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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

08
Jul21

"Temos provas cabais no caso Covaxin", diz Simone Tebet

Talis Andrade

Simone Tebet é escolhida candidata do MDB à presidência do Senado

"Não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno", afirma Simone Tebet

 

Líder da bancada feminina no Senado afirma que só falta CPI juntar todas as peças para comprovar irregularidades envolvendo a vacina indiana. Ela diz que antes de abrir processo de impeachment é preciso "pensar no país"

 

por Malu Delgado /DW

 

Líder da bancada feminina no Senado, Simone Tebet (MDB-MS) se projetou nacionalmente quando, em  2019, brigou dentro de seu partido para ser um nome alternativo à presidência da Casa. A investida não prosperou. Em 2020 ela voltou à carga e disputou com Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na primeira candidatura de uma mulher à presidência do Senado. Foi derrotada e nem seu próprio partido ficou ao seu lado integralmente.

Agora, à frente da bancada feminina, atuou para assegurar a participação das mulheres na CPI da Pandemia. Em um colegiado exclusivamente masculino, Tebet foi a parlamentar que arrancou, no depoimento do deputado federal bolsonarista Luis Miranda (DEM-DF), o envolvimento do líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), em suposto esquema de corrupção na aquisição da vacina indiana Covaxin contra a covid-19.

Nesta terça-feira (06/07), a senadora afirmou durante sessão da CPI que documentos apresentados pelo governo para rebater acusações de irregularidades nas negociações para compra da Covaxin foram fraudados, incluindo erros de grafia em inglês e indícios de montagem.

Em entrevista à DW Brasil, ela afirma já haver "provas cabais" no caso Covaxin e que "só falta juntar todas as peças e ouvir todas as testemunhas". Ao mesmo tempo, afirma que, antes de abrir um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, é preciso "pensar no país".

Filha de Ramez Tebet, que presidiu o Senado no início dos anos 2000, Simone agita discretamente os bastidores do MDB como uma opção de nome para a terceira via em 2022. A senadora diz acreditar que essa terceira via possa tirar Bolsonaro do segundo turno e se recusa a repetir o gesto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que deixou clara a intenção de votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso ocorra a disputa do petista com Bolsonaro em 2022.

"Quem é do centro democrático não pode responder a essa pergunta. O centro democrático, se quiser, tem todas as condições de estar no segundo turno. Pelo andar da carruagem, não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno. Então não é escolha de Sophia", afirma.

 

Malu Delgado entrevista Simone Tebet

DW Brasil: Tem sido marcante sua atuação na CPI da Covid. A senhora conseguiu arrancar o nome do líder do governo, Ricardo Barros (PP), no depoimento do deputado Luis Miranda [que denunciou suposto esquema de corrupção na compra de vacinas]. Foi sorte, intuição feminina, ou habilidade?

Simone Tebet: A política não pode mais viver sem as mulheres, não porque somos melhores, mas porque somos diferentes. Na CPI nós [a bancada feminina] somos mais detalhistas, ficamos mais atentas a certos tipos de sinais corporais, o tom emocional. Meu pai, que era criminalista, falava sempre que o depoente, quando entra numa fase de cansaço, e fica abalado, precisa de acolhimento e de se sentir protegido. Minha fala inicial ao deputado [que prestava depoimento] era invocar o espírito público. Fiz o processo reverso, disse que entendia a posição dele, porque ele não queria falar. Aí na primeira tentativa ele já soltou. Foi um conjunto de situações que levou a isso. Teve um pouco de tudo: destino, estar no lugar certo na hora certa, ter lembrado do que meu pai ensinou. Tive sorte.

 

Qual a importância da bancada feminina hoje, sobretudo num país cujo presidente com posturas misóginas?

A minha candidatura à presidência do Senado foi fundamental para que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco [DEM-MG] fizesse um compromisso com as senadoras, e muitas não votaram em mim, de criar a liderança da bancada feminina. Essa liderança permitiu às senadoras ter espaço no colégio de líderes. Com isso, nós emplacamos toda semana um projeto de interesse da mulher brasileira. Ou na igualdade salarial, como aprovado e que agora está na Câmara, ou no combate à violência à mulher. São projetos que fazem a diferença. Votamos nesta semana [passada] a criação de um tipo penal importante que é a violência psicológica, que não era tipificada.

A bancada feminina está surpreendendo positivamente o Senado. Para alguns têm até gerado algum incômodo. Quando pulamos para dentro da CPI, num gesto generoso do presidente do colegiado, senador Omar Aziz, isso mudou o rumo da comissão. Porque passou a ter uma voz da sensibilidade, do detalhe. A CPI já cumpriu uma missão que é comprovar a conduta errática, equivocada, negligente, negacionista do governo do presidente Bolsonaro em relação à pandemia e todas as consequências nefastas deste negacionismo, a ponto de hoje termos muito mais mortes do que teríamos se eles tivessem feito o dever de casa.

Isso vai constar no relatório e está comprovado. Quando a CPI já estava exaurindo seu objeto, tivemos outra denúncia bombástica, feita por um deputado bolsonarista, acusando outro deputado em rede nacional de corrupção. Coisa que eu nunca vi em meus 20 anos de vida pública. Começa agora uma nova fase da CPI. Sorte ou não, instinto, feeling, destino, foi feito por alguém da bancada feminina. Só homens teriam chegado a isso? Não sabemos dizer. Mas a participação feminina na CPI tem sido no mínimo a cereja do bolo.

 

A senhora diz que a CPI comprovou o negacionismo, a negligência e a omissão que levaram milhares de pessoas à morte. Mas a corrupção, que passa a ser investigada agora, parece erodir mais a base bolsonarista. Por quê?

