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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

24
Jul20

Delação assalariada: o recurso de Lula ao juiz Bonat

Talis Andrade

 

por Fernando Brito

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A briga, por dinheiro, entre Marcelo Odebrecht e seu pai, Emílio, acabou dando a Lula uma prova de que as delações feitas por dirigentes da empreiteira estão contaminadas por algo que deveria ser um vício insanável de origem e que, juridicamente, deveriam ser anuladas.

Por uma simples e comprovada razão, exibida pela própria empresa: os delatores foram brindados, para delatarem de acordo com os interesses de Odebrecht em firmar um acordo de leniência (perdão) por suas maracutaias, com “salários” mensais “pós-delação”, quase todos (75 de 78) acima de R$ 50 mil por mês , sendo 16 deles superiores a R$ 100 mil mensais, por um período, em geral, entre quatro e dez anos, além de terem pagas as multas judiciais que receberam e os gastos com advogados. Alem, é claro, de seguro de vida e auxílio-moradia.

Todos sabiam disso, claro, mas quando a Odebrecht ingressou com a planilha na Justiça, em meio à briga de pai e filho tornou isso material, sem possibilidade de discussão. E em qualquer tribunal do mundo “colaborador remunerado” (e muito bem remunerado) é algo que por si já bastaria para anular tudo o que diga, pois foi o dinheiro que o levou a dizer o que o dinheiro queria que dissesse.

São estarecedoras as narrativas, feitas pela própria Odebrecht da disposição de Marcelo em fazer depoimentos que interessassem por mais dinheiro ou, caso contrário “detonar” a empresa.

(…)o Sr. Marcelo Odebrecht enviou novo bilhete afirmando que “a própria empresa e os demais colaboradores (e não colaboradores) estão levando a uma situação onde acabarei ‘detonando’ a todos. Tanto aqui, quanto principalmente nos EUA” 

O Réu também passou a ameaçar renegociar os termos de sua Colaboração Premiada com o MPF. A ameaça de renegociação está registrada em bilhete enviado pelo Sr. Marcelo Odebrecht em 14.7.2017 :

Prazo até a semana que vem para a alienação de garantias aceitáveis (não venham me enrolar, para pagar minha multa). Caso contrário na outra semana já vou iniciar minha tentativa de renegociar meu acordo com a força tarefa. Alerto que o farei sem pestanejar, exponha a quem exponha, e será um caminho sem volta”

Diz a Folha que a Força Tarefa da Lava Jato, disse que o pagamento para delatar “está sendo discurtido em outro processo”. Ora, se a validade de seus depoimentos está sendo discutida, como eles puderam “valer” para fazer condenações?

O pedido da defesa está, informa o jornal, pendente de apreciação do juiz Luiz Antonio Bonat, no processo sobre o prédio do Instituto Lula, que nunca foi do Instituto Lula. No TRF-4, em recuso de embargo de declaração do caso do sítio de Atibaia foi ignorado com um “não vem ao caso” já tradicional por ali.

 
03
Jun20

Similia simulibus curantur: PGR dá a Moro veneno que ele dava a Lula

Talis Andrade

 

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por Fernando Brito

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Nos jornais, a articulação de Bolsonaro contra Sergio Moro mira com o mesmo olho torto que o ex-juiz mirou o ex-presidente Lula: usar provas indiciárias – ou provas que não provam, mas sugerem – para condenar o antigo Super Homem de Maringá e torná-lo inelegível, conta a repórter Andrea Sadi, no G1.

O braço desta articulação seria a reabertura das negociações para a delação premiada do advogado Rodrigo Tacla Duran, que acusa um amigo íntimo de Moro – Carlos Zucolloto, seu padrinho de casamento e ex-sócio de sua mulher – arquivadas pelo Ministério Público na era de ouro da Lava Jato.

É evidente que repugnam investigações dirigidas, até mesmo contra Sergio Moro, que disso usava e abusava, mas é irônico que se esteja aplicando sobre ele o velho preceito hipocrático da cura pelo semelhante – o famoso similia similibus curantur.

Moro, entretanto, deve ter seus atos examinados à luz da lei e das provas que demonstram, claramente, sua associação aos acusadores de Lula, agindo de maneira que, evidente para qualquer pessoa honesta, destruiu a imparcialidade judicial.

Mas, se não encerrar seu período de evidência por isso, morrerá à míngua por orfandade. A geração que ele criou adotou-se de Bolsonaro e já o renegou, deixando-o pendurado apenas na Globo e no que resta da “Força Tarefa” da Lava Jato.

Por enquanto…

19
Jan20

Dilma Rousseff: "Tortura é dor e morte. Eles querem que você perca a dignidade"

Talis Andrade

Após 50 anos de sua prisão na ditadura militar, Dilma fala sobre memória, companheirismo, resistência e cenário político

 
 
Por Mariana Lemos e Camila Maciel

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Dilma Rousseff durante auditoria militar do Rio de Janeiro, em 1970 - Créditos: Foto: Arquivo Nacional da Comissão da Verdade

Os juízes militares, com medo da posteridade, envergonhados, escondem a cara suja e cínica

 

“A tortura é algo extremamente complexo. Eu acho que todo mundo que passou pela prisão sempre vai ter essa marca. Eu não gosto de ver filme, por exemplo, que passa tortura. Não é que eu não goste. Eu não vejo. É pior, né? Eu não quero ver. A tortura é algo que mexe com aquilo que é mais profundo e que constitui você”. A declaração da ex-presidenta Dilma Rousseff, 50 anos após o momento em que foi presa pela ditadura militar, em 16 de janeiro de 1970, traz pulsante um processo que marcou a história brasileira e que ainda encontra ecos na atualidade. "A dor é sempre uma ameaça de morte, quando se trata de tortura."

