Os moradores de favela movimentam cerca de R$ 63 bilhões/ano gerados pelo empreendedorismo de 24 empresas, agrupadas na Favela Holding
por Gustavo Krause
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“Quando você evita um termo para se livrar do estigma, como é o nome Favela, você reforça o estigma. Você não pode mudar o nome do lugar, mas você pode mudar a realidade”.
O autor é Celso Athayde, nascido em 1963, empresário, produtor de eventos e ativista social. Completando o currículo: nasceu na Baixada Fluminense, onde viveu até os sete anos, criado na Favela do Sapo. Antes de completar 20 anos, já havia morado em três favelas, em abrigos e na rua.
Hoje, autodidata, é coautor com o rapper MV Bill do livro Falcão – Mulheres do Tráfico, do documentário Falcão – Meninos do Tráfico, fontes para e Cabeça de Porco, livro de autoria do sociólogo Luiz Eduardo Soares.
A obra mais recente (três edições, a primeira em 2014), Um País Chamado Favela – A maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira, Renato Meirelles&Celso Atahyde, revela dados impressionantes sobre o desafiador fenômeno urbano brasileiro que expõe a cidade partida entre “o asfalto e a favela”.
Mesmo considerando a visão crítica da academia sobre a pesquisa, Luiz Eduardo Soares adverte: “A obra inaugura um novo momento, um tempo de abertura, liberdade crítica, diversidade. A era em que não é mais preciso crachá e diploma para se fazer ouvir e para escrever a história do nosso país”.
O ponto de partida foi a criação da CUFA, (Central Única das Favelas), idealizada e fundada por Celso Athayde em 1999, Organização Não-Governamental que promove um amplo e diversificado repertório de projetos sociais. Hoje, está presente nos 27 estados brasileiros em 17 países.
O conhecimento de quem teve a favela por berço não submeteu Celso ao destino da vitimização ou da idealização poética de que “morava pertinho do céu”. Entendia do assunto e se propôs a mudar, com a força da união, o roteiro da tragédia pessoal e social.
Criou o lema: “Favela não é carência, favela é potência”. Partiu da CUFA, para explorar o empreendedorismo social. Atualmente, é o CEO da Favela Holding, grupo de 24 empresas a exemplo de logística, passagens aéreas, economia criativa e vários segmentos que movimentam cerca de R$ 63 bilhões/ano.
A Favela Holding está lançando um fundo de venture capital de R$ 50 milhões para startups. Neste mês de abril, ocorreu, em São Paulo a 1ª Expo Favela. Em maio, Athayde receberá, em Davos, o Prêmio de Empreendedor de Impacto Social e Inovação da Fundação Schwab.
Por aqui, as favelas permanecem invisíveis para os governos.
Na TV GGN 20 horas de ontem – “A indústria de armas e o golpe de Bolsonaro” -. ficou nítido o grande desafio nacional: desmontar o esquema bélico montado por Bolsonaro desde que assumiu o poder, com o inacreditável beneplácito do Exército.
O entrevistado foi Luiz Eduardo Soares, um dos grandes especialistas em crime organizado no país.
Reportagem da BBC Brasil, mostrou um aumento de 33% na importação de armas em 2021, em relação a 2020. Não apenas isso. A importação de revólveres e pistolas aumentou 12% – 119.147 contra 105.912 de 2020. Já fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras tiveram aumento de 574%: 8.160 armas contra 1.211 de 2020.
O Exército – a quem caberia o controle dos armamentos – respondeu à reportagem não ter estudos sobre as causas do aumento. E garantiu que vem fazendo o rastreio e controle de armas e munições, “de acordo com a legislação”. Ora, Bolsonaro mudou a legislação – em iniciativa sancionada pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro -, praticamente acabando com o rastreamento. Significa que se, amanhã, algum soldado ou policial for assassinato por um miliciano, não haverá condições de saber por onde entraram as munições.
A importação de armas e munições deveria ser controlada pelo Comando Logístico do Exército Brasileiro, através da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. Teoricamente, deveria envolver procedimentos antes do embarque (emissão do Certificado Internacional de Importação (CII). Depois, a conferência física da mercadoria e, finalmente o desembaraço, a emissão da Guia de Tráfego, para o material ser transportado até o armazém do importador.
E o Exército nada sabe e nada diz.
Se o Exército quiser mais informações, poderá consultar uma ferramenta tecnológica inédita: o Google.
Veria, por exemplo, queum traficante de armas, chamado de Bala 40, valeu-se de registros de colecionador para adquirir armas e munições à maior facção criminosa do Rio de Janeiro.
Desde o primeiro mês do governo Bolsonaro, o GGN vem denunciando a montagem dessas milícias armadas – e que, certamente, serão ameaças reais no período eleitoral, especialmente entre as eleições e a posse, se Bolsonaro for derrotado.
Confira a impressionante soma de indícios mostrando a montagem dessa organização – e a covardia das instituições em combater esse avanço.
16.01 2019
Mal começava o governo Bolsonaro, denunciamos suas ligações com a indústria de armas.
O jogo da indústria de segurança com o esquema Bolsonaro ficou nítido no primeiro dia após as eleições, quando o governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o segundo filho, Carlos Bolsonaro, anunciaram ida imediata a Israel para negociar a compra de drones assassinos (https://goo.gl/tK4XfK). A indústria de segurança de Israel tem uma longa tradição de corrupção com o Brasil, iniciada com a venda de equipamentos superfaturados para o governo Quércia,
Dois twitters dos inenarráveis irmãos Bolsonaro – Eduardo e Carlos – reforçam esse tema, que tem sido pouco abordado nas análises políticas: a parceria da indústria de armas com a ultradireita mundial. E mostram como os profissionais deitaram e rolaram em torno do suposto lobby dos Bolsonaro pela Taurus, empresa brasileira. O buraco era bem mais acima.
O segundo twitter, de 17 de janeiro de 2017, mostra o estreitamento de relações de Eduardo Bolsonaro, com a influente NRA, a Associação Nacional de Rifles dos Estados Unidos, quando se preparava para a campanha eleitoral.
A Bloomberg já havia levantado essas ligações em 25.10.2018.
Os críticos dizem que é mais um passo para armar a população numa visão equivocada sobre segurança pública. Os defensores afirmam que é facilitar a vida de quem é autorizado por lei a ter armas. Em meio a esse debate, o presidente Jair Bolsonaro vai assinar nesta terça-feira (7) um decreto que permite que os CACs – colecionadores, atiradores esportivos e caçadores – levem as armas, em geral de suas casas para os locais de treino, já carregadas com munição.
O porta-voz da presidência Otávio Rego Barros disse que os detalhes do texto ainda estavam sendo fechados na noite desta segunda-feira (6).
