por objetivo mostrar um recorte do período da ditadura civil-militar de 1964 a 1985, principalmente durante a fase mais violenta, a fase das prisões, das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos dos opositores. Denuncia o brutal assassinato de Ramires Maranhão do Valle, ex-companheiro da autora, um jovem pernambucano morto aos 23 anos, no Rio de Janeiro em 1973.
Tomamos conhecimento de como eram as ações dos grupos revolucionários de oposição à ditadura, além de mostrar a difícil vida dos militantes na clandestinidade. A autora nos conta sua própria experiência em uma prisão no Recife, denunciando os horrores das torturas sofridas juntamente com os companheiros de luta.
Uma ditadura militar foi instalada no Brasil (1964-1985) para impedir a implantação das reformas de base que mudariam a estrutura econômica em vista da construção de uma nação soberana e com um modelo econômico voltado para dentro e preocupado com a melhoria das condições de vida para todo o povo. Claro que o novo modelo feria os interesses dos grandes monopólios estrangeiros e seus aliados internos e que esta foi a causa da instalação do regime ditatorial.
No projeto das reformas de base, nada havia de comunismo. Mas este foi o fantasma levantado para angariar o apoio popular e lançar uma campanha de orações por todo o país, com o apoio de setores das Igrejas Católica e Evangélica, pedindo proteção contra a ameaça vermelha.
Discordou do regime, era comunista e vítima de perseguição. Militava ou apoiava alguma organização política de oposição, estava sujeito à prisão legal ou ilegal, às torturas nas casas da morte clandestinas ou mesmo nos porões da repressão oficial.
A tortura existe desde tempos imemoriais como método de combate aos inimigos ou adversários. Mas, com o tempo, foi se sofisticando para não deixar marcas físicas que pudessem comprovar sua aplicação. Tornou-se “tortura científica”. De modo que, não passa de deboche e vilipêndio a afirmação do presidente Bolsonaro de que aguarda um exame de raios-x da mandíbula da ex-presidente Dilma Rousseff para comprovar a fratura decorrente da tortura.
Capitão reformado do Exército (1973-1988), Bolsonaro sabe muito bem que as corporações militares não faziam exames para analisar os efeitos de suas torturas, as sequelas deixadas nos corpos dos que escaparam. Se bem que as principais marcas ficaram foi na alma. O torturador mais famoso e temido, Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Dops de São Paulo, que chegou a ser convocado para prestar “serviços” em todo o país, disse para uma de suas vítimas mais famosas, Frei Tito: “Nós vamos te quebrar por dentro”. Dito e feito. O frade escapou fisicamente, mas não conseguiu viver com as lembranças terríveis da “sucursal do inferno”, e cometeu suicídio.
Quarenta e cinco mulheres constam da lista de mortos e desaparecidos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade. Centenas foram vítimas das torturas. Vinte e sete têm seus depoimentos registrados na publicação LUTA, SUBSTANTIVO FEMININO, editada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Editora Caros Amigos, São Paulo, 2010. Elas não apresentam raios-x, mas seu testemunho confirmado por companheiras/os presos na mesma época e, em alguns casos, até por torturadores que deram seu depoimento para a Comissão da Verdade, assumiram o crime e disseram que fariam tudo de novo. Outros dizem que o erro foi não eliminar todos os presos políticos.
Todos os depoimentos são muito expressivos, mas vamos destacar neste artigo a síntese de alguns, pois o espaço exige uma amostra, apenas.