Grande parte da sociedade se distanciou deste governo no momento em que se deu conta de que ele realmente foi omisso, negligente, agiu contra a ciência, contra a vida, a favor de uma tese obscura de imunidade de rebanho, uso de medicamentos ineficazes [tratamento precoce] e atrasando a compra de vacinas.

Uma parte significativa da população brasileira, e as pesquisas mostram isso, passou a não acreditar mais no governo e até a culpá-lo pelas mortes de familiares e amigos. Só que isso aconteceu e houve estagnação.

O presidente ainda tem um segmento muito firme com ele. Veio agora essa denúncia gravíssima, – crime de corrupção ativa e passiva, prevaricação, peculato, tráfico de influência – não de um único contrato, mas em relação a pelo menos três, e já se fala em "propinoduto", "vacinoduto".

O governo era tido como não conivente com a corrupção. Estamos hoje diante de uma travessia, em cima de uma ponte, e não sabemos para onde esse eleitor, que ainda confiava no governo, vai. Na minha modesta opinião, o eleitor vai atravessar essa ponte e abandonar essa base do governo. Não só fora, a opinião pública, mas também dentro do Congresso Nacional.

Começo a ver alguns congressistas do Centrão, que não são da cúpula, abandonando esse barco. Não estou dizendo que estamos caminhando para o impeachment. Estou dizendo que estamos caminhando para um governo que não vai ter mais a quantidade de congressistas o defendendo. Podem até continuar votando com o governo em pautas importantes para o país, como eu faço, mas não mais defendendo esse governo, como eu não faço.

 

A CPI passa agora a investigar denúncias referentes a três contratos de compra de vacinas?

Sim. No caso da Covaxin já temos provas e documentos. O contrato foi assinado antes da Medida Provisória que permitiria essa assinatura. Contrato é um ato administrativo. Você não pode fazer nada no direito público sem lei anterior que permita. Como o contrato [da Covaxin] seria de uso emergencial, não tinha ainda autorização por lei.

Isso dependeria de uma lei que permitiria a compra de vacinas autorizadas por uma autoridade sanitária indiana, e no Brasil não tínhamos essa lei ainda. Temos nota de empenho, contrato assinado, fax e documentos comprovando a tentativa de venda e um funcionário público que se recusou a assinar [a liberação de recursos] e foi pressionado. No caso da Covaxin só falta juntar todas as peças e ouvir todas as testemunhas.

 

E surgiu no meio do caminho outra denúncia, em relação a uma negociação para compra de doses vacina da AstraZeneca, com cobrança de propina.

Embora neste caso não tenhamos nenhuma materialidade, essa denúncia não foi negada pelo governo. O depoimento [do policial militar Luiz Paulo Dominguetti] ajudou a comprovar a autoria [do suposto esquema de propina]. Os autores e personagens envolvidos são os mesmos da Covaxin, onde, aí sim, temos provas cabais.

E, por fim, há um contrato maior ainda, que não se efetivou porque foram com muita sede ao pote, mas que é com o mesmo personagem. É o laboratório CanSino [Biologics], a vacina Convidecia. O contrato seria de R$ 5 bilhões.

Agora, acho que precisamos focar na Covaxin. Temos já a comprovação de que o negacionismo e a conduta errática do governo, sem contratação de vacinas no tempo devido, caracterizam crime contra a saúde pública e, inclusive, crime de responsabilidade aí.

Se a Câmara vai abrir impeachment é outra história. Mas já há elementos para o Ministério Público acionar os personagens na área cível e criminal. E, agora, temos também fortes indícios e elementos claros de crime de corrupção. A dúvida é quando a CPI vai tratar, e isso é um terceiro ponto, de prevaricação. Quem é que prevaricou?

 

Como parlamentar e com formação em direito, a senhora não considera que todos esses casos que citou justificam um pedido de impeachment?

Aí é uma decisão política. CPIs dão embasamento para um processo de impeachment, mas o objetivo principal é ter trazer elementos para encaminhar ao Ministério Público os indícios de irregularidades. O que se extrai de uma CPI são sim elementos que comprovam crime de responsabilidade. Mas é decisão política da Câmara dos Deputados acionar [o presidente] por crime de responsabilidade.

A CPI precisa ser concluída. Vamos precisar de pelo menos mais três semanas para amarrar as pontas. Vejo no dia a dia o governo perdendo apoio dentro do Congresso, vejo a economia combalida e vejo criando corpo a rejeição ao governo do presidente Bolsonaro. Talvez o que possa levar sim a se pensar na abertura de um processo de impeachment seja efetivamente essas três próximas semanas comprovando crime de corrupção dentro do Ministério da Saúde. Temos que aguardar.

 

Mas a senhora é a favor de um impeachment?

É preciso que os indícios se transformem em elementos de prova, e não só prova testemunhal, que é a mais frágil das provas. Precisamos amarrar as provas testemunhais com análises de vídeos, áudios, provas documentais, periciais. Isso leva duas, três semanas. É um momento delicado, de polarização nas redes sociais, de radicalismo.

Temos que pensar no país. Para abrir um processo de impeachment, antes de mais nada, é preciso saber se vai dar certo. A gente não sabe sequer se tem número, na Câmara, para abrir o processo e mandar ao Senado, que apura. Temos que ter equilíbrio emocional agora, usar a razão, além da emoção, para sentir tudo isso. É fundamental a CPI cumprir essa primeira fase, cumprir o tempo normal de jogo, antes da prorrogação, que ainda não terminou. Eu aguardaria.

 

Já há assinaturas necessárias para prorrogar a CPI, a senhora assinou, mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sinalizou abertamente que acatará.

Acho que ele pode estar sendo pressionado pela base governista para aguardar o término da CPI [o período oficial de 90 dias de funcionamento, que só se encerra ao final de julho], numa tentativa frustrada do governo de retirar assinaturas [a favor da prorrogação]. O governo não consegue retirar. Há um apelo popular.