Presa em meio ao aumento da repressão, da violência e da cassação de direitos políticos por parte da ditadura militar, Dilma se localiza nesse período: “Eu sou presa no processo de endurecimento do regime militar”. 

Sobre resistência e superação, para Dilma, a chave é não guardar ódio. "Eu acho que não tem como passar a vida tendo mágoa disso, isso é um absurdo. Porque não é possível ter ódio. Ódio é dar a quem fez isso contigo um poder que não pode ter. Você tem de olhá-los como eles são: banais. São banais."

Nestas cinco décadas transcorridas desde esse momento, a militante Dilma já construiu uma trajetória política diversa na vida política e institucional do país, chegando até o mais alto cargo, o de presidenta da República.

Filha de pai búlgaro e mãe brasileira, Dilma Vana Rousseff nasceu em 14 de dezembro de 1947, em Belo Horizonte (MG), sendo a segunda, de três filhos do casal. Em 1964, ingressou no Colégio Estadual Central de Belo Horizonte, atual Escola Estadual Governador Milton Campos, onde teve, já nos primeiros anos da ditadura militar, os primeiros contatos com o movimento estudantil e a militância política.

A jovem Dilma Rousseff ingressou na organização Política Operária (Polop) e, ao defender a luta armada contra a ditadura, se alinhou ao Comando de Libertação Nacional (Colina). Na época, ela tinha cerca de 20 anos e cursava Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além de Belo Horizonte, Dilma viveu e militou profissionalmente no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. 

A partir da fusão da Colina com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que originou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Dilma torna-se dirigente da nova organização e, tempos depois, muda-se para São Paulo. 

Dilma foi presa em 16 de janeiro de 1970 em um bar na Rua Augusta, região central de São Paulo. O local era utilizado para encontro clandestino entre militantes. Torturada pelos órgãos da repressão e encarcerada no Presídio Tiradentes, também na capital paulista, a ex-presidenta relembra esse momento doloroso e de resistência. 

A primeira mulher eleita democraticamente presidenta do Brasil, com mandato a partir de 2011, teve em 2016 um revés, quando foi afastada do cargo por um golpe orquestrado por distintos setores da política, da mídia e do Judiciário, situação esta retratada no filme Democracia em Vertigem, da cineasta Petra Costa e que foi indicado ao Oscar como melhor documentário. "Eu acredito que o filme Democracia em Vertigem tem um grande mérito, que é denunciar o surgimento no Brasil de um processo de extrema direita, que, de uma certa forma, tem características similares ao que acontece em outros países do mundo", opina a ex-presidenta.

Ao Brasil de Fato, Dilma também fala sobre as atuais disputas eleitorais, com eleições neste ano e a próxima em 2022, e garante que não concorrerá a nenhum cargo, mas tampouco abandonará a política. Já na análise do atual momento pelo qual passa o Brasil, ela declara: “Aqui, para impor o neoliberalismo foi necessário um governo neofascista”.

 

Brasil de Fato: No dia 16 de janeiro, se completam 50 anos da sua prisão política na ditadura militar. Na época, a senhora tinha 22 anos. Sendo um episódio marcante da sua trajetória, gostaríamos que a senhora contasse como se deu a sua prisão em 1970. 

Dilma Rousseff: Eu tinha 22 anos quando fui presa, no dia 16 de janeiro de 1970. Portanto, fazem 50 anos. O Brasil, naquele momento, estava saindo de um governo democrático, eleito pelo voto popular, presidido por João Goulart e indo para um processo acelerado de ditadura. Esse processo começa em 1964.

Agora, é interessante que o golpe não institui a ditadura num ato só. Ele vai instituindo camadas crescentes de arbítrio e autoritarismo. Primeiro, prende e suspende os direitos políticos de grandes lideranças políticas da época e lideranças do movimento social também, sindicalistas.

Na sequência, suspende direitos políticos de alguns agentes institucionais, tanto na área do Exército como na área do Judiciário. Não só deputados e senadores, mas também juízes e militares são cassados. Na sequência, esse é um processo crescente, vai se fechando. A ditadura instaura censura à imprensa, proíbe partidos e começa uma escalada muito acentuada de fechamento dos espaços políticos e democráticos de participação.

Então, corta-se o direito de greve, corta-se o direito de manifestação, prende-se trabalhadores, prende-se manifestantes do movimento estudantil. Obras culturais, de teatro, por exemplo, sofrem invasões, assim como O Rei da Vela, se não me engano.

E você tem um processo interessante, porque havia também no Brasil, de outro lado, entre 1964 e 1968, um processo de insatisfação grande e também de mobilização muito grande que se prestava no cinema. O Cinema Novo, por exemplo, tem todo um conjunto de obras muito importantes. Você tem também na música e em todas as áreas. E esse é um processo também que vai cair muito forte sobre a cultura no Brasil.