Aborto no quinto dia de sofrimento
IZABEL FÁVERO militava na VAR-Palmares. Professora universitária, foi presa com seu companheiro e sogros em Nova Aurora, cidade do interior paranaense, em 1970. Foram torturados a noite toda na frente uns dos outros. Saquearam a casa e levaram tudo, até a roupa de cama. Transferidos para o Batalhão de Fronteira em Nova Iguaçu, as torturas prosseguiram, executadas pelo capitão Júlio Cerda Mendes e pelo tenente Mário Expedito Otresk, que aplicaram pau de arara e choques elétricos. Sabiam que ela estava grávida, mas isso não significava nada para os torturadores. Abortou no quinto dia de sofrimento. Daí, foram levados para o Dops do Rio de Janeiro, onde a tortura foi praticada por policiais com o emblema do Esquadrão da Morte. Levados de volta para Foz do Iguaçu, depois Porto Alegre (Dops). Izabel escapou, mas ficaram as consequências. Durante anos, não conseguia dormir direito, acordava transpirando, passava noites sem pregar os olhos.
“Filho dessa raça não deve nascer”
HECILDA FONTELES,professora universitária, também estava grávida quando ocorreu sua prisão em Brasília, no ano de 1971. Sob socos e pontapés, ouvia os agentes dizerem: “Filho dessa raça não deve nascer”. Foi levada para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) e submetida à tortura dos “refletores”, pela qual a pessoa é mantida a noite inteira com uma luz forte no rosto. Conduzida para o Batalhão da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, conheceu a Cadeira do Dragão. Trata-se de uma cadeira elétrica semelhante àquelas em que são executadas as sentenças de morte nos EUA, só que o torturador controla o nível dos choques para manter a vítima sob intenso sofrimento, mas viva. Ela conta: “Os fios subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações eram indescritíveis – calor, frio, asfixia. Além disso, batiam no rosto, no pescoço, nas pernas”. De volta a Brasília, jogaram-na numa cela cheia de baratas que roíam seu corpo; conseguiu tirar o sutiã e encobrir a boca e os ouvidos. Levada para o Hospital de Brasília, sentindo as dores do parto, o médico, irritadíssimo, fez um corte sem anestesia. Apesar das condições, Paulo Fontelles Filho sobreviveu.
Pau de arara e estupro
GILSE COSENZAera recém-formada em Serviço Social e militava na Ação Popular (AP) quando foi presa, em junho de 1969, em Belo Horizonte. Ficou três meses numa solitária, sendo interrogada sob tortura: choque elétrico, afogamento, pau de arara, espancamento, tortura sexual. Manuseavam o corpo, apagavam ponta de cigarro nos seios. À noite, levaram-na de olhos vendados para um posto policial afastado, numa estrada, onde foi torturada de sete da noite até o amanhecer, sem intervalo. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto estava no pau de arara, de cabeça para baixo. “Quando estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Caí no chão. Nessa situação, fui estuprada pelo sargento Leo, da Polícia Militar. Depois, como não dei as informações que queriam, ameaçavam trazer minha filha de quatro meses para ser torturada de formas terríveis na minha frente”.
MARIA DO SOCORRO DIÓGENES,professora, militava no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Foi presa no Recife, em abril de 1972. Arrancaram toda a sua roupa e a sentaram no chão molhado. Passou por afogamento várias vezes, com a cabeça encapuzada mergulhada numa água suja. O corpo ficou todo preto de tanto ser pisado. Foi colocada várias vezes no pau de arara. Abusavam sexualmente com choques nos seios, na vagina, passavam a mão. Foi torturada diariamente durante um mês. Uma vez simularam sua morte. Arrastaram-na pela madrugada e a colocaram num camburão onde tinha corda, pá, ferramentas. Pararam num lugar esquisito, só para aterrorizar.
JESSIE JANE, professora, foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Era estudante secundarista quando foi presa em 1º de julho de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). “Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o Governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da minha vida, a mais dolorida. A separação de uma criança com três meses é muito dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso na Ilha Grande e, quando da passagem do Governo Médici para o Geisel, havia uma reivindicação para que nos encontrássemos. Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa conjuntura que eu fiquei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos levados para o DOI-Codi, onde fomos muito torturados. As torturas foram tudo que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo”.