 

A senhora sempre defendeu a terceira via em 2022. Pelas pesquisas atuais, está claro que o ex-presidente Lula é um candidato fortíssimo, e poderia vencer Bolsonaro. Há mesmo espaço para essa terceira via?

Sem a menor dúvida, mais do que nunca. E acho que essa terceira via poderia, inclusive, tirar Bolsonaro do segundo turno. Sessenta porcento não querem olhar para o retrovisor, para o passado, e não estão satisfeitos com o presente. Querem um nome novo para o futuro. Advogo que os partidos têm que lançar seus candidatos e, no final do ano, testados esses nomes, sentamos numa mesa para decidir quem pode representar a cara do Brasil que queremos. Não se pode, agora, sacar um nome da manga.

 

O seu nome está em algumas rodas. A senhora teria essa disposição?  O MDB bancaria seu nome?

A única certeza que eu tenho é que o MDB vai ser peça fundamental como foi, no passado, para unir o centro. O que não significa unir o centro com nome próprio. O ideal seria que tivéssemos alguém do MDB com envergadura e condições. Pode ser que tenha. Mas o que eu advogo é: o partido que uniu lá atrás, no momento mais delicado da história, hoje continua sendo o maior partido de centro.

O MDB em matéria de votos é fundamental nesse processo. E tem hoje um presidente muito equilibrado, que é o Baleia Rossi. O MDB vai ter um encontro, em 30 dias, para entender o seu papel exato. Vamos lançar candidato agora? Isso o partido ainda não definiu. Mas defendo que o MDB deve estar no centro da conversa. O que converge esse centro é a defesa das instituições democráticas que dia a dia são abaladas por esse governo. O país está sendo comandado por um governo tão à direita que conseguiu a façanha de colocar na mesma mesa todas as matrizes ideológicas.

 

A senhora quer tentar a reeleição ou colocará seu nome nesse projeto nacional?

Nunca fugi de responsabilidades, ainda que isso tenha custos políticos. Fui para a linha de frente na defesa intransigente da democracia, contra um governo que quer ditar regras contra minorias, num retrocesso humanitário, e tentando combater uma pauta tão conservadora a ponto de me jogar na oposição. Quando esse governo viola direitos sagrados, civis, as liberdades públicas, eu coloco esse projeto de defesa das instituições democráticas acima do meu projeto político. A princípio eu sou candidata à reeleição, mas não fujo do que o destino reservar para mim. Em política a gente não escolhe missão, ainda mais agora.

 

No início do governo Bolsonaro a senhora tinha muita interlocução, sobretudo com a equipe econômica. Hoje é oposição?

Sou independente, porque, de alguma forma, voto com o governo em tudo o que acho que é importante para o país. O que está me tirando desta independência é o fato de ver que nem mais pauta econômica o governo tem. Tem uma pauta eleitoreira. Apresentou uma reforma administrativa que de reforma não tem nada e jogou no colo do Congresso. Entrega uma reforma tributária que não é reforma, ali só tem aumento disfarçado de imposto para um segmento muito importante, que é o setor de serviços. Vão usar dinheiro público com fins eleitoreiros.

Eles estão brincando com a economia brasileira. Não consigo entender como o mercado ainda não visualizou isso. Eles podem quebrar o país, como a Dilma fez lá atrás. Os gastos públicos crescem, a receita caiu, vai ter aumento de inflação. Eles se recusam a cortar gastos, porque querem a agenda populista. A dúvida é se o Congresso vai cair nessa e se o Centrão vai se submeter a isso. O MDB se posicionou radicalmente contra esse engodo de reforma tributária.

 

Se houver segundo turno entre Lula em Bolsonaro em 2022, em quem a senhora vai votar?

Não respondo a essa questão porque é um erro de quem busca a terceira via responder. Quem é do centro democrático não pode responder a essa pergunta, a meu ver. Porque só divide quem está sentado numa mesma mesa. O centro democrático, se quiser, tem todas as condições de estar no segundo turno. Pelo andar da carruagem, como o santo é, sim, de barro, não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno. Então não é escolha de Sophia. Por tudo o que eu já disse, acho que a resposta está dada. Mas o externar isso enfraquece a construção de uma alternativa de poder. A terceira via é melhor, e eu acredito nela.

21
Jun21

Qual é o real tamanho da tragédia no Brasil?

Talis Andrade

 

Marca de meio milhão de mortos por covid-19, na verdade, já teria sido atingida há meses. Falta de clareza sobre o quadro real é obstáculo para políticas públicas e sustenta a falsa sensação de controle da doença

 

por Malu Delgado, na DW

O Brasil tem sido um caso mundial raro de acúmulo de erros no combate à doença desde o registro oficial do primeiro caso confirmado de covid-19, em 26 de fevereiro de 2020. Quase 16 meses depois do paciente 1 (nas estatísticas oficiais), o país supera a trágica marca de meio milhão de mortos e quase 18 milhões de infectados confirmados, como constava no painel mundial da Johns Hopkins University na tarde de 18 de junho de 2021. O pior é que o cenário, alertam cientistas, é certamente mais sombrio, e o tamanho da tragédia, maior e mais alarmante.

Estudos estatísticos conduzidos por cientistas brasileiros indicam que, tanto de óbitos quanto de número de infectados pelo coronavírus, a subnotificação atinge altos patamares. A falta de clareza sobre o quadro real é obstáculo para implementação mais racional de políticas públicas e muitas vezes sustenta a falsa sensação de controle da doença.

 

Vítimas seriam até 700 mil

 

O número mais realista de óbitos no Brasil hoje deve estar na casa de 700 mil, não estando afastada a possibilidade de o país chegar a 1 milhão de mortos até o final do ano, segundo afirmou à DW Brasila médica infectologista Ana Luiza Bierrenbach, autora de estudo sobre a subnotificação no país. A pesquisa conduzida por ela, que é conselheira técnica sênior da Vital Strategies, aponta que o Brasil tem pelo menos 30% mais óbitos e 60% mais infectados do que os números oficiais. “Na verdade, já chegamos a 500 mil mortos por volta de meados de abril”, assegura.