Finalizando detalhes
“Os detalhes estão sendo definidos. Foi fruto de um estudo envolvendo os ministérios da Defesa, Justiça e a Casa Civil. O decreto vai regulamentar a lei sobre registro, porte, posse e comercialização. Trata também da desburocratização, comercialização e importação. Contempla a facilitação do transporte e aumento na munição, entre outros”, afirmou Barros.
Nessa coluna, mostramos como a Lava Jato lançou uma operação requentada para abafar as interferências de Bolsonaro na Receita e na Polícia Federal, na fiscalização do Porto de Itaguaí, porta de entrada do contrabando de armas no país.
“A Alfândega do Porto de Itaguaí é área de atuação das milícias. É um porto por onde saem entorpecentes com destino à Europa e entram armas no País, além de ponto de entrada de outros tipos de mercadorias ilegais, como produtos falsificados. Na atual gestão do Delegado José Alex houve ações que prejudicaram os interesses de várias quadrilhas que atuam no Porto de Itaguaí.
Portanto, a tentativa de ingerência dos Bolsonaros sobre a 7ª RF deixou bem claro que era um movimento relacionado à ligação da família com as milícias do RJ. Outro indício de sua vocação para jogadas típicas de baixo clero, uma vez que a 8ª RF (SP) seria a que naturalmente atrairia a maior cobiça, por concentrar mais de 40% da arrecadação do País, e concentrar mais de 50% do movimento de comércio exterior, com o Porto de Santos e Aeroportos de Cumbica e Viracopos”.
No fim de semana o Delegado José Alex postou em um grupo de whatsapp nacional dos Delegados da RFB o seu relato que viralizou, a despeito de seu pedido posterior de não divulgação por temer por sua segurança física. (…)
No dia de ontem (19/08) veio a informação da exoneração do Subsecretário Geral auditor fiscal João Paulo Fachada e sua substituição pelo auditor fiscal José de Assis
Dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, com base na Lei de Acesso à Informação mostram:
os atiradores civis compraram em 2019, pela primeira vez, a mesma quantidade que as forças de segurança pública: cerca de 32 milhões de projéteis.
O volume comprado pelo grupo ainda superou em 143% o quantitativo de munições que o Exército informou ter adquirido (13,2 milhões) no ano passado.
De 2018 para 2019, as compras diretas dos atiradores subiram 17,2%, enquanto o número de projéteis adquiridos pelos órgãos de segurança pública, incluindo as secretarias de gestão prisional, caiu 14,8%.
Associação Nacional de Armas diz que “bandidos” queriam “colocar as pessoas de bem (…) de joelhos”, mas que “este tempo acabou”
“Carta às Armas, divulgada pela Associação Nacional de Armas – CAC Brasil (Caçadores Atiradores Colecionadores), onde dizem ter vivido “tempos de execração pública, perseguições, perda de direitos, criação de hordas de usurpadores de bens públicos e privados” no período pré-Bolsonaro.
“Sentimos no nosso passado recente, a ameaça à nossa democracia, aos nossos valores fundamentais e à própria vida, através da aplicação da vontade de alguns e da implementação de um regime opressor e bandido. Foram desrespeitadas a vontade popular e a propriedade, através do malfadado Estatuto do Desarmamento”, diz a carta, que ganha contornos mais ameaçadores em seu decorrer.
“A intenção dos bandidos da nação era colocar as pessoas de bem, corretas e contrárias às vontades deles, de joelhos diante de bandidos e do próprio estado, fazendo com que o cidadão que não entregasse suas armas e não fosse cadastrado, se encontrasse na situação de crime continuado e flagrante delito possuindo arma em sua posse.
Segundo informações da Agência Brasil, a Delegacia Especializada registrou o esquema ilegal para importar armas.
“Lessa comprava, pela internet, peças de armas da China e enviava o produto para sua filha, nos Estados Unidos. Lá, segundo a polícia, a embalagem original era trocada e as peças eram exportadas ao Brasil como “peças de metal”, para enganar a fiscalização aeroportuária.”
Depois, já no Brasil, Lessa “juntava as peças e vendia as armas para milicianos e quadrilhas responsáveis pela comercialização de drogas em comunidades. Segundo a Polícia Civil, o esquema funcionava desde 2014.”
Segundo informações da Agência Brasil, a Delegacia Especializada registrou o esquema ilegal para importar armas.
“Lessa comprava, pela internet, peças de armas da China e enviava o produto para sua filha, nos Estados Unidos. Lá, segundo a polícia, a embalagem original era trocada e as peças eram exportadas ao Brasil como “peças de metal”, para enganar a fiscalização aeroportuária.”
Depois, já no Brasil, Lessa “juntava as peças e vendia as armas para milicianos e quadrilhas responsáveis pela comercialização de drogas em comunidades. Segundo a Polícia Civil, o esquema funcionava desde 2014.”
20.10.2020
Aqui, mostramos como o bolsonarismo seguiu o trumpismo e montou alianças com a contravenção internacional
Suas ações mais conhecidas, em defesa das milícias, foram:
o decreto buscando impedir o rastreamento das munições, peça central para a identificação de crimes cometidos com armas legais ou clandestinas;
o afastamento do superintendente geral da Polícia Federal no Rio de Janeiro e de fiscais que atuavam no porto de Itaguaí – porta de entrada do contrabando de armas no país;
a flexibilização da compra e importação de armas, assim como o aumento da quantidade, abre espaço para um laranjal articulado pelo crime organizado, que poderá trazer armas de forma muito mais segura do que pelos esquemas de contrabando.
05.06.2021
Previmos a tentativa de golpe de Bolsonaro que, de fato, ocorreu no dia 7 de Setembro. O fracasso do golpe fez com que recuasse para rever a estratégia.
1. Entrada descontrolada de armamentos beneficiando dois setores formais e um setor criminoso ligados a Bolsonaro: ruralistas e clubes de tiro e caça, e as milícias propriamente ditas. (…)
2. Cooptação das bases das polícias militares. (…)
3. As benesses aos militares, escancarando os cargos na administração civil para militares da ativa e da reserva, ampliando suas verbas e benefícios funcionais.(…)
4. Fortalecimento das bases evangélicas, com a atuação pertinaz da Ministra Damares destruindo políticas de saúde e de inclusão para transferir poder a asilos e escolas especiais dominadas pelo neopentecostalismo.
5. Manutenção dos laços de parceria com a ultradireita mundial através do Itamarati. Tirou-se um Ministro das Relações Exteriores trapalhão, mas não alterou a orientação do Itamarati.
Além de terem sido alvo de mandados de prisão, Ronnie Lessa e Monhama Lessa (foto) viraram réus pelo crime de tráfico internacional de armas de uso restrito. As investigações começaram em 2017, quando a Receita Federal encontrou no Aeroporto do Galeão uma carga de 16 quebra-chamas para fuzil AR-15, que vieram de Hong Kong.
O material seria enviado para a academia em que Ronnie e (esposa) Elaine Lessa eram sócios, na comunidade de Rio das Pedras. Investigação do Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Federal (Gaeco/MPF) e a PF descobriram que Lessa e a mulher estavam por trás da importação.