INÊS ETIENNE ROMEUera bancária e militava na VPR. Foi presa em maio de 1971, em São Paulo, e levada para a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). Pancadas e choques elétricos marcaram sua recepção. Disseram que não queriam informação alguma, apenas matá-la de forma lenta e cruel, como merecem os terroristas. Foi estuprada. Era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades grosseiras. Inês só foi libertada após a Anistia, em 1979 e identificou seis torturadores. Morreu aos 61 anos em seu apartamento, num acidente muito suspeito.
“O objetivo da tortura é esse: vilipendiar você como pessoa, para que seu corpo, sua vontade percam o controle e você se sinta um montão de carne, ossos, merda, dor e medo”, afirmou Lilian Celiberti, uruguaia, militante do Partido da Vitória do Povo (PVP), sequestrada em Porto Alegre, em novembro de 1978.
Constituição Federal de 1988, art. 5º, XLIII: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Quando fui convidada a escrever esse artigo e a ser uma representante feminina nesta edição sobre o Golpe Militar de 1964, como uma feminista marxista, vi a oportunidade de escrever sobre a resistência das mulheres daquele tempo que foram torturadas e morreram nas trincheiras das guerrilhas no campo e na cidade, nos porões da ditadura, nas emboscadas, nos fuzilamentos, na violenta repressão nas manifestações. Os nomes dessas mulheres nem sempre são lembrados, mas precisamos pensar nelas para realizar a tarefa do nosso tempo: derrotar o fascismo que se avizinha através do governo ilegítimo de Jair Bolsonaro.
A resposta à pergunta sobre quem são as mulheres que enfrentaram a ditadura foi parcialmente respondida pela Comissão Nacional da Verdade que registra uma rápida biografia de 434 pessoas que foram mortas ou desapareceram de 18 de setembro de 1964 a 5 de outubro de 1988. A obra Luta, um substantivo feminino, organizada por Tatiana Merlino, registra a história de 45 mulheres mortas e 27 depoimentos de mulheres sobreviventes à Ditadura Militar. Dessa obra, alguns depoimentos selecionados serão apresentados ao longo do texto.
A construção de um movimento feminista no Brasil remonta à Primeira República (1889-1930) e foi influenciada pelas lutas das sufragistas. A organização cabia às mulheres da classe média e da classe dominante cujas pautas reivindicavam o acesso a cargos públicos sem distinção e o direito ao voto, conquistado apenas em 1934. Antes do golpe de 1964, as ações e a organização das mulheres pela mudança das condições a que estavam subjugadas na sociedade brasileira estavam ganhando força: as associações femininas; a criação da União Feminina ligada à Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1936; a criação da Federação das Mulheres do Brasil (FMB), em 1947; as Assembleias Nacionais de Mulheres; a Liga Feminina do Estado da Guanabara; o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, em 1963. As mulheres estavam se organizando articuladas sobre as pautas mais diversas, contra a carestia, contra os despejos das favelas, pela paz, dentre outros.
O poder crescente das mulheres era notório, por isso, as forças que tramavam o golpe e precisavam dar-lhe ares de legitimidade frente à democracia usaram da força das mulheres na conhecida Marcha com Deus pela Família e a Liberdade (entre 19 de março e 8 de junho de 1964). Essa série de manifestações públicas levantaram bandeiras pela proteção da nação contra a ameaça vermelha do comunismo. Apoiaram-se em organizações femininas que, em cursos de formação sobre a união da família, divulgavam as ideias anticomunistas arregimentando para as marchas que foram compostas também por mulheres trabalhadoras conquistadas pelo discurso conservador das forças políticas de direita.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto. – MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
1964 foi também um golpe na vida dessas mulheres. A repressão engendrada pelo Regime não deixou escapar nem as organizações de mulheres que questionavam os direitos mais básicos de igualdade democrática entre os sexos. Amélia Teles, em seu livro Breve história do feminismo no Brasil, aponta como o crescimento do capitalismo às custas da superexploração da força de trabalho atingiu também as mulheres que, apesar de ingressarem no mercado, estavam submetidas a condições desumanas de existência: cresceu o número de favelas, de cortiços e de crianças abandonadas; aumentou o índice de mortalidade infantil; a absorção de mulheres pelo mercado de trabalho gerou o acúmulo com o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as empresas não ofereciam condições de trabalho próprias para as mulheres. Resultado: muitas das mazelas sociais geradas pela Ditadura Militar caíram nas costas das mulheres trabalhadoras.
