Ele saiu com quatro peças de picanha de um supermercado no SIA, em Brasília. A defesa pede absolvição pelo princípio da insignificância. Tem ex-juiz que recebe diária de dez mil reais. Eta Brasil desigual de uma Justiça palaciana, cara e ppv (preto, puta e veado)
Um homem acusado de furtar quatro peças de picanha junto a um comparsa, em Brasília, foi condenado a 2 anos de prisão. Segundo o processo judicial, eles esconderam a carne em suas roupas, no Supermercado Dia a Dia, localizado no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), no dia 18 de dezembro de 2020.
A dupla foi abordada no estacionamento por seguranças do estabelecimento, mas um dos homens conseguiu fugir e não foi identificado posteriormente. O outro detido, Adriano Galvão Esteves de Mattos, foi levado pela Polícia Militar para uma delegacia e acabou autuado em flagrante. A picanha foi devolvida ao supermercado.
A defesa de Mattos queria a absolvição do réu por meio da aplicação do princípio da insignificância. ADefensoria Pública do Distrito Federal(DPDF), responsável pela defesa dele, alegou que o caso é de um furto de quatro peças de picanha, cujo valor não ultrapassa um salário mínimo, além de a mercadoria ter sido restituída ao supermercado.
A 8ª Vara Criminal de Brasília não acolheu os argumentos da defesa e condenou o réu a dois anos de prisão, em regime inicial semiaberto. Ele ainda deve pagar 10 dias-multa.
Mattos recorreu, mas a 1ª Turma Criminal manteve a condenação. Em julgamento no dia 11 de novembro de 2021, os desembargadores entenderam que o réu tem antecedentes criminais e, por isso, o caso é incompatível com o princípio da insignificância.
“Afasta-se a incidência do princípio da insignificância se o furto é qualificado e o réu é reincidente e possui maus antecedentes, porquanto, tais circunstâncias interferem negativamente no tocante ao reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente”, relata trecho do acórdão.
Após a derrota no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a defesa do réu entrou com um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“São quatro peças de picanha da marca Bassi, e em que pese não haja avaliação econômica nos autos, sabe-se que tal produto era de pequeno valor, além disso, os bens foram restituídos, portanto, a lesão patrimonial é inexpressiva ou até mesmo nula. Ainda, a ofensividade da conduta da recorrente foi mínima e não gerou perigo social algum. Frisa-se que não houve emprego de violência ou grave ameaça”, alegou a DPDF
Segundo a defesa, é, sim, possível aplicar o princípio da insignificância, mesmo com reincidência criminal, porque houve “inexpressiva lesividade da conduta do réu”.
O vice-presidente doSTJ, no exercício da presidência, ministro Jorge Mussi, indeferiu o pedido de liminar, no domingo (30/1). Ainda no clima natalino e ano novo de comes e bebes...
Dizer que o racismo é estrutural implica em afirmar que discriminações de cunho racista fazem parte da maneira como nossa sociedade é estruturada. Ou seja: não são apenas os ataques ostensivos que violentam, mas também aqueles que parecem sutis porque foram normalizados ao longo de centenas de anos de injustiça social.
O termo, de fato, não é de fácil tradução. Dia desses, enquanto conversava com o ativista negro Adegmar da Silva, o Candieiro, para elaborar uma série de reportagens sobre racismo religioso, perguntei a ele como identificar, de maneira prática, o racismo estruturalizado. Ele me devolveu a pergunta: “Como você identifica o machismo estruturalizado?” E a resposta, penso, é subjetiva porque envolve uma camada densa de sentimentos.
Nisso, concordamos. “Com a minha mente, com a minha cabeça, com o meu pensamento, eu não consigo entender o racismo. Eu não consigo compreender a ponto de construir um argumento sólido e cristalino e que todos possam entender. Eu sei que ele existe porque ele me machuca, ele mata e eu luto contra ele”, ele me disse.
Aqui, ofereço – junto de autores como Djamila Ribeiro e Silvio de Almeida – algumas pistas para ajudar a olhar para o problema de frente e descontruir a ideia de que a branquitude é a norma.
