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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

24
Mar22

O que é juridiquês? TikTok é anti-juridiquês? Não alterem o samba...!

Talis Andrade

juridiquês por aroeira.jpg

Por Lenio Luiz Streck

- - -

Tá legal, Eu aceito o argumento, Mas não me altere o samba tanto assim, Olha que a rapaziada está sentindo a falta De um cavaco, de um pandeiro Ou de um tamborim.

Sem preconceito Ou mania de passado Sem querer ficar do lado De quem não quer navegar Faça como um velho marinheiro Que durante o nevoeiro Leva o barco devagar.

 

Eis a música que explica o que vou dizer. Chama-se Argumento, de Paulinho da Viola.

O assunto é pop. Jornalistas e jornaleiros amam pessoas da área jurídica que "explicam! o Direito em forma de platitudes.

Um retranca necessária: admito que coisas como TikTok podem ser úteis e podem até ser engraçadas. Afinal, facilita a comunicação. Porém, a pergunta — irônica e sarcástica — é: a ciência (ou uma área do conhecimento como o Direito) é “coisa” engraçada para ser "mostrada" em 30 segundos (ou algo assim)? Bom, não vou me meter com as demais áreas. Mas do modo como é ensinado e aplicado em um país desigual como o nosso, não creio que o Direito tenha algo de engraçado. Alguém admitiria (a pergunta é retórica!) pandeguices e galhofas sobre temas como: "Ah, aí o sujeito ficou preso 11 anos preventivamente..." Outra: o cara foi condenado por reconhecimento fotográfico e depois absolvido...; desembargador critica Rede Globo por enaltecer homossexuais e absolve juiz; ou: daí os embargos foram rejeitadas em cinco palavras; e que tal fazer um TikTok "engraçadíssimo" sobre a diferença entre roubo e latrocínio... E tem uma melhor: aí a promotora disse "esses advogados são bosta"... Convenhamos, não acho engraçado. Você acha?

Dito, sigo.

A Folha de S.Paulo publicou reportagem com o título "Advogados ganham projeção nas redes com anti-juridiquês”. Virou clichê falar em "anti-juridiquês". Cool. Minha pergunta: seriam advogados ou coaches (seja lá o que for isso)?  O que é "projeção nas redes"? Bom, considerando o grau de "inteligência" das e nas redes, já é fácil de entender o grau de simplificação do "anti-juridiquês". Viva a pós-modernidade (atenção Migalhas — aqui tem uma dica para um título de matéria).

Um professor explicou-justificou o fenômeno: "os advogados viemos de uma cultura muito rígida". Minha pergunta: cultura rígida? De onde ele tirou isso? Para mim, isso que está aí já é o próprio anti-juridiquês. Quando alguém fala em "verdade real" é o anti-juridiquês na veia, se me permitem o sarcasmo. Cursos de "lei seca" seriam o quê? E ensinar Kelsen (ou nem saber quem foi) no modo como ensinam é "algo rígido"?

Vejamos. Uma advogada que tem canal tipo TikTok diz que com "termos rebuscados" (sic) ninguém entende o Direito. O que seriam esses "termos rebuscados"?

Vejamos. Uma coisa é o Direito em sua complexidade, que não deve ser confundido com a forma de comunicar para quem não é da área. Isso ocorre em todos os ramos da ciência/conhecimento.

Aqui está o busílis. O problema dos tiktokers é quererem simplificar o Direito para os próprios lidadores jurídicos. Aí não dá. Tiktokear para a população é uma coisa. Mas ter como clientela gente formada em Direito? Youston, Youston...

Ademais, não se deve confundir o Direito com a linguagem empolada de alguns datas vênias, javanezices e verborragias. Alguém reclama da complexidade da obra de Hegel? Da filosofia em geral? E a física? A química? Isso "justifica" ensinar as fórmulas da química por TikTok? Uma coisa é a química. Outra é alguém querer vender esse peixe pela mídia.

Lendo a reportagem da Folha, tem-se a impressão de que o Direito é um conhecimento sem importância. Sim. Direito? "Ora, qualquer um pode ensinar e aprender"... "Faça você mesmo." Algo como "monte um programa de culinária na sua cozinha". "Produza conteúdo." Daí exsurge uma pergunta muito séria: os justiktokers não se dão conta que estão diminuindo a importância do objeto? Dando um tiro no pé?

Tudo isso tem a mesma holding. Começou com livros "tipo manualzinho". De há muito chove na serra. Denuncio esse fenômeno há décadas. Produzem simplificações, resumos, resuminhos e quejandices para tornar mais acessível o conhecimento técnico... 

Afinal, por qual razão existem tantos livros e lives do tipo "direito sem as partes complicadas"?

Ora, parece que há uma trucagem nisso tudo. O não dito. Simplificar o quê? Eis a pergunta de um milhão de laiques: " - As pessoas que querem simplificar o Direito saberiam o que é a complexidade do Direito?" Ora, olhando o currículo dos tiktokers (aqui entendidos como os adeptos desse "novo" modo de simplificar), nada encontramos, nem técnica, nem teoreticamente sofisticado. Logo, se não conhecem o complicado, como querem ensinar o descomplicado?

Mais. Com esse nível de ensino jurídico e literatura usados em sala de aula, por qual razão os simplificadores querem facilitar o que já é simples ou simplório? São eles mesmos reféns.

Esquecem que o ensino estandartizado (que se reflete nos concursos e nas práticas cotidianas do sistema de justiça) produz "isso que está aí". Gente formada em Direito tem dificuldade até em dizer palavras mais sofisticadas. Que dirá entender seu significado...

Em vez de encarar de frente essa crise, os próprios meios de comunicação (como a Folha de S.Paulo) noticiam o fenômeno sem qualquer juízo crítico. Noticiam como se fossem empiristas descrevendo fenômenos da natureza...

Não contentes com isso, agora inventaram a pólvora: reciclar esse lixo todo e vender em boutique.

Reconheço que isso tudo deve ser um bom negócio. Não lhes retiro a legitimidade. Mas daí a pretenderem dizer que há um avanço "tecnológico" (ou ganho técnico ou "eis a inovação"!) na área jurídica vai uma distância enorme. Botar "a culpa" no juridiquês (qual?) para o substituir por simplificações rasteiras?

Se há um imenso público ávido por platitudes, sensaborias e lugares comuns que imitam almanaques de farmácia, isso não quer dizer que essa prática não deva — e não possa — ser criticada. E não se diga que isso é "popular e democrático".

E isso não quer dizer também que qualquer crítica ao fenômeno da simplificação seja uma forma de elitismo ou reserva de mercado jurídico.

Ao contrário. "Plantas que curam" (há muitos livros assim — pretendem salvar o mundo da medicina) não tem qualquer critério de comprovação cientifica. E quando têm, as propriedades curativas não são "explicadinhas" em livros para qualquer um sair fazendo chás e morrer de intoxicação, se entendem a alegoria.

Pergunto: em nome da venda de facilitações, quantos direitos são vitimados diariamente por advogados malformados e que acham que dá para aprender Direito com pílulas de sabedoria? Ou de juízes que dizem que jamais citam doutrina?

Parece que estamos na fase da automedicação jurídica. Não seria melhor ler a bula? Isto é, estamos falando de coisa séria aqui. Dos direitos das pessoas. Da própria democracia (sim, existe gente formada em direito que odeia a Constituição — leva só dois minutos para constatar).

Não é brincadeira. Exigir estudo de quem vai "operar" com isso — ah, os operadores — não é elitismo.

Levemos o Direito a sério. Há um ônus para quem acha que tudo pode ser comunicado de forma simplória, conspurcando até mesmo o trabalho de professores — sim, essa classe ainda existe — que se dedicam às pesquisas desse complexo fenômeno que é o Direito.

Portanto, não se venha dizer que dá para explicar um fenômeno complexo com emojis, musiquinhas, paródias e sinal de polegar para cima. Sobretudo quando o ensino, sem emojis e TikTok, já é capenga de há muito.

Direito é mais complexo que os adeptos dessas "novas tecnologias" pensam. Os tiktokers querem tirar a intermediação. Querem fazer isomorfia, imitando o repórter da Globo quem, para falar da enchente, fica com água na cintura. Simplificações como "no furto, coisa alheia móvel é aquilo que não pertence a alguém"; "escalada é subir em alguma coisa"; "agressão atual é aquela que está acontecendo; iminente é a que está por acontecer", "reclamação é reclamar", etc.

Há coisas intrigantes na matéria da Folha, como a dita por uma jus-youtuber: "um advogado em inicio de carreira, que não tem clientes e nem escritório, mas tem celular, pode produzir conteúdo". Pergunto: qual conteúdo? Se não tem clientes, nem escritório, vai ensinar algo?

Moral da história: querem descomplicar o que já não era complicado porque há anos as faculdades de direito se esforçam para simplificar. É disso que temos de falar. Precisamos falar sobre o ensino jurídico. Ali está o paciente zero da pandemia jurídica. Não dá para usar cloroquina jurídica. Na pandemia do Covid, a cloroquina foi o TikTok da medicina.