Há que se destacar também que as mulheres se levantaram por seus entes desaparecidos nas ações violentas dos militares no poder. Foi assim que surgiu a União Brasileira de Mães que chegou a organizar passeatas pela vida dos seus. Nas mobilizações por moradia, na resistência nos locais de trabalho, nas lutas cotidianas pela sobrevivência, na reorganização molecular da luta operária e camponesa, a presença de mulheres mostrou-se imprescindível. Foi também na luta armada que as mulheres combateram a Ditadura Militar e, aqui, enfrentaram não somente os algozes do Regime, mas as condições pensadas apenas para o corpo masculino nos espaços de guerrilhas, o machismo dos camaradas, a descrença em suas possibilidades de atuar em frentes majoritariamente masculinas, mas elas resistiram e permaneceram nas trincheiras nas quais o comando estava a cargo do homem.
Quando o corpo feminino ou a dita feminilidade era aproveitada na estratégia de resistência, as mulheres estavam em ações de espionagem, de observação, apoio, pois poderiam se camuflar mais facilmente na multidão. De todas as formas, as mulheres colaboraram na derrubada do Regime Militar e de todas as formas foram mortas, violadas, torturadas e humilhadas. As perversões nos porões da ditadura foram o exercício do mais alto nível de misoginia. O acesso ao corpo da mulher, nas torturas, foi experimentado por homens que expressaram toda a força do patriarcado, todo ódio pela insubmissão daquelas mulheres que ousaram questionar o lugar que a sociedade lhes reservou.
“Sobe depressa, Miss Brasil”, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ’40 dias’ do parto. – Rose Nogueira. ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
A luta pelas liberdades democráticas unificou todas estas mulheres: pobres, ricas, brasileiras, estrangeiras, pretas, brancas, estudantes universitárias, costureiras. Todas em prol de um objetivo comum: o fim da ditadura, a redemocratização do país, o direito à liberdade. Devemos exaltar todas essas mulheres, lembrar de suas lutas, conhecer seus nomes, aprender com suas histórias, mas não podemos esquecer, entretanto, que haviam mulheres nas Forças Armadas, mulheres que torturaram outras mulheres, que perseguiram, denunciaram, que se alinhavam com a repressão fascista e a exploração porque eram suas bandeiras. A extrema direita no poder coloca a luta mais às claras: é classe contra classe. As camadas médias não puderam se abster do enfrentamento ao Regime Militar porque também eram vítimas dele.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. – IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
O feminismo no Brasil ganhou uma nova força, após a redemocratização, ganhou cara, ganhou adeptas, multiplicou-se em vertentes, pois a democracia burguesa e sua ideia formal de liberdade, de igualdade, de respeito às diferenças faz parecer que todas as lutas são iguais. Não é assim. É preciso enxergar como as mulheres estão sendo chamadas novamente às pautas conservadoras. As mulheres trabalhadoras, as costureiras, as trabalhadoras domésticas remuneradas e não-remumeradas, as operárias, que chegam em casa após um dia exaustivo de trabalho e se deparam com o feminismo liberal em suas mais variadas formas (feminismo negro, corporativo, do faça acontecer, do liberalismo) e o rechaçam. É o feminismo da mídia. A negação desse feminismo por essas mulheres, entretanto, é esvaziada: elas acham que ele é o único feminismo, um feminismo que não dá conta de suas pautas, de suas necessidades cotidianas, não apresenta resposta para as mazelas sociais que as atingem. Um feminismo que simplesmente “subverte” os padrões sociais há muito estabelecidos. Sabemos que extratos significativos da classe trabalhadora brasileira são conservadores no que tange aos costumes, aos valores, à moral, etc.
Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: “Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos”. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: “Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia”. – MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Ao mesmo tempo, o discurso feminista liberal conquista corações e mentes na esquerda contemporânea. Vemos muitas mulheres influenciadas pela sororidade, pelo empoderamento, pelo faça acontecer, pela representatividade, etc. Estamos deixando que, mais uma vez, a extrema direita manipule a classe trabalhadora e use o poder das mulheres. O grupo Mulheres com Bolsonaro, no Facebook, em 2018, tinha mais de 300 mil seguidoras. Pesquisas à época da eleição de 2018, indicaram que, de cada 10 eleitores de Bolsonaro, duas eram mulheres. A popularidade do (des)governo já caiu bastante, por isso é preciso disputar as mulheres trabalhadoras para um feminismo que objetive verdadeiramente a transformação. E esse não é o feminismo que empodera fazendo maquiagem para negras, colocando mulheres nas esferas de poder e fazendo filmes com protagonistas mulheres.
Nesse ponto, nós, feministas marxistas, nos encontramos diante de uma dupla tarefa: combater a influência do feminismo liberal nas organizações de mulheres de esquerda e chamar as mulheres trabalhadores de base para o feminismo, um feminismo radicalmente anticapitalista, antirracista e internacionalista, pois só a superação da sociedade capitalista pode dar uma resposta à liberdade das mulheres, dos homens e de todos os seres humanos.
Talvez, leitora e leitor, você se pergunte como fazer isso. O avanço da extrema direita, as contrarreformas já consolidadas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro, a ameaça à previdência pública, tudo isso responde novamente à necessidade do capital em superexplorar a classe trabalhadora. Mais uma vez, o peso dessas ações cai nas costas das mulheres trabalhadoras. É papel das feministas retomar as raízes da luta histórica das mulheres, compreendendo que o feminismo que não questiona a estrutura da sociedade e não objetiva superar a diversas formas de exploração/opressão e que, por isso, não quer mudar o estado das coisas não nos serve. Aprendamos com todas as mulheres que viveram o regime militar, com todas elas.
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado — seio, vagina, ouvido — e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina […] passavam a mão. – MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
REFERÊNCIAS
MERLINO, Tatiana. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.
Quando fui convidada a escrever esse artigo e a ser uma representante feminina nesta edição sobre o Golpe Militar de 1964, como uma feminista marxista, vi a oportunidade de escrever sobre a resistência das mulheres daquele tempo que foram torturadas e morreram nas trincheiras das guerrilhas no campo e na cidade, nos porões da ditadura, nas emboscadas, nos fuzilamentos, na violenta repressão nas manifestações. Os nomes dessas mulheres nem sempre são lembrados, mas precisamos pensar nelas para realizar a tarefa do nosso tempo: derrotar o fascismo que se avizinha através do governo ilegítimo de Jair Bolsonaro.
A resposta à pergunta sobre quem são as mulheres que enfrentaram a ditadura foi parcialmente respondida pela Comissão Nacional da Verdade que registra uma rápida biografia de 434 pessoas que foram mortas ou desapareceram de 18 de setembro de 1964 a 5 de outubro de 1988. A obra Luta, um substantivo feminino, organizada por Tatiana Merlino, registra a história de 45 mulheres mortas e 27 depoimentos de mulheres sobreviventes à Ditadura Militar. Dessa obra, alguns depoimentos selecionados serão apresentados ao longo do texto.