Racismo estrutural e história
“O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravidão. Até 130 anos, os negros traficados eram mantidos em condições subumanas de trabalho, sem remuneração e debaixo de açoite”, publicou o portal Geledés, que discute a questão racial. “Quando, no papel, a escravidão foi abolida, em 1888, nenhum direito foi garantido aos negros. Sem acesso à terra e a qualquer tipo de indenização ou reparo por tanto tempo de trabalho forçado, muitos permaneciam nas fazendas em que trabalhavam ou tinham como destino o trabalho pesado e informal.” Em outras palavras, “as condições subumanas não se extinguiram.”
Em entrevista à revista Ihu, da Unisinus, a filósofa Djamila Ribeiro lembra que o Brasil é a maior nação negra fora da África, somando 54% da população. “E mesmo sendo maioria, [os negros] estão fora dos lugares de poder e experimentam em larga maioria os piores índices de desenvolvimento humano.” Para ela, está claro que isso é resultado de um processo histórico de quase quatro séculos de escravidão e escassas ações afirmativas.
Djamila Ribeiro
“Ao passo que foi estimulada a vinda de imigrantes europeus, que receberam terras e oportunidades, pessoas negras foram marginalizadas de qualquer contato com o poder econômico e destinadas a serem base de exploração que, no caso das mulheres negras, se soma ao patriarcado. Nas palavras de Carla Akotirene, mulheres negras são a matriz geradora pois parem as vidas que serão a base do sistema”, pontua a filósofa.
Ao longo da história, “o projeto de miscigenação foi romanceado no país”, afirma a pensadora. Ou seja: nos foi dito que havíamos transcendido as raças em uma convivência harmoniosa entre brancos e negros. Até hoje esse discurso está presente no imaginário popular. Muitas pessoas, buscando se defender do lugar de racistas, argumentam que “não veem cor”, mas essa perspectiva apenas fecha os olhos um problema social profundo.
“Ou seja, de acordo com esse pensamento, não existe racismo no Brasil, apenas desigualdade entre ricos e pobres. As mulheres negras brasileiras são as mulatas que sambam e estão sempre disponíveis sexualmente. Trata-se de algo entranhado no pensamento brasileiro e na organização social do país, algo que os movimentos negros ao longo de muitas décadas vêm denunciando e combatendo”, sinaliza Djamila Ribeiro.
Outro resultado é que muitas pessoas negras sequer sabem que são negras. Um dos fundadores do Plural, Rogerio Galindo, que vem de uma família miscigenada, escreveu sobre a própria experiência de se descobrir negro em um texto intitulado “eu sou negro e não sabia”. A teoria da filósofa dá corpo a essa sensação. “As pessoas não sabem que são negras, não têm sequer condições materiais para formular algo nesse sentido. Então, o que nos resta é lutar por políticas públicas, de educação, assistência social e apoiar projetos políticos nesse sentido. Isso em um sentido coletivo.”
A economia como eixo do racismo estrutural
De acordo com o filósofo Silvio de Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural” (Editora Jandaíra, 2019), são três os eixos que constituem o problema: política e subjetividade, conforme demonstrado nos tópicos anteriores, e economia.
“No Brasil, todo mundo reclama da carga tributária brasileira. É uma reclamação geral, mas quem reclama mais são os empresários, e aí a gente começa a ver uma distorção, porque proporcionalmente os grandes empresários são os que menos pagam tributo e também são os que menos dependem dos serviços públicos, que são pagos por meio da tributação”, fala o autor em um vídeo publicado pela Boitempo.
Silvio de Almeida
“Pesquisas recentes mostram que o grupo social mais afetado pela carga tributária no Brasil são as mulheres negras”, ele continua. “Mas por que isso? Existe uma política deliberada do Brasil para tributar mulheres negras? Não, é porque o sistema tributário, funcionando na sua normalidade, ou seja, de acordo com as normas estabelecidas, ele reproduz as condições de desigualdade que colocam a mulher negra na base da pirâmide social.”
O raciocínio é o seguinte: se a política tributária é estruturada para incidir sobre consumo e salário, as pessoas que ganham menos, e que também consomem, são aquelas que vão pagar proporcionalmente mais. Logo, as mulheres negras são as mais atingidas pelo problema, porque recebem menores salários.
