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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

15
Jan22

Sergio Moro deveria estar inelegível por sua conduta na Lava Jato

Talis Andrade

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Marcelo Semer critica omissão do CNJ em relação a Moro e afirma que apagão de dados da pandemia é crime. Documentário "Levaram o reitor" Cancellier

 

Redação Jornal GGN

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Na última terça-feira (11), Luis Nassif entrevistou o juiz e escritor Marcelo Semer no programa TV GGN 20H, no canal do GGN no Youtube. A necessidade de imparcialidade dos juízes brasileiros e o prejuízo da falta dela no sistema judiciário foi o tema discutido.

Marcelo Semer deu início à discussão enfatizando que a omissão de dados da pandemia de Covid-19 é crime e criticou o governo federal e o Ministério da Saúde. “Se a gente não ignorasse o presidente, estaríamos mortos. Só estamos vivos graças às medidas que ele não conseguiu implementar.” 

Semer complementa dizendo que, na sua opinião, a reconstrução do país será longa e demorada.

 

Judicialização da política é prejudicial

Ao comentar sobre seu novo livro, “Os paradoxos da Justiça”, Semer criticou a judicialização da política. Para ele, esse processo gerou grande politização dentro do sistema jurídico.

O juiz denunciou que as decisões judiciais não estão mais sendo feitas de acordo com a Constituição, mas sim de acordo com a mídia, a opinião pública e o mercado. “Judiciário é forte na aparência, mas cada vez mais sujeito a intromissões.” 

Semer avaliou que o principal resultado disso são processos penais midiáticos, onde a condenação se dá pelo próprio espetáculo na imprensa. Para exemplificar esse fenômeno, citou o caso do ex-reitor Luiz Carlos Cancellier, vítima do sistema político-jurídico e da cobertura da mídia lavajatista – o documentário “Levaram o reitor”, do Jornal GGN, registrou a grande injustiça que tirou levou o acadêmico ao suicídio. 

 

Sérgio Moro vestiu a camisa de um dos times

Marcelo Semer apontou que Sérgio Moro, hoje candidato a presidente pelo Podemos, usou o Judiciário com perspectiva política. “Se ele não é imparcial, ele não é juiz.” 

O juiz ainda enfatizou que as conversas vazadas pela chamada Vaza Jato “não tem absolutamente nada de normal”, ao criticar a postura de Moro na época. “O que estava acontecendo era um processo à parte. Isso é um tapa na cara dos juízes”. 

 

Modelo Lava Jato contaminou o judiciário

Semer criticou também a veiculação de interceptações telefônicas na mídia, dizendo que todas elas foram produto de crimes. Segundo ele, mesmo que autorizadas pelo juiz, elas devem ficar dentro do processo. 

“A gente não tem o direito de conhecer essas provas porque as pessoas acabam sendo julgadas pela opinião pública antes do julgamento do juiz.” 

Semer citou o episódio em que Sérgio Moro divulgou conversas privadas entre Lula e Dilma, enfatizando que os dados eram exclusivos do processo. “Se o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tivesse instaurado um processo administrativo, Moro estaria inelegível.

Para ele, a Lava Jato transformou o ato de colocar a mídia dentro do processo judicial em algo industrial e comum, o que é prejudicial para o sistema judiciário.

 

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04
Nov21

O indiciamento do presidente por crimes contra a humanidade

Talis Andrade

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por Marcelo Semer

O presidente da República está prestes a ser indiciado pelo cometimento de diversos delitos, inclusive crimes contra a humanidade, pela intencional e desastrada condução das políticas públicas em face da pandemia do coronavírus, que levaram o país ao podium mundial de mortos, com mais de seiscentas mil vidas perdidas. 

Até agora, Bolsonaro tem sido beneficiado por um conjunto de diques de contenção: de um lado, o Procurador Geral da República, escolhido a dedo, fora das indicações da carreira, e que tem levado o Ministério Público Federal, sempre tão combativo, ao silêncio, quando não à defesa do próprio governo; de outro, o presidente da Câmara dos Deputados, a quem aliou-se politicamente, mediante a concessão de cargos e verbas, que mantém devidamente engavetados dezenas de pedidos de abertura de impeachment. 

Outros presidentes não tiveram a mesma sorte: Michel Temer chegou a ser denunciado criminalmente pelo então procurador-geral Rodrigo Janot; Dilma Roussef sofreu a vindita do deputado Eduardo Cunha (afastado e condenado pela Justiça e por seus pares, mas só depois de comandar o impeachment) e Fernando Collor de Mello sofreu tanto o processo político quanto o criminal. 

