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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

20
Fev23

A autonomia do Banco Central é compatível com a Constituição?

Talis Andrade
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Resumo: resta saber se o presidente do Banco Central é o superego da nação

 

 

Por Lenio Luiz Streck /ConJur

= = =

O tema "independência ou autonomia do Banco Central" está na ordem do dia. O novo governo faz fortes críticas à atuação do BC. Afinal, a taxa de juros no Brasil é o dobro da inflação, desbordando do que ocorre com as demais taxas do mundo (vide EUA e União Europeia).

Para além da economia, o que o Direito pode dizer? Gilberto Bercovici foi quem melhor tratou do assunto no artigo Sobre o Banco Central Independente [1]. O artigo tem de ser lido. Por juristas, economistas, jornalistas e jornaleiros.

Bercovici reconstrói a história institucional do fenômeno. Mostra o fator "privatização dos bancos estaduais" ocorrida na década de 90 como elemento primordial da centralização da autoridade monetária no Banco Central. Diz também que o problema desse processo de reestruturação da política monetária foi o fato de que a recomposição da capacidade de intervenção pública se esgotou na tentativa de controle sobre os gastos públicos. Fala também da bizarrice que foi a equiparação da função de presidente do Banco Central do Brasil à de ministro de Estado em 2004. Isso gerou uma certa confusão institucional: um presidente de autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda (artigo 8º da Lei 4.595/1964) se torna equiparável a ministro de Estado, ou seja, com as mesmas prerrogativas de função daquele que supostamente é seu superior hierárquico na administração pública, o ministro da Fazenda.

Mas vinha coisa mais complexa pela frente: a tão falada autonomia do Banco Central (Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021). Pela nova legislação, o presidente e a diretoria do Banco Central passam a ter mandatos fixos e não coincidentes com o mandato do presidente da República, que perde o poder de nomear e demitir os ocupantes dessas funções quando bem entender.

Bercovici chama a essa entidade um "Frankenstein" na estrutura administrativa brasileira: uma autarquia não subordinada ao presidente ou a nenhum ministro, um órgão que paira no ar, sem vínculos, sem controles.

Esse é o busílis.

O Supremo Tribunal teve a chance de dar um fim nesse Frankenstein. Porém, na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6.696, decidiu pela constitucionalidade.

Passa um pequeno período de tempo e surgem fatos novos. Taxa de juros estratosférica que coloca em polos opostos o novo presidente eleito e o presidente do Banco Central.

O ponto que se põe é: qual seria o dispositivo constitucional que daria suporte à lei que concede autonomia ao Banco Central? Ao argumento de que ele deve ser autônomo para estabilizar a economia, cabe perguntar: a golpe de caneta monetária o presidente do BC tem mais capacidade do que toda a equipe econômica de um presidente da República? A Constituição estabelece quem deve cuidar da economia. E nisso está inserida a estabilidade e a responsabilidade social para com a população.

Examinando o texto constitucional, temos que ali estão determinadas as normas para a consecução de políticas públicas que devem visar a erradicar a pobreza e fazer justiça social (por exemplo, artigo 3º). Isso sem considerar o próprio cerne daquilo que chamamos de "Constituição Econômica".

Parece que esquecemos que a nossa Constituição tem o claro perfil dirigente. A CF/88 é compromissória e dirigente, filha das Constituições dirigentes do segundo pós-guerra, mormente se pensarmos em países periféricos como o Brasil.

Lembro que nos anos 90 cunhei a tese de uma CDAPP — Constituição Dirigente Adequada para Países Periféricos, na esteira da já então criticada Constituição Dirigente tratada pelo constitucionalista J J Gomes Canotilho.

Dizia eu, então, no que fui acompanhado por Gilberto Bercovici, Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni, que a nossa Constituição, a par das críticas ao dirigismo original feito pelo próprio Canotilho, continuava dirigente [2]. Mais: de minha parte, a tese do dirigismo constitucional continua válida enquanto não resolvermos o triângulo dialético propugnado pelo próprio Canotilho, inspirado em Johan Galtung (falta de segurança, pobreza e falta de igualdade política). A Constituição ainda vale. E nela nada consta sobre Banco Central independente ou autônomo. Banco Central aparece oito vezes no texto da Constituição. Nenhuma vez sequer se insinua a sua autonomia ou independência para além do poder do presidente da República — basta ver que o regime continua sendo o presidencialista.

Trata-se de analisar o papel do Estado na economia. E o do governo. Enquanto não resolvermos esses problemas (pobreza, segurança e igualdade política), ainda precisamos de forte atuação estatal para a consecução desses objetivos constitucionais. Isto é, aqui no Brasil a Constituição que dirige não morreu. E por isso precisamos de uma Constituição que diga o que fazer. Que resgate compromissos. Que resgate as promessas modernas até hoje incumpridas. E a nossa diz claramente como fazer isso. Quer queiramos, quer não queiramos. A Constituição é um fato. Ou ela vale apenas quando se fala em imunidades e isenções?

Não parece adequado à Constituição um organismo como o Banco Central autônomo, cujo presidente, sem mandato popular, sem legitimidade, estabeleça as diretrizes do desenvolvimento econômico. Porque, no fundo, é isso que acontece. O Banco Central manda mais que o presidente.

O Brasil é uma República representativa. Presidencialista. Elege-se o presidente para elaborar políticas públicas. Que devem ser compatíveis e obedecer a Constituição. Ora, se o presidente do Banco Central resolver triplicar a taxa de juros em relação ao índice inflacionário (duplicada já está) e isso gerar mais pobreza, quer dizer que a atuação do presidente do Banco Central é inconstitucional, porque a Constituição diz o contrário. Pior: a culpa e responsabilidade serão debitadas na conta de quem foi eleito presidente. Da República. E não do Banco Central. Sei que parece uma platitude dizer isso. Mas por aqui há que se dizer o óbvio — que se esconde no anonimato.

Tem-se a impressão de que estamos no mundo de paroxismos. Ocorre uma disputa quase fratricida nas eleições. Quase ocorreu um golpe. Elege-se o presidente. E quando ele quer fazer cumprir, para o bem e para o mal, sua plataforma de governo, o presidente do Banco Central atua como superego da nação.

Resta saber se o Banco Central pode tanto a ponto de ser esse superego, espécie de grilo falante do sistema político-econômico.

Numa palavra final, retomo Bercovici, para dizer que, para além de toda a questão constitucional, o problema da "independência" do Banco Central é menos jurídico e essencialmente político. A pergunta que deve ser feita é: Banco Central independente de quem?

Ao que parece, o BC é independente do sistema político e de todo e qualquer controle democrático — com o que se volta à questão constitucional.

Por último, alguém dirá que essa questão já está decidida pelo STF. Respondo, dizendo: mas o STF não disse que o modelo anterior era inconstitucional. Consequentemente, então, na pior das hipóteses, a Constituição admitiria mais de uma possibilidade de configuração. Além disso, o fato de o STF dizer por último não significa que esteja sempre certo. E decisões não são eternas.

Isto é, o presidente da República pode entender, e o Congresso também, que esse modelo de "independência" do Banco Central criou um problema do ponto de vista político e econômico.

Ou, ironicamente, a possibilidade de rever decisões que afetam estruturalmente a vida das pessoas seria inconstitucional?

Por isso, diante do problema criado, cabe alterar o modelo de Banco Central. Isso porque a alteração do modelo não é inconstitucional. Ao contrário, tornar-se-ia adequado ao modelo constitucional compromissório e dirigente inscrito na Constituição do Brasil.