Djamila Ribeiro lembra que, com o fim da escravidão, as mulheres negras foram destinadas ao trabalho doméstico, uma herança presente até hoje. “Atualmente, estima-se que mais de 6 milhões de mulheres negras são empregadas no país, e a lei que regulamenta a profissão somente foi aprovada em 2013, sob intensos protestos do sistema que se beneficiou historicamente desse trabalho.”
Olhar para a história também é importante para compreender por que pessoas negras ocupam menos espaços reservados às classes média e alta. “No Brasil é comum entrarmos em restaurantes e não encontrarmos nenhuma pessoa negra no local – nem como garçom ou garçonete. Quem vai a shopping terá dificuldade de encontrar uma vendedora de lojas negra”, fala a filósofa. “Ou seja, o racismo estrutura a sociedade e, assim sendo, está em todo lugar.”
Por essas e outras, Silvio de Almeida afirma que “o racismo é o elemento fundamental de todas as formas de exploração econômicas.” E um marcador comum é a normalização. “A morte de jovens negros sistematicamente nas periferias não causa choque como deveria causar. O fato de o encarceramento em massa atingir mais pessoas negras não causa espanto”, ele exemplifica.
Quando assistimos a uma sessão do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional e observamos que a maioria das posições de decisão de um país majoritariamente negro é ocupada por pessoas brancas, isso não nos assusta. É por isso que ele coloca como “questão primordial” pensar que “não há, mesmo das pessoas que não aceitam esse tipo de violência, uma ação efetiva de se voltar contra”, porque “a sociedade naturaliza a violência contra pessoas negras.”
É possível mudar essa história?
Talvez leve um tempo, mas, sim, é possível e você pode fazer parte dessa mudança a partir de uma tomada de consciência. Para começar: questione tudo. “Quando ser branco se torna a regra, o outro é a exceção. O branco não tem raça, quem tem raça é o negro”, expõe o filósofo. Acontece que as raças são construções sociais vivenciadas a partir de certos privilégios estruturalmente estabelecidos.
Você está disposto a abrir mão do seu privilégio? Está disposto, por exemplo, a entender que cotas são ações de reparação histórica? Está disposto a pensar antes de objetificar mulheres negras? Está disposto a admitir que tem atitudes racistas?
“A luta contra o racismo e, portanto, a luta pela transformação social, passa pela construção de uma sociedade melhor, e passa necessariamente pela luta contra o racismo na sua dimensão estrutural, o que significa que deve-se abrir mão de privilégios para que a luta seja efetiva”, conclui Silvio de Almeida.
Para aprofundar: o Pequeno Manual Antirracista (Companhia das Letras, 2019), de Djamila Ribeiro, fala, de forma didática, sobre como não recair em comentários e atitudes racistas.
Manifestações agendadas para 7 de setembro, MPF e outras 10 instituições expressam preocupação
Nota Pública
“O Grupo de Trabalho Interinstitucional de Defesa da Cidadania (integrantes abaixo) vem afirmar sua preocupação com os desdobramentos das manifestações agendadas para o dia 7 de setembro de 2021, e reiterar a confiança no sentido de que os integrantes dos órgãos de segurança pública mantenham plena obediência à Constituição, às leis e ao regime democrático.
Destacamos ainda que conforme consta no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas”, o que, segundo nosso entendimento, veda a participação de agentes de segurança pública, fora do expediente, portando armas em manifestações.
No mesmo diapasão, as normas vigentes e nossa Constituição também não autorizam uso abusivo ou desproporcional de força no exercício do poder de polícia do campo da segurança pública, resguardando o marco constitucional do direito à livre manifestação.
Outrossim, consignamos nossa certeza de que eventuais abusos e violações à ordem democrática sejam rigorosamente investigados e punidos pelos órgãos competentes, sempre obedecendo a legislação aplicável”.
Ministério Público Federal Defensoria Pública da União Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio de Janeiro Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro Centro de Assessoria Popular Mariana Criola Fórum Grita Baixada Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro Maré 0800 – Movimento de Favelas do Rio de Janeiro Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – IDMJR
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Assessoria de Comunicação Ministério Público Federal na 2ª Região (RJ/ES)
O crime de racismo é interpretado de maneira inteiramente equivocada no Brasil. E isso ocorre porque nossos operadores de Direito, em sua maioria, desconhecem conceitos como a psicologia social da discriminação.