Direito é a instituição que devia ser? A dogmática jurídica explica conceitos ou cria próteses para fantasmas para depois, e essa é a novidade, vender a descomplicação dessas próteses "nas redes" para ganhar "projeção"? Explicando o que foi criado justamente do nada. "Princípio Navah" — dar existência a coisas que não existem.

Será mesmo que não podemos mais do que isso? Antes de "descomplicar", antes de fazer vídeo engraçado e visual law e quejandos, não seria mais interessante tentar melhorar o ensino jurídico nesse país?

Formemos advogados e defensores e procuradores e juízes que saibam levar o Direito a sério. Não precisaria de TikTok.

Mas aí é que está o ponto: é bom que se precise de TikTok. Porque aí há sempre um coach esperto para ensinar a ficar rico. Produzir "conteúdo"... sem conteúdo.

Vejam, eu até acho que haveria espaço para a urbanização do Direito, para a tradução do complexo em termos mais acessíveis. É possível. O ponto é que o ensino, na base, já é frágil. Contentamo-nos com reciclagem? Somos catadores?

Para o TikTok-descomplicado-simplificado-desenhado ser útil de verdade, seria preciso que houvesse de fato uma substância complexa e sofisticada a ser explicada para o público. Mas as faculdades (já) não se preocupam (mais) em transmitir essa substância. Entre informação e conhecimento, optaram por um simulacro de informação de terceiro nível.

Como diz Hugo Mercier, Not born yesterday, título que dá a dimensão do cerne do livro. Acreditar nisso tudo é reflexivo ou intuitivo? Alguém vai testar o "conhecimento TikTok"? Perguntemos a quem acredita que Newton era um farsante se ele vai testar a sua crença, pulando de um prédio...

Quando vejo reportagens acríticas sobre esse tipo de matéria, lembro de Machado de Assis e seu conto Teoria do Medalhão. O filho completa 21 anos e seu pai lhe dá um conjunto de conselhos. Um pai tiktoker. Machado era visionário.

Se Janjão (esse o nome do filho) seguir as dicas, poderá ser um "medalhão", diz o pai. Poderá ser o chutador de ideias, o palpiteiro jurídico, o adepto do direito facilitado, o néscio, o reacionário, o analfabeto funcional e o cara que pede intervenção militar (o que dá tudo no mesmo).

Pensem no Janjão como o estudante de direito alienado, que não lê nada; no internauta que faz raciocínios mais rasos do que os calcanhares de uma formiga anã; no sujeito que não entende o que é uma ironia; no "jurista" médio do Brasil; no sujeito que não consegue ler este texto até o final, porque não tem capacidade de concentração. E pensem no pai de Janjão como o jus coach. Vejam o fecho de ouro:

Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Você pode ser um medalhão completo, Janjão! Você vencerá!

- Meia-noite, papai.

- Meia-noite? Entras nos teus vinte e um anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o príncipe de Machiavelli.

O texto foi longo. Deliberadamente. Para ver quem lê textos acima de 20 linhas.

Bom dia aos meus leitores.

Reitero Paulinho da Viola: eu aceito o argumento...desde que não alterem....!

17
Fev22

“A verdade e o nazismo”, por Nelson Werneck Sodré

Talis Andrade

 

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Nelson Werneck Sodré (Arquivo/Marizilda Cruppe/29-9-1998)

“Além da brutalidade, o nazismo produz também uma grave alteração semântica: ‘a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade”, aponta um dos maiores historiadores do Brasil

O artigo que publicamos a seguir foi escrito e publicado por Nelson Werneck Sodré, como introdução ao livro “Vida e Morte da Ditadura – 20 Anos de Autoritarismo no Brasil”. Sodré era um grande amigo do HP. Como apontou Carlos Lopes, nosso diretor de Redação, ao fazer uma introdução a um de seus artigos, “ele foi um dos homens mais ilustres que já nasceram em nosso país. Historiador, crítico literário, foi um dos intelectuais mais ativos e profícuos do Brasil”.

Recentemente, e em bom momento, o site “Opera”, numa grande colaboração ao debate atual sobre o ressurgimento do nazismo, trouxe à tona e publicou essa preciosidade formulada por um dos maiores intelectuais brasileiros.

Nelson Werneck Sodré foi a alma do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) – órgão do Ministério da Educaçãoque congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e ele próprio. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.

Neste texto, escrito em 1984, Werneck trata um tema que parecia superado, mas que, infelizmente, voltou a ser extremamente atual no Brasil: o fascismo. “O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores”, apontou o general. “Além da brutalidade, o nazismo produz também uma grave alteração semântica: ‘a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade”, diz Sodré.

“O nazismo, em qualquer de suas formas – e as hitlerianas, particularmente – espreita a verdade com vigilância ofídica. Para isso, está aparelhado com os múltiplos recursos da técnica – a escuta telefônica, a violação de correspondência, a censura aos meios de divulgação – e a riqueza do aparelho repressivo e policial, absoluto em suas ações, agindo acima das leis e de qualquer respeito pela criatura humana”, prossegue o historiador.

O mundo capitalista passa atualmente por uma profunda crise, que teve o sua plenitude nos grandes centros financeiros em 2008, espalhando-se depois por todo o planeta. É nesse contexto, somado à transição da hegemonia mundial, atualmente em curso, cujos protagonistas são a China e os EUA, que o fascismo ressurge e ameaça novamente a Humanidade. Analisar as suas raízes e as causas que propiciaram o surgimento dessas forças, como fez Nelson Werneck, nos ajuda a compreender alguns fenômenos que estão a ocorrer hoje no mundo e no Brasil. Boa leitura:

S.C.

 

A VERDADE E O NAZISMO

 

por NELSON WERNECK SODRÉ

A partir de 1933, quando o nazismo se instalou na Alemanha, Brecht não cessou de peregrinar, sempre com o avanço nazista em seu encalço: de Berlim a Viena, de Viena a Copenhague, de Copenhague a Helsínqui, de Helsínqui aos Estados Unidos, para uma pausa relativamente longa. Nesta última etapa, nem lhe faltou, para denunciar a expansão nazista, a fúria macartista, com os inquéritos que fizeram tantas personagens válidas deixarem o país. Tratava-se, para ele, de viver e de combater: sua arma seria o teatro. O longo exílio lhe proporcionou experiências inapagáveis. Suas peças dessa época serão naturalmente polêmicas. Elas colocam temas novos, que ele retomará adiante, para aprimorar. Daí a heterogeneidade do que produziu nesse período.

Uma daquelas peças marca bem a época, de um lado, e a etapa do teatro de Brecht, de outro lado. Iniciada em 1931, quando o nazismo era apenas tenebrosa ameaça, e terminada em 1935, com o nazismo na plenitude do poder, Cabeças redondas, cabeças pontudas representará a sátira crua ao nazismo. Não é das melhores peças de Brecht, naturalmente, mas das mais interessantes, como forma de ação política. O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores. A peça, refletindo a conjuntura, será uma alegoria. É situada no imaginário reino de Jahoo, onde os ricos proprietários, temendo a revolta dos camponeses endividados, apelam para os serviços de um homem providencial, Iberin.

“O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores”

Trata-se de esconder a realidade da crise e de suas causas materiais, substituindo-a por um mito. O homem providencial sabe que o povo é pouco afeito a abstrações e, para desviá-lo do caminho, é preciso apontar-lhe um inimigo concreto, palpável, próximo, de sua área de conhecimento. Assim, operando como doutrinador, apresenta ao povo um falso antagonismo: entre as pessoas de cabeça redonda e as pessoas de cabeça pontuda, acusando a estas, em propaganda alicerçada na frenética, furiosa e sistemática repetição, de responsáveis pela crise que o reino atravessa. Orienta, canaliza, concentra, pois, nos cabeças pontudas as frustrações, o rancor profundo, o ódio acumulado de uma classe média empobrecida e até de uma classe trabalhadora arrasada pelo desemprego. Assim, essas classes são desviadas da ação reivindicatória.

Brecht mostra como todos, sem distinção de classe, passam a esperar de Iberin a satisfação de tudo: que atenda a locadores e locatários, patrões e empregados, proprietários e assalariados, vendedores e consumidores, que baixe e levante os preços, que emita e acabe com a inflação, que aumente e reduza os tributos. Que, em suma, estabeleça a conciliação onde reina o antagonismo e estabeleça, principalmente, a ordem, isto é, que ninguém se queixe. Claro está que os cabeças pontudas pagarão altíssimo preço por esses milagres todos: são exilados, presos, torturados, privados do trabalho, assassinados. O maior milagre desse reinado de cabeças redondas é de ordem semântica: o nazismo será apelidado de democracia; a espoliação dos que possuem pouco será chamada desenvolvimento; a impostura será conhecida como cultura; a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade. É a degradação da linguagem.

