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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

12
Fev23

Espetáculo de circo traz arte, cultura, dança e política brasileiras aos palcos de Paris

Talis Andrade

Maíra Moraes no espetáculo '23 Fragments de ces derniers jours" (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, até 18 de fevereiro de 2023.
Maíra Moraes no espetáculo '23 Fragments de ces derniers jours" (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, até 18 de fevereiro de 2023. © João Saenger

Democracia, passinho, Constituição de 1988, forró, demarcação de terras indígenas, frevo, racismo e maracatu. Um espetáculo de circo, um mergulho (auto)reflexivo, uma sopa de Brasil. Tudo isso está no palco do espetáculo bilíngue de circo "23 fragments de ces derniers jours" (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz em Paris até 18 de fevereiro, no Teatro Silvia Monfort.

Idealizado pela "circógrafa" francesa Maroussia Diaz Verbèke e pelo coletivo Instrumento de Ver, de Brasília, o espetáculo incita a refletir sobre o momento histórico atual no Brasil.   

Maroussia contou à RFI sobre o processo de criação.

"O processo se deu em duas partes. A primeira, no Brasil, quando o coletivo Instrumento de Ver, de três mulheres artistas, me convidou para um festival de circo que elas organizam. Em seguida, a gente começou a trabalhar juntas com a pesquisa que elas já desenvolviam sobre objetos, e a nossa relação artística funcionou muito bem", explica.

Mas a situação política e artística no Brasil começou a se deteriorar muito, relembra, e ela então propôs continuar o trabalho na França, por meio de residências artísticas.

Destruição e fragmentos

"Eu cheguei ao Brasil no final de 2018. Foi um momento difícil para o país. Logo começou o governo de Bolsonaro e eu acompanhei o momento que, pelo menos no aspecto cultural, foi uma destruição", conta. 

"Então, a gente trabalhou, nesse início, com essa ideia de destruição, de fragmento, do tempo quebrado... É por isso que no espetáculo tem uma forte pulsação, necessária para enfrentar a situação que estávamos vivendo, porque a gente fez (um trabalho de) resistência lá no Brasil."

"A segunda parte do projeto foi desenvolvida na França, com a minha companhia, que se chama 'Le troisième cirque' (O Terceiro Circo), e eu convidei três artistas masculinos dançarinos, porque antes mesmo de conhecer o coletivo, eu já tinha um amor pelo Brasil, para onde já fui várias vezes e tive a chance de descobrir um pouco da cultura, do Carnaval e das danças brasileiras".

A circógrafa - palavra de vem de "circografia", neologismo que ela mesma criou para definir a escritura e a realização de um espetáculo de circo - tenta explicar em palavras o seu arrebatamento pelo Brasil, sua cultura e o Carnaval.

"É difícil explicar um amor. A gente ama antes de saber o porquê. Eu acho que as culturas francesa e brasileira são muito complementares. E eu encontrei no Brasil uma coisa que me faltava na França, que tem a ver com o prazer de viver, o prazer de estar juntos", sublinha a circógrafa francesa.

Lucas Cabral Maciel no espetáculo "23 Fragments de ces derniers jours" (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, de 8 a 18 de fevereiro de 2023.
Lucas Cabral Maciel no espetáculo "23 Fragments de ces derniers jours" (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, de 8 a 18 de fevereiro de 2023. © João Saenger

 

Carnaval como libertação

O carnaval é também um ponto de virada na trajetória do contorcionista e dançarino Lucas Cabral Maciel. Ele explica o poder do Carnaval sobre os corpos e como trouxe isso para o espetáculo. 

"Tem um momento no espetáculo em que a gente relata como o meu primeiro encontro com o Carnaval teve um efeito muito forte em mim. O Carnaval de Recife, em particular, com a força da música e do frevo e como aquilo realmente tirou uma trava que estava estabelecida há muito tempo em mim de não poder dançar, eu não me permitia. E foi o Carnaval que me permitiu, pois o Carnaval é a festa em que tudo pode, onde você pode ser, em teoria, pelo menos na fantasia, o que você quiser", reflete Lucas, que tem raízes pernambucanas, mas cresceu entre Salvador e Maceió. 