Divulgar apenas os casos confirmados, afirma a pesquisadora, é “muito mais confortável para governos”, no Brasil e no resto do mundo. “Existe a tendência de passar a reportar os casos confirmados e suspeitos, os prováveis, porque o dado obviamente é menor.”

Porém, para os infectologistas e epidemiologistas, acrescenta, precisam enxergar o quadro mais realista. “O que preconizamos é passar a falar não só dos confirmados, mas incluir em nossas notificações diárias o número de casos prováveis e suspeitos. Eles precisam se tornar conhecidos.”

O estudo estatístico, que é dinâmico e atualizado diariamente, tem como base de dados o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do SUS. Esse banco, cujo acesso é público, registra casos e óbitos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

“Pegamos todos esses casos de SRAS, os que eram covid-19 e os que não tinham nenhuma etiologia, nenhum agente etiológico [causador da doença] determinado. Em 2018, 2019, os números eram bem baixinhos. Acontece um boom obviamente a partir de março de 2020, e neste boom tem muitos casos e óbitos não confirmados como covid. Dado que não encontramos a etiologia, a única explicação possível é que seja covid, ou então no Brasil estamos tendo uma pandemia de outro agente respiratório que desconhecemos. Só pode ser covid”, atesta a infectologista.

 

“Em nenhum momento o país controlou número de óbitos”          

 

Além do número estarrecedor de casos letais, o imunologista Alessandro dos Santos Farias, coordenador de diagnóstico da Força-Tarefa contra a Covid-19 da Unicamp, aponta que o principal temor da classe científica é que o Brasil produza uma variante agressiva que leve o país à estaca zero. “A produção de variantes está relacionada ao número de pessoas infectadas. E nós somos o portfólio perfeito de novas variantes, de vírus replicando: temos vacinação lenta com contaminação alta”, explicou Farias, em entrevista à DW Brasil.

Para o pesquisador do Instituto de Biologia da Unicamp, que coordena um programa inovador de testagens, o número de infectados, hoje, deve ser de aproximadamente 50 milhões de pessoas, ou seja, quase três vezes maior do que as estatísticas oficiais registram. Não se pode dizer, segundo ele, que o Brasil estaria entrando numa terceira onda agora. “O Brasil é uma onda só. São picos dentro de uma mesma onda. O país, em nenhum momento, controlou o número de óbitos.”

A possibilidade de surgir uma nova variante para a qual não há cobertura vacinal, diz o pesquisador, é grande justamente pelo gigantesco número de infectados. Farias e os especialistas da Unicamp iniciam, neste mês, uma pesquisa inédita, por amostragem, que vai detectar as variantes em todas as 11 regiões do estado de São Paulo pelo PCR, de forma mais célere e mais barata, sem a necessidade de sequenciamento do vírus.

 

Sem perspectiva de testagem em massa

 

O Brasil, sustenta Alessandro Farias, não tem nenhuma perspectiva nacional para que sejam feitas testagens em massa. “A testagem de sintomáticos tem valor de diagnóstico, mas não tem valor epidemiológico. Não temos uma noção muito boa do que está acontecendo, e não temos perspectiva de testar em massa, de jeito nenhum”, diz. A Unicamp, na força-tarefa coordenada por Farias, já conseguiu testar 200 mil pessoas, o equivalente a 20% da população de Campinas. No Brasil inteiro, pontua o pesquisador, o governo federal testou apenas 135 mil pessoas. As pesquisas e aplicação de testes pela Unicamp foram financiados pelo Ministério Público do Trabalho.

Programas nacionais de testagem em massa, como fez a Alemanha, destaca o imunologista, são cruciais para manejar a abertura e fechamento de serviços e escolas, por exemplo. “A Alemanha chegou a testar 500 mil pessoas em um único dia”, exemplifica, acrescentando que o país europeu, assim como o Brasil, tem problemas com a velocidade da vacinação. No entanto, investe em testagem.

Quando a vacinação é rápida, explica Farias, o monitoramento de variantes é mais eficaz porque o índice de transmissão fica mais lento, o que não é o caso do Brasil:

Ficamos na torcida para a gente não gerar nada que nos leve a começar do zero de novo. Mas pode acontecer. Podemos ter uma variante em que os vacinados e recuperados não tenham nenhuma proteção. Começamos, aí, uma epidemia brasileira do zero. Isso é o que mais me assusta para o futuro. O presente já é sombrio: 2.700 mortes por dia é  um World Trade Center por dia.”

A produção nacional de vacinas, pelo Instituto Butantan e Fiocruz, observa o pesquisador, é a medida mais inteligente e importante tomada no país até agora. “Acreditamos que não vamos nos livrar deste vírus nunca mais. Não sei se teremos que vacinar a população todo ano, mas vamos conviver com o vírus e precisamos monitorar. É muito importante o Brasil ter a capacidade de ele mesmo produzir vacina.”

 

Estimativa de subnotificação é conservadora

 

A médica Ana Luiza Bierrenbach explica que como o banco de dados que foi base para o estudo de subnotificação registra apenas casos graves de síndrome de angústia respiratória ou de pessoas que morreram em ambiente hospitalar ou fora, ou foram internados, certamente as estatísticas são conservadoras. Significa dizer que a subnotificação de óbitos por covid-19, explica, é superior a 30%. “Em muitos casos leves as pessoas nem sequer procuraram fazer os testes. Essa subnotificação que conseguimos calcular é para casos graves e óbitos.”