Aliás, é próprio dos processos de autoritarismo e de ditadura você ter um fechamento também na área cultural. Porque o mundo da cultura é um mundo crítico.  E, numa ditadura, não só não se aceita crítica política como não se aceita crítica de costumes. Tem até um jornalista, que é o nosso Stanislaw Ponte Preta, que criou o "Festival de Besteira que Assola o País", que justamente evidenciava que o Brasil estava sendo objeto de absurdos como desse tipo que a gente vê hoje, por exemplo, dizendo que menina veste cor de rosa e menino veste azul. Tinha isso também naquele momento. Foi o Stanislaw que evidenciou e demarcou o que é que acontecia quando você instaura o autoritarismo. 

E isso foi crescendo. Quando chega dezembro de 1968, há o AI-5, que eu acredito que é o marco mais claro de construção definitiva da ditadura. E aí começa a repressão. Você reprime movimentos sociais, reprime movimentos operários, camponeses. Há um processo de repressão violento. E esse processo começa e atinge também todas as organizações alternativas de esquerda que surgem nesse processo.

Porque uma das coisas mais graves da ditadura é fazer com que as pessoas, principalmente a juventude, fiquem descrentes da democracia. Achem que não há espaço para a democracia. No Brasil, durante um período, havia essa visão de que jamais deixariam um espaço democrático para as pessoas se manifestarem. Tudo isso leva a movimentos e à construção de organizações políticas fora das organizações tradicionais. Porque a ditadura militar instaura um bipartidarismo entre Arena e MDB e ela cassa todos os demais partidos e proíbe a organização desses partidos. 

Então, surgem organizações clandestinas. Eu sou presa no processo de endurecimento do regime militar, que leva, a partir do final de 1969 e início de 1970, a uma constante busca de presos políticos pela repressão. Então, essa captura e colocação em presídios até ilegais, em prisões ilegais, ou seja, nas quais você como preso não era reconhecido até ir para a prisão, que funcionava como uma espécie de cartório no qual te identificavam. Tudo isso se acentua muito e se radicaliza muito durante o governo [Emílio Garrastazu] Médici.

E é o processo que começa e que, depois, vai produzir não só tortura, que já existia, mas a tortura sistemática. E incluindo o que eles chamam de necessidade de mortes e assassinatos políticos, porque acreditam que as pessoas não são recuperáveis. E é nesse contexto que, no início dos anos 1970, já tinha sido criado o DOI-CODI em São Paulo e no Rio, e em outros estados, mas o foco principal estava em São Paulo e no Rio.

Eu fui presa em São Paulo, pelo DOI-CODI 2, do segundo Exército, que era chamado também de Operação Bandeirante, porque uma parte disso foi financiado por um segmento da elite econômica paulista que pagava, por exemplo, muitas vezes, a gasolina, o transporte de toda a operação e também era responsável pelas chamadas quentinhas que começam a aparecer. Eu acredito que as primeiras quentinhas apareceram para alimentar os presos políticos desse país. 

 

Um filme que retrata esse período é o Torre das Donzelas, lançado em 2019, que fala sobre as mulheres presas na ditadura militar no Presídio Tiradentes, em São Paulo, que foi onde a senhora ficou presa. Sobre isso, como foi a vida dentro da prisão, tanto do ponto de vista da convivência com as outras presas políticas, mas também do cotidiano?

O filme Torre das Donzelas é uma mostra, uma visão de um segmento. É um filme de ficção. Não é um documentário stricto sensu. Tem um conteúdo de ficção. Primeiro, porque tentaram reconstruir o presídio de Tiradentes, e o presídio de Tiradentes é impossível de se reconstruir por uma estrutura de ferro. Era um local que diziam que, anteriormente, tinha servido para vender escravos.

Ele tinha, nessa torre – era uma torre mesmo, propriamente dita – tinha paredes muito largas, aquelas paredes coloniais antigas extremamente largas. Tanto que você sentava numa janela. Eu tenho 1,70 m, hoje devo ter encolhido um pouco, mas naquela época eu acredito que eu tinha 1,70 m. E eu sentava na janela esticada. A janela me cabia tanto no sentido da largura como do comprimento.

Era muito irônico. Porque era um local que, visivelmente, serviu para a pior coisa que esse país já teve, que foi a escravidão. E tinha uma forma de sobrado brasileiro.Tinha aquela escadaria que começava unida e depois se repartia e virava um pé direito muito alto. Então, é muito difícil você ver a Torre.

Eu disse a elas quando eu fui gravar: "Eu acho que não é adequado. Vocês acham que vocês fizeram, mas a minha memória não tem nada a ver com aquela arquitetura de ferro. Não é aquilo". E é importante entender porque que era. Porque você organiza o cotidiano numa cadeia disputando duas coisas: tempo e espaço.

O que é uma cadeia? É o controle do seu tempo. Então, o controle do seu tempo é o seguinte: sempre que impuserem uma disciplina em uma cadeia, está descontrolando o tempo. Se disser: "De manhã você faz isso, meio dia você faz aquilo e à tarde você faz isso, e à noite…". E o espaço, por suposto, porque te trancam numa cela.

Qual foi a iniciativa política que as presas mulheres tiveram dentro da Torre? Elas controlavam o tempo e o espaço, dentro das suas possibilidades limitadas. O que significava isso? Procurar o máximo de tempo possível ficar com a cela aberta, permitindo que você circulasse de um lado para o outro.