E eu acho muito importante que a gente entenda que Carnaval não é evento. Carnaval é significado. Carnaval é momento, é todo um sentido para quem vive, é uma maneira de afirmar a existência. Então, quando você vive isso e coloca os pés lá, é muito poderoso. E a gente tem de trazer um pouco dessa ideia para cá", conta Lucas, que dança frevo no espetáculo.

André Oliveira e Marco Motta no espetáculo « 23 Fragments de ces derniers jours » (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, de 8 a 18 de fevereiro de 2023.
André Oliveira e Marco Motta no espetáculo « 23 Fragments de ces derniers jours » (23 fragmentos dos últimos dias), em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, de 8 a 18 de fevereiro de 2023. © João Saenger

 

Racismo

E, por falar em corpos, o racismo é um dos temas tratados pelo dançarino e artista baiano Marco Motta, que mora há 13 anos em Madri.

"Eu falo de racismo dentro do show e sobre a questão linguística, do racismo no idioma e também sobre os corpos da gente. A forma como a gente se expressa com o corpo, por exemplo, varia dependendo da cultura de onde a gente vem", reflete Marco. 

"Eu faço breakdance, que é uma dança da diáspora africana norte-americana, e um pouco de capoeira, que é da diáspora africana no Brasil", explica o dançarino.   

O espetáculo já foi apresentado na Suíça, na Bélgica e em outras cidades francesas. O dançarino carioca André Oliveira, que estreia no circo com esta peça, conta como tem sido a recepção do público na Europa:

"São coisas que eles não conhecem, em geral. É interessante trazer essa vivência do nosso corpo brasileiro, da minha vivência na favela, com a minha dança, para o outro lado do mundo", conta. 

Julia Henning e André Oliveira no espetáculo "23 fragmentos dos últimos dias", em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, até 18 de fevereiro.
Julia Henning e André Oliveira no espetáculo "23 fragmentos dos últimos dias", em cartaz no Teatro Silvia Monfort, em Paris, até 18 de fevereiro. © João Saenger

 

Circo e política

Além do Carnaval e das danças típicas brasileiras, os 23 fragmentos destes últimos dias tratam de temas políticos atuais. Julia Henning, uma das fundadoras do coletivo Instrumento de Ver, de Brasília, criado em 2002 na capital federal, explica que o circo e a política andam de mãos dadas.

"A gente sempre lidou com o momento histórico, que é o que a gente entende como sendo o circo, a contemporaneidade, que não tem a ver exatamente com uma estética, mas tem a ver com o diálogo com o seu tempo e estar aberto às influências do momento; não estar desconectado do mundo", explica.

"Quando a Marisa chegou, a gente não hesitava em passar muito tempo discutindo sobre o assunto. E durante todo o processo de criação, a gente teve que manter a energia mesmo assim, porque foi depressivo, sim, para quem trabalha com cultura", diz Julia, referindo-se ao governo Bolsonaro (2019-2022).  

"Arte em geral é política. Desde que a gente começou, nós sempre estivemos abertas às influências do que está acontecendo no mundo, o que está acontecendo com a gente e como trazer isso para a cena", conclui.  

Maíra Moraes, artista circense desde os 18 anos e cofundadora do Instrumento de Ver, acrescenta: "No sistema de produção cultural do Brasil, a gente se reveza em todas as funções. A gente passa de artistas, acrobatas, para produtoras, para quem divulga, para quem limpa... Somos só nós três e temos que dar conta de tudo o que o coletivo precisa para sobreviver. Então, é inevitável a gente estar realmente por dentro de todos os movimentos".

Béatrice Martins, acrobata desde os 5 anos, a terceira integrante do coletivo Instrumento de Ver, resume o espetáculo: 

"É um espetáculo brasileiro. Fala sobre o Brasil, tem músicas totalmente brasileiras. Trazemos, além das acrobacias, danças típicas do Brasil. A gente trouxe toda essa brasilidade para o espetáculo aqui na França, um calorzinho brasileiro", fala.

Béatrice Martins e Lucas Cabral Maciel dançam no espetáculo 23 fragmentos dos últimos dias, em cartaz até 18 no fevereiro no Teatro Silvia Monfort, em Paris.
Béatrice Martins e Lucas Cabral Maciel dançam no espetáculo 23 fragmentos dos últimos dias, em cartaz até 18 no fevereiro no Teatro Silvia Monfort, em Paris. © João Saenger

 

Esperança e arte

As artistas do coletivo, que são também cocriadoras deste espetáculo,  frisam o jeito brasileiro de encarar as mazelas do dia a dia sem perder a esperança.