Essa degradação é denunciada por Brecht no manifesto que dirige aos intelectuais de seu país, em 1934. Com a ascensão nazista, esses intelectuais dividem-se em dois grupos: o primeiro é constituído pelos que são atirados ao exílio – e entre eles está Brecht – como forma de negação do nazismo; a Alemanha perde os seus melhores artistas e cientistas; o segundo é constituído por aqueles que baixam a cabeça e tudo aceitam. Aceitando tudo, para sobreviver, fingem-se de surdos, quando Brecht os interpela com as “Cinco dificuldades para escrever a verdade”. Como a verdade é sempre concreta e, mais do que isso, fundamento das mudanças, ela é perseguida como inexpiável culpa pelo nazismo, que pretende bani-la e se escuda na mentira. Os que ousam escrever ou dizer a verdade são cabeças pontudas: o regime os massacra.

Brecht dá o seu recado, apesar de tudo: aquele que quer combater a mentira e a ignorância deve vencer, no mínimo, cinco obstáculos: é preciso a coragem de proclamar a verdade, quando ela é sufocada e banida; a inteligência para reconhecê-la, quando a escondem sistematicamente; a arte de fazer dela uma arma manejável; a capacidade para escolher os que a podem tornar eficaz; a habilidade para fazê-la inteligível. Tais dificuldades, para serem transpostas, exigem devotamento, abnegação, renúncia. O nazismo, em qualquer de suas formas – e as hitlerianas, particularmente – espreita a verdade com vigilância ofídica. Para isso, está aparelhado com os múltiplos recursos da técnica – a escuta telefônica, a violação de correspondência, a censura aos meios de divulgação – e a riqueza do aparelho repressivo e policial, absoluto em suas ações, agindo acima das leis e de qualquer respeito pela criatura humana.

"Como a verdade é sempre concreta e, mais do que isso, fundamento das mudanças, ela é perseguida como inexpiável culpa pelo nazismo, que pretende bani-la e se escuda na mentira”

O cristianismo deixara à vítima o direito de dizer: “eu sou a verdade”, confundindo-a sempre com a bondade. Brecht explica, objetivamente, que os bons são vencidos não pela bondade mas pela debilidade, conforme já destacou alguém. É preciso – frisa ele – que a verdade seja eficaz. Ela não pode ser sempre e fatalmente associada à derrota. A verdade vencida – nota ele – é débil virtude. Por que não deve ser sempre vinculada à derrota? Porque está nos fatos. Apontar esses fatos, no nível de interesse e de compreensão de cada agrupamento, é uma forma de cultura, sem dúvida. Mas é, também, uma forma de trabalho. A certa altura, Brecht assinala como tão simplesmente mostrar que tudo se transforma – e pode ser transformado, consequentemente – constitui extraordinário encorajamento e esclarecimento para os oprimidos.

E com isso assusta os opressores, porque lhes anuncia o fim que se aproxima. Em fases de ascensão nazista, aqueles que lidam com ideias – e só por isso são suspeitos, como malfeitores – frequentemente buscam enganar a si mesmos, antes de enganar os outros, concentrando seus esforços e simulando que são profundos e heroicos, na valorização do supérfluo, do secundário, do formal. Claro está que as verdades vulgares – dois mais dois são quatro, a chuva cai de cima para baixo, e que tais – são fáceis de dizer e, além disso, fáceis de aceitar, dispensando demonstração. Mas não afetam minimamente o poder opressor, como as questões semânticas, as dúvidas formais, as polêmicas puramente éticas. É preciso – e aqui voltamos a Brecht – escolher as verdades e situá-las no conjunto, isto é, na realidade dada. Escolhê-las e situá-las importa em conferir-lhes eficácia. As verdades ineficazes são inúteis.

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Queima de livros patrocinada pelos nazistas

 

Mas a eficácia está relacionada com a comunicação e a comunicação está relacionada à clareza. Os que se filiam ao timbre aristocrático do conhecimento, os que proclamam que a sua arte ou a sua ciência – aquela destacadamente – deve ser esotérica, porque o conhecimento fácil é vulgar e plebeu, enfileiram-se entre os que voltam as costas à verdade, desprezando sua eficácia. Os formalistas, os pretensos vanguardistas, os que se presumem originais somente porque diferentes, os que se apresentam como portadores do novo apenas pela negação do passado, enfileiram-se entre os que não amam a verdade, ou não têm as qualidades para superar os obstáculos que ela encontra para ser afirmada. A mentira tem disfarces fascinantes, por vezes, mas tem as pernas curtas e deixa logo ver a sua verdadeira face através dos véus fantasiosos com que se enfeita.

O nazismo não é apenas e não pode ser explicado apenas como explosão de barbárie, atraso e violência. É nazista, em essência, todo esforço em manter pela violência aquilo que não tem condições de viver pelo debate e pela aceitação livre. Ele não surge das ideias, mas de condições objetivas. Para manter-se – e para manter as condições objetivas que o geraram e alimentam – precisa do controle das ideias, entretanto. Todos os disfarces o favorecem, por isso, particularmente aqueles que permitem a confusão entre a verdade e a mentira. Esta, como representação do poder mantido pela violência, apresenta-se sempre com uma linguagem afetada, simulando nobreza, elegância, superioridade, sofisticação, quando apenas se caracteriza pela vulgaridade, pela imprecisão e pela generalidade vazia dos chavões e lapalissadas. A linguagem da verdade é dura, seca, precisa, contundente. Ligada ao processo, mais do que aos fatos, mas deixando-os a nu, ela é rica e comunicativa, definida e nítida. No fim de contas, como Brecht dizia, todo homem é responsável pelo inumano que entrava o seu avanço.

É nazista, em essência, todo esforço em manter pela violência aquilo que não tem condições de viver pelo debate e pela aceitação livre”

Nas épocas da treva, em que o nazismo, em euforia, porque tudo pode, supõe que tudo lhe é permitido, afrontando, com desprezo, crenças, convicções, direitos, como se não existissem, é realmente difícil dizer a verdade, esclarecer que não estamos divididos em cabeças redondas e cabeças pontudas, mas em opressores e oprimidos, afortunados e desafortunados, privilegiados e desprotegidos. E que não é bom para uns o que é bom para outros, nem indiferente tudo aquilo que pertence ao homem. Não há propaganda, por colorida, insistente e fantasiosa que seja, capaz de ocultar essa verdade elementar, de que as demais derivam. Os Iberin, com seus mitos e sua condição de homens providenciais, como Hitler e seus seguidores e imitadores, ou aqueles apenas disfarçados de homens comuns, como se apresentam por vezes – quando o nazismo clássico e modelar ficou desmoralizado e é preciso ressuscitá-lo sem camisa e sem fuehrer – os Iberin são meros instrumentos.

Parecem timoneiros da História – e são o seu lixo. Há meio século, Iberin – isto é, Hitler – ascendeu ao poder, em um grande país. Meio século: um instante na História! Nem os seus restos se sabe hoje onde se encontram. Supor que a tenebrosa aventura, numa etapa tão diversa, possa ser reproduzida, sob disfarces estabelecidos, inclusive, pela confusão semântica que busca degradar valores, é perigosa aventura. Está claro que ela, em suas tentativas e reproduções vulgares, causa desastres, crimes, sofrimentos. Há meio século, também, Brecht lançou o seu manifesto sobre a verdade, depois de ter elaborado a alegoria dos homens de cabeça redonda, dos homens de cabeça pontuda. Naquele momento, o manifesto não teve eco. Mas é dele que a cultura, hoje, trata, depois de ter enterrado os que propunham encabrestá-la. Os povos sobrevivem aos desastres, crises, sofrimentos, na medida em que sabem distinguir a verdade, afirmá-la e amá-la, como condição fundamental para o seu avanço e felicidade. A liberdade acabou sempre por enterrar os seus opressores.

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02
Nov21

Por uma fenomenologia da destruição 2

Talis Andrade

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por Renato Lessa

Palavra podre

(Continuação) “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas. A podridão lhe agrada e seus discursos Têm o dom de tornar as almas mais pequenas”. (Sophia de Mello Andersen, Livro Sexto, 1962)

Nada de novo. A destruição dá-se por palavras e atos. O modo da destruição reside na possibilidade da passagem direta ao ato: nenhuma mediação entre a palavra-preâmbulo brutal e sua mais pura consequência. Ademais, o uso da linguagem da ameaça e da ofensa parece seguir o modelo da peste, segundo uma lógica de infestação análoga à descontrolada expansão viral em curso. A analogia ajuda a compreender os motivos, digamos, mais profundos da percepção da pandemia como fato da natureza –“nada a fazer”; “e daí?”.[v] Há, no mínimo, uma analogia formal entre os modos da peste linguística e os modos da contaminação viral. Sob tal ângulo, o horror do amigo-da-morte à vacina e a defesa da “liberdade” fazem todo o sentido.