Vou insistir, eram espaços extremamente passíveis de serem circunscritos, porque eram paredes muito largas. E, aí sim, essas paredes largas, geralmente eram bloqueadas por uma porta de ferro. Uma presa, inclusive, uma vez, fechou uma porta no dedo e o dedo quebrou, fratura exposta, porque a porta era bastante larga.

Então, nós conseguíamos ir de uma cela a outra, porque controlávamos o espaço também, e o tempo. Nós decidimos o que fazer dentro do tempo. Nós começamos a cozinhar a nossa própria comida, a buscar os livros, o maior volume de livros possível dentro de uma prisão. Eu acho que uma das coisas mais importantes que nós conquistamos foi isso: tínhamos muitos livros. 

E tínhamos discos. Eu conheci tango na prisão. Não era da minha área. Eu era de Minas Gerais, nasci em Belo Horizonte. E vivi minha vida adulta lá e depois fui para o Rio.

Então, o cotidiano era uma disputa constante. O preso é um preso, principalmente quando está em grupo. Um preso individual é diferente, sozinho. Porque a solidão na cadeia é uma coisa muito dura. Por isso eu acho que o presidente Lula tem um grande mérito de ter sido capaz de construir para si uma vida decente dentro de uma prisão. Porque você constrói uma vida decente, mas nós tínhamos muitas companheiras. Era muita gente. Então construímos uma vida cotidiana, apesar dos pesares.

E, ao mesmo tempo, construímos também uma vida política, porque a gente dirigia, dentro das nossas possibilidades, ou seja, limitadas, a gente dirigia nossa vida. Nós definimos quem cozinhava, quantas equipes eram, quem lavava a Torre, quantas vezes por semana, quem entrava… Enfim, nós construímos um cotidiano, nisso que eu falei de conquistar o espaço e o tempo.

Da mesma forma, a gente estava em uma etapa da prisão. A prisão no Brasil era assim naquela época. Você era presa e você desaparecia. Ao entrar na prisão você desaparecia. Não tinha registro. E aí, havia tortura sistemática por um tempo. E geralmente essa tortura se dava nas estruturas controladas pelas Forças Armadas, basicamente o Exército.

Depois disso, você era levada a partir de um determinado tempo. Na minha época eram uns dois meses, mais ou menos. Você ia para o DOPS, Departamento de Ordem e Política Social, e fazia aquilo que se chamava "fazer o cartório", que era fazer seu registro. Você tirava aquelas fotografias de perfil, de frente, pegavam as suas impressões digitais e fazia o depoimento. Porque o depoimento obtido na Operação Bandeirante não aparecia. Porque no processo de tortura no Brasil, eles mantiveram a aparência.

Tinha um momento que era dos curto-circuitos. Onde é que se dava o curto-circuito? Do momento em que você saía do DOI-CODI, né? O processo de cartório é o processo de curto-circuito. Ele te legalizava. Então esse é um momento fundamental. Porque é aí que os dados do processo começariam a aparecer.

E tinha outra característica também, que eu vi aqui repetido nesses processos da Lava Jato. Eles segmentavam a acusação. O que é segmentar a acusação? Eu integrava uma organização política. Eu nunca participei de ação armada, etc. Mas eu integrava uma organização política. Então, eu não era condenada por integrar uma organização, eu era condenada pelos estados por onde eu andei. Então eu tinha um processo em Minas, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro. E aí você levava três temas. Porque isso também te mantinham na cadeia, né?

Quando você saía, mesmo sobrando tempo, depois de cumprir, eu fui condenada, eu acho que a seis anos e meio. Eu cumpri três anos. Depois, eu cumpri três anos por quê? Porque, no meu processo, a Justiça derrubava sentenças. Porque você era julgado três vezes pela mesma coisa. Então eu acabei sendo condenada a dois anos e um mês. E fiquei três anos. Eles não te devolviam esse ano que você ficou a mais porque a lei de segurança dizia que não tinha devolução, nem processo contra o Estado nem nada. Então essa era a ideia. 

E a tortura é algo extremamente complexo. Eu acho que todo mundo que passou pela prisão sempre vai ter essa marca. Eu não gosto de ver filme, por exemplo, que passa tortura. Não é que eu não goste. Eu não vejo. É pior, né? Eu não quero ver. A tortura é algo que mexe com aquilo que é mais profundo e que constitui você.

O que constitui um ser humano? A imensa capacidade de sentir dor física, e psicológica também. Mas a física é algo que nos identifica com o resto da humanidade e, inclusive, com os mamíferos, os animais. Eles também têm dor. A dor é uma coisa, no caso do ser humano, ela é sempre uma ameaça de morte, quando se trata de tortura. Uma está ligada à outra. Então é dor. A percepção da dor e da morte. É isso que a tortura é. E todos nós, cada um de nós, temos horror a ter dor.

Cada pedaço do seu corpo reage à possibilidade da morte, por isso que quando a pessoa está com muita depressão é que ela se mata. Se ela não tem depressão, é muito difícil ela se matar. É complicadíssimo, ela não se mata, mesmo em situações limites. Para você dar esse passo, é algo muito difícil. Então, nós temos de enfrentar o fato de que trabalham com isso, trabalham com dor e morte. É isso que é a tortura. Dor e morte sistematicamente.