Enfim, com um relatório altamente fundamentado, depois de seis meses de funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado, que ouviu mais de 60 pessoas, e nutrido por consistentes pareceres jurídicos, as acusações contra Jair Bolsonaro são em gênero, número e grau, muito mais lesivas e impactantes do que as que suportaram seus antecessores. 

É hora, então, de se aguardar para saber se, afinal de contas, as instituições permanecem mesmo funcionando. Ou se o sistema político-jurídico de blindagem vai jogar as mais sérias imputações até então deduzidas contra um presidente da República para debaixo do tapete. E se a mídia, que tanto se escandaliza com gastos além do teto, apontará, com igual destaque, a indignidade dos omissos.

O que se apurou em meses de comissão parlamentar, e paralelamente em fundados estudos a ela encaminhados, como por exemplo o do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP coordenado pelos professores Deisy Ventura e Fernando Aith, é que os drásticos resultados da pandemia no país decorreram de opções políticas tomadas pessoalmente pelo presidente da República. 

Assim, as enormes dificuldades para a efetivação do isolamento social por aqui foram consequências diretas do esforço em sentido contrário empreendido por Jair Bolsonaro, seja na edição de decretos que buscaram liberar atividades comerciais ao máximo, seja pela luta política e jurídica contra as medidas de isolamento nos Estados, seja no exemplo quase cotidiano do presidente, ele mesmo, sem intermediários, promovendo aglomerações à sua volta. 

O uso de máscara, talvez a mais bem sucedida das profilaxias não farmacológicas contra a disseminação do vírus, foi bombardeado diuturnamente pelo presidente, que: não a usava na maioria de seus eventos políticos (tanto que restou autuado em diversos deles); criticava sua eficácia, com base em fake news (como a live em que sugeria ser o apetrecho responsável pela redução da oxigenação do sangue); e como se não bastasse retirava à força, máscaras de crianças em plena aglomeração. Por fim, sugeriu inúmeras vezes que o ministro da Saúde providenciasse ato normativo para abolir a obrigatoriedade de seu uso, ainda sob patamares incipientes de imunização.

A imunização, aliás, foi o maior entre seus pecados capitais. 

Constituiu um gabinete paralelo que simulou subsídios científicos para dar sustentação à tresloucada tese da imunização de rebanho, pela qual nenhuma medida seria realmente necessária para contornar uma epidemia que se esvairia por si só, assim que atingisse um certo patamar de contaminação. O deputado Osmar Terra passou um ano e meio fixando datas próximas para o “fim da pandemia”, que o presidente repetia em rede nacional, sem se ater ao fato de que: a-) mesmo as pessoas já contaminadas poderiam ser novamente infectadas; b-) mais de um milhão e meio de brasileiros teria morrido na espera de que todos pudessem ser naturalmente imunizados -o que, aliás, não aconteceu em lugar nenhum do planeta mesmo depois de quase dois anos de pandemia.

À custa da defesa desta tese -inúmeras vezes enunciada pelo presidente- atrasou-se enormemente a aquisição de vacinas, postergando-se a imunização -e, com isso, ampliando exponencialmente o número de mortos. Bolsonaro disse não à “vacina chinesa”, o que atrasou por meses o início da imunização e, ao mesmo tempo, ignorou dezenas de ofertas da Pfizer, buscando pretextos jurídicos ou econômicos para negar sua compra. À inquietação da população que via o tempo passar e as mortes se multiplicarem, seu ministro da Saúde, aquele que expressamente dizia ser o homem que lhe obedecia, indagava: “para que tanta ansiedade?”.

Sua luta contra a vacina tem perdurado mesmo depois da inequívoca comprovação do sucesso contra o vírus. Bolsonaro fez questão de desfilar na Assembleia Geral das Nações Unidas como o único chefe de Estado não vacinado e, ainda após apresentação do relatório da CPI, teve tempo para a disseminação de mais uma mentira maliciosa, relacionando o vírus da AIDS à imunização. 

Considerando que ainda metade do país ainda não está totalmente vacinada e mais de vinte milhões de brasileiros estão com a segunda dose atrasada, a persistência da luta contra a vacina certamente significará mais mortes.  Estivesse o presidente já sendo processado criminalmente em alguma das milhares de varas pelo país, uma reiteração delituosa tão desbragada certamente justificaria a decretação da prisão preventiva.