= = =

[1] In Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico. ano 11 – nº 21 | mar./ago. 2022

[2] Recomendo a leitura deste artigo que trata da Constituição Dirigente Invertida, em que cito os três autores: https://www.conjur.com.br/2016-out-27/senso-incumom-rumo-norundi-bordo-cdi-constituicao-dirigente-invertida 

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30
Set22

'Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

Talis Andrade

Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de  igreja por causa do bolsonarismo - BBC News Brasil

Como jovem negro, Rafael se incomodava principalmente com a 'vista grossa' de membros da igreja ao racismo

por Letícia Mori /BBC News

Rafael*, de 30 anos, frequentou a mesma igreja batista na zona sul de São Paulo durante toda a sua vida. Seus pais frequentavam o local quando ele nasceu.

Foi ali que Rafael cresceu e aprendeu tudo o que sabe sobre fé e cristianismo. Tinha amigos na comunidade religiosa, trabalhava na congregação e estudava para se tornar pastor.

"A igreja era todo meu projeto de vida. Você acha que vai se casar, vai ver seus filhos crescerem ali", conta ele à BBC News Brasil.

Foi por isso que, quando decidiu deixar de frequentar aquela igreja, o que passou foi "como se fosse um luto"

Os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

"Tive que passar por muita terapia porque foi algo bem complexo", diz Rafael. "Você não rompe só com a comunidade, você rompe com o futuro (que tinha planejado)."

 

O motivo do rompimento? Política. Mais especificamente, o fato que a orientação política da comunidade estava ficando cada vez mais "reacionária e agressiva" e o fato da igreja dar cada vez mais espaço para candidatos políticos de partidos de direita.

"Era muito bizarro. No começo, o tom de 'orar pelos que são da comunidade e estão se candidatando'", conta Rafael. "Mas só alguns políticos tinham esse espaço, se você defende qualquer tipo de obra social ou tem qualquer viés de esquerda, já não teria."

Ao mesmo tempo em que políticos ganhavam espaço, questões sociais como o racismo não eram discutidas, diz ele. "Vivenciei casos de racismo fora da igreja, na vida, mas nunca houve espaço para conversar sobre isso e discutir a questão lá dentro."

Como um jovem negro, era especialmente dolorido para Rafael ver fiéis e membros da direção da igreja se tornando militaristas. "Sempre existiu muita condescendência (entre os religiosos da sua comunidade) com as atitudes racistas da Polícia Militar", conta ele. "Defendia-se as Forças Armadas, a PM, sem espaço para discutir questões como a morte de jovens negros pela polícia."

O bolsonarismo se enraizou na comunidade, diz ele, com parte dos fiéis se tornando defensores tão aguerridos do presidente Jair Bolsonaro (PL) que chegavam a atacar Rafael verbalmente.

"Chegou em um ponto em que se tornou impossível se relacionar. Me chamavam de burro, diziam que eu defendia ladrão, que eu defendia o uso de drogas. Duvidavam se eu era crente mesmo, diziam que não sabiam se eu ia pro céu, que eu não era cristão de verdade, que eu era comunista", conta. "Eu dizia, 'gente, pelo amor de Deus, eu só não vou votar no Bolsonaro'."

Um episódio que o marcou foi quando uma pessoa próxima da igreja disse que "o nordeste tinha que se separar do Brasil" porque o Partido dos Trabalhadores tem votação expressiva na região.

O religioso conta que não escondeu seu desapontamento. "Meu pai é baiano. Quer dizer então que as pessoas da família do meu pai não mereciam votar só porque não votaram no mesmo candidato que você?"

"Chegou uma hora que (se não mudasse de igreja) ou entraria numa depressão ou teria que mudar o que eu acredito", afirma ele, que hoje está em uma igreja presbiteriana que não dá espaço para política partidária.

"Mudar de igreja é um caminho muito doloroso. Não me arrependo, mas deixei de lado uma parte da minha história, tive que ressignificar essa parte da minha vida"

Os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

Igrejas evangélicas são uma das bases de sustentação do bolsonarismo, diz pastor e teólogo Valdinei Ferreira

 

Represálias

 

Rafael não é o único fiel passando por esse caminho. Com igrejas evangélicas se tornando a principal base de apoio de Bolsonaro, diversos religiosos que não concordam com a defesa do presidente nas suas igrejas têm procurado outras congregações.

"É muito comum", conta à BBC News Brasil o pastor Valdinei Ferreira, professor de teologia e pastor titular da Catedral Evangélica de São Paulo, uma igreja presbiteriana independente no centro da capital. "Sempre aparece alguém vindo (de outras igrejas) com algum tipo de discordância política, principalmente nos últimos anos."

De acordo com uma pesquisa do Datafolha divulgada em 2 de setembro, cerca de 31% dos evangélicos discordam que "política e valores religiosos devem andar sempre juntos para que o Brasil possa prosperar".

Ferreira não se considera progressista — muito pelo contrário, é conservador. Mas é abertamente crítico a Bolsonaro, já que, segundo ele, o presidente não representa os valores cristãos. O pastor não fala de política partidária no púlpito, não defende candidatos, mas prega a favor de valores como a defesa da democracia e dos direitos humanos.

"Quero resguardar a missão da igreja como um espaço plural. Não podemos deixar de defender a democracia quando se usa um discurso pseudo-conservador para atacar o sistema eleitoral e os direitos humanos", afirma Ferreira. "Houve um sequestro do conservadorismo pelo reacionarismo autoritário."

A postura de Ferreira não vem sem riscos. Outros líderes críticos ao presidente ou que defendem outros candidatos têm sido hostilizados por seus pares.

O pastor Alexandre Gonçalves, de Santa Catarina, sofre ataques diários nas redes sociais por ter declarado voto em Ciro Gomes (PDT) — ele lidera um grupo de cristãos que apoiam o candidato.

Já Sergio Dusilek, pastor do Rio de Janeiro, teve que renunciar à presidência da Convenção Batista Carioca após sofrer ataques de outros líderes por ter participado de um ato político-partidário, de apoio à candidatura de Lula.

Em sua carta de renúncia, Dusilek lembrou que diversos pastores batistas têm defendido Bolsonaro abertamente sem sofrer nenhuma reprimenda.

"Ao longo dos últimos doze anos, os batistas convencionais não condenaram os pronunciamentos contra alguns partidos políticos e seus quadros, antes permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais à candidatos", escreveu.

"Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação", continuou ele. "Falei de Justiça Social. Denunciei a mendicância que violenta nossos compatriotas e avilta a Deus."

A postura hostil a quem demonstra discordância política atinge também os fiéis, diz o pastor Valdinei Ferreira. Muitas pessoas que se mudaram para a congregação de Ferreira até tentaram dialogar em suas comunidades antes, diz ele, mas trocam de igreja por não receberem "nenhum tipo de acolhida".

"Quando não são hostilizados, recebem um 'gelo'", afirma. "O que é muito doloroso. Tem famílias que estão há duas, três, quatro gerações na mesma comunidade."

E além de toda a dinâmica local ser diferente em uma nova igreja, há também a questão denominacional: existem diferenças teológicas e no estilo de culto entre igrejas evangélicas de diferentes vertentes.

 

Luto

 

A palavra "luto" foi usada por diversos evangélicos que trocaram de igreja e conversaram com a BBC. Gabriel*, de 26 anos, conta que foi exatamente isso que sentiu quando deixou de participar dos cultos da Assembleia de Deus na zona oeste de São Paulo que frequentava desde que se mudou para a cidade, alguns anos atrás.