E com algo terrível, que é fazer a pessoa perder a dignidade. Esse é o componente da dor psicológica. Eles querem que você perca a dignidade, que você traia as suas convicções, que você abandone o que você pensa. Isso é, talvez, a decorrência maior da prisão. Você é preso e é isso que fazem.

Eu tenho imensa solidariedade por alguns dos companheiros que foram levados a renunciar às suas convicções depois de processos de tortura, indo à televisão. É uma solidariedade que eu tenho com eles. Esse processo de destruição de alguém, é um processo de fazer com que a pessoa se transforme em um morto-vivo. O que faz uma pessoa depois de trair o que pensa, depois de trair a si mesmo? Fica morto andando pela rua.

Então, esse processo, que é um processo que os Estados Unidos faziam em Abu Ghraib [prisão iraquiana], é um processo que você percebe que ele tem um componente extremamente fascista ou nazista, de destruição da pessoa. Esse processo é um complemento elevado à enésima potência da tortura e da morte também.

Então, eu vi gente que foi levada nesses esquemas e acho que cada um de nós só aguenta tortura se enganando. Você fala: "Agora eu aguento mais cinco, dois minutos. Agora eu aguento mais três minutos". Porque você não imagina que você vai aguentar um dia, porque isso é uma eternidade. Misturou dor, o tempo passa a ser minutos ou segundos. Então, você tem que se autoenganar. É assim que você faz. Você se autoengana. E mente.

Uma vez eu fui para o Senado, e um senador, se não me engano, o Agripino Maia disse: "Mas você mentiu perante a tortura". Eu tenho orgulho de ter mentido. Na ditadura ou você mente ou você não sobrevive. Na democracia é que se fala a verdade.

Então, esse é um processo e tem uma porção de pessoas, todas as pessoas que estão dentro do presídio passaram por isso. Elas viveram isso. Então isso está subjacente. A gente ri, a gente brinca, a gente joga vôlei, sempre que pode, ou sempre que conquista esse espaço, mas a gente tem essa marca, cada uma de nós. E é com isso que a gente convive e cria cotidiano, porque tem também outras vantagens. A gente tinha 20 anos, a gente achava uma pessoa de 30 muito velha. Então, quando você tem 20, também é mais fácil tudo isso, você tem força vital para superar isso. E eu acho que não tem como passar a vida tendo mágoa disso, isso é um absurdo. Porque não é possível ter ódio. Ódio é dar a quem fez isso contigo, um poder que não pode ter. Você tem de olhá-los como eles são: banais. São banais. Podem ser taxados de criminosos, mas qual criminoso não é um pouco banal?

 

Hoje a gente vive um cenário em que o governo Bolsonaro têm o militarismo como uma de suas bases. A gente já tem casos de censura a pesquisadores, artistas, organizações sociais. Presidenta, na sua avaliação, é possível relacionar esses dois momentos? Quais são as aproximações do tempo da ditadura com a conjuntura atual que a gente está vivendo?  

Eu acho que são diferentes. Quando ocorreu o processo da ditadura, você tinha um tipo de governo. A forma política da ditadura, ela implica a gente fazer uma imagem que talvez fique mais fácil, é imaginar que a democracia é uma árvore, a ditadura implica em um corte radical da árvore. Você corta galho, você não deixa pedra sobre pedra. Você tira todos os direitos: organização, manifestação; o Congresso fecha. Você fecha todas as hipóteses. A sociedade como um todo é atingida.

E esse processo que nós estamos vivendo, na crise do neoliberalismo, no caso brasileiro, você tem uma espécie de invasão da árvore por fungos parasitas por processos de contaminação, que corroem a democracia por dentro. Aí você tem, por exemplo, a Lava Jato, que talvez tenha sido o maior instrumento para construir a pauta neoliberal.

A Lava Jato existe para construir a possibilidade de tirar direitos dos trabalhadores, a possibilidade de uma reforma da Previdência que produz 1,3 milhão pessoas esperando aposentadoria, com filas no INSS, coisa que nós tínhamos acabado. Produz a venda das nossas estatais. Venderam a EMBRAER para a Boeing, uma empresa que está em crise porque caiu aquele jato deles, sem falar que eles já vinham tendo problema, a ponto da Airbus já ter passado a Boeing agora.

Mas, de qualquer jeito, eles entregam a soberania brasileira, porque eles se submetem a todas as exigências do neoliberalismo tardio. Esse sistema, que já está em crise no mundo, já que cria uma brutal desigualdade, que destrói as políticas sociais e a redução imensa da miséria e da pobreza que nós fizemos. 

Pois bem, isso só ocorre porque a Operação Lava Jato constrói a narrativa da corrupção, que é estratégica para destruir não só o PT, mas destrói os outros partidos, de direita, de centro. Tanto é que surge o neofascismo do Bolsonaro. Então, o fenômeno do neofascismo é típico desse processo.

O outro processo é a ditadura militar. Eu não quero fazer juízo de valor, acho que os dois são péssimos, mas, nesse caso, do neofascismo você ainda tem espaços democráticos. Há de se perceber isso. O que não significa que o povo brasileiro possa sofrer muito mais sobre o governo de uma forma de extrema direita, como é o do Bolsonaro, que é contra tudo.