Mas se isolamento, máscaras e vacinas eram ignorados de forma sistemática, o presidente da República, com o aval tabajara de seu gabinete paralelo, tentou construir com medicamentos sabidamente ineficazes, um álibi para o negacionismo: o kit covid, do qual o presidente foi, mais uma vez, o principal garoto propaganda. 

Para empurrar a cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina garganta abaixo dos brasileiros, ele fez anúncio em cadeia nacional, gastou fábulas por meio das coniventes Forças Armadas, demitiu dois de seus ministros da saúde resistentes à farsa e, sob o abrigo cúmplice da direção do Conselho Federal de Medicina, bateu-se pela “autonomia médica” como reforço a seu charlatanismo. Como a CPI expôs de forma contundente, o braço privado de seu gabinete paralelo, a Prevent Senior, obrigava seus médicos a ministrar tais remédios, ao mesmo tempo em que escondia números daqueles que morriam após o tratamento. 

De outro lado, uma falsa sobrenotificação de mortes, também havia sido propagandeada pelo presidente, após adulteração de suposto estudo do Tribunal de Contas da União, por meio de um relatório renegado, que chegou às suas mãos coincidentemente pelo filho de um grande amigo.

Conseguir o feito de ultrapassar a marca de 600.000 mortos (atrás apenas dos Estados Unidos, por enquanto) não foi fácil: foi um verdadeiro tour de force do governo Bolsonaro, capitaneado pelo presidente em pessoa: provocações a governadores, pressão sobre Judiciário, ostensiva publicidade paga com o dinheiro público e uma subterrânea rede de propagação de fake news, repleta de tentáculos em diversos veículos de mídia, blogs, templos etc.

Pode ser que essas milhares de almas tenham sido perdidas como um instrumento para vitaminar sua própria sobrevivência política, evitando que a desaceleração na economia colocasse à prova suas promessas eleitorais -teriam sido, ademais, mortes em vão, porque tem sido justamente o retardo na redução de mortes e casos, que mais prejudica o país, inclusive na economia.

Mas o fato é que olhando retrospectivamente, todos os pilares que o governo Bolsonaro apresentou a partir de 2019, quando iniciou sua gestão, justificavam as condutas que viriam a desenvolver na pandemia: 

a-) a ânsia pela desregulamentação e esvaziamento do poder fiscalizatório, e o predomínio de uma suposta liberdade de matar e desmatar, se casam perfeitamente com a repulsa tão consistente quanto inexplicável, ao uso da máscara protetora e do respeito às regras sanitárias; 

b-) o terraplanismo com que se tentou reescrever a história do país -e por mais incrível que parecesse, também a geografia- reflete-se no contínuo negacionismo acerca da gravidade da pandemia, aliada à propagação de inúmeras teorias da conspiração, com as quais, entre outras providências grotescas, propagou-se o boato de enterros com caixões vazios, emulou-se a invasão a hospitais para desvelar a “mentira” da lotação dos leitos e reproduziu-se a abjeta expressão “vírus chinês”, propositadamente hostil; 

c-) o pensamento mágico que circunda a imagem do presidente (a consideração de “mito” mesclado com a visão de um escolhido) incorporam-se no apego desmesurado ao tratamento precoce e a ideia de um fármaco salvador que ajudaram a compor a tônica do negacionismo (não é tão grave se é curável); 

d-) o darwinismo social, a ideia de que só os mais fortes sobrevivem impulsiona a aceitação da imunidade de rebanho, traduzida pela lógica de que todos os brasileiros iriam pegar a doença e apenas os mais fracos, os que tem comorbidade ou não tem “histórico de atleta” seriam mortos ou sequelados. A ânsia de cravar essa diferenciação levou o presidente a reclamar, em reunião ministerial, de atestado de óbito de um militar (por não darem destaque às comorbidades), a chamar de “bundões” os jornalistas pelo sedentarismo e aduzir a repulsa ao “país de maricas”; 

e-) a inserção no horizonte internacional, a partir da adesão ao antiglobalismo trumpista, conduzido, sobretudo, pelo então chanceler Ernesto Araújo, levou o governo à colisão com a OMS e o desprezo a quaisquer iniciativas globais, o que viria também a dificultar a inserção no mercado das vacinas. 