O filósofo e psicólogo escocês Alexander Bain (1818-1903) definiu em seu mais importante livro – The Emotions and the Will, de 1859 – a crença como um “hábito de ação”. Dotadas de conteúdos próprios, as crenças alimentam-se de sua capacidade prática de fixar hábitos e modelos de ação. Fixação que de modo algum prescinde do uso da linguagem, que tanto descreve quanto prescreve modos de agir. No próprio ato da nomeação das coisas, a palavra vale como preâmbulo de passagens ao ato e de futuros possíveis. A linguagem, ao mesmo tempo em que se move no interior da alucinação compartilhada de viver dentro de limites – a dimensão tácita –, pode dar passagem e abrigo à palavra podre, a fórmula que quando proferida destrói o próprio ambiente sobre o qual incide.

A palavra podre destrói, antes de mais nada, limites tácitos. Como modelo de ação, faz-se protótipo do hábito de destruir hábitos. Em sentido inverso, o modelo da destruição segue a potência e o roteiro da palavra podre, e é pela palavra que a coisa vem. O sujeito da palavra podre, mais do que algoz da gramática, é inimigo da semântica e da forma de vida a ela associada. Há palavras que caem no vazio, dissolvidas pela inércia do que já está posto e estabelecido. O traço distintivo da palavra podre é que entre si mesma e sua consequência prática não há mediação. Mesmo que não faça sentido, produz estragos. Mesmo repudiada, já foi dita. Seu emissor, ademais, é sujeito dotado de uma consistência notável: é capaz de fazer tudo o que diz, sem qualquer reserva mental.

Mesmo que não consiga realizar a completa passagem ao ato, pela ação de impedimentos externos, o emissor da palavra podre crê que o pode fazer e que isso significa liberdade. É o que basta para que seja muito perigoso, como operador de uma imaginação eliminacionista. É um obcecado pelo desejo de matar a linguagem; fazê-la coisa; suprimir qualquer conteúdo metafórico ou figurativo para a palavra “morte”. O emissor da palavra podre é, sobretudo, um sujeito dotado de ares proféticos: antecipa a todo tempo o cenário distópico de uma forma de vida adornada por dejetos e corpos sem vida.

É possível supor que a relação entre a dimensão tácita, à qual aludi, e a emissão da palavra podre não seja de exterioridade. O que a distinguiria, neste caso, seria o caráter enfático e brutal da emissão, mas não o conteúdo, um núcleo de sentido já abrigado por padrões de subjetividade formas de expressão habituais. Cenário um tanto trágico, de dissolução da própria lógica de dimensão tácita, que traz consigo um marcador de limite e de sinalização, ainda que imprecisa, de padrões de previsibilidade, enquanto a palavra podre se sustenta na premissa do não-limite.

Ao mesmo tempo, não é escusado imaginar que tal dimensão tácita abriga uma extensa zona de indiferença. No lugar da percepção da infestação, a suposição da indiferença como princípio tácito funda-se na descrença na capacidade performativa da palavra podre, como algo que não se deve levar a sério. Em certo sentido, o indiferente crê na consistência da dimensão tácita, a um ponto tal que julga improvável a contaminação, ou supõe que em tempo hábil a inércia e a amnésia da vida-como-ela-é acabariam por neutralizar o efeito de podridão. Ambas as hipóteses fazem sentido e, na verdade, não chegam a ser excludentes. Não é vedado imaginar a dimensão tácita como espaço irregular e heterogêneo, dotado de conteúdos e atitudes distintas a respeito do que é tácito. Em outros termos, a palavra podre tanto pode ser acolhida como nome apropriado para o que já é familiar – e, portanto, podre –, quanto ser recepcionada com indiferença e diluída sob muitas formas de apaziguamento.

Na verdade, o entendimento das razões e das formas do encaixe e da indiferença, diante da palavra podre, exige uma pré-história e uma etnografia da dimensão tácita: como foi preenchida, qual a variedade de atitudes que pode abrigar? Em notação direta, tratar-se-ia de refletir a respeito de torturante questão: como chegamos até aqui?

A complexidade da dimensão tácita revela, no entanto, a possibilidade de uma atitude distinta. É o que dá a ver a percepção da disseminação da palavra podre como algo que, para além da indignação política, produz um sentimento de perplexidade, a um só tempo existencial e cognitivo. Nesse caso, no lugar de indagar “como chegamos até aqui?”, a pergunta decorrente é “o que é isto no qual chegamos?”. Em outros termos, faltar-nos-ia a inteligibilidade deste aqui ao qual chegamos: o que é isto, o que é este aqui?

 

Do sentimento de perplexidade

O sentimento de perplexidade não conduz necessariamente à paralisia política. Ao contrário, faz todo o sentido buscar na ação cívica e política e no compartilhamento do espanto recursos para lidar com eventos extremos e inauditos. O fato básico e originador da perplexidade é o da ocupação do governo, pela via eleitoral, por parte de um extremista, ao fim de extensa campanha na qual de modo invariável e explícito disseminou podridão pelo país afora: valores e expressões em completa dissintonia com relação à acumulação civilizatória que julgávamos ter feito, a partir da década de 1980. O desejo de eliminação do oponente e do diverso foi apresentado sem reservas, ao lado do renitente elogio a torcionários da ditadura militar de 1964. O paroxismo deu-se no que se pode designar como o Pronunciamento da Ponta da Praia, no qual a poucos dias das eleições o chefe da extrema direita brasileira prenunciou exílio, prisão e morte para os oponentes de esquerda, sem qualquer reação por parte das autoridades eleitorais.[vi]

Não é o caso de reconstituir história tristemente sabida e vivida. O que aqui mais importa é enfatizar e explorar a dimensão da perplexidade cognitiva: do que se trata; o que é isto; como dizer o que é isto? O filósofo francês Jean-François Lyotard, em seu livro Le Différend, de 1984, comparou a Shoah a um terremoto que não apenas destruiu vidas, construções ou objetos, mas os próprios instrumentos de detecção e mensuração de terremotos.[vii] Não se trata de sugerir qualquer comparação possível entre a escala de infortúnio imposta ao Brasil pelo atual ocupante do governo da República e a que esteve presente no contexto da Shoah. Indico tão somente a fisionomia provável de um sentimento de desamparo cognitivo, que não impede ou elimina a necessária certeza da repulsa política e civilizatória, diante de configurações inauditas.

Nosso terremoto tomou a forma de um acelerado processo de desfiguração da democracia. A excelente imagem é da lavra da filósofa política Nadia Urbinatti, em livro luminoso, sob mesmo título. Não sendo a democracia um “modelo” estático, mas uma figuração móvel, seus elementos internos principais – as formas da soberania popular, os mecanismos legais e institucionais de controle do poder político e o universo da opinião – possuem movimentos e tempos próprios, afetados ao mesmo tempo por dinâmicas sociais mais amplas. A ideia de desfiguração indica a possibilidade de deterioração progressiva desses elementos: a redução do aspecto da soberania popular a uma dimensão puramente majoritária, o impulso à neutralização dos fatores de controle do exercício do poder e a infestação orquestrada da esfera da opinião, facilitada pela ocupação exercida pelos “meios sociais” no campo da (des)informação e difusão de valores.

A direção da desfiguração – seja ela um estágio para algo que ainda virá ou uma forma política própria, nutrida por sua própria excepcionalidade – não apresenta contornos nítidos: tudo leva a crer que se alimente de seu próprio processo, o que faz com que o seu “espírito” – no sentido dado por Montesquieu ao termo – seja ocupado por uma vontade de destruição do já configurado. Em poucas palavras, o fato da destruição, além do desastre implícito que carrega, é perturbador como objeto de conhecimento. Como lidar com isso?

Os tempos que antecederam a aceleração da desconfiguração abrigaram, entre os especialistas no estudo da política, um modo de conhecimento um tanto otimista. O mantra da “democracia consolidada” e do “funcionamento das instituições”, com poucas ilhas de reserva e ceticismo, constituiu o pano de fundo e o senso comum das avaliações especializadas no assunto. No jargão adotado pela ciência política conservadora, o sistema político como um todo foi por muito tempo percebido como uma dinâmica de ajustes e desajustes entre “incentivos” e “preferências”, como em um grande parque temático behaviorista. O horizonte do melhor dos mundos possíveis fixou-se no bom “desenho das instituições”, na santificação da “accountability”, na qualidade técnica dos processos decisórios e das políticas públicas, na sabedoria dos avaliólogos e na sagração das “boas práticas”. Programas de pesquisa sérios terão que – force majeure – por sob foco a “desfiguração”, no lugar da “consolidação”. Com efeito, uma das vantagens do redirecionamento – e não a menor – é a de poder reavaliar o saber comum a respeito do que pode significar a “consolidação” de uma democracia.