Chacina no Salgueiro e balsas do garimpo ilegal no Rio Madeira: duas cenas recentes se somam à galeria da barbárie bolsonarista
Por Marco Aurélio Weissheimer / Extra Classe
Quando estamos em meio a um turbilhão de acontecimentos, é difícil ter uma percepção clara sobre as suas implicações e sobre a direção na qual ele nos coloca. O Brasil, mesmo antes do início da pandemia, já vivia um cenário dessa natureza, a partir da eleição de um governo de extrema-direita, em uma aliança sinistra entre militares, agronegócio e sistema financeiro, entre outros setores. O discurso de violência, preconceito e discriminação, emulado pelo presidente eleito, já era claro e explícito desde a campanha eleitoral. Logo, não foi surpresa para ninguém. Os aliados e cúmplices de toda a violência e violação de direitos que se seguiriam ao início deste governo jamais poderão dizer que “não sabiam”. Sabiam, sabem e seguem justificando atos diários de barbárie e violência.
Em um artigo publicado em outubro de 2018 (A barbárie está autorizada. O horror saiu do armário), o antropólogo Luiz Eduardo Soares antecipou, em tom profético, o que estava por vir. Soares chama atenção para o simbolismo do gesto de dois homens brancos, os então candidatos a deputado federal Daniel Silveira e a deputado estadual Rodrigo Amorim; ao lado do candidato ao governo do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que rasgaram uma placa de rua com o nome de Marielle Franco, vereadora do PSol assassinada na capital fluminense, morte cujos mandantes até hoje não foram identificados. Fizeram da placa, escreveu Soares, “uma lápide e da lápide partida o símbolo do esquecimento. Isso se chama profanação e promove a segunda morte de Marielle”.
O horror como método
Esse foi apenas um dos tantos sinais que indicavam o que estava por vir. Lembrando que “grande parte de nossas vidas é regida pelo que é invisível – emoções, afetos, expectativas, desejos, memórias, fantasias”, o antropólogo assinalou que, na política, não é diferente: “Por isso, não é preciso incluir no programa de governo referências a um plano de extermínio, não é preciso apresentar publicamente um programa genocida. Não é necessário exaltar a violência e o preconceito, ou incitar o ódio, explicitamente – ainda que isso tenha sido feito. O que põe em circulação a barbárie não está nos argumentos racionais da candidatura ou em suas propostas de políticas públicas. A mensagem já foi passada à sociedade. E a mensagem se resume a uma autorização. Autorização à barbárie. A morte foi convocada. A barbárie está autorizada. O horror saiu do armário”.
Passados mais de três anos, os atos de barbárie são tantos no Brasil que quase já se incorporaram à nossa rotina. O “quase” não se aplica às populações que são alvo diário desses crimes (homens, jovens e meninos negros, mulheres, jovens e meninas negras em sua maioria, moradores de periferia, povos indígenas, pequenos agricultores, população LGBT, estudantes, trabalhadores…a lista é extensa). A situação é tanto mais dramática, na medida em que esse caráter diário da barbárie provocou uma certa naturalização desse cenário. A “sociedade” brasileira (expressão que vai entre aspas pois precisa ser melhor descrita) está anestesiada pela violência, o que não diminui em nada o crime da cumplicidade para com o que está ocorrendo no Brasil.
No final de novembro deste ano, mais duas imagens se somaram à galeria da barbárie bolsonarista brasileira. A “descoberta” de dez mortos em um mangue dentro do Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, que, segundo a Polícia Militar, foram mortos em um confronto durante uma “operação de estabilização”. Os corpos apresentavam sinais de tortura e de execução. Segundo o programa Fantástico, da Rede Globo, os policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) dispararam mais de 1.500 tiros na “operação de estabilização”. Justificando a ação policial, o governador daquele estado, Cláudio Castro, afirmou: “Coisa boa não estavam fazendo”.
A segunda cena foi a da invasão de centenas de balsas de garimpo ilegal Rio Madeira adentro, na Floresta Amazônica. A prática de garimpo ilegal na região, inclusive dentro de terras indígenas, não é uma novidade exatamente, mas ganhou força nos últimos dois anos com o enfraquecimento da fiscalização e com os discursos e as ações de apoio a essa atividade ilegal por parte do governo Bolsonaro. São cenas da guerra em curso no Brasil, uma guerra contra o povo brasileiro, que está sendo atacado pelo exército bolsonarista e sua aliança macabra, que reúne militares, fazendeiros, pecuaristas, garimpeiros, banqueiros, parlamentares, prefeitos e governadores cúmplices dessa barbárie.
Um grupo de 150 juristas, defensores públicos e advogados brasileiros, além de outras personalidades, assinou um texto com críticas às falas de militares que antecedem o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no STF (Supremo Tribunal Federal).
A principal manifestação foi feita pelo chefe do Exército, Eduardo Villas Bôas. Na terça-feira (3), ele postou uma mensagem no Twitter afirmando que a corporação “compartilha o anseio dos cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia”.
A nota dos juristas diz que “as recentes manifestações que evocam atos de força configuram clara intimidação sobre um Poder de Estado, o Supremo Tribunal Federal. Algo que não acontecia desde o fim da ditadura militar. É urgente que os Poderes da República repudiem esse tipo de pressão. As falas veiculadas nas últimas horas por oficiais das Forças Armadas dificultam um julgamento isento e colocam em xeque a democracia. Não são pessoas que estão em jogo. É a República. É a democracia”.
Assinam a nota, entre outras personalidades, Lênio Streck, Celso Antonio Bandeira de Mello, Pedro Serrano, Tecio Lins e Silva, Flávio Dino (que é governador do Maranhão), Jose Eduardo Cardozo, Celso Amorim, Tarso Genro, Fernando Haddad, Cezar Britto, Carol Proner, Leonardo Yarochewski, Roberto Figueiredo Caldas, Mauro Menezes, Marco Aurélio de Carvalho, Alberto Toron, Antonio Carlos de Almeida Castro, a deputada Manuela D`Avila e o antropólogo Luiz Eduardo Soares.
Passados mais de 30 anos do início do processo de redemocratização, o país volta a viver o “pesadelo” que o órgão representava: o uso do Estado para vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto
Mais de três décadas depois de criado, na ditadura militar, um dos seus principais órgãos de espionagem, o Serviço Nacional de Informações (SNI) volta às atividades, por ordem do presidente Jair Bolsonaro. Responsável pela perseguição e monitoramento de adversários do governo dentro e fora do regime, o novo SNI volta a produzir dossiês, informações e fichas individuais sobre adversários políticos do regime neofascista.
Passados mais de 30 anos do início do processo de redemocratização, o país volta a viver o “pesadelo” que o órgão representava: o uso do Estado para vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto.