"Foi um sentimento de luto, de me entristecer. Foi muito difícil", diz ele à BBC News Brasil.

Formado em história, o jovem hoje faz segunda graduação em teologia — e pediu para não ter o nome divulgado com receio de ter problemas políticos na instituição onde faz o curso.

Gabriel conta que teve uma "formação democrática" e já se incomodava com algumas posturas da igreja desde que começou a frequentá-la — como o apoio ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

"Passei a ter um pensamento mais crítico ao perceber que certos posicionamentos não eram uma defesa de valores e pautas, mas uma abordagem eleitoreira e partidária", diz ele à BBC News Brasil.

Mas o apoio aberto a Bolsonaro — principalmente durante a pandemia — foi o que fez o jovem de fato querer se afastar da congregação. A gota d'água, diz ele, foi neste ano, com a participação do presidente em um podcast da igreja.

"Depois disso eu não pretendo voltar lá", afirma. "Na maioria das vezes o apoio não é no púlpito, isso acontece, mas em geral o culto em si não tem apelo político. Esse apoio é principalmente em outras mídias, no dia a dia, nos momentos de conversa. Mas hoje em dia não é uma coisa que dá para separar."

Gabriel diz que "Bolsonaro é uma das páginas mais sombrias do cristianismo evangélico no Brasil".

"Ele pega algumas pautas, usa uma linguagem bíblica, uma preocupação bíblica e distorce para servir ao seu projeto de poder", diz o estudante de teologia.

E posturas do presidente que são diretamente opostas a valores cristãos, diz ele, como a linguagem violenta e a cultura de morte, são ignoradas por essas lideranças.

"Ninguém que conhece Bolsonaro pode dizer que ele é um homem piedoso. Essa aproximação com ele envolve esses apagamentos, silenciamentos sobre a trajetória dele.

Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de  igreja por causa do bolsonarismo

O pastor Valdinei Ferreira diz que o conservadorismo 'sequestrado' pelo 'reacionarismo autoritário'; ele recebe diversos fieis que deixaram de congregações bolsonaristas

 

Medo

 

Assim como Gabriel e os outros entrevistados pela BBC, o fotógrafo e técnico de som Leonardo*, de 36 anos, pediu para não ter seu nome verdadeiro divulgado.

Seu receio, diz ele, não é nem menosprezado pelos membros da sua igreja — da qual ele está saindo — mas sofrer ataques violentos de bolsonaristas ao revelar seu apoio a Lula.

"A galera da igreja eu discuto e 'já era'", diz ele, "mas os malucos soltos e armados por ai... Sem contar militantes na internet invadindo contas das pessoas etc."

A violência política que ele teme é bem real. No início de setembro, o fiel Davi Augusto de Souza foi baleado dentro de uma igreja da Congregação Cristã do Brasil em Goiânia. O tiro, que atingiu suas pernas, foi disparado por um policial militar à paisana por causa de desavenças políticas entre um pastor da igreja e o irmão de Davi.

Leonardo frequenta a mesma igreja batista, na zona oeste de São Paulo, há 30 anos. Seus pais, sua esposa e a família dela fazem parte da congregação. Ali também fez amigos e ganhou habilidades que depois transformou em uma carreira. Seu descontentamento, embora tenha se agravado nos últimos anos, é "um desgosto de longo prazo".

"Desde moleque, cantei, atuei, me tornei técnico de som, liderei equipe de som. Toquei em orquestra, fiz parte do ministério de dança. Minha esposa também nasceu na igreja, a gente tem foto junto no berçário", conta.

"Eu realmente me vi como parte da igreja por 3 décadas. Minha igreja é uma comunidade com quase 100 anos. Tem um peso aí, um orgulho de ter sido parte disso. Mas de repente você não se sente mais parte disso. Porque teus valores são outros."

Leonardo diz que na comunidade "não se fala abertamente de partido A ou B" mas existe um apoio velado à direita. O religioso conta que notícias falsas contra candidatos de esquerda se espalham "que nem fogo no palheiro" nos grupos de WhatsApp da comunidade.

Ele enumera outras discordâncias: "Temos uma gestão majoritariamente branca e pouco voltada de fato para a realidade da comunidade. A postura das lideranças femininas ainda frisa a ideia de submissão da mulher e coloca o homem como provedor da casa, algo que na periferia é totalmente desconectado da realidade, as famílias são chefiadas e sustentadas por mulheres."

Leonardo conta que já viu de um pastor convidado posições que enxergam o ensino superior como "uma influência negativa" na fé do jovem.

"Do tipo, de ir pra faculdade e se desviar da igreja. Isso chama atenção porque as igrejas batistas sempre foram mais voltadas para uma linha racional que preza o estudo, a academia. E de certa forma é até elitista por conta disso. Mas nos últimos anos (a igreja batista) vem se desfigurando", afirma.

Seu irmão, que é gay, já saiu da igreja há muitos anos. Mas Leonardo ainda procura uma outra congregação — ele não quer abandonar a religião.Eleições 2022: 'Evangélica de berço, minha mãe de 70 anos agora pensa em  ter arma' - BBC News Brasil

O rompimento com a igreja significa abrir mão de toda uma comunidade

 

Indignação

 

O advogado Felipe*, de 26 anos, que trocou uma igreja da Assembleia de Deus na zona leste de São Paulo por uma congregação presbiteriana na mesma região, diz que viu uma lenta entrada da política no púlpito culminando em apoio explícito a Bolsonaro — que, para ele, foi decisivo para o rompimento com a comunidade.

"Era uma coisa um pouco velada até virar uma coisa muito explícita. Em 2010 eles já diziam em quem não votar — em candidatos de esquerda", conta ele.

No começo, diz, suas divergências eram "sanáveis". Mas quando o bolsonarismo se infiltrou no meio evangélico, se tornou impossível continuar.

"Foi um show de horror a adesão da igreja evangélica como um todo ao Bolsonaro. Não só não só da Assembleia de Deus, mas batistas, presbiterianas. Foi um ponto de muita ruptura", conta.

"Eu ficava duplamente ofendido. Sentia muita raiva e indignação com o uso do púlpito para finalidades que ele não tem — ele não é o espaço para política partidária. E também sentia que a igreja não me aceitava ali", diz ele, que diz que tornou sua revolta bastante pública.

"Um dia um pastor subiu no púlpito e começou a falar que Deus tinha eleito Bolsonaro e a esquerda era nojenta. Eu saí do culto — eu tocava na igreja, então estava em um lugar bem visível — e as pessoas perceberam", conta Felipe.

O advogado também acabou entrando em muitas discussões com os irmãos de igreja nas redes sociais que foram esgarçando sua relação com a comunidade.

"A última gota foi em 2020 quando o Bolsonaro foi na minha igreja, no auge da pandemia, a gente estava vivendo toda aquela desgraça, e fizeram uma entrada triunfal pra ele", recorda.

Ele diz que trocar de igreja não foi uma decisão fácil — e foi um processo longo até que finalmente encontrou, neste ano, um lugar em que ficou feliz em servir. Sua igreja hoje está longe de ser progressista.

"Mas a gente consegue ser uma comunidade independentemente do posicionamento político que as pessoas têm ali", afirma.

 

Suporte

 

Apesar de todas as dificuldades emocionais que uma pessoa de classe média passa ao trocar de congregação, a possibilidade de mudar de igreja ainda é, de certa forma, um privilégio, diz o cientista político Vinicius do Valle, que realiza pesquisas no meio evangélico há mais de dez anos.