 

O nome do destruidor

A despeito da perplexidade que sobre nós se abateu, há o impulso inevitável de dar um nome ao inaudito: a emergência da coisa exige a atribuição de um nome. O nome, assim posto, não deixa de ser um efeito sonoro ou gráfico de nosso próprio espanto. Feitos de linguagem e espanto, o sentimento de não-familiaridade do mundo soa-nos como preamar da distopia.

Dar um nome ou um conceito a algo, para o filósofo alemão Hans Blumenberg, supõe um ato de tomada de distância. Trata-se de substituir um presente imediato – estranho e, de certo modo, indisponível – pelo recurso a um “ausente disponível”. Nessa chave, tanto o ato de nomeação como a elaboração metafórica podem ser vistos como provocados por uma insuportabilidade do “absolutismo do real”. A “ousadia da conjectura” – como ato originário de desprendimento – faz-se elemento inerente ao esforço de compreensão, na verdade um modo de evitar o confronto direto com os “meios físicos”. O trajeto, ainda segundo Blumenberg, decorre de uma exigência de autoconservação do sujeito humano, presente na lógica da elaboração conceitual. Um efeito de familiaridade decorre desse ato imaginário de apaziguamento dos “meios físicos”: ao dizer o nome e o conceito, afirmo que sei o que a coisa é; reapresento-a sob a forma de um nome e, desse modo, faço-a familiar ao integrá-la a um complexo já estabelecido de significados.

Os termos de Blumenberg, além de formidáveis, são úteis para iluminar o que aqui procuro por sob foco: “absolutismo do real”, “meios físicos”, “ausente disponível”, “ousadia da conjectura”.

A aplicação do conceito de “autoritarismo” para enquadrar os fenômenos que compõem o quadro em curso de ocupação do governo brasileiro bem exemplifica a projeção de um termo familiar sobre algo inaudito. Os problemas de inadaptação, contudo, são evidentes. O termo “autoritarismo” é uma ideia confusa e indistinta; diluída e aplicável a um conjunto variado de fenômenos, como efeito de uma inércia epistemológica. Parece ter vantagens de sinalização pelo seu conteúdo negativo, embora nem sempre tenha sido assim. Basta lembrar a significativa produção ensaística, no Brasil e alhures, na qual os termos “autoritário” e “autoritarismo” indicavam alternativas positivas à democracia liberal.[viii]

No Brasil da década de 1970, “autoritarismo” foi um eufemismo prudente mobilizado para dar nome ao fato da ditadura, com destaque para o importante livro editado em 1977 pelo brasilianista Alfred Stepan, denominado Brasil autoritário[ix]. Na década seguinte o conceito ganharia sobrevida por meio de copiosa literatura a respeito das “transições do autoritarismo para a democracia”, abarcando inúmeros “estudos de caso”, sobre países naquela altura ocupados por ditaduras. Na verdade, o nome autoritarismo em medida não desprezível continha um dos atributos indicados por Blumenberg, presentes na lógica conceitual, o da doação do nome com base em uma expectativa.

Dito de outro modo, “autoritarismo”, a partir dos anos 1970, foi antes de tudo o nome da ausência de democracia. Sua simples declinação trazia consigo o imaginário da urgência da recuperação – ou construção – da democracia. Ademais, os fenômenos autoritário e democrático são tidos como excludentes: a incidência do primeiro sobre o segundo tem a forma de uma intervenção exógena, segundo a criminologia política e penal dos golpes de estado. Processos de desfiguração da democracia são, ao contrário, endógenos, já que promovidos pela emergência eleitoral da extrema direita, através dos próprios mecanismos regulares da democracia e do Estado de Direito.

Uma refutação possível consistiria em dizer que nada disso impede que uma das trajetórias possíveis do processo de desfiguração da democracia em curso no Brasil seja o da implantação de um “regime autoritário”. Isso dependerá, contudo, de um acordo semântico, dotado da seguinte premissa: qualquer configuração política não-democrática deverá ter na palavra “autoritarismo” seu selo de inteligibilidade. Ainda que em chave sombria, o conceito faz-nos supor que sabemos o que nos aguarda. O termo traz ainda como seu efeito a diluição da desfiguração corrente em algo assemelhado a uma tradição. O assim chamado “bolsonarismo” seria, na verdade, um capítulo – ainda que o mais escaleno de todos – de uma “tradição autoritária”, o que semanticamente lhe atribui o lugar de uma reiteração, e não de uma novidade.

O recurso ao termo “fascismo” como “ausente disponível” e tal como a noção de “autoritarismo”, possui dupla valência: exprimir abjeção e dizer, ao mesmo tempo, do que se trata. Na verdade, no âmago de todo conceito reside uma aversão, e no caso do “fascismo” isto é evidente. Aprendemos com Primo Levi que o fascismo é polimorfo e não se limita a sua experiência enquanto regime político. Vejamos o que diz: “Cada época tem seu fascismo; seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração do poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar sua vontade. A isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana e a segurança de poucos privilegiados se baseava no trabalho forçado e no silêncio forçado da maioria”.[x]

A passagem de Levi é eloquente no que possui de advertência à sobrevida do fascismo por meio da desfiguração de aspectos inerentes a sociedades democráticas: justiça, educação e mundo da opinião. Mas, ou bem o fascismo é um regime ou é um conjunto polimorfo de práticas, inscritas em regime não-fascista. Neste último caso, embora o termo “fascista” possa ser empregado como sinalizador de práticas específicas – distorcer informações, paralisar a educação ou corromper a justiça – não caberá a ele designar o espaço mais amplo no qual práticas fascistas estão presentes. O que mais se poderá dizer é “há fascismo”.

Mas, a natureza do regime que sofre ou tolera suas práticas permanece indeterminada, à luz da definição polimorfa de fascismo.

Se optarmos pela ideia de fascismo como regime ou como, digamos, “projeto”, para nomear nossas agruras presentes, os problemas não são menores. O fascismo histórico foi marcado pela obsessão de incluir o conjunto da sociedade na órbita do Estado.[xi]Sua execução deu-se por meio de um modelo de organização corporativa da sociedade, cujo elemento central foi constituído pelo trabalho e pelas profissões, e não mais pelo cidadão liberal-democrático, sujeito de direitos universais. O fascismo a isso contrapôs a ideia de um direito concreto, calcado na divisão social do trabalho. O horizonte da arquitetura institucional corporativista visava incluir toda a dinâmica social nos espaços estatais e eliminar toda a energia cívica e política associada à indeterminação liberal e democrática.

O quadro que se apresenta hoje ao Brasil é bem diverso: não se trata de por a sociedade dentro do Estado, mas de devolver a sociedade ao estado de natureza; de retirar da sociedade os graus de “estatalidade” e normatividade que ela contém, para fazer com se aproxime cada vez mais de um ideal de estado de natureza espontâneo. Cenário no qual as interações humanas são governadas por vontades, instintos, pulsões e no que mais vier, e no qual a mediação artificial é mínima, ou mesmo inexistente. Tal é o pano de fundo da ideia de destruição, que indica algo mais amplo do que a natureza dos regimes políticos.

Há cerca de três anos, quando comecei a refletir – mais – e escrever – menos – sobre a destruição em curso no país, comecei por me recusar a dar um nome a seu principal operador. Dei-lhe, na verdade, um não-nome: “o inominável”.[xii] Um ato, por certo, ficcional de pô-lo fora da linguagem ou, ao menos, fixá-lo no lugar reservado pelos sistemas linguísticos para o que não pode ser dito e acolhido no horizonte semântico comum: o espaço pré-linguístico dos indiscerníveis. Mas, não é disso que se trata. Negar à coisa a perspectiva da dicionarização vale bem como sinal e náusea ética ou estética, mas os “meios físicos” subsistem ativos e indiferentes à recusa de abrigo conceitual.

Há, contudo, mais do que idiossincrasia e tolice nessa recusa. Na verdade, há espanto diante da enorme dificuldade de lidar com algo que se mostra exatamente como é. O assim chamado “bolsonarismo” não tem o que esconder, do ponto de vista de seus elementos constitutivos, embora o tenha, do ponto de vista penal. Mostra-se tal como é: diante da morte, não a escamoteia; transforma-a em evidência incontornável do curso natural da vida. Nossos padrões habituais de conhecimento, ao contrário, supõem sempre uma opacidade nas coisas, princípio segundo os qual o que parece ser nunca é o que é; sendo o elemento velado aquilo que lhe dá sentido. Trata-se, com efeito, de um atavismo gnóstico presente em uma atração pelo velamento. A lógica conceitual consiste, em direção contrária, em revelar aquilo que o fenômeno esconde e que não manifesta como descrição de si mesmo ou no seu modo de aparição.

Mostrar-se como se é consiste em algo extremamente perturbador. Algo valorizado na experiência dos afetos: espontaneidade, pregnância, corporeidade, lugar de abrigo fácil de ocorrências sem nome e portadoras de seu próprio sentido, instantâneas e situacionais. Em outro mote, e pela perspectiva aberta pela filósofa norte-americana Elaine Scarry[xiii] em obra memorável, aprendemos o quanto a não opacidade está presente na experiência com a dor; o quanto é irrecusável e abriga o mais fundo sentimento possível de certeza.