É contra todos os aspectos culturais da vida que se coloca de joelhos perante os Estados Unidos, que faz com que o país perca toda a autoestima que conquistou nos últimos anos nos governos do PT.

Então, é uma situação de descalabro econômico, social, político e cultural. Não tem área que não tenha essas feridas. Porque, por exemplo, o governo [Ernesto] Geisel não foi um governo entreguista, foi um governo que autorizou a morte, que é absolutamente sem palavras que não sejam aqueles adjetivos que a gente tem de usar. É um terror de Estado, é um absurdo a morte de adversários como forma de luta política. Que é o caso da autorização de morte dos presos na época do governo Geisel. Mas o governo Geisel tem um mérito, porque defendeu a economia brasileira. E esse mérito vai ser reconhecimento dele, porque não entregou o país. Não negociou a soberania do país. 

 

A gente está num ano eleitoral. As eleições municipais já dão sinais de um cenário para 2022 também. A senhora foi candidata ao Senado em 2018, em uma eleição marcada pela ascensão do bolsonarismo. A senhora tem planos de se candidatar em algum momento?

Não, não tenho nenhum. Não tenho mais planos eleitorais. Eu tenho planos políticos. O que não significa planos eleitorais. 

 

Em relação às eleições, tomando como lição o cenário de 2018, o que a senhora aponta como a postura do que deveria ser a esquerda brasileira numa próxima disputa eleitoral. 

A esquerda brasileira e os progressistas brasileiros tinham de se unir. Eu acho que é nisso que todos acreditam. Eu acho interessantíssimas as propostas sobre que é necessário ir ao centro. Só que, quem fala que é necessário ir ao centro, ou seja, que as políticas de consenso que levem a uma desradicalização, que possibilitem uma despolarização, partem do princípio de que é um centro, um centro político.

De fato, no Brasil, houve um centro político. A gente pode até chamar esse centro político de centro democrático. Esse centro democrático estava claro na Constituinte de 1988, que tinha o Dr. Ulysses [Guimarães], Mário Covas, pessoas de estatura, que eram pessoas que tinham compromisso com o país. O que que aconteceu? O centro político no Brasil foi sendo fragmentado e, nos últimos anos, no caso por exemplo do PMDB (MDB), esse centro político construiu uma hegemonia pela direita nos anos do Eduardo Cunha.

Mas não foi isso só que aconteceu. A arma Lava Jato, que é fundamental, foi construída para destruir o PT. Mas ela teve também um efeito que foi atingir os partidos que não estavam previstos para serem atingidos, como o PSDB. Mesmo eles sendo tratados de forma absolutamente diferenciada, eles foram bastante atingidos. Em especial, aquele que não soube perder. Nosso querido golpista, que não soube perder. Mas eles acertaram ao construir um governo ilegítimo como o de Michel Temer e levar para o governo toda a proposta…

Porque o Temer tem razão quando diz que Bolsonaro completa ele. É verdade. Ambos são neoliberais. Mas o que acontece é que, com isso, o centro é destruído. Ou melhor dizendo, o centro se destruiu. Aécio Neves, José Serra, pelo PSDB. O PSDB desmontou. O Alckmin foi um concorrente importante à Presidência e levou 4% só na última eleição, que produziu Bolsonaro.

O centro foi destruído pelo processo. Não cria um cara de centro-direita graciosamente. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos e na Alemanha, que o neoliberalismo se impõe nos marcos da democracia liberal, aqui, para impor o neoliberalismo foi necessário um governo neofascista.

E esse governo neofascista constrói na destruição do centro. Então, qual é o centro que é passível de se conversar? Que não esteja completamente comprometido e contaminado pela política neoliberal neofascista? Porque achar que o neofascismo é algo solitário, sozinho, e não é como uma espécie de irmão siamês do neoliberalismo é não entender a história. É não entender que aqueles que posam de centro e que são neoliberais, eles compactuam com o neofascismo. Podem até franzir os narizes e levantar as sobrancelhas, mas apoiam. Porque só eles podem entregar as reformas neoliberais que eles querem.

Então, a eleição precisa desse polo verdadeiramente democrático que é integrado pelo pessoal mais progressista de esquerda. E que percebe que não existe neofascismo sem neoliberalismo,e não existe neoliberalismo sem neofascismo. Não dá para acreditar na divisão desses dois. É isso que caracteriza as eleições de 2020. 

 

Presidenta, sobre o documentário Democracia em Vertigem, não se fala em outra coisa nesta semana desde que o filme foi indicado ao Oscar de 2020. Como a senhora recebeu a notícia da indicação e o que significa politicamente esse reconhecimento internacional da obra da diretora Petra Costa? 

Eu acredito que o filme Democracia em Vertigem tem um grande mérito, que é denunciar o surgimento no Brasil de um processo de extrema direita, que de uma certa forma tem características similares ao que acontece em outros países do mundo. Mas, para efeito só do país, eu considero que é muito importante o que a Petra Costa mostra nesse filme. Porque ela mostra com imagens do momento o que, do ponto de vista dela, ocorreu. E do meu ponto de vista também: que foi um golpe de Estado.