A visão de mundo do bolsonarismo é um conjunto destes elementos: a política da destruição, a lógica da irracionalidade que estimula o fanatismo, o retorno a um passado idílico sem amarras politicamente corretas, em que os fortes possam prevalecer sem perder tempo para cuidar dos ficam pelo caminho. A reverência às milícias e o desprezo aos indígenas mostra bem de que lado da morte o presidente se posiciona. 

Mas seja por fidelidade à racionalidade da destruição, seja para minorar desgastes eleitorais, o fato é que milhares de vidas foram sacrificadas por interesses menores, políticos ou pessoais, a partir de decisões que nasceram no círculo mais íntimo do poder. 

Rigorosamente todas as ações contrárias ao bom senso e lesivas à saúde, ostentam as digitais de Jair Bolsonaro -as mesmas que, por justiça, agora se espera sejam colhidas em seu indiciamento.

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11
Abr21

Justiça e ditadura: notas acerca do legado autoritário

Talis Andrade

 

 

por Marcelo Semer /Justificando

Para discutir Judiciário, crise e democracia, objeto de análise em uma obra que homenageou o jurista Pedro Serrano[1], me debrucei sobre o legado autoritário e seus reflexos no Poder. É oportuno retomar o tema, sobretudo, quando ainda existem governantes que celebram o golpe militar e a própria “comemoração” chega a ser autorizada judicialmente. 

Ingo Muller relatando a história d’Os Juristas do Horror, explica como os magistrados alemães tiveram muito mais dificuldade em conviver com a República de Weimar[2] do que propriamente com os nazistas, a quem saudaram logo de cara:

A maioria dos juízes alemães foram rápidos em resolver suas dúvidas, no entanto, apesar do ‘Decreto para a Proteção do Povo Alemão’ e o ‘Decreto para a Proteção do Povo e do Estado’ (…) apesar das táticas de terror da SA durante a campanha eleitoral de 1933 e as manobras de golpe que permitiram a ela controlar a polícia na maioria das províncias alemãs, o Conselho de Juízes da Federação emitiu uma declaração em 19 de março que expressava aprovação quanto à ‘vontade do novo governo em por fim ao imenso sofrimento do povo alemão’ e ofereceu sua cooperação na ‘tarefa de reconstrução nacional”.”[3]

Não se pode dizer que o Judiciário brasileiro teve para com a nossa ditadura um relacionamento muito mais distante ou abertamente conflituoso, em que pese momentos  de confronto, de lado a lado, como a cassação dos ministros do STF, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, ou a condenação da União à indenização no caso Herzog. 

A participação do Judiciário em 1964 se inicia nos primórdios do golpe, com a tácita anuência do STF à falsa declaração de vacância de João Goulart em sessão do Parlamento, a pedalada com que se buscou, sem muita convicção, dar uma mínima roupagem jurídica ao golpe. Lembra Alexandre Zaidan Carvalho que o presidente do STF, Álvaro Ribeiro da Costa, não apenas participou da sessão no Congresso, como, dias após o golpe, em 17 de abril, discursou em apoio ao regime justificando o sacrifício provisório de algumas garantias constitucionais.[4]

Como observa Carvalho, a propósito, o uso político do léxico revolução teve significado peculiar, sobretudo, no discurso dos juristas empenhados em oferecer uma justificativa ao golpe[5]. De uma forma ou de outra, como se acostumou a aclarar nos momentos mais candentes de ruptura política, as instituições permaneceram funcionando, embora não muito mais do que formalmente. Com as severas restrições impostas pelos atos institucionais que foram seguidamente excluindo da apreciação judicial a lesão de determinados direitos (das cassações de políticos, do AI-1, aos habeas-corpus do AI-5), a jurisdição se tornava relativamente inócua no que referia à possibilidade de controle do poder. 