"A esperança está viva e tem a ver com arte. Parece com coisa inocente, mas é com a esperança que a gente constrói as coisas. E é matando a esperança que a gente destrói as coisas. A esperança é a única arma que a gente tem de construção de um novo mundo. E não é tão utópico, mas algo mais pragmático mesmo: eu preciso saber aonde eu quero chegar para construir os caminhos para ir até lá. Então, a esperança tem um lugar importantíssimo agora", completa Julia Henning.

O espetáculo "23 fragmentos dos últimos dias" deve ser apresentado no Rio de Janeiro e em São Paulo em meados de 2023. 


 
22
Ago22

Dia de Combate à Intolerância Religiosa é comemorado; entenda a escolha da data 21 de Janeiro

Talis Andrade

Intolerância Religiosa: termos como “chuta que é macumba” somam quase 55  mil menções desde 2018 nas redes sociais - Mundo NegroCombate à intolerância religiosa é ainda mais urgente no Brasil de hojeGuia de intolerância aponta para disseminação de ataques de cunho religioso  - 15/09/2019 - Cotidiano - Folha

21 de Janeiro é comemorado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído em Lei Nacional no ano de 2007. A data homenageia a baiana Gildásia dos Santos e Santos, Mãe Gilda, Iyalorixá (mãe de santo) vítima de intolerância religiosa.

No ano de 1999 a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) publicou uma reportagem no jornal Folha Universal utilizando uma foto da Mãe Gilda com a manchete "Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes". Após a publicação, a religiosa foi reconhecida pela sua foto, apesar de uma tarja preta ter sido colada sobre seus olhos. A edição teve uma tiragem de 1,3 milhão de exemplares, todos distribuídos gratuitamente em todo o País.

 

Após a publicação, a religiosa foi reconhecida pela sua foto, apesar de uma tarja preta ter sido colada sobre seus olhos

Após a publicação, a religiosa foi reconhecida pela sua foto, apesar de uma tarja preta ter sido colada sobre seus olhos (Foto: Reprodução Folha Universal)
 
 

A partir de então, ela e integrantes do terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, fundado por Mãe Gilda, passaram a sofrer perseguição por pessoas de outras religiões, além de integrantes do próprio Candomblé que acreditaram que a mãe de santo estava pregando contra sua religião. Com a crescente onda de perseguição, Mãe Gilda e seu marido foram agredidos, verbal e fisicamente, dentro das dependências do Terreiro. O local também foi depredado.Busto em homenagem a Mãe Gilda é atacado por criminoso - Lab Dicas  Jornalismo

Ato lembra 'Mãe Gilda' e celebra Dia Nacional de Combate à Intolerância  Religiosa - Notícia - Bahia Notícias

Mãe Gilda já sofria de alguns problemas de saúde e o quadro agravou-se após as agressões. Ela morreu no dia 21 de janeiro de 2000. No dia anterior à sua morte, a religiosa assinou procuração constituindo seus advogados para defender uma ação contra a Iurd, movida pela família, por danos morais e uso indevido da imagem.

A Igreja Universal foi condenada, mas entrou com recursos contra a decisão por mais de uma vez, levando o caso até o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em setembro de 2008, por fim, o STJ confirmou a condenação da Iurd, que ficou obrigada a publicar retratação no jornal Folha Universal e pagar indenização de R$ 145 mil para a família de Mãe Gilda.

Além da data em comemoração ao combate à intolerância, a legislação brasileira também define como crime prática, indução ou incitação ao preconceito de religião, bem como de raça, cor, etnia ou procedência nacional pela Lei nº 9.459 de 1997. A pena é de reclusão de dois a cinco anos e multa.

No 21 de janeiro, entidades religiosas, instituições da sociedade civil e vítimas de intolerância religiosa promovem reunião no Auditório da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Ceará (UFC), homenageando Mãe Gilda de Ogum na data que marca seu falecimento.