A construção de um movimento feminista no Brasil remonta à Primeira República (1889-1930) e foi influenciada pelas lutas das sufragistas. A organização cabia às mulheres da classe média e da classe dominante cujas pautas reivindicavam o acesso a cargos públicos sem distinção e o direito ao voto, conquistado apenas em 1934. Antes do golpe de 1964, as ações e a organização das mulheres pela mudança das condições a que estavam subjugadas na sociedade brasileira estavam ganhando força: as associações femininas; a criação da União Feminina ligada à Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1936; a criação da Federação das Mulheres do Brasil (FMB), em 1947; as Assembleias Nacionais de Mulheres; a Liga Feminina do Estado da Guanabara; o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, em 1963. As mulheres estavam se organizando articuladas sobre as pautas mais diversas, contra a carestia, contra os despejos das favelas, pela paz, dentre outros.
O poder crescente das mulheres era notório, por isso, as forças que tramavam o golpe e precisavam dar-lhe ares de legitimidade frente à democracia usaram da força das mulheres na conhecida Marcha com Deus pela Família e a Liberdade (entre 19 de março e 8 de junho de 1964). Essa série de manifestações públicas levantaram bandeiras pela proteção da nação contra a ameaça vermelha do comunismo. Apoiaram-se em organizações femininas que, em cursos de formação sobre a união da família, divulgavam as ideias anticomunistas arregimentando para as marchas que foram compostas também por mulheres trabalhadoras conquistadas pelo discurso conservador das forças políticas de direita.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto. – MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
1964 foi também um golpe na vida dessas mulheres. A repressão engendrada pelo Regime não deixou escapar nem as organizações de mulheres que questionavam os direitos mais básicos de igualdade democrática entre os sexos. Amélia Teles, em seu livro Breve história do feminismo no Brasil, aponta como o crescimento do capitalismo às custas da superexploração da força de trabalho atingiu também as mulheres que, apesar de ingressarem no mercado, estavam submetidas a condições desumanas de existência: cresceu o número de favelas, de cortiços e de crianças abandonadas; aumentou o índice de mortalidade infantil; a absorção de mulheres pelo mercado de trabalho gerou o acúmulo com o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as empresas não ofereciam condições de trabalho próprias para as mulheres. Resultado: muitas das mazelas sociais geradas pela Ditadura Militar caíram nas costas das mulheres trabalhadoras.
Há que se destacar também que as mulheres se levantaram por seus entes desaparecidos nas ações violentas dos militares no poder. Foi assim que surgiu a União Brasileira de Mães que chegou a organizar passeatas pela vida dos seus. Nas mobilizações por moradia, na resistência nos locais de trabalho, nas lutas cotidianas pela sobrevivência, na reorganização molecular da luta operária e camponesa, a presença de mulheres mostrou-se imprescindível. Foi também na luta armada que as mulheres combateram a Ditadura Militar e, aqui, enfrentaram não somente os algozes do Regime, mas as condições pensadas apenas para o corpo masculino nos espaços de guerrilhas, o machismo dos camaradas, a descrença em suas possibilidades de atuar em frentes majoritariamente masculinas, mas elas resistiram e permaneceram nas trincheiras nas quais o comando estava a cargo do homem.
Quando o corpo feminino ou a dita feminilidade era aproveitada na estratégia de resistência, as mulheres estavam em ações de espionagem, de observação, apoio, pois poderiam se camuflar mais facilmente na multidão. De todas as formas, as mulheres colaboraram na derrubada do Regime Militar e de todas as formas foram mortas, violadas, torturadas e humilhadas. As perversões nos porões da ditadura foram o exercício do mais alto nível de misoginia. O acesso ao corpo da mulher, nas torturas, foi experimentado por homens que expressaram toda a força do patriarcado, todo ódio pela insubmissão daquelas mulheres que ousaram questionar o lugar que a sociedade lhes reservou.