Para o historiador Robert Gellately, na Alemanha não houve necessidade de os nazistas realizarem um expurgo relevante no sistema policial e judicial porque a maior parte dos seus integrantes não teve qualquer dificuldade em se ajustar: 

“Muitos integrantes do quadro da polícia e da Justiça tinham simpatia pela abordagem nazista e ficaram felizes em fazer parte de um regime que queria combater o crime e dar a polícia mais poder para operar da maneira que achasse mais apropriada.”[6]

A violência ao Estado de Direito tende a ser normalizada, inserida na rotina, e fazendo parte dos novos paradigmas, como viemos a descobrir também por aqui. Como relata Lédio Rosa de Andrade:

“(…) por volta de 1975, em um Congresso Nacional dos Magistrados, o então juiz de Direito, João Baptista Herkenhoff (…)em sessão plenária, propôs uma moção pedindo tão-só a volta do Estado de Direito (não incluiu a palavra Democrático) e foi derrotado de forma esmagadora, recebendo apoio apenas de três ou quatro congressistas.”[7]

Nem toda repressão da ditadura funcionou pelo direito penal subterrâneo, à sorrelfa, escapando ao controle judicial. Parte das prisões resultou em processos criminais, apreciados na Justiça Militar e, por vezes, reapreciados no Supremo Tribunal Federal. Por certo, o controle se exercia apenas sobre uma face visível da violência de Estado, mas mesmo nesta, com escassa revisão, seja pela convergência, pela submissão, ou simples negação. Circunstância das mais relevantes sobre a validade das provas, fundamentalmente a confissão policial (o objeto do desejo das torturas) vem a ser analisada na Comissão Nacional da Verdade, e fornece uma pequena mostra de como o assunto havia sido tratado judicialmente:

De acordo com pesquisa conduzida por Swensson Junior, durante o regime militar de 1964 (…) o STF estabeleceu o entendimento de que as confissões extrajudiciais – aquelas obtidas na fase do inquérito policial militar, muitas vezes sob tortura – seriam admissíveis como prova quando testemunhadas e não contrariadas por outras provas (…) Como assentado no RC 1.255, as “confissões judiciais ou extrajudiciais valem pela sinceridade com que são feitas ou verdades nelas contidas(RC1.255, ministro relator Cordeiro Guerra, julgado em 20 de agosto de 1976).”[8]

Não se pode dizer que o panorama tenha se alterado significativamente no processo penal. O prestígio do inquérito policial representa uma correia de transmissão desde o CPP de 1941, de inspiração fascista, até os dias atuais, passando incólume e prestigiado não apenas pelas duas ditaduras, como pelos respectivos períodos de redemocratização. O abandono de um sistema inquisitorial jamais se concluiu por completo -a dificuldade em instituir hoje o Juiz das Garantias é uma mostra disso.

A transposição dos elementos de inquérito aos autos de um processo judicial permite que sejam utilizados como meios de prova, porque, a uma, não existe tarifação das provas que posicionem umas em relação a outras; a duas, porque o juiz se ampara no livre convencimento para amealhar, entre todos os elementos reunidos nos autos, provas para proferir a sua decisão. 

Os perigos desse método também já foram descritos por Jacinto Coutinho:

“Quando o juiz é o senhor plenipotenciário do processo –ou quase- e pode buscar e produzir a prova que quiser a qualquer momento (na fase de investigação e naquela processual), não só tende de sobremaneira para a acusação como, em alguns aspectos, faz pensar ser despiciendo o órgão acusatório”.[9]

A questão do aproveitamento do inquérito policial é um legado inquisitório que se combina com a livre apreciação da prova, com o que se mantém a dinâmica autoritária como epicentro do processo. Assim explica Ricardo Gloeckner, analisando a montagem do código, pelo então ministro Francisco Campos:

“Campos depositará em duas categorias estruturantes esta função extra-processual de ‘combate’ à criminalidade exercida pelo direito processual penal: a-) nas mãos dos juízes os poderes instrutórios (poderes instrutórios ex oficcio) e b-) nas mãos destes juízes o princípio da livre apreciação da prova. Em última instância, o julgador, repetindo-se como protagonista do processo penal, poderá produzir e interpretar, ‘em conformidade com a sua própria consciência’, os elementos probatórios. Temos, portanto, uma ideia de monopólio de prova no processo penal, garantindo aos magistrados uma ampla e irrestrita liberdade no campo semântico e pragmático.”[10]

Tais críticas também podem ser endereçadas ao Judiciário dos períodos democráticos, dada a enorme prevalência das permanências sobre as rupturas. Como explica Anthony Pereira, a judicialização da repressão brasileira é circunstância determinante para que os crimes contra a humanidade dos anos de chumbo, até hoje não tenham sido apurados[11], contrariando jurisprudência pacífica no âmbito do direito internacional. 