Ou seja, um processo em base nos fundamentos jurídicos da Constituição Brasileira, que prevê um impeachment no caso de crime de responsabilidade, sem crime de responsabilidade. Coloca na pauta um golpe de Estado justamente para viabilizar uma agenda que tinha sido derrotada em quatro eleições consecutivas.

Eu acho que essa narrativa mostra toda a ação dos principais sujeitos daquele momento. Então, a imprensa, as responsabilidades da imprensa neste processo do golpe estão evidenciadas. Assim como a responsabilidade do PSDB, as responsabilidades no surgimento das lideranças de direita, que hoje ocupam o cenário. E, sobretudo, ela evidencia como é que isso abriu caminho para a chegada do Bolsonaro ao poder. 

*Com colaboração de Douglas Matos.

Edição: Vivian Fernandes

04
Out19

Nada menos que tudo: a incrível história do herói que quase fez alguma coisa

Talis Andrade

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Por Maurício Cardoso

“Nada menos que tudo”, o livro pistola de Rodrigo Janot, é pouco mais do que uma versão personalizada da vaza jato vazada pelo The Intercept Brazil. Além do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, Janot tenta assassinar reputações de outras pessoas, não apenas dos alvos da "lava jato", mas figuras do cenário político nacional, especialmente, o que é muito de se estranhar, de colegas do Ministério Público e da advocacia.

Mas, o que melhor se aproveita na prosa fanfarrona de Janot, descontados o egocentrismo e a autocomplacência do autor, são os bastidores da operação "lava jato" que ele se propõe a desnudar, coisa que The Intercept fez antes do que ele, com muito mais competência e abrangência.

Por seu relato das peripécias de Janot, Dallagnol, Moro e companhia mal ajambrada, fica-se sabendo, por exemplo, que sem delação premiada não haveria "lava jato", luta contra corrupção e nenhuma operação contra os que ele considera parte da elite política e corrupta do país. Exagero: a turma não chegaria a uma mísera denúncia para consertar este Brasil se não recorresse à solta também ao grampeamento e interceptações telefônicas e telemáticas.

Cada momento solene da vida do ex-procurador geral da República foi celebrado com uma taça ou uma garrafa de vinho. Janot conta, por exemplo, que sua nomeação para o cargo pela presidente Dilma foi anunciada enquanto ele se recuperava de uma bebedeira de fim de semana. E conta também que antes, durante ou depois de receber e passar a dar tratamento jurídico para cada uma das delações mais importantes das investigações da lava jato, ele — sozinho, quase sempre, ou acompanhado por sua equipe de colaboradores — esvaziou uma ou mais garrafas. Vinho é sua bebida preferida, mas no estoque alcoólico da “farmacinha”, a geladeira que ele mantinha em uma das salas de seu gabinete na PGR, havia também cachaça, uísque, vodca, rum e gim.

Delações

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Algumas delações, Janot reconhece que eram vazias e não renderam dividendos na investigação. "Quando vimos o conteúdo das delações conduzidas por Curitiba e começamos a destrinchar os anexos das ‘bombas atômicas’ que iam arrebentar Brasília’, tivemos uma grande decepção. ‘Isso está uma merda, não tem nada, tá raso esse negócio’", foi o comentário de Janot ao tomar conhecimento do conteúdo das primeiras delações do doleiro Alberto Youssef e do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o estopim da "lava jato". Outras, como as 77 delações dos executivos da Odebrecht ou a do empresário Joesley Batista da JBS, eram substanciosas e produziram bons frutos.

No caso das revelações da JBS, os subprodutos da gravação da conversa do presidente com Joesley foram as ações controladas para flagrar as supostas entregas de propina para o presidente Michel Temer e para o senador Aécio Neves.

Nos dois casos, Janot conta as versões que saíram no jornal. Ele diz que as insinuações de que a gravação do presidente tivesse sido feito sob encomenda do Ministério Público são “bobagens”. Como bobagem também é a história do ex-procurador Marcelo Miller que virou advogado da JBS depois de ter sido investigador da "lava jato". “Era uma bobagem achar que empresários do porte dos Batista, com recursos para contratar os melhores advogados do país, precisariam de um procurador para explicar para eles o que era necessário para eu aceitar uma proposta de acordo de delação.” Ou que ele, Janot, não tenha feito acordo de delação premiada com o ex-deputado Eduardo Cunha porque não gostava dele. Neste caso ele ensina que “sentimentos pessoais não são relevantes de um acordo de delação premiada”, como ensinam os autores do livro Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões. (Ele não conta se o livro ensina se sentimentos pessoais justificam um assassinato). Bobagem também era a versão de que Delcídio Amaral tinha sido vítima de um flagrante preparado.

Vazamentos
Outra das práticas que fazem parte da metodologia dos caçadores de corruptos com sede em Curitiba é o vazamento seletivo de informações sobre as investigações em andamento. Os telespectadores já se acostumaram a ouvir rotineiramente a introdução para reportagens bombásticas do Jornal Nacional: “A Globo teve acesso ao processo, com exclusividade...” Pois é, Janot se refere à larga aos vazamentos e na maioria dos casos os atribui a interesses escusos dos investigados.

Em nenhum momento ele admite que a "lava jato" manipulou a grande imprensa e usou jornalistas escolhidos para fazer o que pode ser chamado de lavagem de informação: o procurador dá a notícia como se fosse fato e depois usa o recorte do jornal ou o clipping da TV para confirmar que o fato realmente aconteceu.