Isso porque, para pessoas mais pobres, a comunidade religiosa da qual fazem parte é a "coluna de sustentação" de ainda mais aspectos de suas vidas.

Além da fé e da religiosidade, a igreja na periferia traz uma série de apoios "muito palpáveis", explica o pesquisador, que é autor do livro Entre a Religião e o Lulismo.Entre a religião e o Lulismo - Vinicius do Valle

 

"Envolve uma série de bens, ajuda mútua e sustentação para a vida. Para saber de vagas de trabalho, por exemplo. Para quem precisa alugar um lugar para morar e não tem fiador, para quem precisa de um lugar para deixar os filhos — boa parte está aberta o tempo todo", afirma.

"Quem tem uma rede de apoio ampla percebe que esse tipo de ajuda e contato acontece toda hora. Mas para muitas pessoas que são pobres, sozinhas, que vêm para São Paulo de outros lugares, essa rede só existe na igreja", diz o pesquisador.

São comunidades religiosas que oferecem serviços e ocupam espaços onde o Estado falta, segundo Valle. "Em muitos lugares você tem só a igreja, por isso que ela acaba tomando esse tamanho. Se o pastor diz que um candidato vai dificultar a ação das igrejas, mesmo que não seja verdade, isso gera um medo muito grande."

Ele explica que na periferia, as igrejas funcionam como espaço educativos e formativos. "Na escola bíblica se melhora a leitura, se dá um recurso pedagógico a mais. Além disso, elas viraram centros culturais: têm peças de teatro, grupos musicais, congressos de homens, congressos de mulheres, apresentações de crianças."

Segundo Valle, todos esses recursos fazem com que um rompimento com a comunidade por divergências políticas seja ainda mais doloroso e difícil, pois significa abandonar essa rede que proporciona segurança — e não há garantia de encontrá-la em outra congregação.

Isso também torna mais difícil que a pessoa manifeste uma opinião que não seja majoritária na comunidade por medo do isolamento.

"Existem muitos evangélicos que discordam do apoio a Bolsonaro. Mas muitas vezes eles simplesmente se calam", diz.

*os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

 

28
Set22

Grupo de economistas divulga carta de apoio a Lula no primeiro turno

Talis Andrade

www.brasil247.com -

 

"As ações e a inépcia do atual governo causaram um desastre no processo de desenvolvimento institucional e socioeconômico do país, afetando dramaticamente o bem-estar da população brasileira", diz documento

 
por Victor Correia /Correio Braziliense
 
Um grupo de 38 economistas divulgou nesta terça-feira (27/9) uma carta de apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assinada por acadêmicos de universidades nacionais e internacionais. O documento fez críticas contundentes à gestão de Jair Bolsonaro (PL), nas áreas de economia, saúde e segurança pública, e aos ataques a instituições democráticas promovidos pelo chefe do Executivo. De maioria com viés liberal, os economistas não deixaram de apontar, contudo, divergências com as políticas promovidas pelos governos petistas passados.
 

Entre os signatários estão o ex-diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) Otaviano Canuto e a ex-diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) Joana Monteiro. Na lista estão ainda professores e pesquisadores de institutos como Fundação Getulio Vargas (FGV), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), além de instituições estrangeiras como University of Cambridge, Yale e London School of Economics.

“Neste momento crítico da história brasileira, nós [...], economistas, que sempre nos posicionamos em favor da estabilidade econômica, do fortalecimento das instituições e da justiça social, nos manifestamos em apoio à candidatura do ex-presidente Lula, já no primeiro turno”, afirmou o manifesto. “As ações e a inépcia do atual governo causaram um desastre no processo de desenvolvimento institucional e socioeconômico do país, afetando dramaticamente o bem-estar da população brasileira”, continuou a carta.

 

Retrocessos no meio ambiente, saúde, economia e saúde pública

 

Os economistas citaram retrocessos protagonizados no governo Bolsonaro em áreas estratégicas, como o desmonte da fiscalização de crimes ambientais e consequente deterioração do meio ambiente. Sob a atual gestão, a Amazônia atingiu níveis recordes de desmatamento, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O documento também classificou como “calamitosa” a política de saúde e afirmou que “a gestão da pandemia contribuiu para dezenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas”, além de denunciar “total falta de empatia” do atual presidente com as famílias dos mortos.

A educação e a segurança pública também foram alvo de críticas dos acadêmicos, especialmente a política de facilitar o acesso às armas de fogo e munições. “Buscou-se estabelecer uma salvaguarda para os policiais matarem, com a tentativa de aprovação da excludente de ilicitude”, citando uma das promessas de Bolsonaro em 2018, que ainda é defendida pelo candidato à reeleição.

Na área econômica, a carta citou um desmonte do orçamento federal e criticou as medidas eleitoreiras de Bolsonaro para tentar diminuir a distância de Lula, como o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e a criação de benefícios para taxistas e caminhoneiros. E destacou que, “apesar da retórica, houve um desmonte da capacidade institucional de combate à corrupção”, e que há diversas denúncias contra o atual governo, incluindo contra o presidente e seus familiares, que ainda não foram esclarecidas.

“Por fim, e ainda mais importante, o atual presidente fez e continua a fazer reiteradas ameaças à democracia, agredindo o Judiciário, afirmando que não respeitará os resultados da eleição e fomentando um clima de profunda instabilidade e o risco real de ruptura institucional”, disse o grupo.

O apoio a Lula, porém, é crítico. Os economistas deixaram claro que têm “sérias discordâncias” sobre políticas passadas dos governos do PT, e que a vitória do ex-presidente no primeiro turno é a melhor forma para proteger a democracia brasileira.

Nos últimos dias, Lula conseguiu angariar apoio de importantes economistas à candidatura, como a do ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles (União) e de André Lara Resende, que integrou a equipe de criação do Plano Real.

25
Set22

Contra a barbárie, ABI reafirma apoio a Lula

Talis Andrade

O prédio da ABI | ABI

 

 Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

É tempo de decisão.

Entre a civilização e a barbárie.

Entre a solidariedade e o ódio.

Entre a luz e a escuridão.

Está em jogo o futuro de nosso país.

Coerente com sua longa história de lutas em defesa da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, dos direitos humanos, da soberania nacional, da justiça social e do Estado Democrático de Direito, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) reafirma seu apoio à eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2022

Octávio Costa, presidente da ABI

Regina Pimenta, vice-presidente da ABIReportagens Igor Simões/Associação Brasileira de Imprensa (ABI) — 2020 | by  Igor Oliveira Simões | Medium

A relação do bolsonarismo com a mídia

 
 
04
Set22

CNBB repudia manipulação religiosa na eleição

Talis Andrade

Igreja na Polônia: não podemos deixar de ajudar pobres e excluídos -  Vatican News

 

por Altamiro Borges 

A 59ª Assembleia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nesta sexta-feira (2) um documento incisivo contra a “manipulação religiosa” em curso na campanha eleitoral e em defesa da “nossa jovem democracia”. Sem citar os nomes do “capetão” Jair Bolsonaro e dos lobistas da fé que o apoiam criminosamente, o documento do fórum máximo da Igreja Católica serve de alerta aos cristão e à sociedade. 