Segundo a pesquisadora, a subnotificação certamente era maior em 2020, no início da pandemia, quando não havia testes e muitos assintomáticos nem sequer suspeitavam estar com doença. “Mais recentemente a proporção de subnotificação está diminuindo, o que é um mérito de estarmos fazendo mais diagnósticos. E mais diagnósticos oportunos. O que acontece é que pela progressão natural da doença, o vírus tem uma fase de se replicar na nasofaringe e, portanto, com um exame simples, o Swab, a gente consegue detectar. Mas depois o vírus vai para os tecidos, e a detecção do agente viral fica mais difícil”, diz, ressaltando que exame PCR, por exemplo, registra os resultados positivos se feito entre o quinto e oitavo dias da doença.

“Sempre contar casos e óbitos é importante para desenvolver e planejar políticas de saúde. Se a gente não sabe o numero de casos graves, não podemos alocar leitos hospitalares, [definir] quantos são necessários dependendo da fase da doença, quantos leitos de UTI precisamos, [qual a] quantidade de oxigênio que precisaremos para não passar como crise de Manaus. Remédios, recursos humanos e hospitalares são calculados a partir de números”, enfatiza Ana Luiza Bierrenbach.

A divulgação realista e “limpa” dos números acrescenta ela, é crucial também para sensibilizar e alertar a população. “Estamos realmente diante de uma crise muito grave. Ainda precisa ficar em casa. Morrem de 2.500 a 3.000 pessoas por dia no Brasil, e já fazem bons meses que temos mantido esse números.” O Chile, cita a pesquisadora, serve de alerta para o Brasil de que a vacinação, se alta, pode não aplacar a tragédia.

20
Mar21

“Lava Jato envolveu projeto de poder, e isso está documentado”

Talis Andrade

Cristiano Zanin. Foto Sylvio Sirangelo

 

DW - A batalha judicial capitaneada pelo advogado Cristiano Zanin em defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já dura mais de cinco anos. A vitória mais relevante ocorreu em 8 de março, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin decidiu anular todos os atos processuais tomados contra o petista pela Justiça Federal em Curitiba, que ficou conhecida como a sede da Operação Lava Jato. Com a decisão, Lula recuperou seus direitos políticos, o que o credencia como potencial candidato em 2022, e chacoalhou o campo político da esquerda à direita, no Brasil, em apenas uma semana.

“Essa decisão quebra a espinha dorsal das acusações feitas pela Lava Jato de Curitiba ao eliminar qualquer valor da Petrobras dirigido ao presidente Lula. Portanto, tem consequências no estado de inocência do presidente Lula”. Mas o caminho, admite o próprio Zanin em entrevista à DW Brasil, ainda parece ser longo.

No dia em que concedeu a entrevista, ao final do dia de quinta-feira (18/03), Zanin já preparava outros dois recursos ao Supremo. Um deles para assegurar que a decisão de Fachin não deveria ser submetida ao plenário do STF. O segundo, para questionar a decisão de Curitiba, tomada nesta semana, de manter os bens de Lula bloqueados, o que Zanin considera como “ato de rebeldia contínuo e sistemático” para asfixiar financeiramente o ex-presidente.

Na cruzada para provar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e a prática de Lawfare – “um fenômeno complexo, multifacetado e que ocupa lugar central na reflexão sobre as combalidas democracias constitucionais contemporâneas”, como reflete no livro que escreveu em 2019 –, o advogado aguarda para um período breve o julgamento, interrompido pelo STF também na semana passada, a pedido do ministro Kassio Nunes Marques, o indicado de Jair Bolsonaro para a corte.

Zanin já apresentou ao STF 11 petições com relatórios sobre o material da Operação Spoofing, a troca de mensagens entre Moro e os procuradores da Lava Jato, via Telegram. Um material, diz ele, “chocante”. “A Lava Jato envolveu, efetivamente, um projeto de poder e isso não é uma ilação. Está documentado no material que tivemos acesso.” O julgamento da suspeição de Moro, afirma, não terá consequências apenas para o caso de Lula, mas “restabelecerá a credibilidade do sistema de justiça perante os brasileiros e a comunidade jurídica internacional”.

Questionado se vê chances para uma reversão do cenário e nova cassação dos direitos políticos de Lula, Zanin assegura que, “do ponto de vista estritamente jurídico é praticamente impossível haver a reversão”. “Entendemos que o presidente Lula conservará todos os seus direitos políticos.” 

Malu Delgado entrevista Cristiano Zanin

A decisão do ministro do STF, Edson Fachin, de anular as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba referentes aos processos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e remetê-los à Justiça Federal em Brasília tem um caráter processual. Mas pode haver algum impacto de mérito?

Quando a Lava Jato produziu as denúncias contra o presidente Lula, ela utilizou como espinha dorsal a afirmação de que ele teria recebido valores de contratos específicos da Petrobras, vantagens indevidas. Ao longo de cinco anos, nós sempre sustentamos e demonstramos que nenhum valor da Petrobras foi destinado ao presidente Lula. O próprio ex-juiz Sergio Moro chegou a dizer em 2017, ao julgar um recurso contra a sentença no caso do tríplex, que não havia identificado, especificamente, nenhum valor destinado ao presidente Lula. O ministro Fachin julgou um dos habeas corpus que levamos, esse em 2019, sustentando a incompetência da Justiça Federal de Curitiba para analisar essas ações contra o presidente Lula. O ministro decidiu que efetivamente a Justiça Federal de Curitiba é incompetência para julgar essas ações contra Lula porque efetivamente não existe, não foi identificado, nenhum vínculo real com a Petrobras. Como consequência, declarou a nulidade de todos os atos decisórios relativos aos quatro processos que estavam em Curitiba, inclusive os atos decisórios que receberam essas quatro denúncias. A decisão transfere os processos para a Justiça Federal de Brasília, que voltam à fase embrionária, anterior ao recebimento das denúncias. Houve o afastamento das duas condenações que haviam sido impostas a Lula pela Justiça Federal de Curitiba, com o restabelecimento de seus direitos, inclusive dos direitos políticos. Então, embora a decisão seja sobre incompetência e nulidade dos atos processuais, ela também quebra a espinha dorsal das acusações feitas pela Lava Jato de Curitiba ao eliminar qualquer valor da Petrobras dirigido ao presidente Lula. Portanto, tem consequências no estado de inocência do presidente Lula. O presidente Lula é uma pessoa sem nenhuma condenação e tem todos os seus direitos estabelecidos desde a última segunda-feira [8 de março].