“Sobe depressa, Miss Brasil”, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ’40 dias’ do parto. – Rose Nogueira. ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
A luta pelas liberdades democráticas unificou todas estas mulheres: pobres, ricas, brasileiras, estrangeiras, pretas, brancas, estudantes universitárias, costureiras. Todas em prol de um objetivo comum: o fim da ditadura, a redemocratização do país, o direito à liberdade. Devemos exaltar todas essas mulheres, lembrar de suas lutas, conhecer seus nomes, aprender com suas histórias, mas não podemos esquecer, entretanto, que haviam mulheres nas Forças Armadas, mulheres que torturaram outras mulheres, que perseguiram, denunciaram, que se alinhavam com a repressão fascista e a exploração porque eram suas bandeiras. A extrema direita no poder coloca a luta mais às claras: é classe contra classe. As camadas médias não puderam se abster do enfrentamento ao Regime Militar porque também eram vítimas dele.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. – IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
O feminismo no Brasil ganhou uma nova força, após a redemocratização, ganhou cara, ganhou adeptas, multiplicou-se em vertentes, pois a democracia burguesa e sua ideia formal de liberdade, de igualdade, de respeito às diferenças faz parecer que todas as lutas são iguais. Não é assim. É preciso enxergar como as mulheres estão sendo chamadas novamente às pautas conservadoras. As mulheres trabalhadoras, as costureiras, as trabalhadoras domésticas remuneradas e não-remumeradas, as operárias, que chegam em casa após um dia exaustivo de trabalho e se deparam com o feminismo liberal em suas mais variadas formas (feminismo negro, corporativo, do faça acontecer, do liberalismo) e o rechaçam. É o feminismo da mídia. A negação desse feminismo por essas mulheres, entretanto, é esvaziada: elas acham que ele é o único feminismo, um feminismo que não dá conta de suas pautas, de suas necessidades cotidianas, não apresenta resposta para as mazelas sociais que as atingem. Um feminismo que simplesmente “subverte” os padrões sociais há muito estabelecidos. Sabemos que extratos significativos da classe trabalhadora brasileira são conservadores no que tange aos costumes, aos valores, à moral, etc.
Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: “Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos”. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: “Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia”. – MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Ao mesmo tempo, o discurso feminista liberal conquista corações e mentes na esquerda contemporânea. Vemos muitas mulheres influenciadas pela sororidade, pelo empoderamento, pelo faça acontecer, pela representatividade, etc. Estamos deixando que, mais uma vez, a extrema direita manipule a classe trabalhadora e use o poder das mulheres. O grupo Mulheres com Bolsonaro, no Facebook, em 2018, tinha mais de 300 mil seguidoras. Pesquisas à época da eleição de 2018, indicaram que, de cada 10 eleitores de Bolsonaro, duas eram mulheres. A popularidade do (des)governo já caiu bastante, por isso é preciso disputar as mulheres trabalhadoras para um feminismo que objetive verdadeiramente a transformação. E esse não é o feminismo que empodera fazendo maquiagem para negras, colocando mulheres nas esferas de poder e fazendo filmes com protagonistas mulheres.
Nesse ponto, nós, feministas marxistas, nos encontramos diante de uma dupla tarefa: combater a influência do feminismo liberal nas organizações de mulheres de esquerda e chamar as mulheres trabalhadores de base para o feminismo, um feminismo radicalmente anticapitalista, antirracista e internacionalista, pois só a superação da sociedade capitalista pode dar uma resposta à liberdade das mulheres, dos homens e de todos os seres humanos.
Talvez, leitora e leitor, você se pergunte como fazer isso. O avanço da extrema direita, as contrarreformas já consolidadas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro, a ameaça à previdência pública, tudo isso responde novamente à necessidade do capital em superexplorar a classe trabalhadora. Mais uma vez, o peso dessas ações cai nas costas das mulheres trabalhadoras. É papel das feministas retomar as raízes da luta histórica das mulheres, compreendendo que o feminismo que não questiona a estrutura da sociedade e não objetiva superar a diversas formas de exploração/opressão e que, por isso, não quer mudar o estado das coisas não nos serve. Aprendamos com todas as mulheres que viveram o regime militar, com todas elas.
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado — seio, vagina, ouvido — e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina […] passavam a mão. – MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
REFERÊNCIAS
MERLINO, Tatiana. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.