Ele aponta os graves problemas nacionais que deveriam pautar as eleições: “Nosso país está envolto numa complexa e sistêmica crise, que escancara a desigualdade estrutural, historicamente enraizada na sociedade... Entre outros aspectos destes tempos estão o desemprego e a falta de acesso à educação de qualidade para todos. A fome é certamente o mais cruel e criminoso deles, pois a alimentação é um direito inalienável (cf. Papa Francisco, Fratelli Tutti, 189)”. 

Os bispos reunidos em Aparecida (SP) também revelam preocupação com a “violência latente, explícita e crescente”, que é “potencializada pela flexibilização da posse e porte de armas que ameaçam o convívio humano harmonioso e pacífico na sociedade”. Diante desse cenário, a CNBB realça: “Como se não bastassem todos os desafios estruturais e conjunturais a serem enfrentados, urge reafirmar o óbvio: nossa jovem democracia precisa ser protegida, por meio de amplo pacto nacional”. 


Desvirtuando os valores do Evangelho


Nesse trecho, o texto cita a “manipulação religiosa” e a difusão de fake news que têm o “poder de desestruturar a harmonia entre pessoas, povos e culturas, colocando em risco a democracia”. Ele é incisivo na crítica aos fariseus: “A manipulação religiosa, protagonizada por políticos e religiosos, desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil. É fundamental um compromisso autêntico com o Evangelho e com a verdade”. 

O texto ainda menciona, sem citar o “capetão”, os ataques à ordem institucional. “Tentativas de ruptura da ordem institucional, veladas ou explícitas, buscam colocar em xeque a lisura desse processo, bem como, a conquista irrevogável do voto... Reiteramos nosso apoio incondicional às instituições da República, responsáveis pela legitimação do processo e dos resultados das eleições”. 

Ao final, a 59ª Assembleia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil conclama “toda a sociedade brasileira a participar ativa e pacificamente das eleições, escolhendo candidatos e candidatas, para o executivo (presidente e governadores) e o legislativo (senadores e deputados federais, estaduais e distritais), que representem projetos comprometidos com o bem comum, a justiça social, a defesa integral da vida, da família e da Casa Comum”.
 
11
Mar22

Presos sem necessidade por Moro em 2013, agricultores processam a União

Talis Andrade

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Moro inimigo do  Programa Fome Zero

 

Três produtores rurais do Paraná ficaram de 60 a 90 dias presos sob suspeita de desviar recursos do governo federal. Eles foram absolvidos quatro anos depois, mas programa de agricultura familiar foi esvaziado no estado

 

Três agricultores presos em 2013 por ordem do então juiz Sérgio Moro ajuizaram uma ação em que pedem reparação de danos à União e acusam o ex-titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba de ter cometido uma série de arbitrariedades e erros ao longo do processo. Os produtores rurais das cidades de Irati e Inácio Martins, na região central do Paraná, ficaram de 60 a 90 dias presos preventivamente e foram inocentados em 2017.

As prisões foram feitas no dia 24 de setembro de 2013, na operação Agro Fantasma, que investigou supostos desvios de recursos públicos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), parte do programa Fome Zero, lançado em 2003 pelo governo federal. Onze pessoas foram presas, entre elas um diretor regional da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). A Polícia Federal também cumpriu 37 mandados de busca e apreensão e 37 de condução coercitiva em 15 cidades do Paraná, Bauru (SP) e Três Lagoas (MS).

Moro expediu os mandados no dia 13 de agosto, apesar do entendimento do Ministério Público Federal (MPF) de que poderiam ser tomadas medidas cautelares contra os suspeitos. Os três agricultores que estão processando a União faziam parte da Associação de Agricultores Ecológicos São Francisco de Assis, com sede em Irati. A entidade vendia alimentos por meio do PAA, com distribuição simultânea para creches e entidades de cinco municípios da região.

 

Iate e colarinho branco

 

Moro ficaria nacionalmente conhecido a partir de 2014, com a operação Lava Jato, mas a lógica de tomar medidas consideradas “duras” para combater os “crimes do colarinho branco” já estava presente na operação Agro Fantasma. A sequência das investigações e o arquivamento dos oito processos decorrentes da operação que mirou em supostas irregularidades no PAA, no entanto, mostraram uma realidade bem diferente da divulgada pelos jornais da época: nesse caso não havia colarinho branco nem crime.

Roberto Carlos dos Santos tinha 46 anos quando foi preso. O produtor rural de Irati diz que os policiais federais perguntaram onde ele escondia “o iate” e “o carro do ano”. Sem ser informado dos motivos, foi levado para a carceragem da PF em Curitiba. Ficou 48 dias preso. Em entrevista ao jornalista Marcelo Auler, em agosto de 2018, Santos contou que era tratado como “bandido perigoso” e “chefe de quadrilha” na carceragem da PF.

O iate nunca apareceu, até porque Irati fica a cerca de 300 km do mar. E os valores movimentados pela associação, que contava com 125 famílias associadas em 2013, não indicam crimes de “colarinho branco”. O valor máximo era de R$ 4,5 mil por ano para pequenos produtores, na modalidade compra e doação simultânea, e de R$ 8 mil por ano na modalidade de compra direta, por meio de cooperativas e associações.

Em quatro anos, de 2009 a 2013, todas as famílias de agricultores que participaram do programa no município de Inácio Martins, por exemplo, receberam um total de R$ 78 mil, uma média de R$ 19,5 mil por ano, valor a ser dividido entre todas as famílias. Em Fernandes Pinheiro, o valor foi de R$ 80 mil em quatro anos; em Rebouças, de R$ 27 mil; em Teixeira Soares, de R$ 70 mil; e em Irati, município com o maior número de famílias, de R$ 196 mil no mesmo período. Um iate Azimut 72 S atualmente à venda no Guarujá (SP) custa R$ 10,6 milhões.

A suspeita era que os agricultores desviavam recursos federais ao não entregar os produtos. O PAA previa a compra da produção de pequenos agricultores, com dinheiro do programa Fome Zero, como forma de incentivar a produção familiar. Em contrapartida, as famílias faziam doações de alimentos para creches, escolas e outras instituições. Durante as investigações, testemunhas confirmaram que os alimentos eram entregues.

“O programa tinha regras bastante burocráticas. O que acontecia é que eles pactuavam de entregar um produto e, às vezes, entregavam outro, no mesmo valor, com base nos critérios estabelecidos pelo programa”, diz a advogada dos agricultores, Naiara Bittencourt.

Não se chegou a nenhum desvio de recursos, a nenhuma apropriação indevida. A substituição dos produtos era feita para se adequar à realidade da agricultura, os contratos eram feitos até seis meses antes e havia interferências climáticas.

Naiara Bittencourt, advogada dos agricultores.
Leitor fala da fome no Brasil - 19/10/2021 - Painel do Leitor - Folha
11
Set21

Um sonho que a repressão não destrói

Talis Andrade

 

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Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais

 

por José Carlos Ruy

Um dia desses, conversando com minha filha, uma moça de 21 anos que estuda Letras, ela me falava, contrariada, de tantas moças e rapazes (e movimentos e artistas ‘jovens’) que parecem envelhecidos pela recusa a correr riscos, e pela vontade de ter todas as garantias e segurança que a sociedade oferece. São jovens na idade, mas não no coração, dizia ela.

Esta lembrança me ocorre no momento em que escrevo a ‘apresentação’ a este livro extraordinário a que Urariano Mota deu um título preciso: A mais longa duração da juventude. Um relato ficcional amplamente ancorado na memória dos jovens que, por volta de 1970, resistiam à ditadura no Recife, como tantos outros Brasil afora. E traziam inscrito em sua bandeira, com letras de um vermelho flamejante: ‘revolução e sexo’. Nesta ordem, adverte Urariano.