A ditadura se foi há mais de três décadas, mas o legado autoritário mantém-se presente no cotidiano das relações jurídicas. Isso tanto serve para normalizar a violência estatal (a omissão dos operadores do direito ao extermínio da juventude negra, por exemplo) como de incubação para novas aventuras autoritárias.


Notas:

[1] “Judiciário e democracia: quando a crise é o projeto”, in Democracia e Crise. Um olhar interdisciplinar na construção de perspectivas para o Estado brasileiro, LOPES, Anderson Bezerra e outros, Autonomia Literária, 2020.

[2] Los Juristas del Horror: La justicia de Hitler. El pasado que Alemania no puede dejar atrás. Tradução: Carlos Armando Figueiredo [para o espanhol]. Bogotá: Alavaro Nora, 2014:“Quando o Império Alemão chegou ao fim e um social-democrata declarou uma república, foi um golpe terrível para os membros do Judiciário que tinham sido muito monárquicos. ‘Toda a majestade caiu’, lamentou o primaz da Federação dos juízes, Johannes Leeb, ‘incluindo a majestade da lei’. Nas leis da república, ele viu um ‘espírito de mentira’, ‘um direito bastardo de partido e classe’.” (p. 21/2). 

[3] Idem, p. 58. 

[4] “Entre o dever da toga e o apoio à farda. Independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 32, nº 94, junho/2017.

[5] Idem, p. 4: “Nas manifestações públicas de aclamação da subida ao poder dos militares pelos juristas, a característica mais marcante foi a negação da expressão ‘golpe de Estado’…

[6] Apoiando Hitler. Consentimento e coerção na Alemanha nazista. Trad. Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 46.

[7] O que é Direito Alternativo. Florianópolis, Editora Obra Jurídica, 1998, p. 14.

[8] BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório final. Brasília, Governo Federal, 2014. Disponível em http://www.cnv.gov.br/

[9] “Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado”, in Revista de Informação Legislativa. Senado Federal, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009, p. 111

[10] Autoritarismo e Processo Penal: Uma genealogia das ideias autoritárias no Processo Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Tirant lo Blanch, 2018, p. 132.

[11] “Via judicial da repressão evitou mortes, afirma brasilianista”. Folha de S. Paulo, edição de 05/04/2004, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0504200414.htm.

01
Ago18

A justiça hoje em quatro paradoxos

Talis Andrade

O juiz que sempre condena, porque isso agrada, só agrada quando condena. Ele não tem poder, ao revés, está condenado a condenar. É réu de si mesmo.

 

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por Marcelo Semer

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Não é fácil lembrar-se de um momento em que a credibilidade do Judiciário estivesse tão arranhada quanto agora. A falta de confiança generalizada e uma avaliação negativa de forma assim persistente. Paradoxalmente, todavia, vivemos um dos momentos de maior demanda à Justiça, seja pelo extraordinário volume de ações que ingressam diariamente, seja pela competência cada vez mais ampliada dos pedidos, levando a judicialização ao patamar nunca antes na história – a começar pela própria incumbência de substituir nada menos do que o eleitor.

 

Essa inusitada contradição lembra a historieta que Woody Allen conta em Noiva Neurótica, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), sobre duas idosas residentes em um asilo. A primeira diz algo como: nossa, é muito ruim a comida daqui não é mesmo? A outra responde: e o pior é que é pouca….

 

Algo mais ou menos similar acontece hoje com o Judiciário: não obstante as críticas se avolumem, expandem também as suas competências. E não só devido à sua própria intromissão na vida política. Dado o princípio da inércia, juízes não procedem de ofício, não há judicialização da política que não tivesse antes sido pleiteada por algumas das partes.

 

Antoine Garapon, juiz francês e um importante pensador do Direito, deu pistas sobre o assunto quando lançou seu mais famoso livro, Guardião das promessas – Juez y democracia na versão espanhola (1997). Muito do diagnóstico sobre a excessiva judicialização que via na França, em 1996, cai como uma luva para o momento atual do Brasil:

 

“A virada judicial da vida política – primeiro fenômeno – vê na justiça o último refúgio de um ideal democrático desencantado.”

 

“O ativismo judicial, que é o sintoma mais aparente, nada mais é do que o fragmento de um mecanismo complexo que envolve o enfraquecimento do Estado …”

 

“O juiz aparece como um recurso contra a implosão de sociedades democráticas que não conseguem controlar de outra maneira a complexidade e diversidade que elas geram.”

