A sentença de prisão de Schirlei é ainda mais absurda no contexto da segunda notícia: o juiz Rudson Marcos, cujas ações levaram à criação da Lei Mari Ferrer,recebeu uma advertência formaldo Conselho Nacional de Justiça nesta terça-feira.
O Conselho foi unânime em seu entendimento de que Marcos agiu de forma negligente ao permitir e perpetuar a humilhação de Mari Ferrer em sua sala de audiências. Mas o subprocurador José Adonis Callou argumentou, em uma divergência, que uma advertência, a forma mais leve de sanção, não era suficientemente severa e que uma remoção compulsória seria mais adequada.
Callou afirmou que Marcos “não tem um perfil adequado para presidir audiências de natureza criminal” e que a audiência representou “tudo de como não devem conduzir os agentes que participam de um ato processual dessa natureza”.
Embora a penalidade seja fraca, qualquer forma de censura aos magistrados é extremamente rara. Essa decisão, portanto, demonstra o extremo da má conduta e a absoluta legitimidade da reportagem de Schirlei no Intercept.
Também derruba o argumento falacioso do juiz Rudson Marcos, do promotor Thiago Carriço de Oliveira e do advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho de que a indignação se deveu apenas à suposta manipulação do registro em vídeo. O Conselho Nacional de Justiça analisou integralmente as provas e, por unanimidade, discordou da defesa. Sua decisão expõe a condenação de Schirlei pela juíza Studer pelo que ela é: corporativismo puro e simples. (Continua)
Protestos em todo o Brasil por Mariana Ferrer. Foto: divulgação
HÁ QUASE 18 ANOS, uma operação de auditores fiscais do trabalho resgatou 43 pessoas da fazenda de Marcos Nogueira Dias, o Marcão do Boi, na zona rural de Abel Figueiredo, no Pará. O fazendeiro era conhecido como um dos mais ricos do sudeste do estado. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, os trabalhadores bebiam água fétida, comiam carne podre de vacas que morriam no parto, não tinham salário e recebiam bebida alcoólica como pagamento. Eles também tinham que comprar produtos de higiene superfaturados do patrão e eram submetidos a jornadas exaustivas “em sol escaldante”, inclusive nos feriados e fins de semana.
Era evidente a condição de trabalho degradante e análoga à escravidão, de acordo com o MPF. Mas, para o desembargador Olindo Menezes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, essas circunstâncias não eram degradantes, mas apenas comuns ao trabalho rural, que tem “o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal”, e não se caracterizavam como algo que “rebaixa o trabalhador na sua condição humana”.
Seus argumentos convenceram os outros desembargadores da 4ª turma do TRF-1 a absolver Marcão do Boi em 2019. Ele chegou a ser condenado a cinco anos de prisão pela Vara Federal de Marabá. O juiz Fábio Ramiro, relator convocado que analisou o recurso na segunda instância, propôs aumento da pena para seis anos, mas o voto do desembargador Menezes mudou o rumo do processo.
Ele alegou que o caso deveria ser melhor analisado, pois muitas denúncias de condições análogas à escravidão tinham como base apenas os levantamentos feitos pelos fiscais do Ministério do Trabalho, que “são muito ardorosos e, normalmente, feitos por pessoas que não têm a menor noção do que é um trabalho no meio rural. Os exageros, em muitos casos, são evidentes”, justificou, pedindo mais tempo para decidir seu voto.
Quando se manifestou, alguns meses depois, o desembargador Menezes votou pela absolvição de Marcão do Boi. Para o magistrado, as denúncias mencionadas na sentença, como os alojamentos insalubres, a falta de água potável, a comida podre “devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira”, em que os patrões “não raro” também se submeteriam a tais condições, na visão de Menezes. O fazendeiro, contudo, já havia informado que só ia ao local onde os trabalhadores estavam “a cada trinta ou sessenta dias”. Era a sua defesa para alegar não ter conhecimento das condições precárias.
Muitos operadores do direito, argumentou ainda o desembargador, “se contentam com os desconfortos mais comuns do trabalho rural para dar por configurado o trabalho análogo ao de escravo” quando seriam na verdade situações “comuns na realidade rústica brasileira” sem “gravidade intensa que implique a submissão dos trabalhadores a constrangimentos econômicos e morais inaceitáveis”. Marcão do Boimorreu em 2021, executado por pistoleiros, sem nunca ter sido preso pelo caso.
Argumentos assim são recorrentes nas manifestações do desembargador. Encontrei ao menos outros quatro processos em que o magistrado votou pela absolvição do acusado, relativizando a denúncia por conta do lugar ou do tipo de trabalho realizado. As condições no meio rural, como em carvoarias ou em fazendas de café, segundo ele, são “duras pela própria natureza da atividade” e, por isso, não devem ser confundidas com trabalho análogo à escravidão.
“A condenação somente se justifica em casos graves e extremos, sem razoabilidade, quando a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, alçando-se a níveis gritantes”.