Ditadura
A análise é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos alvos do dossiê de monitoramento sigiloso produzido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública de um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança, identificados como “movimento antifascista”, e professores universitários, por serem críticos do governo Bolsonaro.
— Bolsonaro sempre teve o sonho de recriar o SNI e o sonho de Bolsonaro está se convertendo no nosso pesadelo, no pesadelo da sociedade brasileira, porque isso está se concretizando. Agora nós temos a renovação com a restauração do espectro mais abrangente que era típico da ditadura — afirmou, sobre o dossiê elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi).
Nesta sexta-feira, o ministro da Justiça, André Mendonça, seria ouvido sobre o relatório sigiloso elaborado pela pasta com dados de quase 600 servidores públicos ligados a movimentos antifascistas e opositores do governo Bolsonaro na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência da Câmara dos Deputados.
Inconstitucional
Soares, que foi secretário nacional de Segurança Pública durante o início do governo Lula da Silva (PT) e é autor de vários livros sobre o tema, estava enquadrado no subtítulo do relatório denominado “formadores de opinião”, no qual são citados ele, o especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, o secretário estadual do Pará Ricardo Balestreri e o acadêmico da Universidade Federal da Bahia, Alex Agra Ramos.
Para Soares, o “procedimento ilegal e inconstitucional” se trata de mais um passo de Bolsonaro de acuar os militantes os que defendem a democracia, além de ser uma auto declaração do fascismo do governo.
— Na medida que esses engenheiros do caos, arautos do autoritarismo definem movimentos, militantes e intelectuais antifascistas como um problema, isso parece sugerir que eles próprios se põe no alvo das críticas e da repulsa do antifascismo. Portanto se identificam eles mesmos com o fascismo, o que é uma espécie de declaração enviesada e paradoxal de culpa. Como é possível tornar o antifascismo como uma ameaça? Nossa Constituição é antifascista, a população brasileira, os segmentos majoritários que se afirmam pela democracia são evidentemente antifascismo — pontua o especialista.
Monitoramento
Entre os monitorados, Alex Agra Ramos vai na mesma linha do antropólogo e pontua que é uma tentativa “desesperada do governo de criminalizar os policiais antifascistas”. Embora não tenha sido um secretário de segurança ou um professor universitário, ele também tem uma pesquisa acadêmica na área de segurança pública e contribui com o coletivo de Policiais Antifascismo, um dos principais alvos do dossiê.
— Eu me surpreendi inicialmente não pela existência do monitoramento em si, mas me surpreendi de certa forma até positiva por ver que se esse monitoramento está acontecendo é porque o coletivo de policiais está diante do governo produzindo algum tipo de incomodo de natureza política — relata Ramos.
Ele relembra que estava com Soares e Balestreri em uma mesma mesa do Congresso dos Policiais Antifascistas em 2018. De acordo com a reportagem, os nomes dos agentes da segurança pública estaduais e federais foram tirados de dois manifestos antifascistas e em defesa da democracia de 2016 e 2020.
Front interno
Na avaliação de Soares a tentativa de ameaça à democracia expressa no do dossiê de monitoramento dos opositores por meio do cerceamento da livre troca de ideias e opiniões, se dá por meio de uma “tríplice mensagem” para ruas e redes, para as instituições e opinião pública.
— Primeiro lugar uma mensagem de núcleos do governo aos seus apoiadores, ativistas, aqueles que tem saído às ruas defendendo bandeiras antidemocráticas. Muitas vezes assumidamente fascistas, o recado que se passa tacitamente é de que ‘estamos aqui no front interno e vocês sigam nas ruas e redes’ — aponta o antropólogo.
Nesse sentido também chega para a sociedade como um todo a intimidação de quem ousa criticar o governo, ou quem se opõe ao fascismo, sofrerá consequências sem precedentes, com uma investigação clandestina à margem das leis e da Justiça.
E uma terceira mensagem para as instituições daqueles que são alvo do dossiê. “Na medida que isso significa também uma autorização tácita para que sejam perseguidos. Quase que uma convocação para que estas instituições excluam, persigam e atentem, vigiem estas pessoas que são marcadas”, coloca Soares.
Informações
Não à toa, o antropólogo alerta que a tortura e os porões da ditadura, que provocaram a morte de milhões de opositores do regime, eram “irmãos siameses” do Serviço Nacional de Inteligência (SNI).
— Não há um sem o outro. Se nós estamos agora diante de uma ameaça de recriação do SNI, nós estamos num grau de ameaças muito mais graves que pode se transformar numa realidade prática — comparou.
Tanto Luiz Eduardo Soares como Alex Agra Ramos vão recorrer à Justiça. O antropólogo se posicionou individualmente e o cientista político está com a ação coletiva junto ao grupo de Policiais Antifascistas.
A ousadia do Ministério da Justiça e do governo federal gerou reações amplas em toda a sociedade civil dentro e fora do país. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA criticou o monitoramento: “Dossiê não é legitimo, nem necessário em uma sociedade democrática”.
Procurados pelo reportagem do Correio do Brasil para repercutir a reportagem do site de notícias Brasil de Fato, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública não responderam às tentativas de contato.
As manifestações de rua realizadas no último fim de semana em várias cidades do Brasil não se traduziram em confrontos entre apoiadores e adversários do presidente Jair Bolsonaro, como temiam forças de segurança e muitos intelectuais. No entanto, o risco de agentes se infiltrarem em novos protestos para disseminar violência é alto e não pode ser descartado como estratégia para justificar medidas autoritárias, avalia o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares.
Um texto assinado por Soares circulou amplamente na internet com pedido para que movimentos sociais não comparecessem aos recentes protestos. A mensagem alertava para a ameaça da presença de agentes infiltrados que poderiam semear o caos e criar um clima de desordem que serviria para justificar eventuais medidas de ruptura institucional.
Como não foram registradas tensões nos protestos, o antropólogo sugere que a preocupação amplamente divulgada por lideranças políticas e vários especialistas tenha surtido efeito.
“Talvez a nossa preocupação e esse alerta tenham servido para que as lideranças [dos protestos] se preocupassem e investissem suas energias no controle das infiltrações, das provocações”, afirma.
“O nosso temor era, por um lado, a pandemia em curso, e por outro lado, temos a experiência de ter infiltrados da ultradireita. Sabemos que, nesse momento, as polícias militares estão sob a direção política do governo federal e não dos governadores. Sabemos que muitas polícias estão sem controle e servem a propósitos políticos, sabendo qual é a agenda do presidente e do ‘bolsonarismo’, que é atacar as instituições democráticas”, argumenta.
O antropólogo, conhecido como um dos maiores especialistas de segurança pública do país, lembra que Bolsonaro já se referiu a desordens nas ruas como “razão para criminalizar movimentos sociais e para concentrar poderes ditatoriais”. “Nesse caso, ir para as ruas é fazê-lo com muita consciência, avaliando muito bem a correlação de forças e a capacidade de controlar o processo para que não sejamos manipulados pelos infiltrados”, reitera.