Segundo Sebastião Ramos, representante da Associação Brasileira de Apoio às Vítimas de Preconceito Religioso (Abravipre), o evento conta com a presença de pessoas de diversas religiões, em discussões sobre a liberdade de crença, direito garantido pela Constituição. "Formamos uma comissão para darmos continuidade a esse debate em Fortaleza, porque há muitos casos de intolerância religiosa no mundo inteiro, assim como também em Fortaleza", afirma.

Para o professor do Departamento de Geografia da UFC, Christian Dennys Monteiro de Oliveira, o dia 21 de janeiro representa um marco importante na trajetória de reconhecimento governamental de que o problema da intolerância ultrapassa a condição de crimes contra a pessoa humana e contra a cidadania.

"No período dos anos 1990 foi estabelecido uma convenção da Unesco que ditava normas a respeito da importância de se ter um diálogo inter-religioso como forma de reconhecimento de que cada religião, cada credo e cada crença deve ser reconhecida pelo outro como testemunho de convívio e fraternidade Universal", justifica. Para ele, a Lei aprovada em 2007 seguia o mesmo movimento que o Brasil já trilhava com a convenção estabelecida com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O encontro em 21 de janeiro, espaço para o depoimento de entidades e pessoas presentes, "chamando atenção para situações que devem ser sensibilizadas para que se evite esse crescimento da radicalização do fundamentalismo", explicou Christian. Ao encerramento, um cortejo segue até a sede do Maracatu Solar.Mais uma charge polmica envolvendo religio agora no Brasil

21 de Janeiro: Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa – MÃE GILDA  VIVE! | SINTEFPB – Sindicato dos Trabalhadores Federais da Educação Básica,  Profissional e Tecnológica da Paraíba

 

03
Jan22

"Certas ideias políticas não me enganam", diz Caetano Veloso a jornal francês

Talis Andrade

O jornal francês Libération traz uma longa entrevista nesta segunda-feira com Caetano Veloso, que explica as motivações estéticas e ideológicas de seu último disco, Meu Coco

O jornal francês Libération traz uma longa entrevista nesta segunda-feira (3) com Caetano Veloso. Aos 79 anos, o compositor e cantor baiano continua "convincente" em seu último disco, Meu Coco, assinala o Libé, que se interessou pelas motivações estéticas e ideológicas do novo álbum.

"Ele é capaz de associar em uma mesma canção tambores de maracatu, nuances de bossa-nova, arranjos de jazz, guitarras de rock e pitadas de pop. Outra característica típica da obra de Caetano é sua capacidade de sublimar o Brasil sem dar o menor sinal de nacionalismo", destaca o jornal francês. 

Para o jornalista Jacques Denis, que entrevistou o cantor por telefone, Caetano é um homem "decididamente conectado ao nosso tempo, sem dúvida preocupado com o passado". "O mais carioca dos baianos cultiva com esplendor a arte do paradoxo, permanecendo, apesar dos anos, este pensador tropicalista que pretendia revolucionar a música popular brasileira ao colocá-la em contato com os ecos do mundo", avalia o crítico. 

"Além de cantar as virtudes do samba, com alguns experts do gênero, o compositor brasileiro sabe elevar a voz contra os excessos populistas de Jair Bolsonaro (...) Com Caetano, tudo é possível (...)  Em seu labirinto estilístico, nunca nos perdemos, somos todos guiados por esta voz única", escreve o jornalista.

Na entrevista, Caetano evoca suas influências, que vão das conversas com João Gilberto à poesia concreta de Augusto de Campos. Ele explica, sobretudo, que o samba marca seu posicionamento estético.

Sobre a forte conotação política do disco Meu Coco, o baiano diz que as redes sociais propiciaram o surgimento da atual onda de extrema direita e aberrações políticas da pior espécie, como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, além de Donald Trump e Victor Orbán, na Hungria. Mas Caetano está convencido de que apesar das fake news propagadas nas redes, e que sustentam esse movimento internacional ultraconservador, "essas ideias podres não conseguirão mudar o senso da história".

Contrariamente a alguns artistas que preferiram se afastar do debate político desde a eleição de Bolsonaro, Caetano afirma que continua conectado ao mundo e à criação artística. Ele diz que respeita quem não quer interferir no debate público, embora sua natureza seja diferente. Por isso, ele gravou Não Vou Deixar, a canção mais explicitamente política do novo disco, na qual se dirige diretamente ao presidente do Brasil. 