O modelo da dor constitui a dinâmica dos eventos destrutivos, cujo efeito de verdade reside de modo direto em seus impactos imediatos. O nome conferido, como ausente distante, não lida com a verdade inscrita no ato e nos efeitos. No mais, chega com atraso: não pode deixar de ser um acréscimo pós-factual. Quando chega, os efeitos já lá estão: topografia de ruínas, escombros e expectativas destruídas.

 

Fenomenologia da destruição

Quando Hans Erich Nossack (1901-1977), em junho de 1943, retornou a sua cidade – Hamburgo – varrida literalmente do mapa por 1800 bombardeios ingleses, durante oito dias sucessivos –, não carregou consigo o conceito do que viu. Andou atônito pelas ruínas, em meio a restos orgânicos sem forma, efeitos do que poderíamos nomear como o paroxismo dos “meios físicos”: a destruição de uma cidade inteira. Registrou imagens da untergang: destruição, afundamento, abismo; um fundo mineralizado, constituído por escombros e restos humanos derretidos ou carbonizados. Quando escreveu seu principal livro, Untergang de 1948, registrou coisas do seguinte tipo: “os ratos ousados e gordos, que brincavam nas ruas, mas ainda mais nojentos eram as moscas, enormes e verdes irridescentes, moscas como nunca se vira antes”.[xiv]

A descrição de Nossack foi considerada por W. G. Sebald como modelo de uma história natural da destruição.[xv] Em uma aproximação com os termos de Blumenberg, tal história pode ser tida como a narrativa mais direta possível do predomínio dos “meios físicos”. É preciso reconhecer a vantagem epistemológica da observação da destruição. A sensibilidade analítica que resulta da observação e de relatos sobre eventos extremos constitui ótimo treinamento para falar da destruição. Deveriam constar como leituras obrigatórias dos cursos de “Metodologia”. Atos de destruição valem pelo que são: atos de destruição. Seus operadores fazem o que dizem e dizem o que fazem: sintoma de um vínculo direto entre os “meios físicos” e a operação da palavra podre. Primo Levi nisto veria uma certa lógica da ofensa: produzir dor e castigo, por certo, mas também destruir pela palavra precisa. Outra imagem de Primo Levi permite a passagem para um exercício final de observação da destruição, a de “ir ao fundo”.[xvi]

O que pretendo fazer é indicar a abertura de abismos, por meio dos quais a destruição faz seu trabalho de afundamento. Não se trata de conferir à destruição qualquer dimensão metafísica ou sublime. O termo vale aqui como um sinal – uma seta – apontada para circunstâncias de desconfiguração da malha normativa que, desde a Constituição de 1988, prefigurou uma forma de vida. “Destruição” é o nome que se dá a tal destruição. Mais do que revelar um nome cifrado, capaz de revelar seus âmagos mais profundos ou “projetos”, cabe mostrar suas circunstâncias e áreas de incidência. Os fatos primários são legionários. O que farei a seguir não é tanto registrá-los, e sim proceder à apresentação não exaustiva de configurações mais gerais sobre as quais operadores de destruição exercem seus efeitos. Pela ordem, tais configurações podem assim ser apresentadas: (i) Língua, (ii) Vida, (iii) Território e Populações Originárias e (iv) Complexo Imaginário-Normativo. (Continua

 

30
Ago21

Não há liberdade sob medida

Talis Andrade

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por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira /Grupo Prerrogativas /O Estado de S. Paulo.

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Esse é um bem comum. Não se pode querê-la apenas para alguns e negá-la para outros

Todos a querem para si, mas poucos a reconhecem também como um direito do outro. Querem-na na exata medida de sua vontade, de suas pretensões, pouco se importando com a liberdade alheia. Poucos a entendem e uma mínima parcela a exerce com sabedoria e espírito coletivo.

Talvez nunca na História do Brasil se tenha falado tanto em liberdade como agora. Aliás, o que é grave, fala-se dela sem pudor e sem escrúpulos para pregar o seu extermínio. Reivindicam a liberdade para operar a sua extinção. E os seguidores do discurso oficial disseminador do ódio e da destruição das instituições não escondem a sua intenção. Agora mesmo se fala da necessidade de “se tomar a liberdade, pois ela não se ganha, se toma”. Pergunta-se: tomar de onde? Tomar de quem? Tomar para quem e para o quê?

Aí o sentido do verbo tomar é o de arrancar, subjugar, apoderar, capturar, dominar, por um ato de força. Essas condutas são exatamente a antítese da própria liberdade.

É de fácil percepção que não são defensores da liberdade aqueles que acham que ela deve ser “tomada”, pois não aceitam que o outro a tenha. Dizem ainda que ela não se “ganha”, se “toma”. Liberdade se ganha, sim. Ela é conquistada, e jamais de forma truculenta.

Há uma única situação em que ela deve ser obtida de qualquer forma: no caso em que ela tenha sido abolida à força. Nessa hipótese, são legítimos todos os meios aptos a recuperá-la, retirando-a de quem a usurpou: o déspota, o ditador, o governante autoritário, aqueles que só reconhecem um tipo de liberdade: a de governar sem os limites impostos pela lei, pelos direitos individuais e pela própria vontade popular.

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Está se tornando voz corrente a pregação em prol da liberdade de opinião e de crítica como um direito sem peias, sem limites, sem controle de qualquer natureza ou espécie.

Sabemos que o homem é um animal gregário, necessita viver em comunhão com outros homens. Ademais, é ele dotado de aspirações, anseios, interesses que nem sempre podem ser satisfeitos, pois esbarram, se chocam com interesses de terceiros. O conflito daí surgido só pode ser resolvido pelo Poder Judiciário, por meio da aplicação da lei adequada. Em todos os setores e situações da vida em sociedade podem surgir e surgem conflitos.

O fenômeno conflituoso, verdadeira crise que atinge a paz e a harmonia sociais, em inúmeras situações tem como centro, como cerne, a liberdade. Disputa-se a prevalência da liberdade por vezes posta em confronto com direitos subjetivos, de igual relevância.

Em face de abusos da liberdade de expressão, que atingem a honra alheia ou põem em risco a normalidade institucional, o Poder Judiciário é acionado para apurar responsabilidades e eventualmente aplicar as sanções previstas, tanto na esfera cível quanto na penal. Atualmente, vem se assistindo a uma maior atenção e um maior cuidado por parte da imprensa escrita para, no exercício da liberdade que lhe é essencial, não extrapolar o seu direito à livre manifestação, não ferindo a honorabilidade alheia.

No entanto, não é isso que se percebe quando informações, opiniões e críticas são divulgadas pelas redes sociais. Aí se perde completamente o respeito pelo próximo e pelas instituições, não se teme punição de nenhuma espécie e não se tem nenhum escrúpulo para evitar ofensas – ofensas que extrapolam em muito os limites do próprio tema abordado.

Xinga-se, utiliza-se de um tosco e grosseiro linguajar absolutamente desnecessário para ilustrar a opinião emitida. Faltam a decência e o pudor de se colocar no lugar do outro para avaliar o sofrimento causado. O mesmo se dá em relação às instituições democráticas. Usa-se a liberdade de opinião para pregar a sua destruição.

Eu me referi às falas e aos escritos com autoria identificada. O que dizer, então, da covarde canalhice do anonimato que serve de escudo para a impunidade?

Sob o abrigo da liberdade de opinião prega-se a violência social, a destruição das instituições, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Parlamento, o banimento de garantias, a destituição de autoridades do Judiciário de seus cargos e outras violências do mesmo jaez. Liberdade como alvará de permissividade, como licença da prática de crimes de lesa-pátria e lesa-democracia.

Causa muita estranheza juristas da maior envergadura estarem entendendo que o Supremo e os demais tribunais não devem interferir. Pergunta-se: quem pode no País pôr fim aos conflitos senão o Judiciário? É incrível que as críticas à conduta dos magistrados, que são chamados a atuar, não sejam apenas do leigo, mas dos homens da lei. Os juízes podem errar, podem acertar, mas não podem ser objeto de repreensão porque estão cumprindo o seu dever de dizer o direito e tentar pôr fim aos conflitos.

É preciso que se entenda: a liberdade é um bem comum. Não se pode querer a liberdade apenas para alguns e negá-la para outros nas mesmas situações. Eu posso falar o que quiser, você, não, só o que eu consentir. Não existe liberdade sob medida e ninguém é seu proprietário.

 

21
Jun21

Pazuello, a “coisa de internet” e a distorção fascista da linguagem

Talis Andrade

 

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por Sylvia Debossan Moretzsohn /Objethos

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“Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade”.