 

A Procuradoria-Geral da União (PGR) recorreu e o habeas corpus foi remetido, pelo ministro Fachin, ao plenário do STF. Qual a expectativa do senhor em relação a esse julgamento do plenário, não apenas em relação a resultado, mas prazos? Uma questão do lawfare diz respeito ao timing dos julgamentos. Podemos assistir a isso novamente?

Continuamos com a expectativa de que tanto esse habeas corpus quanto os demais casos correlatos que estão no Supremo sejam julgados pela Segunda Turma [colegiado do Supremo que analisa casos da Lava Jato]. Hoje [dia 18 de março] apresentamos uma petição insistindo na competência da Segunda Turma. Em 2018, quando um processo começou a ser analisado pela turma, os ministros decidiram, inclusive com o voto de Fachin, que a competência para analisar é da Segunda Turma, e não do plenário. Se são processos conexos, é necessário que o mesmo órgão julgador possa analisá-los para que as decisões sejam compatíveis e coerentes. Insistiremos na competência da Segunda Turma e temos relevantes fundamentos, de ordem pública, para pedir que o colegiado, e não o plenário, analise.

 

Ao fazer um pronunciamento na semana passada, o ex-presidente Lula reiterou que desde o início dos processos sua defesa argumentava sobre o foro dos processos. Qual sua opinião sobre esse timing do STF para analisar esses casos de Lula?

Para chegarmos ao Supremo, tivemos que construir uma base jurídica muito sólida. Desde a primeira manifestação escrita, alegamos a incompetência da Justiça de Curitiba, a suspeição do então juiz Sergio Moro, a suspeição dos procuradores da Lava Jato, o cerceamento de defesa, e também levamos provas de inocência. O normal seria que o juiz verificasse a presença daqueles vícios e tivesse, desde logo, declinado de julgar a ação e remetido ao juízo competente. Agora, olhando as mensagens que estamos analisando a partir de arquivos oficiais, com autorização do Supremo [da Operação Spoofing, troca de mensagens entre Moro e procuradores pelo Telegram], fica claro que os procuradores não tinham absolutamente nada, nenhum elemento de prova, que pudesse sequer levar a essa acusação. Mas eles fizeram essas acusações porque havia a predisposição de condenar e prender o ex-presidente Lula para alcançar objetivos políticos. Nós fizemos, desde a primeira manifestação escrita, o nosso papel, apontando todas as ilegalidades, apontando a falta de prova de culpa e as provas de inocência de que dispúnhamos. Lamentavelmente, isso teve que tramitar por todas as instâncias do Poder Judiciário do país até que chegasse ao STF onde estão sendo, agora, reconhecidas essas ilegalidades. O desejável seria que essas ilegalidades, esses vícios tivessem sido reconhecidos desde a origem. Não foi isso que aconteceu, e essa situação reforça a prática de lawfare à qual sempre sustentamos ao longo de cinco anos.

 

O juiz da 13ª Vara de Curitiba remeteu os processos a Brasília, mas decidiu manter os bens do ex-presidente Lula bloqueados. Como o sr. enxerga essa decisão? Ao chegar em Brasília, o juiz que analisará o caso pode anular ou não as provas já coletadas?

Quando os processos chegarem em Brasília, o juiz competente terá que tomar, basicamente, duas decisões. Primeiro é se ele recebe alguma das quatro denúncias apresentadas, verificar se existe justa-causa, diante de tudo o que sabemos atualmente, para abrir novamente essas ações penais. Na hipótese de decidir pela abertura das ações, o juiz também vai ter que decidir se algum ato de instrução realizado em Curitiba poderá ser reaproveitado nesses processos. São basicamente essas duas decisões iniciais que o juiz terá que tomar, insisto, num cenário em que estamos vendo a verdade nua e crua neste material que mostra que as acusações foram forjadas e esses atos de instrução estão todos comprometidos diante do conluio que havia entre o juiz Sergio Moro com os procuradores da força-tarefa, além de outras situações extremamente graves, como o levantamento ilegal de sigilo fiscal de pessoas relacionadas ao presidente Lula, a realização de cooperação com agências estrangeiras fora dos canais oficiais, dentre outras coisas. Todo esse cenário precisará, a meu ver, ser levado em consideração pelo novo juiz para que ele decida, inclusive, se é o caso de reabrir as ações penais.

 

E sobre os bens bloqueados?

Foi mais um ato de rebeldia, talvez o último da 13ª Vara Federal de Curitiba contra o STF. Essa situação de descumprimento crônico e sistemático de decisões do Supremo vem acontecendo de longa data. Essa decisão tomada ontem pela 13ª Vara, a meu ver, faz parte deste cenário. Uma vez reconhecida e decretada a incompetência da Vara, é evidente que o juiz não poderia tomar nenhuma outra decisão. O único papel seria cumprir a decisão da Suprema Corte e remeter os processos a Brasília. Por isso que ontem [dia 18] também levamos uma reclamação ao STF mostrando que, mais uma vez, no derradeiro ato, a 13ª Vara Federal de Curitiba insiste em afrontar as decisões do Supremo. Se o ministro Fachin anulou os atos, como sustentar agora a manutenção deste bloqueio? O que se tem, na verdade, é uma situação permanente e confirmada de perseguição, de prática de lawfare, um fenômeno que tem, aliás, em uma de suas táticas, a asfixia financeira da pessoa que se torna alvo para que ela não possa se defender. Esse bloqueio de bens faz parte deste cenário. Abriram inquérito para investigar o patrimônio do presidente Lula. Não identificaram absolutamente nada de ilícito. Sob qualquer ótica, a manutenção do bloqueio de bens não se sustenta e esperamos que seja revertida em breve pelo STF.