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Rapazes e moças que, por volta de seus vinte anos, viviam às voltas com as agruras da luta política e revolucionária, e os ardores do sexo que despertava. Agruras e ardores narrados com a precisão de acontecimentos ‘de ontem’, que continuam presentes, quase meio século depois, com a mesma e intensa realidade do brilho das estrelas de que conhecemos somente a luz que cruzou milhares de anos-luz, estrelas que talvez nem existam mais no momento em que sua imagem nos alcança.

A luz dessas estrelas é semelhante ao sonho que, hoje, meio século mais tarde, aqueles jovens ainda sonham mesmo que seus corpos já não tenham a força dos vinte anos. Mas o viço e o vigor do sonho permanecem. E fazem mais longa a duração da juventude.

Urariano Mota sabe como poucos mesclar memória e ficção. E de tal maneira as confunde na textura da escrita que, nela, o real vira imaginado, e o imaginado assume as formas do real. E o tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente. Fundidos por uma reflexão fina, ligada – para dizer como se dizia há quase meio século – pela análise concreta de situações concretas. Não é filosofia, quer Urariano. Mas é reflexão fina, humanamente fina e que tem o dom de trazer à vida, com seus matizes, os debates com que aqueles jovens de esquerda, revolucionários, desenhavam seu futuro, o futuro de todos, do país e da humanidade.

Sonho que levou o garoto de 1969 a comprar um disco de Ella Fitzgerald onde poderia ouvir I wonderwhy, se tivesse vitrola (palavra antiga para toca-discos, também antiquada no tempo dos igualmente em superação cdplayers). Não importa que não tivesse! Teria, um dia, e ouviria a cantora cuja voz amava. Sonho semelhante ao que tantos anos depois, quando já não existia a ameaça da repressão ditatorial, queria uma bandeira do Partido Comunista do Brasil para envolver o caixão do amigo morto.

Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista.

Sonho embargado pela memória cruel da sordidez da delação do infame Cabo Anselmo, que levou Soledad e tantos outros à morte na tortura ou pelas balas da repressão da ditadura.

Nesta permanência da juventude não há, como há em Goethe, nenhum pacto com o demônio, como aquele pelo qual o poeta buscou a garantia da juventude permanente.

‘Eu não sou um velho. Aliás, nós não somos velhos’, diz um diálogo neste livro maravilhoso. ‘Eu sei. O tesão de mudar o mundo continua’.

Este é um livro que une, com a arte da memória, 1970 e 2017 – se fosse possível fixar parâmetros tão fixos... É um livro que olha o passado não pelo retrovisor que encara o acontecido faz tanto tempo. É um livro que faz do passado os faróis que iluminam o caminho do futuro. E reduz a distância no tempo revivendo, tanto tempo depois, a mesma luta que uniu, e une, tanta gente.

Um sonho contra o qual a barbárie e a estupidez dos cabos anselmos da repressão da ditadura foi impotente. E não o destruiu. E que é a senha para a mais longa duração da juventude.

04
Set21

Violência contra negros é o maior problema jurídico do Brasil, afirma Adilson Moreira

Talis Andrade

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"O número de pessoas assassinadas pela polícia no Brasil — 77% delas são negras — é maior que o número de vítimas de guerras civis no mundo"

 

por Rafa Santos /ConJur

O crime de racismo é interpretado de maneira inteiramente equivocada no Brasil. E isso ocorre porque nossos operadores de Direito, em sua maioria, desconhecem conceitos como a psicologia social da discriminação.

A afirmação é de Adilson Moreira. Ele é advogado, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (EUA) e doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com estágio doutoral sanduíche em Yale (EUA). Adilson também é referência e autor de vários livros sobre Direito Antidiscriminatório.

Segundo ele, existe uma lacuna na formação de juízes, promotores e advogados no país. "Um elemento importante da psicologia social da discriminação é a ideia de estereótipos. Quando um policial chega e pergunta a um menino negro: qual é o seu artigo? Esse agente público parte do pressuposto de que esse menino é negro, que é necessariamente um delinquente e que, por isso, naturalmente já passou pelo sistema prisional. Para muitas pessoas, para muitos juízes, isso não é racismo. É um policial cumprindo sua função", explica.

Moreira aponta que outro problema é que o Poder Judiciário é composto, em sua maioria, por homens brancos, heterossexuais, de classe alta e que nunca sofreram qualquer tipo de discriminação. "Os seres humanos têm a tendência de universalizar suas próprias experiências. Existem decisões judiciais em que o juiz afirma que é um homem branco, heterossexual, de classe alta, e o racismo nunca teve consequências na sua vida. 'Por que então teria na vida de pessoas negras?', indagam. É óbvio que o racismo nunca teve consequências na vida dele", comenta.

Para ele, tão equivocada quanto a interpretação que se dá ao crime de racismo é o conceito da liberdade de expressão no Brasil. "Não tenho dúvida. O direito a liberdade de expressão não tem o propósito de proteger a possibilidade de as pessoas dizerem o que elas quiserem. O direito a liberdade de expressão procura proteger o direito de os indivíduos participarem do processo de deliberação política. A liberdade de expressão não permite o discurso de ódio porque esse tipo de discurso impede a construção da solidariedade social e a percepção do outro como um ator social competente", explica.

 

Para o professor, os que se escoram no direito a liberdade de expressão para ofender negros, mulheres e homossexuais, por exemplo, não faz nada mais do que preservar interesses individuais e sociais. "Se há uma coisa que unifica a maioria das pessoas brancas do Brasil —sejam elas de extrema direita ou de extrema esquerda —, é a negação da relevância social do racismo no Brasil. Compartilhar o poder é o limite do progressismo de muitas pessoas. Elas podem apoiar políticas afirmativas e até votar em políticos que apoiam essas iniciativas, mas na hora de compartilhar poder e oportunidades compartilham da mesma conduta de pessoas iguais a ela. Igualmente brancas, heterossexuais e de classe média alta", diz.

Uma das ferramentas que podem contribuir para o avanço do debate sobre Justiça racial no país é o ajuizamento de ações coletivas como as movidas contra o Carrefour, Assaí e, mais recentemente, contra a Ável e a XP. "Isso tem funcionado de maneira muito efetiva nos Estados Unidos. No meu livro Tratado de Direito Antidiscriminatório, fiz questão de incluir um longo capítulo sobre governança corporativa e compliance. O que hoje chamamos de compliance surge muito em função de casos relacionados a discriminação racial. De grandes instituições que discriminaram funcionários ou clientes negros que tiveram que pagar somas significativas de dinheiro. Essas ações são bem-sucedidas nos Estados Unidos em grande parte por conta da jurisprudência norte-americana, que incorporou muitos elementos do Direito Antidiscriminatório", afirma.

Por fim, Moreira sustenta que é preciso mudar a cultura jurídica brasileira para que nossos operadores de Direito tenham mais elementos para que o nosso sistema de justiça possa contribuir efetivamente como um instrumento para a justiça social.

"O Brasil é a sociedade mais racialmente desigual do mundo. O Brasil é a sociedade mais racialmente violenta do planeta Terra. O número de pessoas assassinadas pela polícia no Brasil — 77% delas são negras — é maior que o número de vítimas de guerras civis no mundo. Então, a discussão sobre justiça racial precisa ser o tópico fundamental de debate nas faculdades de Direito no Brasil. Esse é o nosso maior problema jurídico que nós temos", diz.

negro bom é negro morto todo negro é bandido.p

 

 

29
Ago21

Intervenção armada: crime inafiançável e imprescritível

Talis Andrade

Sorriso Pensante-Ivan Cabral - charges e cartuns: Charge: Pátria Armada  Brasil

 

por Ricardo Lewandowski

Na Roma antiga existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da Alemanha e da Itália.