Gosto de recordar esta afirmação de Hannah Arendt na abertura de seu ensaio sobre “Verdade e Política”, publicado originalmente há quase setenta anos, para desfazer algumas ilusões que costumam acompanhar as esperanças sobre a ética na política. Sempre achei curioso o espanto diante do recrudescimento da mentira deslavada dos tempos atuais, a ponto de se inventar a expressão “pós-verdade” para defini-los. Afinal, Arendt viveu o nazismo, quando a mentira deslavada era a regra. Mas nem em tempos de democracia se pode imaginar que prevaleça a sinceridade – ou a “transparência”, como está na moda dizer –, dado que a política envolve interesses e, por isso, segredos. Inevitavelmente, em qualquer época histórica.

Mas também deveria ser evidente que em uma democracia as coisas decorrem de outra forma, diferentemente do momento atual em países como o Brasil e, até recentemente, os Estados Unidos então comandados por Trump. E a tecnologia digital favoreceu enormemente a ascensão e o protagonismo desse tipo de liderança demagógica, com uma penetração muito distinta da do período pré-internet, devido à possibilidade de selecionar algoritmicamente o público a ser atingido e, mais ainda, formar bolhas para blindá-lo de ações que possam eventualmente despertar-lhe alguma dúvida em relação às informações distorcidas que recebe.

É aí que se insere a tentativa de defesa do general Pazuello, na CPI da Covid. Especialmente sua resposta sobre o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da Coronavac, em outubro do ano passado, que ele mesmo havia comemorado, para logo depois dizer, sem qualquer constrangimento, que “um manda, o outro obedece”. Na época, o destaque da notícia foi para a humilhação de um general subordinado a um capitão.

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Agora, diante dos senadores, o general alegava que a manifestação de Bolsonaro, num tuíte em resposta ao protesto de um de seus apoiadores contra a compra da vacina chinesa, era apenas uma postagem na internet. Questionado, disse que uma coisa era falar publicamente, outra era dar uma ordem a um ministro. E não importava se, por alguma incrível coincidência, essa ordem supostamente não dada acabou sendo cumprida, ainda por cima arrematada com aquela declaração sorridente sobre quem manda e quem tem juízo.

Das muitas mentiras descaradas na CPI, esta foi das que mais repercutiram na imprensa. José Casado, na Veja, ironizou a revelação do “avatar político” do presidente: “pela descrição do ex-ministro da Saúde, existe o Bolsonaro real e o Bolsonaro avatar. Um manda, o outro não. E ambos nem sempre estão de acordo”. Malu Gaspar, no Globo, lembrou que Pazuello havia tentado se esquivar do depoimento à CPI mas, diante da decisão do STF – de que ele poderia, sim, ficar calado sobre o que se referia a suas ações durante a pandemia, mas teria de responder, sem mentir, ao que dissesse respeito a outras pessoas –, “produziu uma inovação simbólica dos tempos que vivemos: a ‘coisa de internet’”.

Era sempre como reagia, a cada questionamento sobre uma ordem de Bolsonaro contra a compra de vacinas ou pela adoção da cloroquina como “tratamento precoce”: tudo “coisa de internet”, bravatas, balelas que não se deveria levar a sério.

É claro que é fundamental desmontar a farsa produzida pelo general nessa encenação comum a toda CPI – embora sejam raros os que apontem a aberração da obediência a esses rituais num momento de urgência que o próprio tema do inquérito impõe, porque as pessoas estão morrendo aos milhares todos os dias –, mas o principal ficou por dizer: a “coisa de internet” não é uma banalidade, é decisiva na condução da política e facilita a operação da inversão discursiva já apontada em clássicos da literatura como 1984, de George Orwell, ou no estudo de Victor Klemperer sobre a Linguagem do Terceiro Reich.

O primeiro a se notar nessa “coisa da internet” é a facilidade de se editar informações de maneira distorcida, ou simplesmente produzi-las para fazer propaganda – como se pode ver aqui no levantamento da agência Aos Fatos – e enviá-las a determinado público, para que ele se convença do contrário do que de fato ocorreu e ajude a disseminar a mentira.

Mas o mais importante é a formação de referências para a sedimentação dessa operação de inversão discursiva, já visível na campanha eleitoral de 2018 – o programa de Bolsonaro denunciava o que o próprio candidato praticava contra seus oponentes e, no mesmo estilo de Trump, alertava para as alegadas fake news de que estaria sendo vítima, prometendo restabelecer “a verdade” – e na crítica às instituições, entre elas a imprensa, numa apropriação canhestra da crítica historicamente produzida por pesquisadores, na academia e fora dela. 

O mais relevante em todo esse processo é a apropriação da ideia de dúvida, esvaziada da fundamentação iluminista original. Durante a pandemia isso ficou mais visível porque nem os especialistas tinham certezas a oferecer. No estudo “Ciência contaminada: analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via youtube”, publicado há um ano, em maio de 2020, o Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) dava como um dos exemplos o canal “Desperte – Thiago Lima”, que na época contava com mais de 1 milhão de assinantes e misturava símbolos místicos a apelos racionais: “Pense”, “Raciocine”, “Faça a sua escolha”.

São apelos visíveis em perfis bolsonaristas na internet, que formalmente assumem o valor da racionalidade para invertê-lo e degradá-lo, do mesmo jeito que Bolsonaro justifica suas sucessivas ofensas à democracia como forma de defendê-la, ou como os vídeos que circularam no início deste ano, contestando o uso de máscara, o lockdown ou a vacinação e exaltando a liberdade individual. “Paz sem voz é medo”, dizia-se num desses vídeos, numa evidente distorção do famoso verso de Marcelo Yuka.

Mais ou menos na mesma época em que Hannah Arendt escrevia seu ensaio sobre Verdade e Política, Lukács publicava A Destruição da razão – traduzido para o português apenas em 2020 –, em que desenvolvia uma teoria crítica dos fascismos em geral e do nazismo em particular, buscando entender, no campo filosófico, o caminho que a Alemanha percorreu até eleger Hitler. Observava que a emergência do irracionalismo naquela época tinha suas raízes na vida cotidiana das massas.

Em momentos dramáticos como o que estamos vivendo, é muito difícil encontrar serenidade para refletir. Mas é exatamente nesses momentos que a reflexão é mais necessária. É preciso entender melhor os mecanismos históricos de apropriação, deturpação e degradação da linguagem, que se repetem agora com recursos mais sofisticados proporcionados pela tecnologia digital, para tentar enfrentar a barbárie.

Não creio que haja saída fora da identificação do que se enraizou “na vida cotidiana das massas”, a ponto de vermos cartazes afirmando que Bolsonaro foi escolhido por Deus – e me parece ocioso assinalar o tamanho da regressão que essa simples frase indica, como negação dos ideais republicanos que há mais de dois séculos demoliram a justificativa do poder por direito divino.Presidente Bolsonaro, o escolhido por DEUS - Home | Facebook

Perceber o papel da religião nesse processo – como faz, por exemplo, Evandro Bonfim num artigo recente, sobre “O espírito santo e o ‘rei do fim do mundo’”, mostrando as raízes arcaicas da mobilização do apoio a Bolsonaro – pode ser um bom início para reorientar o esforço de esclarecimento, empreendido por tantas e tão distintas iniciativas de combate à mentira.A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro - CartaCapital

 

26
Nov20

Santíssima trindade de Curitiba: juiz, acusador, delegado: um só corpo

Talis Andrade

Varallo (VC) : Bassorilievo con figura tricefala da Invorio e Chiesa di  Santa Maria delle Grazie - Archeocarta

por Lenio Luis Streck

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1. De vazamentos em vazamentos, tem-se a nudez!
Poderia começar com duas notícias: a uma, vazamentos inéditos revelam: Dallagnol recebeu, a portas fechadas, procuradores do Departamento de Justiça e agentes do FBI. Negociou como driblar o STF (ver aqui); a duas, Lewandowski cobra "lava jato" sobre ostensivo descumprimento de ordens do STF e manda investigar relação do MPF com agentes estrangeiros (aqui).

Palavras são fatos, dizia Wittgenstein: o mundo é a totalidade dos fatos. E como diz Michael Stolleis, no conto de Hans C. Andersen, As Novas Roupas do Imperador: quando o menino diz "mas ele está nu", nesse exato momento muda-se a percepção. Por quê? Porque o menino "faz" o imperador nu, provoca a quebra de sua autoridade; as reações dos cortesãos e da malta que o rodeiam demonstram isso. São como atos de fala, como diz John Austin. É possível fazer e desfazer coisas com palavras. Falando, agimos. Agimos falando. Somos seres dena, pela linguagem; parafraseando Borges, a linguagem, esta que, ao lado do tempo, é a substância de que somos feitos.

 

2. A pesquisa sobre a seletividade e a velocidade de Moro e Ministério Público
É desse modo que leio a esplêndida matéria jornalística do repórter especial da Folha de São Paulo, Ricardo Balthazar, quem presta um relevante serviço ao país, ao se debruçar sobre livros e artigos que pesquisaram a Operação "lava jato" e seus protagonistas. A reportagem integral pode ser lida aqui.