 

Em paralelo a essa questão do habeas corpus, há também o julgamento da suspeição do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, que foi suspenso. Como o senhor recebeu o pedido de vistas do ministro Kassio Nunes Marques [indicado por Jair Bolsonaro para a Corte]?

Apresentamos sólidos elementos sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro aqui nos tribunais brasileiros como também levamos, ainda em 2016, um comunicado individual ao comitê de direitos humanos da ONU mostrando exatamente que o presidente Lula estava sendo vítima de uma verdadeira cruzada capitaneada por um juiz que tinha pretensões e ambições políticas. Em 2018, o Comitê da ONU concedeu uma liminar inédita em relação ao Brasil para determinar que o país não impedisse a candidatura do presidente Lula, salvo se houvesse um processo justo e já concluído. Lamentavelmente, a decisão da ONU não foi cumprida. Para além disso, tivemos também em 2018 o início do julgamento deste habeas corpus da suspeição. Começou a ser julgado em 4 de dezembro de 2018. Ou seja, é uma questão que está no STF por alguns anos. Tínhamos a expectativa, evidentemente, de que na terça-feira a votação fosse concluída, sobretudo pelos votos contundentes proferidos pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Agora, não podemos também ignorar que o ministro Kassio Nunes chegou há pouco tempo no Supremo e, talvez, quisesse, legitimamente, um tempo maior para fazer sua reflexão sobre esse caso. É legítimo o pedido de vistas, diante desta circunstância, mas temos a expectativa, pela previsão regimental, de que o julgamento seja retomado num futuro próximo para que essa questão seja definida. Na minha visão, o julgamento diz respeito exclusivamente ao presidente Lula. O habeas corpus analisa a situação concreta e subjetiva do tratamento dado pelo então juiz Moro ao presidente Lula. Embora eu ache legítimo que outras pessoas possam questionar a suspeição do ex-juiz, esse caso analisado diz respeito exclusivamente ao presidente Lula e à situação concreta dele, por isso não vejo risco de repercussão, pelo menos imediata, maior e que possa atingir outros processos e condenações.

 

Vê riscos de o ex-presidente Lula perder novamente os direitos políticos?

A avaliação feita do ponto de vista estritamente jurídico me permite concluir que é praticamente impossível haver a reversão. Por que? A decisão tomada pelo ministro Fachin que resulta no restabelecimento dos direitos políticos de Lula está assentada em um precedente do plenário do Supremo, firmado em 2015, e vem sendo reafirmado dezenas de vezes no âmbito da Segunda Turma. Ou seja, só casos que envolvam valores desviados da Petrobras e que poderiam ser julgados pela Justiça Federal de Curitiba. Moro afirmou textualmente, em 2017, que nenhum valor da Petrobras havia sido destinado diretamente ao presidente Lula. Diante deste cenário, numa leitura estritamente jurídica, entendemos que seja praticamente impossível que haja a reversão da decisão do ministro Fachin e, por isso, entendemos que o presidente Lula conservará todos os seus direitos políticos, a despeito de haver o recurso da Procuradoria-Geral da República. Agora, por outro lado, o julgamento da suspeição do ex-ministro Sergio Moro é necessário não apenas pelos efeitos jurídicos que geraria para os processos do presidente Lula, mas também para restabelecer a credibilidade do sistema de justiça brasileiro. Esse julgamento sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro não só terá efeitos concretos nos processos do presidente Lula, mas também restabelecerá a credibilidade do sistema de justiça perante os brasileiros e a comunidade jurídica internacional.

 

As mensagens entre Moro e os procuradores da Lava Jato foi obtida por hacker e há um debate jurídico sobre a possibilidade de utilizá-las como provas. Cabe o uso dessas mensagens como provas? Nesta avaliação do material, houve alguma nova revelação?

Esse arquivo da Operação Spoofing foi apreendido e periciado pela Polícia Federal na época inclusive em que era comandada pelo ex-juiz Sergio Moro. Nosso acesso a esse arquivo foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal. Independentemente da origem do material, que está em discussão em outro processo do qual o ex-presidente Lula não tem qualquer relação, ele é sim meio de prova. Na doutrina, na literatura jurídica, tem a discussão se provas com origem ilícita podem ser utilizadas para acusar alguém. Para defender, é praticamente unânime a possibilidade do uso da prova. Quanto ao teor, até o momento levamos ao Supremo 11 petições contendo 11 relatórios preliminares de análises (das mensagens). A realidade nua e crua é impactante, verificar a forma como os procuradores e o então juiz Sergio Moro combinaram promover acusações contra o presidente Lula, como combinaram promover operações internacionais fora dos canais oficiais, como combinaram promover ataques contra os advogados do presidente Lula… Vimos ali, realmente, um mundo chocante em que aqueles membros da chamada Lava Jato viviam, não só pela aceitação e convivência com a ilegalidade, mas também pela forma como eles viam os inimigos e críticos da Lava Jato. Mostra uma visão totalitária por parte destes membros da Justiça e mostra que eles queriam e estavam construindo um projeto de poder. No caso do presidente Lula, eles construíram um “projeto Lula”, e descreveram as etapas que seriam cumpridas para alcançar os objetivos. Primeiro era promover acusações sistemáticas contra o presidente, embora soubessem que não havia provas para isso. Segundo: essas acusações sistemáticas visavam prejudicar a defesa. Eles diziam: os advogados não terão tempo sequer para se defender. Terceiro: planejavam fazer vazamentos contra o presidente Lula na imprensa, mesmo de material que sabiam ser absolutamente descabidos, porque queriam, literalmente, desgastar a imagem dele. Então o que temos ali, documentado, é exatamente as táticas de lawfare que descrevemos em nosso livro antes de ter acesso a esse material. E também vimos diversas conversas em que os membros da Lava Jato interagiam com grupos políticos e agentes políticos com a expectativa de eleger determinados candidatos que tinham “agenda compatível” com o que eles pensavam. Ou seja, os que tinham o poder de acusar, prender e julgar eram os mesmos que estavam atuando para impedir que algumas pessoas pudessem se candidatar, notadamente o presidente Lula. A Lava Jato envolveu, efetivamente, um projeto de poder e isso não é uma ilação. Está documentado no material que tivemos acesso.