Em 49 a.C., o general romano Júlio César, após derrotar uma encarniçada rebelião de tribos gaulesas chefiadas pelo lendário guerreiro Vercingetórix, ao término de demorada campanha transpôs o referido curso d'água à frente das legiões que comandava, pronunciando a célebre frase: "A sorte está lançada".

A ousadia do gesto pegou seus concidadãos de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político, instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.

O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores.

No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático".

O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, "impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.

No plano externo, o Tratado de Roma, ao qual o Brasil recentemente aderiu e que criou o Tribunal Penal Internacional, tipificou como crime contra a humanidade, submetido à sua jurisdição, o "ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil", mediante a prática de homicídio, tortura, prisão, desaparecimento forçado ou "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental".

E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a "defesa da lei e da ordem", quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes.

A propósito, o Código Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que "se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior".

Esse mesmo entendimento foi incorporado ao direito internacional, a partir dos julgamentos realizados pelo tribunal de Nuremberg, instituído em 1945, para julgar criminosos de guerra. Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão.

Desde o século XIX que “intervenção militar” é prática frequente no Brasil  | Jornalistas Livres

09
Fev21

"Lava jato" serviu para drenar recursos do Brasil

Talis Andrade

Obra vencedora do prêmio charge e do grande prêmio do Salão de Humor de Piracicaba 2019 — Foto: Evandro Luiz da Rocha

Em entrevista ao canal do YouTube do portal Brasil 247, o criminalista José Roberto Batochio, sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados, disse que os procuradores do consórcio de Curitiba conspiraram contra os interesses nacionais sob forte influência norte-americana.

"Para que se implementasse esse tipo de operação no Brasil, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos treinou muitos procuradores e muitos juízes para difundirem essa filosofia de que caixa 2 é mais grave que estupro e do que assassinato. Porque esse dinheiro pode cair em mãos de inimigos da América, e que essas pessoas poderiam explodir a América... Essa filosofia ficou impregnada nesses procuradores e juízes brasileiros que foram treinados", afirmou. 

O advogado ainda falou sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e dos diálogos a que a defesa do ex-presidente Lula teve acesso que foram apreendidos pela PF no âmbito da operação apelidada de spoofing. 

 

Pergunta — Por que a OAB não se levantou contra a quebra da ordem democrática quando houve a deposição de ex-presidente Dilma Roussef? O que aconteceu com a OAB?
José Roberto Batochio — A Ordem dos Advogados do Brasil experimentou essas oscilações democráticas por conta da inibição de alguns dirigentes que nem sempre tiverem um perfil que tivesse fidelidade as origens e posturas da OAB. Com referência ao impedimento da presidente Dilma Roussef, houve um golpe. Ela não praticou nenhum crime de responsabilidade que pudesse conduzir ao seu impedimento.

Na OAB, o assunto foi discutido no plenário. Apenas uma bancada e dois votos de ex-presidente — o meu e o do Marcello Lavenere Machado — e de um conselheiro votamos contra o engajamento da Ordem quanto ao apoio ao impedimento de Dilma Roussef. Então nós fomos uma minoria. É preciso que a Ordem reencontre seus caminhos.

 

Pergunta — Você acredita que no futuro a OAB irá rever o seu papel nesse processo?
Batochio — É muito difícil dizer por que é impossível prever a configuração. Mas, se considerarmos os últimos 20 anos da OAB, vamos verificar que o atual presidente, o Felipe Santa Cruz, é o que mais perto chega do ideário e das tradições de nossa entidade de classe. Dado o seu compromisso com as ideias progressistas e a frequente discussão dos grandes temas nacionais. A gestão do Santa Cruz representa um passo no retorno aos bons e velhos caminhos da Ordem dos Advogados do Brasil.

 

Pergunta — O impeachment da ex-presidente Dilma foi influenciado por essas investigações criminais do guarda-chuva da operação "lava jato". E isso atingiu o direito de defesa. Esse ataque ao direito de defesa no Brasil já vem de muitos anos. Gostaria que você falasse sobre a importância do direito de defesa.
Batochio — Isso tem que ser contextualizado. A trajetória institucional de um país e a direção a que se destina depende de circunstâncias externas e não só internas. De certa maneira sempre existiu nação hegemônica no nosso planeta. O Neil Ferguson, professor visitante de Harvard e em Oxford na Inglaterra, descreve isso em seus livros com uma precisão história e cientifica elogiável.

O conhecimento humano nasceu no oriente. Os árabes dominavam a astronomia, a alquimia, a matemática. E a China também. Enfim... E de uma certa maneira influenciavam as outras nações. A ciência e o conhecimento humano acabaram migrando para a Europa. Vamos destacar na Europa a posição da Inglaterra. Eles dominavam os mares e saqueavam as riquezas do novo mundo. Depois participaram do tráfico de escravos. Depois foram contra esse tráfico e se dedicaram a outras atividades. Dominaram a Índia e a China até que com a insurreição desses países a Inglaterra acabou perdendo a sua hegemonia. Essa hegemonia se transferiu para os Estados Unidos.

Para que esse retrospecto histórico? Para demonstrar que hoje essa nação hegemônica quer que seus valores, a sua legislação e sua jurisdição sejam estendidas para todo o mundo. Isso eu pude ver na Câmara dos Deputados quando na Comissão de Constituição e Justiça recebíamos diversos estudos norte-americanos de propostas para um Poder Judiciário para América Latina.

Efetivamente vivemos hoje em que não só os movimentos políticos são de inspiração externa, mas é óbvio que esse golpe contra a Dilma e essa injustiça contra o ex-presidente Lula tem notória influência norte-americana. Os Estados Unidos têm grande influência no nosso ordenamento jurídico e consequentemente no nosso Estado Democrátco de Direito.

 

Pergunta — Como foi possível montar um tribunal de exceção em solo brasileiro. Sempre falamos que o Lula era um prisioneiro dos Estados Unidos em solo brasileiro. Isso parecia absurdo, mas recentemente um dos procuradores disse que a prisão do Lula era um "presente da CIA". Houve cooperação ilegal com o FBI e com autoridades da Suíça. Isso teve uma coluna que foi de Curitiba para o tribunal federal e depois para Brasília... Como foi possível instaurar uma jurisdição internacional dentro do solo brasileiro e suspender garantias constitucionais? Outro dia o líder do governo Bolsonaro, Ricardo Barros, disse que a presunção de inocência só foi suspensa para que o Lula fosse preso. Alguns dizem que foi um código penal processual russo. Como se fez isso em um país como o Brasil?
Batochio — Os Estados Unidos têm um problema sério de equilíbrio fiscal para manter a pax americana, esses tentáculos de influência em todo o mundo... É preciso de dinheiro. E eu venho notado que dada uma certa exaustão do contribuinte americano, eles optaram por um sistema heterodoxo de arrecadação. Eles passaram a utilizar a Justiça criminal como meio de arrecadar recursos e trazer divisas ao erário. É possível verificar na Justiça norte-americana um sem número de ações em que multas bilionárias são impostas contra empresas multinacionais como Toyota, Audi, Deutshe Bank... São muitas empresas que sofreram multas astronômicas sob pena de ver seus diretores sujeitos a uma ordem de prisão internacional.