Protestos de ruas
As manifestações, que segundo Luiz Eduardo Soares tiveram um número significativo, porém reduzido de pessoas, facilitou o controle por parte dos responsáveis e participantes.
“Quando você tem uma aglomeração menor de pessoas, fica mais fácil saber quem ali está e como controlar, como evitar. Mas o risco da infiltração é permanente porque Bolsonaro investe no fortalecimento das milícias, que são forças policiais mafiosos, e investe muito nas suas relações com segmentos policiais, inclusive editando medidas sucessivas que facilitam acesso a armas e munições”, diz.
O antropólogo defende que a ocupação das ruas pelos movimentos sociais e de oposição a Bolsonaro seja avaliada em cada contexto. “É importante, mas deve ser sempre objeto de ponderação e avaliação da tática em cada momento, cada dia e cada conjuntura. Temos a pandemia e não devemos “fetichizar” e idealizar a rua como se fosse o único meio de luta contra o fascismo. Há outras maneiras de promover a luta, essa está longe de ser a única”, avalia.
Democracia sob forte ameaça
Da sua residência no Rio de Janeiro, onde respeita o isolamento social devido à pandemia da Covid-19, Luiz Eduardo Soares avalia os riscos de uma intervenção militar no país. “Há um consenso dos analistas de política no Brasil de que estamos sob ameaça; a democracia que nos resta está sob séria ameaça. Não é preciso nenhuma interpretação sofisticada, porque os atores responsáveis pelo avanço do fascismo, por concentração de poderes no executivo e pela implantação de uma ditadura militar, explicitam suas propostas, a começar pelo presidente”, ressalta.
Entre os sinais explícitos, o antropólogo e cientista político cita as falas de Bolsonaro, suas participações em manifestações contra o STF e o Congresso Nacional, e até declarações de juristas que evocam artigos na Constituição para respaldar juridicamente uma eventual intervenção militar.
“Esse golpe pode não se dar de forma espetacular, cenograficamente representado por tanques na rua, como no passado. Nós podemos ter a dilapidação, a ruína das instituições, sua corrosão por dentro, com a troca de ministros no Supremo quando chegar a ocasião, com o controle de setores importantes do Congresso Nacional via cooptação, por meio de métodos conhecidos, no modelo húngaro, polonês, ou um apoio inclusive de insurreição com a participação de polícias militares estaduais, como na Bolívia. Para isso, bastaria que as Forças Armadas se omitissem. A situação é muito grave, de imensa instabilidade”, insiste.
Mobilização antirracismo
Com a experiência de atuação em políticas de segurança em diversos estados -principalmente no Rio de Janeiro - e como Secretário Nacional de Segurança Pública entre março e outubro de 2003 - durante o primeiro ano de mandato do ex-presidente Lula - Luiz Eduardo Soares lamenta que as esquerdas e campos progressistas não tenham assumido junto com a agenda democrática propostas de mudanças estruturais para o setor.
O resultado pode ser visto por números, como registrados no Rio de Janeiro. Luiz Eduardo lembra que o estado do Rio de Janeiro registrou um recorde histórico de 1.810 mortes provocadas por ações policiais. “Nos Estados Unidos, onde temos hoje o epicentro da resistência antirracista em função da brutalidade letal praticada por policiais brancos contra os negros, houve pouco mais de mil casos, números brutais, claro. Mas os Estados Unidos têm 300 milhões de habitantes e no estado do Rio, 15 milhões. Foi nosso recorde histórico, quase todos negros e sempre pobres”, salienta.
A situação de violência tende a se agravar com a política adotada pelo presidente Bolsonaro, segundo Soares: “Com Bolsonaro no poder, com seu discurso que estimula a brutalidade policial a todo momento, tem havido, como era previsível, uma intensificação”.
O especialista, no entanto, vê como sinais otimistas a mobilização do movimento negro que se fortalece e afirma suas bandeiras de luta no momento em que a indignação com a morte do afro-americano George Floyd ganha forte repercussão mundial, com impacto também no Brasil.
“Como sempre no Brasil, situações internacionais acabam se projetando com grande influência aqui dentro. Tivemos inúmeros casos do tipo George Floyd, mas a grande mídia começa a se sensibilizar para o problema quando a situação começa a ficar pesada nos Estados Unidos. É impressionante essa reação colonial, mas nesse caso, que venha para o bem. Os movimentos negros têm tido um protagonismo crescente, felizmente, mas muito inferior ao que deveria ser, dada a magnitude do problema”, conclui.
Antrópologo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares lança o livro ‘Desmilitarizar’, em que propõe uma nova polícia; em entrevista, afirma que as propostas do governo Bolsonaro vão aumentar a violência e fortalecer o crime organizado
Ilustração: Junião
“Resposta: eu não sei”. O antropólogo Luiz Eduardo Soares tem mais de 20 livros publicados, já foi secretário nacional de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, entre outras funções, mas tem perguntas que ele não sabe responder — e calhou de ser a pergunta que eu mais queria fazer para ele nessa entrevista: como chegamos ao ponto de idolatrar torturadores e como sair dessa?.
Soares pode não saber como chegamos aqui, mas de algo não tem dúvida: a situação da segurança pública e dos direitos humanos no Brasil só vai piorar, já que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e os de seus aliados, como os governadores João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSL), no Rio, se limitam a intensificar as piores práticas das gestões anteriores, que só serviram para aumentar a violência, lotar as prisões e fortalecer as facções criminosas. Sobre o pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, afirma que vai “é uma pena de morte instituída sem julgamento”.
Soares acaba de lançar o livro Desmilitarizar (Boitempo), em que reúne e atualiza textos escritos ao longo dos últimos anos que buscam não só diagnosticar o que deu tão errado na segurança pública do Brasil, mas também apontar soluções. Na obra, Soares coloca em debate a sua proposta de refundação das polícias, que deu origem à PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 51, do senador Lindbergh Farias (PT/RJ), a qual prevê a desmilitarização das polícias, uma nova divisão de responsabilidades entre União, estados e municípios na segurança pública e uma carreira única que acabe com as separações entre delegados e investigadores (integrantes da Polícia Civil) e praças e oficiais (que formam a Polícia Militar). “De um lado nós somos críticos e temos de continuar a ser, mas de outro nós temos que apresentar um caminho à sociedade”, afirma.
Ponte Jornalismo – O senhor está lançando um livro que chama Desmilitarizar, num momento em que os militares nunca assumiram tanto protagonismo na vida nacional. Foi intencional?
Luiz Eduardo Soares – Foi intencional, ainda que o livro estivesse sendo gestado há muitos anos. Quando a gente se aproxima do desfecho de 2018, eu tive a convicção de que era inadiável a publicação, justamente no contramão da agenda que o Brasil reinaugurava, cheia de teias de aranha, mofo e fantasmas. Acho que é o momento certo no sentido de ter um contraponto ao que se está fazendo predominantemente.