 

O ex-ministro Sergio Moro pode ser candidato à Presidência. Esse material e o julgamento do caso inviabilizariam uma candidatura futura?

O que posso dizer é que, em 2016, em nosso comunicado à ONU, já dizíamos que o ex-ministro Sergio Moro estava utilizando o poder do Estado para praticar atos ilegítimos com objetivos políticos, inclusive de uma eventual candidatura. Agora o Brasil tem a oportunidade de conhecer, mais a fundo, esse material e a forma como o ex-juiz Sergio Moro conduziu a chamada Operação Lava Jato. E a partir deste conhecimento cada pessoa poderá fazer o seu juízo de valor. É importante que esse material realmente seja conhecido e estudado para que as pessoas possam ter a exata noção daquilo que ocorreu e possam até fazer uma reflexão crítica à ideia do herói que foi construída, com ajuda fundamental de parte da imprensa. Eu não teria como, sendo advogado, me posicionar se o ex-juiz deve ou não ser candidato, ou se ele é um candidato viável. O que eu acho importante é que, como qualquer pessoa que se apresenta para uma eleição, que as pessoas analisem o que ela, efetivamente, praticou ao longo do tempo.

 

O senhor disse que uma das estratégias do lawfare é a asfixia financeira de quem precisa se defender. Como é sua relação contratual com Lula? O sr. trabalha pro-bono, considerando que ele está com os bens bloqueados?

Eu não poderia, evidentemente, tratar de questões específicas de honorários advocatícios. Mas nossa relação com o presidente Lula é profissional, de cliente advogado. É importante lembrar que ele teve os bens bloqueados a partir do final de 2017. Somos advogados, profissionais. Completei neste ano 20 anos de advocacia. Já atuamos em outros casos complexos e decisivos e sabemos que, muitas vezes, a solução não acontece num curto prazo. Muitas vezes é necessário uma longa batalha até que a justiça seja feita. Vejo o caso do presidente Lula como um caso paradigmático de lawfare, que nos permitiu, inclusive, a construção de uma teoria sobre o fenômeno. Mas jamais deixamos de ter com ele uma relação profissional de advogado-cliente, a despeito de uma relação pessoal também, que uma situação como essa acaba gerando ou aperfeiçoando.

 

No livro que o senhor escreveu com Valeska Martins e Rafael Valim, sobre lawfare, há uma discussão sobre esse fenômeno e as ameaças ao estado democrático de direito e às democracias atuais. Vivemos um momento de intimidação no Brasil, com ameaças de morte a políticos – inclusive ao próprio ex-presidente Lula –, a jornalistas, cidadãos comuns. Como esse caso do ex-presidente Lula pode contribuir com esse debate do Lawfare e ações concretas?

O lawfare é um fenômeno, como escrevemos no livro, que acontece numa mesma dimensão de uma guerra convencional. Para atingir determinados fins ilegítimos, aqueles que praticam o lawfare escolhem a melhor jurisdição, escolhem a lei mais adequada – geralmente a mais violenta – para promover o fenômeno. Existe também uma parte fundamental que ocorre nas chamadas externalidades, que vem a ser justamente esse ambiente que é criado, muitas vezes com o uso da mídia e até mesmo com operações psicológicas, para tentar neutralizar a ilegalidade e a arbitrariedade inerentes à prática do lawfare. De um lado, você sabe que ações ilegais e arbitrárias estão acontecendo, e junto com isso há tentativas para tentar neutralizar essa visão, tentar normalizar determinadas práticas que não deveriam e não poderiam ser aceitas. Esse caso do presidente Lula contém todos os ingredientes, todas as táticas e técnicas do fenômeno do lawfare tal como nós descrevemos. O primeiro desafio do lawfare é você identificar a prática. As vítimas não são apenas políticos, e tampouco políticos de determinado setor, da esquerda. Ao contrário. Geralmente a porta de entrada do lawfare são as empresas que acabam sendo atacadas, coagidas a determinados comportamentos, já como meio de atingir, aí sim, as pessoas pré-definidas, os alvos efetivos. É um fenômeno que vem acontecendo com muita intensidade, não só no Brasil, como em diversos lugares do mundo, basicamente porque é uma forma muito mais barata de se promover uma guerra objetivando intenções econômicas, geopolíticas, políticas e comerciais do que seria algo mais ostensivo. O lawfare acaba dando um verniz jurídico e de correção a atos que não poderia, jamais, acontecer. O lawfare acaba interferindo na democracia dos países. Isso aconteceu aqui no Brasil. O presidente Lula foi vítima de uma grande armação e impedido de participar das eleições presidenciais no momento em que ocupava o primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto em 2018. Talvez o cenário do Brasil, hoje, fosse diferente se não tivesse ocorrido essa interferência pela via do lawfare.

ConJur - Livro brasileiro sobre lawfare será lançado em língua espanhola

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