Acentua Balthazar que esses estudos publicados no Brasil e nos EUA submetem o legado da operação "lava jato" a exame crítico. As pesquisas sugerem que a opção por métodos controversos minou a legitimidade de suas ações e inviabilizou reformas que poderiam ter efeitos mais duradouros para o enfrentamento da corrupção no país do que os processos criminais.

Começou a reavaliação profunda do legado da "lava jato" submetendo a olhar crítico as estratégias que deram impulso às investigações e suas consequências. O imperador Moro está nu. O vice, Deltan, também foi visto pelo menino do conto.

Como diz Balthazar, ações voluntaristas que contornaram as regras do sistema de justiça criminal para atingir seus objetivos e assim minaram sua legitimidade. O voluntarismo e a falta de isenção desnudaram a "realeza". E o que fazer agora que sabemos, pois?!

Há ótimos trabalhos citados na matéria. A começar pela dissertação de mestrado, transformada em livro ("Lava Jato: Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça") da juíza Fabiana Alves Rodrigues, onde constata — e que bom — aquilo que se sabia: Sérgio Moro não foi isento na condução da operação. Precisamos, mesmo, de pesquisas que digam o óbvio. E não é ironia: é um elogio absoluto e sincero à pesquisa da juíza Fabiana. Desvelar as obviedades do óbvio é a tarefa de todo indivíduo inteligente, particularmente nestes tempos "bicudos". Que bom seria se a Academia dissesse... o óbvio.

A excelente pesquisa mostra que Moro imprimiu diversas velocidades aos processos. Seletivamente. E diz que houve uma estratégia deliberada para fazer as investigações avançarem na direção almejada pelos procuradores, em que o papel de Moro como juiz se confundiu com o do Ministério Público.

A pesquisa atesta aquilo que está nos diálogos do Intercept: houve uma conjuminação entre MP e juiz. E que Moro era uma espécie de chefe da Força Tarefa do MP. De todo modo, praticavam aquilo que é vedado: o uso estratégico do Direito. Direito não como condição de possibilidade, mas como instrumento. Da acusação.

Não sou eu quem diz. É a pesquisa. Moro e o MP escolheram processos. A dedo. Para ir mais rápido. Ou para ficarem mais lentos. Neste ponto, embora a pesquisadora não tenha encontrado um padrão para essa discrepância de velocidade, é importante ressaltar um ponto: houve processos contra grandes empresas como Petrobras para pressionar e fazer acordos — delações. Estes processos tinham asas.

Como sabemos, e isso também está no livro, muita gente se beneficiou desse tipo de procedimento de Moro. Penas leves, bons acordos e ainda por cima ficaram com bom patrimônio (por falar nos acordos, que tal esse acordo com o doleiro Messer? Ele confessa por escrito, o juiz não acredita e o absolve).

Talvez aí esteja a perfeita origem da palavra “colaboração premiada” — no caso, premiadíssima. A pesquisa diz ainda que Moro criou "um clima propício" (sic) para as delações.

Um dado chama a atenção: dos 80 presos nos primeiros quatro anos, 46 delataram. Veja-se que os que não delataram e bancaram o jogo, a maioria conseguiu sair da prisão em pouco tempo e foram acusados de menos crimes que inicialmente o MP apresentou (para "forçar" as colaborações).

 

3. Moro foi três em um: juiz, procurador e delegado!
A pesquisa também demonstra que parcerias como a de Moro com o Ministério Público são preocupantes porque esse alinhamento desequilibra o sistema de justiça criminal e abre caminho para abusos:

"A ausência de controles efetivos [sobre os atores do sistema] amplia as margens de atuação voluntarista, o que abre portas para a seletividade movida por fatores não submetidos a escrutínio público."

A juíza aponta, ainda, um evidente paradoxo:

"O controle criminal que ultrapassa barreiras da legalidade, além de fragilizar a democracia pela ruptura do Estado de Direito, também pode ser qualificado como uma atuação corrupta, em especial se proporcionar benefícios pessoais ou institucionais a quem o promove."

Moro foi juiz, Procurador e chefe da Polícia, um inusitado três em um jurídico. A Santíssima Trindade do lavajatismo. Outra revelação — descritiva — do livro é a constatação de que os tribunais superiores foram "emparedados", fruto da velocidade e, acrescento, do uso da mídia. Democracia sadia, não? Freios e contrapesos vira Judiciário contra Judiciário. E de baixo para cima.

 

4. O uso estratégico da imprensa
Outro professor, Fábio de Sá e Silva, do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, aponta para uma direção idêntica: a lava jato e a força tarefa construíram uma estratégia de comunicação agressiva, ao elaborar um discurso político que aos poucos foi usado não só para justificar os métodos da Lava Jato, mas para ampliar os poderes das instituições à frente do caso.

 

5. A cruzada judicial: lawfare contra os adversários
Já a cientista política Nara Pavão, da Universidade Federal de Pernambuco, conclui que a "lava jato" deve ser entendida como uma cruzada judicial, não apenas como uma investigação de um grande caso de corrupção:

"Campanhas desse tipo podem contribuir para reduzir o cinismo do eleitor com a política e a tolerância com a corrupção, mas somente se projetarem uma imagem positiva de eficiência técnica e imparcialidade."

 

6. Como a "lava jato" desestabilizou o sistema político: a nova direita
Raquel Pimenta, pesquisadora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, em artigo escrito a quatro mãos com a professora Susan Rose-Ackerman, da Universidade Yale, para uma coletânea de trabalhos acadêmicos sobre a "lava jato" publicada nos EUA neste ano, dizem que "A Lava Jato desestabilizou o sistema político, que não conseguiu se reinventar, e alimentou com sua retórica a ilusão de que seria possível prescindir dele para lidar com o problema".

 

7. A geopolítica da intervenção
Isso sem falar no excelente livro de Fernando Fernandes, A geopolítica da Intervenção — a verdadeira história da Lava Jato, em que denuncia o papel dos Estados Unidos e o desrespeito do juiz Moro das garantias dos réus e advogados. A intervenção aí tem dois sentidos: o de intervenção de potências estrangeiras e a relação promíscua da "lava jato" com agentes estrangeiros e a "intervenção" lawfariana de Moro no sistema de justiça brasileiro.

 

8. Agora que sabemos que sabemos, o que fazemos?
Pois é.

O que fazer agora que sabemos que sabemos? O imperador está nu. O juiz que virou procurador que virou chefe de Polícia que virou herói que virou ministro que virou advogado... está nu. E agora nós sabemos. Graças ao Intercept, e a Ricardo Balthazar, Fabiana Rodriguez, Fábio de Sá e Silva, Nara Pavão. Graças a quem soube fazer como o menino que, no conto de Andersen, não caiu na fraude coletiva.

Na verdade, todos já sabíamos. Os livros acima — e acrescento o Livro das Suspeições, organizado por mim e Marco Aurélio Carvalho (Grupo Prerrô) — produzem o efeito declaratório. Declaram aquilo que já sabíamos. De novo: e agora, o que vamos fazer se já sabemos de tudo?

Podemos fazer coisas com palavras. Aliás, fazemos coisas com palavras, queiramos ou não. A nós é dado respeitar esse sacramento de tão delicada administração, como dizia Ortega y Gasset, e agir com prudência. Com responsabilidade epistêmica e política e moral. Agir por princípio, portanto. Sobretudo no Direito.

Porque o Direito, senhoras e senhores, não é instrumento. Não é uma ferramenta a ser manipulada por aqueles que compõem sua prática. O lavajatismo atua como um soberano hobbesiano que põe o Direito — na linha da concepção de Austin (o jurista, não o da linguagem). Qual é o busílis? Austin já foi superado e, em uma democracia, não é o soberano quem faz as regras: são as regras que fazem o soberano.

Na democracia, como no xadrez, as regras são constitutivas do jogo. Mas há aí um elemento a mais: o Direito não é só um conjunto de regras. Dworkin ensinou também, entre outras coisas, que é uma questão de princípio. E seguir as regras do jogo é uma questão de princípio. Esse é o ponto.

Bem, agora sabemos. Talvez seja confortável negar. Quantos terão de admitir que estavam errados? É duro mudar de opinião. Mas, bem, se comecei a coluna com Wittgenstein, encerro com ele: o bom e velho Ludwig escreveu o Tractatus Logico-Philosophicus, disse ter resolvido os problemas da filosofia e se afastou dela. Depois, viu que estava errado, voltou à ativa e desdisse o que ele mesmo havia dito, escrevendo as Investigações Filosóficas. É um bom livro. Que ensina sobre contextos, sobre seguir regras, sobre o poder e a força e o alcance da linguagem.

E ensina que o solipsismo é loucura. Dói admitir. Mas é um passo necessário para uma democracia que se pretende uma democracia.

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