 

“A mídia, sob o pretexto de garantir a máxima transparência, pode privar os cidadãos de garantias mínimas – como a presunção de inocência – para manter a ilusão de uma democracia direta.”

 

“(…) políticos (…) usam a justiça para enfraquecer seus adversários.”

 

“O jornalismo de investigação se transformou em um jornalismo de delação. São todos denunciando todos.”
A ideia central que desenvolve é a expectativa de que os juízes certamente iriam angariar uma enorme descrença quando o papel de guardião de promessas, no que haviam sido artificialmente investidos, se revelasse ineficaz. Mas, acrescento, o sonho de fama, poder ou prestígio dificilmente os faria evitar esse percurso.

 

E aqui reside um segundo paradoxo, um pouco menos perceptível, mas nem por isso menos real. Embora à primeira vista, a extensa amplitude das competências possa indicar que se pavimenta um caminho para a tão temível ditadura dos juízes, o que se revela por trás disso é, na verdade, um esvaziamento de poder. É o que se pode denominar protagonismo submisso.

 

Sim, certos juízes se transformaram em celebridades. Visitam camarotes oficiais e festas de smoking. Outros se intrometem nas escolhas próprias da administração. Sentenças são criadas em lacunas estratégicas e leis são interpretadas ao bom gosto da voz das ruas, como convém aos arautos da popularidade. Mas a força maior do Judiciário não reside na ausculta da opinião pública, no apoio popular. Este é um grilhão para o juiz, não um par de asas.

 

O que confere poder ao juiz é justamente a capacidade de interpretar a Constituição e de ser o garante dos direitos fundamentais, à revelia, muitas vezes, do gosto popular. No modelo do constitucionalismo democrático, as maiorias também estão submetidas à defesa dos direitos fundamentais, mesmo e principalmente quando não concordem com eles. O juiz com poder não é aquele que condena com lastro no apoio popular ou o que é saudado pela multidão em júbilo; mas o que decide apesar das multidões ou mesmo contra elas.

 

A Constituição lhe garante poder; as maiorias lhe fazem refém. O juiz que sempre condena, porque isso agrada, só agrada quando condena. Ele não tem poder, ao revés, está condenado a condenar. É réu de si mesmo.

 

Esse protagonismo dos juízes, portanto, não é apenas submisso –é também suicida. Cavam a própria sepultura ao levar a decisão judicial aos píncaros da glória onde, afinal de contas, em dado momento, alguém há de se aperceber que ela já não é mais tão necessária assim.

 

O modelo democrático que nos impusemos na transição da ditadura de 1964 -1985 está calcado em quatro importantes pilares: as garantias do estado liberal, da qual não só não abrimos mão, como incrementamos (da liberdade de ir e vir à proibição peremptória da censura); as mecânicas próprias do Estado social, em especial o compromisso com a redução das desigualdades (direitos à educação, saúde, moradia); a concepção democrática, calcada na preservação da dignidade humana em um estado antropocêntrico (direitos fundamentais não submetidos à regra das maiorias); a supremacia dos direitos humanos sobre a soberania, com o reconhecimento da normativa internacional de tratados e convenções.

 

Para garantir a efetividade dessa plêiade de direitos, o constituinte previu dois mecanismos básicos: a-) as cláusulas pétreas, impedindo que mesmo os futuros legisladores pudessem revogá-los e; b-) a inafastabilidade do Judiciário para apreciação de qualquer lesão ou ameaça, com o quê o juiz assume o papel de verdadeiro garante desses direitos.

 

Mas eis que aqui impõe-se um terceiro paradoxo, que é, na verdade, bem conhecido na longa trajetória institucional brasileira: a combinação da legislação liberal com a prática autoritária. Mais especificamente, no caso, um amplo instrumental de direitos humanos conferido aos agentes que são, seguidamente, desestimulados a usá-lo.

 

Nem falo aqui da violência dos agentes do Estado propriamente dita, que consegue ser de maior dimensão na democracia do que fora na própria ditadura, que a empregou ostensiva e desavergonhadamente. Altíssimos índices de violência policial, por exemplo, quase sempre associada à pobreza e ao racismo. Mas sim do papel dos juízes, os garantes dos direitos sem os quais a Constituição não é muito mais do que, como dizem os chineses, um tigre de papel.