A afirmação é de Adilson Moreira. Ele é advogado, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (EUA) e doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com estágio doutoral sanduíche em Yale (EUA). Adilson também é referência e autor de vários livros sobre Direito Antidiscriminatório.
Segundo ele, existe uma lacuna na formação de juízes, promotores e advogados no país. "Um elemento importante da psicologia social da discriminação é a ideia de estereótipos. Quando um policial chega e pergunta a um menino negro: qual é o seu artigo? Esse agente público parte do pressuposto de que esse menino é negro, que é necessariamente um delinquente e que, por isso, naturalmente já passou pelo sistema prisional. Para muitas pessoas, para muitos juízes, isso não é racismo. É um policial cumprindo sua função", explica.
Moreira aponta que outro problema é que o Poder Judiciário é composto, em sua maioria, por homens brancos, heterossexuais, de classe alta e que nunca sofreram qualquer tipo de discriminação. "Os seres humanos têm a tendência de universalizar suas próprias experiências. Existem decisões judiciais em que o juiz afirma que é um homem branco, heterossexual, de classe alta, e o racismo nunca teve consequências na sua vida. 'Por que então teria na vida de pessoas negras?', indagam. É óbvio que o racismo nunca teve consequências na vida dele", comenta.
Para ele, tão equivocada quanto a interpretação que se dá ao crime de racismo é o conceito da liberdade de expressão no Brasil. "Não tenho dúvida. O direito a liberdade de expressão não tem o propósito de proteger a possibilidade de as pessoas dizerem o que elas quiserem. O direito a liberdade de expressão procura proteger o direito de os indivíduos participarem do processo de deliberação política. A liberdade de expressão não permite o discurso de ódio porque esse tipo de discurso impede a construção da solidariedade social e a percepção do outro como um ator social competente", explica.
Para o professor, os que se escoram no direito a liberdade de expressão para ofender negros, mulheres e homossexuais, por exemplo, não faz nada mais do que preservar interesses individuais e sociais. "Se há uma coisa que unifica a maioria das pessoas brancas do Brasil —sejam elas de extrema direita ou de extrema esquerda —, é a negação da relevância social do racismo no Brasil. Compartilhar o poder é o limite do progressismo de muitas pessoas. Elas podem apoiar políticas afirmativas e até votar em políticos que apoiam essas iniciativas, mas na hora de compartilhar poder e oportunidades compartilham da mesma conduta de pessoas iguais a ela. Igualmente brancas, heterossexuais e de classe média alta", diz.
Uma das ferramentas que podem contribuir para o avanço do debate sobre Justiça racial no país é o ajuizamento de ações coletivas como as movidas contra o Carrefour, Assaí e, mais recentemente, contra a Ável e a XP. "Isso tem funcionado de maneira muito efetiva nos Estados Unidos. No meu livro Tratado de Direito Antidiscriminatório, fiz questão de incluir um longo capítulo sobre governança corporativa e compliance. O que hoje chamamos de compliance surge muito em função de casos relacionados a discriminação racial. De grandes instituições que discriminaram funcionários ou clientes negros que tiveram que pagar somas significativas de dinheiro. Essas ações são bem-sucedidas nos Estados Unidos em grande parte por conta da jurisprudência norte-americana, que incorporou muitos elementos do Direito Antidiscriminatório", afirma.
Por fim, Moreira sustenta que é preciso mudar a cultura jurídica brasileira para que nossos operadores de Direito tenham mais elementos para que o nosso sistema de justiça possa contribuir efetivamente como um instrumento para a justiça social.
"O Brasil é a sociedade mais racialmente desigual do mundo. O Brasil é a sociedade mais racialmente violenta do planeta Terra. O número de pessoas assassinadas pela polícia no Brasil — 77% delas são negras — é maior que o número de vítimas de guerras civis no mundo. Então, a discussão sobre justiça racial precisa ser o tópico fundamental de debate nas faculdades de Direito no Brasil. Esse é o nosso maior problema jurídico que nós temos", diz.