O Ministério Público e a Justiça são parceiros da violência policial? ‘ Claro. São parceiros, são cúmplices’ | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo
O senhor e outros especialistas que trabalham com segurança pública apontam que as soluções estão na legalização das drogas, no desencarceramento e numa refundação das polícias, que passa justamente pela desmilitarização. Isso é o contrário de tudo o que vem sendo feito nos últimos anos. Estamos condenados ao fracasso?
Soares – Sim, acho que estamos condenados ao fracasso. E não é nenhuma profecia pessimista, é a constatação da realidade. O que se está propondo não é mais do que já se fazia, agora de forma intensificada. Einstein tem aquele frase famosa de que a definição de loucura, para ele, era fazer o mesmo esperando um resultado diferente. Estamos diante dessa irracionalidade coletiva, fazendo o mesmo com mais intensidade, agravando todas as questões que já temos, as dificuldades, os limites e as contradições, na expectativa de obtenção de resultados distintos.
Bolsonaro, Doria, Witzel, Sérgio Moro são o mesmo em relação ao que se fazia antes?
Soares – São o mesmo, intensificado. Como se aquela realidade que denunciávamos agora saísse do armário e se assumisse como tal. Excludente de ilicitude, por exemplo. Nós dizíamos — e eu digo “nós” porque há um consenso entre os pesquisadores e ativistas que atuam na área de direitos humanos e segurança pública, os policiais mais maduros e experimentados — “as execuções extrajudiciais estão em curso, promovendo um verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades, e isso tem que ser detido”. Trazíamos à tona essa realidade. Agora ela é sancionada e explicitada despudoradamente. O “abate”, como se diz no Rio de Janeiro, ou excludente de ilicitude nada mais é do que um passaporte para matar, uma autorização para o policial matar. É uma pena de morte instituída sem julgamento. É por isso que digo: estamos no mesmo caminho, escolhendo não as boas práticas para iluminar as políticas públicas, mas as piores práticas para intensificá-las, agora sob as bênçãos da legalidade. Nós estamos legitimando o submundo. Os porões estão sendo consagrados, legitimados.
PM reprime jovem negro na Favela do Moinho, em São Paulo, em 28/6/17 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo
O senhor fala no livro que o pacote anticrime do Moro “institui, na prática, a pena de morte no Brasil”.
Soares – E sem julgamento. É pior do que pena de morte. A indicação de que o juiz pode simplesmente inocentar alguém que pratique um homicídio por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” é a concessão ao Judiciário do direito de inocentar um policial que aja com brutalidade extrema e que mate o suspeito. Em qualquer situação na qual o policial se envolva, esses fatores que estão previstos nas mudanças sugeridas pelo Moro podem ser alegados: surpresa, medo, forte emoção. Todos instrumentos absolutamente genéricos e subjetivos para o juiz poder inocentar. E isso já estava acontecendo. Tivemos no Rio de Janeiro, de 2003 a 2018, 15.061 mortes provocadas por ações policiais. Não há informação, e isso é parte do problema, a respeito de quantos casos foram efetivamente denunciados pelo Ministério Público e julgados pela Justiça, mas são números ínfimos. Quando o deputado Marcelo Freixo (Psol) conduziu uma CPI a esse respeito no Rio de Janeiro [a Comissão Parlamentar de Inquérito dos Autos de Resistência, em 2015 e 2016], os resultados e os dados examinados por ele eram de que menos de 2% dos casos eram investigados e denunciados e transformados em processos. O que temos no Rio não só é a brutalidade policial letal, é a cumplicidade de práticas do MP — o Ministério Público tem o dever constitucional de exercer o controle externo da atividade policial, mas não tem feito isso, salvo exceções — e a Justiça, que permanece imóvel, porque não provocada, e portanto tacitamente está abençoando todo esse processo.
O Ministério Público e a Justiça são parceiros da violência policial?
Soares – Claro. São parceiros, são cúmplices. E a Justiça alega que só age quando provocada: se não há denúncia, não age. Ocorre que essa postura não é atípica do ativismo legiferante e politizado que a Justiça tem adotado no país, com a Lava-Jato, nas perseguições todas. Então a Justiça pode ser ativa quando quer, ser punitiva quando deseja, mas se recolhe ao imobilismo quando conveniente. Essa é a postura. Para dar um quadro que é a base do meu entendimento do que está ocorrendo, observo o seguinte. A gente tem esse número bárbaro de homicídios dolosos no Brasil: 62 mil no ano passado. O número de casos esclarecidos é muito pequeno. Não sabemos quantos desses casos efetivamente são esclarecidos, mas as indicações apontam para menos de 10%, em média. Isso significa que o crime mais grave permanece impune numa taxa de praticamente 90%. E por que a gente aceita essa situação?
Ilustração: Junião
E por que tantos crimes permanecem impunes e ao mesmo tempo as prisões estão cada vez mais cheias?
Soares – Exato. Essa é a contradição. Mas, primeiro: por que a gente aceita conviver com esse nível de impunidade em relação ao crime mais grave? Porque a imensa maioria das vítimas é negra e pobre. E, segundo, vivemos essa contradição à qual você se refere. Temos essa taxa de impunidade e por outro lado temos a terceira população penitenciária do mundo, chegando já a 800 mil presos — e temos a população carcerária que cresce mais rapidamente no mundo desde 2002. Portanto, não somos o país da impunidade. Nós punimos muito. Mas quem está sendo punido? Quando você começa a observar, se verifica: só 13% estão lá cumprindo pena por homicídio. A imensa maioria são crimes contra o patrimônio ou, frequentemente, tráfico de drogas. E aí nós temos o cerne do problema. O subgrupo que se expande mais rapidamente é aquele que está lá acusado de tráfico. Não estamos falando do traficante que se impõe pela força sobre comunidades, usando armas pesadas, não tem nada disso. Estamos falando do pequeno varejista das substâncias ilícitas. Esses é que têm sido de fato presos e condenados a cinco anos de regime fechado, tendo suas vidas destroçadas com isso. E mais. O perfil da grande maioria dos que são presos por tráfico é de pessoas sem prática de violência, sem armas e sem ligação conhecida com organização criminosa. Quando entram para o sistema, são obrigados a se vincular a alguma facção criminosa para sobreviver, porque as facções dominam o sistema. Quando saem da prisão, cinco anos depois, têm que prestar lealdade às facções às quais se vincularam para sobreviver. Então, estamos contratando violência futura, destruindo a vida desses jovens e fortalecendo as facções criminosas. A isso está servindo o encarceramento. Porque esse crescimento violento do encarceramento tem a ver com a guerra às drogas e a prisão desses que são negociantes varejistas de substâncias ilícitas.
E há os presos que são usuários de drogas.