21
Nov20

Consciência negra e seu dia

Talis Andrade

Zumbi (1927). Pintura de Antonio Parreiras (1860 – 1937) | Acervo do Museu Antonio Parreiras, Niterói

 

por Urariano Mota

- - -

Publiquei uma vez para o Dia da Consciência Negra, há 5 anos, que era preciso acordar todos os dias e arregalar bem os olhos para ver o que a névoa ideológica não deixava. Isto é, o que mais causava espanto: onde estavam os generais, almirantes e brigadeiros negros? Onde estavam os reitores, presidentes de senado, da câmara, governadores negros? Onde estavam as nossas misses e modelos negras? Onde estavam, de modo mais sério, os nossos grandes físicos e cientistas negros? Onde estão?

E não eram perguntas retóricas. Eu pedia que entendessem por que até os mulatos que pularam a cerca e o cerco da exclusão no Brasil, em um trabalho extraordinário, heroico e colossal de autoeducação, como havia sido o caso de Machado de Assis, viraram brancos. Pois não fazia muito tempo que um anúncio da Caixa Econômica Federal exibira um Machado de Assis ariano, bem distante do queimadinho de sol. Mas não só ele atestava a nossa glória de nação europeia. As imagens que viraram ícones de Carlos Gomes, de Castro Alves, ou num exemplo menos ilustre, de Roberto Marinho, todos eram brancos, ou quase brancos.

Mas hoje continuo e acrescento: quis a história que os pontos mais altos da arte e culturas brasileiras fossem atravessados ou inventados por negros e descendentes. Se a nossa cultura, como toda cultura do mundo, é mestiça, a nossa em particular encontra o seu elemento plástico no negro. Por ele, dele e nele se expressa melhor o nosso rosto nacional. E compreendam, porque eu quero dizer: ainda que se encontrem pessoas geniais, de pele branca, ou descendência direta de europeus, a sua expressão é mestiça quando brasileira. E penso e vou mais longe, porque dou um salto arriscado das artes até a ciência mais física. Penso, por exemplo, no gênio universal de Mário Schenberg, quando ele batizou o fenômeno de perda de energia nas estrelas com o nome de Efeito Urca, numa homenagem ao Cassino da Urca. Isso lá nas estrelas.

Mas é no térreo terreno das artes, da literatura, que a obra de brancos no Brasil é nacional porque é mestiça, quando não de cor acentuada de negros. Eu estou pensando agora nos quadro de Tereza Costa Rêgo onde, ela própria mestiça de pele clara, expressa misturada os temas da vida de Pernambuco. Para lembrar só um, menciono A Batalha de Tejucupapo.

No entanto, avancemos na mestiçagem para a cor mais preta. Para nada vezes nada falar sobre o gênio fundador de Machado de Assis, ou da rebeldia de futuro de Lima Barreto, penso de modo mais preciso, particular do meu ser, em Cruz e Souza.

Ainda sem saber que a expressão melhor da gente é arte, eu comecei a me interessar por literatura quando conheci em um dia remoto da adolescência o soneto Só! de Cruz e Sousa. Estes versos me estremeceram:

“Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;

Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito,

Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro…

Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!”

Quando eu li esse poema, senti que Cruz e Sousa parecia falar para mim, e no entanto falava da própria dor. Eu era adolescente e esses versos chegaram com força em um momento de profunda revolta, mais revolta que desalento. Então ali começou o meu longo e infindável aprendizado. Hoje sei que falamos do mundo quando falamos do mundo que vai dentro da gente.

Agora percebo que Cruz e Sousa falava assim tão profundo porque expressava a própria dor na sua maneira mais trágica e brasileira. Com a identidade da expulsão da felicidade, à qual teria direito por natureza, legitimidade, talento e amor das gentes.

A esta altura, noto como uma falta irreparável nada ter falado sobre a fecundação negra em nossa música popular e no carnaval. Maracatu de baque virado! Ele protesta por não ter sido chamado à luz destas linhas.