 

Mesmo os tímidos avanços do STF, no estreito hiato de tempo que podemos falar sobre eles, pouco penetraram na maioria dos tribunais brasileiros que, não raro, se fecham às suas próprias e consolidadas jurisprudências. Enquanto a sociedade viu a redemocratização tomar conta das instituições, após o fim dos anos de chumbo, esta jamais chegou ao campo do Judiciário, que ainda se rege com base em um entulho autoritário de 1979. Preserva-se a tradição nobiliárquica e a ideia da cidadania censitária –só quem possui título de desembargador pode votar nas suas eleições internas. O controle ideológico nunca saiu de moda, e tem sido cada vez mais utilizado para soterrar a ideia de magistrados cidadãos. E até mesmo decisões judiciais, em especial aquelas que afirmam direitos humanos, tem sido motivo para perseguição, repreensão ou censura.

 

Não há o que estranhar então, se de garantes da liberdade nos tornemos meros zeladores da ordem, agentes censores da moral, e, a depender do desejo de muitos, alguma espécie qualquer de polícia togada.

 

No último quarto de século, vários foram os esforços para tirar a magistratura deste atraso institucional. A criação de um órgão externo de controle, a adaptação de mecanismos de gestão para os atrasos longevos, a abertura das sessões administrativas tradicionalmente secretas. Os avanços foram tímidos e também se acomodaram diante de um corporativismo que só fez aguçar nestes tempos.

 

Mas as inclinações garantistas, justamente aquelas que expressam todo o arcabouço de direitos previsto pela Constituição, são vistas ainda com estranhamento, quando não preconceito dentro dos tribunais. Seus protagonistas ostentam o status de disfuncionais, quando detém, por exemplo, a jurisdição criminal.

 

Mas eis que agora o tempo nos trouxe o último dos paradoxos.

 

O Judiciário tanto vem demorando para se adequar ao modelo democrático que agora talvez nem precise mais. É o próprio modelo que está derretendo.

 

Um a um os pilares vão sendo corroídos.

 

Lá se foi o estado liberal e suas liberdades públicas, com o direito penal severo que brotou da constituição cidadã e o processo que virou garantia de punição, mesmo quando não condena. O estado de polícia assume o lugar do garantismo que, a bem da verdade, foi sem nunca ter sido. Certamente não repetiremos práticas nazistas como a polícia que se sobrepõe ao juiz, mas podemos dizer o mesmo dos juízes que assumem papéis da polícia?

 

A PEC do teto de gastos suspendeu o estado social por pelo menos vinte anos, de modo que o compromisso constitucional de redução de desigualdades vai ficar esperando mais um pouco, o que não parece preocupar em excesso o Judiciário, salvo com relação à intranquilidade de seus próprios vencimentos – há anos pendurados em uma medida de urgência processual.

 

A trava “objetiva” em que se pretendeu prender os magistrados com medo da política (como se ela tivesse estado ausente em algum momento), é hoje a mesma que a onda regressiva quer impor aos professores sob o bordão reacionário da “escola sem partido”, a pedagogia do opressor.

 

Como assinala Eugenio Raul Zaffaroni em Poder judiciário: crise, acertos e desacertos (1995), “o perfil público do juiz asséptico [sem ideologia] implica um terrível manejo autoritário da imagem pública da justiça e, ao mesmo tempo, uma fortíssima deterioração da identidade pessoal dos juízes (…) ao pretender que o juiz como pessoa possa ser neutro, por dotes pessoais que o situam acima dos conflitos humanos, associa-se à sua imagem pública um componente sobre-humano, ou divino, que obviamente não é mais do que um produto de manipulação…”. Lembra, ainda, Zaffaroni sobre o ministro da Justiça de Mussolini: “Rocco não pretendia uma magistratura fascista, senão uma magistratura “apolítica”.

 

A censura volta a passos largos. A tutela da moral já cobra pedágio dentro de museus. Mas é bem ver que a maioria de jornais não impressos, dos livros apreendidos ou espetáculos interditados provieram mesmo é de decisões judiciais.

 

E até o poder militar vai se fazendo cada vez mais presente nos escaninhos dessa esvaziada democracia, abarcando funções impróprias de segurança pública. No Rio de Janeiro, juízes fizeram um manifesto de apoio à intervenção, até porque ordem, disciplina e hierarquia nunca foram mesmo produtos em falta no armazém judicial.

 

Fracasso de público e crítica, o Judiciário parece estar, todavia, em dia com os novos rumos que a política institucional está tomando. E sim, este é um paradoxo ainda mais assustador.

 

 

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