Capital mais negra do Sul, Curitiba passou por branqueamento estratégico, aponta pesquisa

Escultura "Água pro morro" (1944), de Erbo Stenzel, na Praça José Borges de Macedo. Monumento representa Emerenciana Cardoso Neves, conhecida como Anita Cardoso Neves. Foto: Flavio Antonio Ortolan / Fotografando Curitiba
Pesquisa da geógrafa Glaucia Pereira mostra que, ao contrário do imaginário social que se criou de uma Curitiba branca e europeia, o número de pessoas declaradas negras (24%) é o maior entre as capitais sulistas
Apesar de ser a capital com o maior número de pessoas negras da região sul do Brasil – 24% da população -, Curitiba ainda é uma cidade marcada pela segregação e desigualdade racial que insiste em negar a história e cultura afrodescendente que a formou. É o que evidencia a pesquisa “A racialização do espaço urbano da cidade de Curitiba- PR“, de Glaucia Pereira, Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Desenvolvido em 2021 com o objetivo de expor que Curitiba foi arquitetada para expulsar a população de baixa renda e negra do centro da cidade, o estudo de Glaucia é um dos poucos que discutem a segregação espacial urbana circunscrita à questão racial e as territorialidades negras na capital paranaense.
Conforme a pesquisa da geógrafa, embora Curitiba mantenha indicadores de desenvolvimento humano e condições de vida altos, a cidade passou por processos de planejamento urbano de caráter segregacionista que excluíram a população negra de determinados espaços.
Esse afastamento, segundo a autora, é derivado principalmente de discursos colonizadores e políticas eugenistas que ocultam até hoje a participação da população negra na formação sociocultural de Curitiba.
“A capital do Paraná se projeta como um lugar que não passou por um processo escravagista e que não teve em sua construção a participação da população negra. Dessa forma, historicamente forjou uma especificidade cultural e étnico-racial para a cidade como a capital mais europeia do Brasil constituída por população branca, ainda que, conforme apontam os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, os negros e negras que se reconhecem como tais, representem 24% da sua população, ou seja, quase ¼ do contingente populacional da cidade”, diz um trecho do estudo.
Herança colonial
De acordo com a pesquisa, a população negra carrega, historicamente, uma herança colonial que a coloca em desvantagem – inclusive espacial e territorial – se comparada à parcela branca da sociedade.
Em 1888, a Lei Áurea trouxe a liberdade de escravizados e escravizadas, no entanto, não promoveu nenhum suporte econômico e social a eles. Sem condições financeiras e isolados pela sociedade, os recém-libertos acabaram ocupando os espaços mais precários e periferizados das cidades.
Sete anos depois, em 1895, quando foi promulgado o primeiro Código de Posturas de Curitiba, já era possível observar um ordenamento da cidade que visava expulsar da região central pessoas pobres e pretas. Segundo o estudo, “essa concepção higienista se agrava com o segundo Código de Posturas da cidade aprovado em 1919, uma concepção urbana de sistema hierarquizado no espaço urbano, com limitação das funções da cidade é potencializado. O código dividia a cidade em 3 zonas e impedia a construção de casas de madeira na região central da cidade para o seu ‘enobrecimento’, ou seja, casas mais simples não poderiam estar no centro da cidade”.
No século XX, Curitiba passou por um grande aumento populacional em decorrência da chegada de imigrantes europeus, e isso resultou em um processo de urbanização desordenada. Para reorganizar a cidade, no entanto, foram pensados planejamentos excludentes e seletivos. Assim, as áreas centrais, habitadas em sua maioria por pessoas de alta renda, passaram a receber os maiores investimentos públicos para saúde, cultura, educação, segurança e infraestrutura, o que as tornou regiões ainda mais valorizadas e impossibilitou e de maneira mais decisiva o acesso das camadas pobres.
Sobreposição de opressões
Além da questão econômica, o estudo de Glaucia evidencia que a segregação racial é fruto de processos históricos, geográficos e sociais. Uma sobreposição de opressões que foi impulsionada também pela gestão urbana de Curitiba.
Comparando o mapa de distribuição da população branca e negra da capital com o mapa de renda média dos domicílios por bairro, a pesquisa demonstrou que enquanto a população negra se encontra em territórios pobres e marginalizados, distantes da infraestrutura e equipamentos públicos, a população branca, com maior poder aquisitivo, vive em lugares mais privilegiados. “Existe uma geografia profundamente racializada que estabelece um uso diferenciado e desigual do espaço geográfico para o grupo negro.”
“O mapa mostra que a população negra está concentrada em maiores proporções na parte sul e periferizada da cidade, assim, ao compará-lo com o mapa de renda, fica evidente que, os bairros que possuem a maior parcela da população branca são os que concentram maior faixa de renda (Mossunguê, Seminário, Batel, Bigorrilho, Alto da Glória, Juvevê, Hugo Langue, Jardim Social, Cabral, Ahú), já os bairros com rendimentos domiciliares menores, que concentram moradores de “classe baixa” estão localizados na região sul, sendo periféricas em relação ao centro da cidade, com destaque para a Cidade Industrial de Curitiba (CIC), Sítio Cercado e Cajuru, que possuem a maior concentração de população negra e de baixa renda em Curitiba”, analisa o estudo.
Para a autora da pesquisa, publicizar dados da segregação social entre os negros e brancos é significativamente importante pois revela “o mito da não existência negra na cidade perpetuado por um imaginário eurocêntrico e racista que ainda persiste nos dias atuais, em um discurso que reproduz um racismo urbano velado”.
Dando visibilidade a essa questão, Glaucia chama a atenção para a importância de se planejar um centro urbano com foco na multiplicidade, realizando ações concretas de combate às desigualdades que atenda as demandas das diversas parcelas sociais que formam a cidade.