Melhor concluir como há cinco anos, pois haveria muito ainda a falar. Para o dia 20 de novembro, dia da consciência negra, que assinala a morte do grande Zumbi dos Palmares, destaco o ocorrido com o seu nome, no bairro do Zumbi no Recife. Quando pesquisei para o Dicionário Amoroso do Recife, pude ver que na língua portuguesa o nome Zumbi significa alma que vagueia a horas mortas, ou fantasma de animal morto, ou com o sentido último de ser o título do chefe de um quilombo, zambi. Estranho, não? Ou melhor, faz um sentido histórico, porque alma de assombração ou fantasma de animal morto lembra mais uma vingança póstuma contra um herói na luta contra a escravidão.

E quanto ao bairro? O Zumbi, no Recife, foi o Engenho de Ambrósio Machado, lugar de cultivo de cana no trabalho escravo, desde a dominação holandesa. O sociólogo e jornalista José Amaro Correia, amigo já falecido, assim me informou, lembrando o bairro onde ele morou na infância: “Diziam para as crianças: ‘Zumbi vai te pegar’. O medo que havia nos senhores de engenho foi transferido para os explorados. O explorado repetia à sua maneira a consciência do explorador. Até os meus 14 anos de idade, para mim e para todos os meninos, Zumbi não era coisa boa. Esse nome era associado ao bairro. Para as pessoas de fora, nós dizíamos que morávamos na Madalena. Nos anos 50, ainda falavam para as crianças que Zumbi ia voltar, como se fosse uma ameaça. Era o comentário, era o aviso na infância: ‘Zumbi vai voltar’. As mães do bairro diziam para os filhos: ‘não volte tarde, porque Zumbi pode te pegar’”

Assim pude ver a origem histórica do bairro e do seu nome. De lugar de escravos, de terras de senhor de engenho, a lugar onde voltaria Zumbi, desta vez como uma ameaça aos proprietários, e para os descendentes dos explorados, até hoje, como uma assombração, no registro dos dicionários. Que deveria receber um novo significado, que a consciência do novo tempo nos ensina. Deixo a sugestão para atualizar o verbete nos dicionários:

Zumbi, substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara coragem, que se levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de novembro, deu origem ao dia da consciência negra.

30
Jan20

Que rufem os tambores

Talis Andrade

É raríssimo encontrar alguém dentro da corporação militar com coragem suficiente para verbalizar o óbvio

 

26
Abr18

ENCONTRO COM EDSON RODRIGUES

Talis Andrade

Texto e fotos de Leonardo Antonio Dantas Silva

 

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O Recife tem certas surpresas que só os que vivem nos seus meandros têm conhecimento e delas usufruem com satisfação e orgulho.

 

Na tarde deste domingo, graças a um encontro coordenado por Nilo Otaviano (Orquestra Arruando), fomos presenteados com um encontro de virtuoses em torno do maestro e compositor Edson Rodrigues.

 

Recifense, nascido em 29 de março de 1942, estava ele festejando o seu 76º aniversário... Motivo bastante para que músicos dos mais diferentes grupos se reunissem no Bar Sabor Pernambuco (Rua da Guia) e promovesse um recital de música instrumental brasileira (choros e frevos) da mais alta categoria.

 

Estávamos numa reunião de família, um encontro fraterno de amigos, apreciadores das muitas qualidades do homenageado, uma das mais importantes figuras da música pernambucana dos nossos dias.

 

Autor de incontáveis sucessos, como o frevo instrumental "Duas Épocas" (1966), Regente da Banda da Cidade do Recife, Coordenador Musical do Frevança -- Encontro Nacional do Frevo e do Maracatu (1979-1989),Edson Carlos Rodrigues é figura de destaque no meio musical brasileiro.

 

Seria um nome internacional, caso tivesse migrado de sua terra, como o fez o saxofonista Moacir Silva (1940-2002), mas na sua modéstia continuou, como Lourenço da Fonseca Barbosa (Capiba), ancorado em sua cidade; "vivendo de glórias em pleno terreiro".

 

Mas a bondade de Edson Rodrigues e sua modéstia, o transformou em ídolo para todos nós, seus amigos, seus irmãos....

 

Ao chegar no Céu ele, por certo, ouvirá de São Pedro aquela frase, consagrada pelo poeta Manuel Bandeira,no seu poema "Irene no Céu":

 

" - Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Edson.. Você não precisa pedir licença."

 

 

 

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