Essa filosofia de arrecadação norte-americana está ligada também ao fato dos ataques do 11 de Setembro demonstrarem uma grande de fragilidade no sistema de defesa dos Estados Unidos. E estudando como isso foi possível as autoridades de lá chegaram à conclusão de que isso só foi possível pelo financiamento, pelos recursos econômicos que esses inimigos dos Estados Unidos puderam ter a sua disposição para com três ou quatro aviões quase explodir o país atacando centros nervosos de decisão. Começou-se a partir daí, por meio da lei de defesa do Estado norte-americano, a se exportar para o mundo uma orientação de que os ilícitos mais graves são o de origem econômica. Lavagem de dinheiro é apenada de forma mais grave que estupro no Brasil.

O Brasil é um país que tem o salário-mínimo de R$ 1.100 e temos multa em nosso Código Penal de US$ 1 milhão de dólares. Na legislação extravagante de combate às drogas temos multas de R$ 29 milhões. Eu não estou defendendo a minimização, mas isso não é uma realidade compatível com a estrutura socioeconômica do nosso país.Resultado de imagem para dinheiro estados unidos charges

Pergunta — A gente sente muito no Brasil por conta da destruição da imagem da Petrobras, mas outras empresas internacionais também sofreram e fizeram acordos de leniência. Ocorre que no Brasil além da penalidade econômica houve também a destruição do sistema político democrático. Foi uma operação muito mais complexa e bem-sucedida. Nesse sentido você diria que a "lava jato" foi uma operação que teve a finalidade drenar recursos do Brasil para os Estados Unidos e aqueles que nela se envolveram podem ter cometido crime de lesa-pátria?
Batochio — Eu acho que sim. E conspiraram contra os interesses nacionais indiscutivelmente. Um dos propósitos foi sim de natureza econômica. Tanto é que a Petrobras pagou uma multa de US$ 3 bilhões à Justiça norte-americana. E eu estou falando do acordo com o governo norte-americano e não das ações de classe que os investidores da Bolsa de Nova York seguiram demandando por um tempo.

Mas, o fato é que, sobretudo a destruição de um setor muito importante para nossa economia que é o da Construção Civil. O Brasil era o principal exportador desse tipo de serviço para África, para o Oriente... As construtoras brasileiras indiscutivelmente eram vitoriosas quando concorriam com empresas estrangeiras nessas grandes concorrências. Esse setor foi completamente dizimado pela "lava jato".

Temos a privatização do pré-sal. A relevância internacional da Petrobras também foi absolutamente erodida por esse movimento. E isso tem uma origem mais remota. Para que se implementasse esse tipo de operação no Brasil o Departamento de Justiça dos Estados Unidos treinou muitos procuradores e muitos juízes para difundirem essa filosofia de que caixa 2 é mais grave que estupro e do que assassinato. Porque esse dinheiro pode cair em mãos de inimigos da América, e que essas pessoas poderiam explodir a América... Essa filosofia ficou impregnada nesses procuradores e juízes brasileiros que foram treinados.

 

Pergunta — No dia de hoje a gasolina subiu 8%, o óleo diesel 6% e o preço dos combustíveis oscila conforme a cotação internacional feita em dólar. Ontem a Petrobras vendeu a refinaria Landulpho Alves na Bahia por US$ 1,5 bilhão. Os petroleiros afirmam que essa refinaria vale ao menos U$ 3 bilhões. Hoje os jornais informam que a Petrobras vai vender mais uma refinaria no Paraná. Daqui a pouco a Petrobras vira um ovo que é só a casca. A gema vem sendo transferida para o capital internacional. Pouca gente sabe da sua ligação com Leonel Brizola. De que você além de um grande jurista é também um grande nacionalista. Quando as pessoas vão enxergar que o Brasil vem sendo saqueado? Que essa operação empobreceu drasticamente o Brasil?
Batochio — Aos que cooperam nesse processo dolosamente. Quanto aos brasileiros que traem o seu país e cooperam para o deslanche desse processo de saque, essa questão não terá solução. Sempre estarão dispostos a fazer esse jogo por interesses econômicos ou de outra ordem.

Quanto aos que agem de forma culposa, por falta de consciência, a responsabilidade de mudar o quadro é da imprensa. Os órgãos de comunicação social é que tem o papel de levar a consciência desse fato que dizima as riquezas nacionais. E a imprensa nem sempre se mostra isenta nesse aspecto. Há setores que são coniventes com isso.Resultado de imagem para dinheiro estados unidos charges

Pergunta — Uma coisa é a acusação hipertrofiada. Outra coisa é um juiz fazer parte do time de acusação como se viu agora ou pelo menos de maneira tão explicita como o do ex-juiz Sergio Moro, que contesta no STF o uso dos diálogos da operação "spoofing". São conversas pornográficas e mostram como o réu é transformado em um inimigo a ponto de os procuradores zombarem do ex-presidente por ele ter perdido um dedo em um acidente de trabalho e o chamam de "nove". Qual a sua expectativa em torno da suspeição no STF?
Batochio — Acho que essa prova tem uma posição peculiar nesse contexto. Temos a operação "lava jato" cuja relatoria cabe ao ministro Edson Fachin porque ele mudou de turma para ser o relator uma vez que estava na 1ª Turma. Com a morte do Teori, a relatoria da "lava jato" deveria ficar na 2ª Turma para o ministro que viesse. Já a operação "spoofing" é uma outra coisa. Nasceu de uma investigação voltada para apurar a atuação de hackers que haviam violado a intimidade de autoridades.

O que aconteceu é que na operação "spoofing" a PF apreendeu um acervo de mensagens entre os membros da "lava jato". O que se deu acesso a defesa do ex-presidente Lula foi apreendido pela PF, que manteve a cadeia de custódia e que transcreveu esses diálogos de maneira oficial. Como objeto do crime da violação das autoridades grampeadas. Isso para "lava jato" é encontro fortuito de prova. Essas provas foram produzidas de forma acidental em outra operação. O que se discute no STF sobre o acesso e a publicidade desses diálogos não tem nada a ver com a operação "lava jato" que o ministro Fachin relata. Ele pode decidir se essas provas podem ou não ser usadas no âmbito da "lava jato", mas impedir que esses diálogos sejam publicizados é um juízo que não lhe compete.

A "lava jato" foi montada para ser parcial. Sob inspiração norte-americana e com propósitos deliberados. Com objetivos políticos e institucionais já pré-concebidos e exportados pelos Estados Unidos.

 

Pergunta — O que você diria para um jovem advogado? Para aqueles que estudam o Direito e viram nesse caso que o Direito foi transformado em um instrumento de dominação imperial de um outro país contra o Brasil? Quando o Direito é usado como instrumento de saque das riquezas nacionais por um outro país a pretexto de combater a corrupção?
Batochio — Eu diria que não há em uma democracia. Em um regime civilizado e de liberdade força que sobreponha a força do Direito. Rui Barbosa já dizia que não há salvação fora da lei. E eu quero dizer que não há civilização, não há democracia, não há liberdade, não há Justiça social, não há igualdade de oportunidades fora do ordenamento jurídico. Portanto, a mediação dos conflitos dentro da sociedade pela Justiça realizando o Direito Material é o único — pode não ser o ideal —, mas é o único caminho para que não nós afastemos da civilização. Mantenha sua crença no Direito. A Justiça e a operação do Direito é que pode preservar as liberdades de cada um de nós.

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