Soares – Sim. Quem está sendo efetivamente preso? Em pesquisa recente, a Defensoria de São Paulo comprova o que a Defensoria do Rio já tinha publicizado: o negro é preso como traficante e o branco vai cumprir pena alternativa pelo consumo. É isso o que está acontecendo. Porque se transferiu, em 2006, mediante mudança legal, para o arbítrio do juiz a decisão de definir se é tráfico ou consumo. A cabeça média do juiz é a cabeça média do Brasil, que é um país racista. O nosso racismo estrutural se expressa dessa maneira. Os negros são preponderantemente considerados traficantes e os brancos preponderantemente são considerados consumidores. Isso se traduz no encarceramento em massa, que criminaliza a pobreza. E por que acontece isso? Não é uma questão de decisão só de gestores, de secretários, é uma questão que tem a ver com a natureza das instituições policiais. A polícia mais numerosa, presente em todo o Brasil, 24 horas por dia, é a Polícia Militar. Ela é proibida de investigar, mas é pressionada a produzir. E ela entende, como produção, prisão. Ela só pode prender em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante delito? Alguns poucos. Esses acabam sendo o foco de todos os investimentos do país na área de segurança pública. O grande foco é esse, porque a polícia que está na rua, não podendo investigar e pressionada a prender, vai fazer o que ela pode, que é prender em flagrante. A grande ferramenta para a Polícia Militar é a lei antidrogas. Ela, então, lança sua rede e captura os varejistas. Como não pode fazer investigação, a PM não vai atrás de quem lava dinheiro, dos grandes grupos internacionais, dos poderosos organizados. Mais de 80% dos presos no Brasil estão presos por flagrante delito. Nós vivemos no flagrante, não temos investigação, e o nosso foco, portanto, é o varejo. É uma contradição total. Estamos prendendo pequenos varejistas de substâncias ilícitas e abandonando a questão do homicídio e da vida. Isso resulta da combinação perversa entre o modelo policial inteiramente impróprio com uma lei de drogas hipócrita e irracional. O resultado é esse: a explosão do sistema penitenciário, o fortalecimento das facções criminosas, o aumento da violência e a gente fazendo o mais do mesmo. Então, quando veio a proposta do Moro, eu pensei: “meu Deus do céu, mas não é possível que não haja um mínimo de conhecimento do que está em curso no país”. O pacote fortalece as facções criminosas porque investe no aumento do encarceramento, não toca na questão do modelo policial, não toca em nada do que é essencial e, quando aponta para algum caminho, aponta no sentido do agravamento da situação.
Qual é a função que as polícias desempenham no Brasil? Para o que é que elas servem, na prática?
Soares – Olha, na prática, as polícias têm servido para criminalizar a pobreza e fortalecer as facções criminosas, aumentando a violência. E não conseguem reduzir a insegurança pública porque são parte de uma dinâmica que escapa ao controle de qualquer gestor ou dos próprios policiais: o modelo policial, combinado com a lei antidrogas, gera esse resultado dramático. Veja que nesse ano, de janeiro a março, tivemos no estado do Rio 434 mortes provocadas por ações policiais. Isso é recorde histórico.
Ilustração: Junião
Mortes pela polícia já são um terço do total das mortes.
Soares – Exato. No ano passado as mortes provocadas por ações policiais corresponderam a 31% do conjunto de homicídios no estado do Rio de Janeiro. Nesse ano isso vai ser ultrapassado. Se a polícia parasse de matar, a gente reduzia em um terço os homicídios no Rio.
O senhor menciona no livro “a falta de pudor” que os violadores ganharam e menciona como “histórico” um momento em 2016 quando o então deputado Jair Bolsonaro dedicou o voto dele no impeachment ao Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador. Quando a gente pensa na ditadura militar, os militares não celebravam a figura de Ustra, pelo contrário: os presidentes militares nunca admitiram a tortura nem se orgulharam publicamente dela. A pergunta que eu faço é: como a gente chegou, em plena democracia, a admirar publicamente os torturadores mais do que eram admirados na própria ditadura? E como sair dessa situação?
Soares – Resposta: não sei (risos). A pergunta é muito boa, mas eu também me faço. Eu não sei como chegamos nisso. Eu me pergunto como é possível que uma pessoa que confessa que é favorável à tortura e que defende uma guerra civil que “matasse 30 mil pessoas”, “a começar pelo Fernando Henrique”, como é que uma pessoa que confessa essas coisas… Porque muitos dizem: “ah, o pessoal não tem ideia do que seja tortura exatamente, a classe média não tem muita ideia”. Pelo amor de Deus, as pessoas sabem do que se trata. Tem que lembrar o seguinte: não há tortura sem estupro. Faz parte do cardápio da tortura. Estamos falando da defesa do estupro. Como é possível que uma barbaridade dessas seja anunciada publicamente, sob a forma de uma verdadeira confissão da perversidade, e isso seja base para uma eleição, para um apoio entusiástico? Eu não compreendo. É um grande enigma. Eu seria falso se eu inventasse aqui uma teoria qualquer.
Imagino que tenha sido o mesmo susto que o senhor tomou quando saiu o filme “Tropa de Elite”, que é baseado no seu livro “Elite da Tropa” [escrito com os ex-policiais André Batista e Rodrigo Pimentel], e muitas pessoas que viram o filme consideraram o Capitão Nascimento como um herói.
Soares – É, exatamente. Aplaudiram no cinema, vibravam. É curioso você lembrar. É um ponto importante. Um amigo meu, que é advogado criminalista, assistiu ao filme no Chile com juízes, advogados e promotores, porque foi exibido num congresso que houve em Santiago. Já tem alguns anos. E ele disse que a reação da plateia era de perplexidade e choque: “Será que isso é verdade mesmo no Brasil, que denúncia fortíssima”, eles ficaram muito tocados. Você assiste no Brasil, a reação é completamente diferente. O que fora é visto como uma denúncia da brutalidade policial aqui é recebido com aplauso.
Cena do longa com Capitão Nascimento, o protagonista de “Tropa de Elite” | Foto: Divulgação
E era uma reação que já apontava para o que a gente viria a viver hoje.
Soares – É, venceu a cultura do linchamento. E as pessoas dizendo que se trata de um país cristão. Um país cristão que abraça a cultura do linchamento? A falha é minha também, quando penso a respeito do Brasil e não levo em contas os estudos de tantos colegas mostrando a permanência de linchamentos, que é uma prática cotidiana no Brasil. A falha é minha e de todos que não percebemos a importância disso, e isso continua presente, atravessou esses anos todos e não se submeteu à educação democrática a que certos segmentos sociais se submeteram desde a transição. Isso perdura e agora emerge com essa floração perversa.
O senhor afirma no livro que a segurança pública foi a área em que a gente menos evoluiu no período democrático e continua mais presa à arquitetura construída durante a ditadura.
Soares – Não houve transição democrática na segurança pública. Houve nas demais áreas, mas essa permaneceu intangida pelo processo democrático. Urge expandir a transição democrática para a segurança pública, o que nesse momento soa improvável, porque justamente é toda a democracia que agora está em risco.