Mesmo se indignando com os vazamentos promovidos pelos investigados, em nenhum momento Janot diz que tomou qualquer iniciativa para investigá-los ou coibi-los. Ele conta o episódio em que os procuradores da "lava jato" de Curitiba se reuniram com ele em Brasília dispostos a apresentarem uma renuncia coletiva, inconformados que estavam de que o PGR, supostamente, havia assinado um acordo para livrar os grandes empreiteiros das investigações mediante o pagamento de uma multa de R$ 1 bilhão. “O repórter Vladimir Neto, da TV Globo, fora previamente avisado pelo pessoal de Curitiba a respeito da reunião comigo”, conta Janot. “Ele acabou não dando esse furo. Acho que perdeu a viagem”, diz o então PGR, com a maior naturalidade, como se a prática da turma de Curitiba, de levar a imprensa a tiracolo para dar amplitude a seus atos e eventos, não tivesse nada de questionável.

Com ar de inocência ele revela sua surpresa ao contar que a imprensa chegava junto com a polícia e os procuradores para operações de busca e apreensão ou de prisão de altas figuras, como no caso do senador Delcídio Amaral. Como se os jornalistas tivessem chegado ao endereço da detenção do infeliz por inspiração divina.

Janot fica até meio constrangido para falar do patético show do Power Point, em que Deltan Dallagnol promoveu um show midiático de baixa qualidade para provar que Lula era o chefe da organização criminosa que arrombou os cofres da Petrobras. Mas não usa nem meia palavra para recriminar a ação apoteótica do messias da luta anticorrupção.

A favor de Janot, diga-se que ele reconhece e reprova o uso político de vazamentos promovidos de forma intencional pelo juiz Sergio Moro do depoimento de Youssef às vésperas das eleições presidenciais de 2014 e de Antônio Palocci em 2018. “Esses dois casos, a meu ver, expõem contra a lava jato, que a todo momento tem que se defender de atuação com viés político”, diz Janot. Contra o ex-PGR, diga-se que ele não dá nome aos bois, como se os vazamentos tivessem geração espontânea.

Anticlímax
O momento mais esperado das revelações de Janot, não está no livro: a suposta tentativa de assassinato de Gilmar Mendes não merece mais do que sete linhas no livro, sem citar o nome do santo nem o local onde aconteceria o milagre. “Num dos momentos de dor aguda, de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolveram fazer graça com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não”.

Janot já havia mencionado, 50 páginas antes, quem era a autoridade que o havia tirado do sério: “apesar de eu ter contrariado os interesses da OAS, a petição feita por minha filha ao CADE foi usada pelo ministro Gilmar Mendes para me rebater quando apresentei pedido de seu impedimento em um processo de Eike Batista, porque sua mulher, Guiomar Mendes, atuava como advogada no escritório que representava o empresário”. Ele não faz nenhum reparo para reconhecer que a situação das duas advogadas era a mesma: elas atuavam na área cível enquanto os processos submetidos a seus respectivos parentes corriam na área penal.

Lula e os verdadeiros chefes de quadrilha
Para os que acreditam que a "lava jato" foi feita para pegar o Lula, Janot escreveu o título do Capítulo 15 do seu livro: “O objeto de desejo chamado Lula”. Neste capítulo, o ex-PGR relata as manobras feitas pelo coordenador da "lava jato" em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol, para que eles pudessem enquadrar o ex-presidente. “Eu teria que acusar o ex-presidente e outros políticos do PT com foro no Supremo Tribunal Federal em Brasília para dar lastro à denúncia apresentada por eles ao juiz Sérgio Moro em Curitiba. Isso era o que daria a base jurídica para o crime de lavagem imputado a Lula”, conta Janot. E prossegue: “’Sem a sua denúncia, a gente perde o crime por lavagem’, disse o procurador”. Janot diz ainda que em 5 de setembro de 2017 fez “uma denúncia por organização criminosa contra Lula e outros do PT, ou seja, quase um ano após a denúncia da força-tarefa de Curitiba”. O resto da história é de conhecimento público: Lula também foi morar em Curitiba e já tem até direito a progredir de regime.

Mas na visão de Janot, Lula não é nem de longe “o comandante máximo da organização criminosa”, como pintou Dallagnol em seu famoso PowerPoint. Talvez por já não ter direito a foro especial e, por isso estar fora da jurisdição do PGR, Lula é citado no livro apenas 27 vezes – contra 123 de Eduardo Cunha, 70 de Michel Temer, 54 de Dilma Rousseff e 50 de Aécio Neves. No time da corrupção ativa, o líder em citações é a Odebrecht (as pessoas físicas Odebrecht são citadas 18 vezes – 12 vezes Marcelo e 6 vezes Emílio) e o vice-líder é Joesley Batista, da JBS, com 23 nomeações (as empresas que ele comanda merecem 22 citações (14 da J&F e 8 da JBS)

O ministro Teori Zavascki, o primeiro relator da lava jato no Supremo Tribunal Federal, mereceu 37 citações. Luiz Edson Fachin, que assumiu a relatoria após a morte de Teori em janeiro de 2017, ganhou 17 menções. Gilmar Mendes 10, mais aquela não citação que fez o marketing do livro e deu mostras da falta de juízo do seu autor.

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