A esquerda esteve no poder durante um bom tempo e também não se moveu muito nesse sentido, seja nos governos Lula e Dilma ou mesmo no Fernando Henrique, que é chamado de esquerda hoje em dia. Por que não avançaram na democratização da segurança pública?
Soares – É oura pergunta dolorosa que você faz, porque é preciso reconhecer que você tem razão. O que foi feito ao longo de todos esses anos em que os progressistas democráticos estiveram no poder? Muito pouco e nada de muito consistente para efetivamente transformar as estruturas na área. Na área da mídia tampouco se fez. Como ministro da Justiça, Tarso Genro apresentou um plano nacional, o Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania], que era importante, com toda uma concepção muito avançada, e isso não foi implementado como deveria ser e depois de algum tempo foi descontinuado. O fato é que não resulta desse período nenhuma contribuição diferente para reverter o quadro que herdamos fundamentalmente da ditadura.
Foto: Divulgação/Boitempo
O seu diagnóstico é de que a esquerda tem uma certa dificuldade para abraçar o tema da segurança pública, porque a utopia da esquerda “supõe sociedade sem classes, sem Estado e, portanto, sem polícias”. Como lidar com essa questão?
Soares – Tem sido muito difícil. O livro é mais um esforço na direção de sensibilizar essa audiência. Se não houver, entre as forças democráticas mais radicais, aquelas mais profundamente comprometidas de fato com mudanças, com a vida dos jovens que estão sendo mortos nas periferias, com os movimentos sociais, se não houver nesses segmentos a consciência de que é preciso e é possível avançar nessa área, onde vamos encontrar bases de apoio para avançar? Precisamos dessas bases de apoio e é a partir daí que tem que se lançar ao país uma proposta. Até hoje as esquerdas não foram capazes de apresentar claramente uma proposta. Não estou me referindo a indivíduos, mas às organizações e aos partidos e movimentos sociais organizados. As esquerdas não negociaram um consenso mínimo em torno do qual se pudesse formular uma proposta de mudança. A PEC 51, que foi apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT) em 2013, é fruto de muitos anos de negociações, com participação de policiais, movimentos… é um arranjo apresentado como uma possibilidade. Cada um tem sua visão e ideias de alternativas, mas é preciso transformar isso num modelo consistente alternativo em torno do qual a gente pode começar a negociar e discutir. A PEC 51 pelo menos tem essa virtude. Eu acho que seria um imenso avanço, outros podem pensar diferente, mas uma vez no livro[um capítulo de “Desmilitarizar” é dedicado a explicar a PEC 51 e analisar as críticas feitas à proposta] ela pode servir como um apoio para os debates e articulações, de modo que a gente possa dar um passo adiante. Mesmo que o Congresso majoritariamente esteja comprometido com as piores práticas na segurança pública e esse governo não tenha nenhum compromisso com algum avanço na segurança pública e com a democracia, pelo menos as forças democráticas deveriam se unir em torno de uma proposta efetiva de mudança. Porque de um lado nós somos críticos e temos de continuar a ser, mas de outro nós temos que apresentar um caminho à sociedade.
Não dá para ficar só criticando.
Não dá, porque a sociedade vai nos cobrar: “Tá bom, reconhecemos que o que está aí é um inferno, um desastre, mas para onde vamos, então? Aponta um caminho. Qual é alternativa?”. É uma pergunta que nós temos que responder. A PEC 51 tem uma série de itens: carreira única, ciclo completo, desmilitarização, definição da polícia como instituição garantidora de direitos. Uma série de elementos que estão ali e podem ser discutidos. Outros modelos haverá e são bem vindos para o debate, mas a nossa contribuição está ali. Inclusive há um capítulo que é resultado de quase um ano de exposição pública da PEC 51 em que eu analiso todas as críticas. É uma contribuição para esse debate. Posso estar errado e outros virão propondo mudanças em relação a isso, mas então estaremos caminhando. Por enquanto estamos apenas negando o que está aí, o que é fundamental, mas não somos capazes de apresentar alternativas. Na esquerda sonhamos com uma utopia de paz, harmonia, fraternidade, sem propriedade privada, sem polícia, sem Estado, sem lei, sem Justiça criminal, o que seria os seres humanos convivendo numa sociabilidade fraterna. É um sonho utópico, belíssimo. Espero que um dia a humanidade realize isso, mas não vemos nada próximo disso no horizonte. Então, a conclusão que se tira é a seguinte. Até onde a vista da história alcança, nós vamos ter uma sociedade organizada com Estado. Onde há Estado há lei. Onde há lei há Justiça, Justiça criminal, aparelhos de segurança, polícia. Se o Estado vai ser um companheiro de viagem nessa travessia, temos que oferecer a nossa proposta para a reorganização do Estado. E para isso há muita elaboração da esquerda. Mas há um elemento de elaboração do Estado para o qual a esquerda não tem oferecido alternativas, que é justamente a segurança pública e a polícia. Como se fosse um pecado tocar nessa questão. Aí o que acontece? Quando a gente silenciar sobre isso, a gente é incapaz de formular propostas alternativas e, na prática, os países que caminharam na direção do socialismo real, nós tivemos polícias do pior tipo.
O socialismo real nunca foi abolicionista penal.
Soares – Ao contrário. No socialismo real, tivemos polícias terroristas, que aviltaram os direitos humanos, sistemas carcerários com tortura, a maior indignidade. Então, se nós hoje fazemos a crítica do socialismo real, temos que fazer a crítica da polícia real desse socialismo e então apresentar o que seria uma alternativa. Mas parece que essa realidade queima. Parece que falar da polícia te coloca numa posição da direita obrigatoriamente, então se silencia. Isso é um tabu para a esquerda. Um outro elemento nessa equação que não fecha é que nós quase não temos liberais no país. O Brasil tem pouquíssimos liberais: alguns indivíduos, mas nunca tivemos liberalismo no país como uma força clara, nítida. Quando surge um partido que se diz liberal, o Novo, são conservadores, são falcões. O liberal clássico, de John Suart Mill [filósofo e economista inglês], é aquele sujeito ou aquela mulher que defende a legalização do aborto, a legalização das drogas, a emancipação individual, e defende o mercado. Nesse pacote estão as defesas das formas de liberdade.
E os direitos humanos.
Soares – E os direitos humanos, que nasceram dessa matriz. No Brasil, não. Liberais são os que defendem o mercado e ponto final. São conservadores, têm uma concepção de segurança pública e polícia retrógrada, inteiramente contrária aos direitos humanos. Se nós dispuséssemos no Brasil de uma força liberal, de centro, importante, que levantasse as bandeiras das liberdades individuais para valer (legalização das drogas e do aborto etc.) e a bandeira dos direitos humanos, nós da esquerda encontraríamos um espaço para aliança muito importante para fazer o Brasil avançar.