Não era o caso de trabalhadores de uma carvoaria submetidos pelo acusado a exaustivas 12 horas diárias de trabalho. Na interpretação de Menezes, tratava-se apenas de uma jornada “um pouco acima daquela prevista em lei, e realizada como forma de aumentar a produtividade”, como afirmou em um processo de 2013.
Em processo de 2011, como os trabalhadores ficaram poucos dias submetidos à situação degradante justamente pela ação de resgate do Ministério Público do Trabalho, o desembargador minimizou a denúncia. No entendimento dele, como os trabalhadores ficaram menos de 30 dias nas condições descritas na denúncia, não havia justificativa para “imputação de trabalho escravo”.
Menezes ainda considerou favorável aos trabalhadores quando o empregador deixou de pagar R$ 40 por cada alqueire roçado – uma medida que, no Pará, equivale a cerca de 2,5 campos de futebol – para pagar R$ 25 a diária. Segundo o magistrado, o acusado teria constatado que levaria vários dias para executar o trabalho e entrou em acordo com relação ao novo valor. “O que parece ter constituído um benefício para os trabalhadores e não um malefício, como quer fazer parecer a acusação”.
Considerando apenas o salário bruto, o magistrado ganha quase R$ 1,2 mil por dia, inclusive quando não trabalha, como em feriados e fins de semana. Seu salário mensal fixo é de R$ 35,4 mil, mas devido a algumas gratificações e benefícios como auxílio alimentação, nesse mês de março, ele recebeu, já com os descontos, R$ 37,4 mil.
Procuramos o desembargador Menezes por meio da assessoria de imprensa do TRF-1 e informamos os números de todos os processos analisados, bem como os trechos que destacamos nesta reportagem, para que ele pudesse se manifestar. O magistrado, contudo, não respondeu a nenhum dos seis questionamentos.
Vale ressaltar que, juridicamente, não existe a figura do trabalho escravo, mas sim a do trabalho em condições análogas à escravidão, já que, a nível oficial, a escravidão acabou com a Lei Áurea, em 1888. No entanto, oIntercepttomou a decisão de usar a expressão, entendendo que a imposição de um regime de trabalho degradante, com jornadas exaustivas e sem o devido pagamento salarial não pode ser chamada de outra forma, senão de trabalho escravo.
Para o desembargador Olindo Menezes, trabalhadores que recebiam água fétida, carne podre e não tinham salário não estavam em situação degradante. Foto: José Alberto/STJ
A culpa é da vítima
Segundo Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a falta de sensibilidade com processos como esses se explica porque o Judiciário é majoritariamente elitista, branco e masculino.
“As pessoas que trabalham nesse poder estão muito distantes da realidade dos brasileiros que são submetidos à condição de trabalho análoga à escravidão. Há um espelhamento maior do Judiciário com os empregadores julgados do que com os trabalhadores”.
A clínica coordenada por Miraglia, junto com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, também da UFMG, traçou um raio-x das ações judiciais de trabalho escravo. O levantamento de quase 1.900 ações iniciadas entre 2008 e 2019 constatou que o TRF-1 é o tribunal federal que mais absolve os acusados de trabalho análogo à escravidão na segunda instância – apenas 0,48% deles foram condenados. Dos 293 empregadores condenados por juízes da primeira instância, o tribunal absolveu 254, o equivalente a 86,7%.
Abrangendo os estados da Amazônia Legal, um área de intenso conflito agrário, o TRF-1 tem o maior número de acusados por trabalho análogo à escravidão – 1.943, quase sete vezes mais que a quantidade de acusados no TRF-3, que aparece em segundo lugar. Já o Pará, estado de Marcão do Boi, tem o maior número de empregadores incluídos na lista suja do trabalho escravo – 152 pessoas.
A impunidade, segundo Miraglia, leva os empregadores a concluírem que compensa submeter pessoas à situação degradante. “A falta de punição impede a perspectiva de mudar esse cenário no presente e no futuro, porque o crime continuará sendo praticado”.
O próprio fazendeiro Marcos Nogueira Dias entrou na lista duas vezes quando estava vivo. Três anos depois dos 43 trabalhadores serem resgatados em Abel Figueiredo, 11 pessoas foram libertadas em outra fazenda dele, dessa vez localizada em Rondon do Pará.
Mapeei ao menos 17 processos em que magistrados do TRF-1 absolveram acusados de submeter pessoas a trabalho escravo em suas decisões. Oito deles têm manifestação do desembargador Menezes, mas também aparecem na lista outros nomes, como o do juiz Leão Aparecido Alves, que atuou como relator convocado em alguns processos em segunda instância – para ele, a solução do problema, nesses casos, parece caber às vítimas.
Para Fachin, é inconstitucional usar a região como critério para caracterizar um trabalho como degradante.
Em uma ação de 2009, ele votou pela absolvição do réu porque, entre outros argumentos, não foi apresentado teste para comprovar que a água era imprópria para consumo. Além disso, escreveu que “os trabalhadores não estavam impedidos de ferver a água a ser por eles consumida”.
Em outro processo, de 2011, ele concordou com a decisão do juiz de primeira instância que absolveu o réu. Para os magistrados, o trabalho degradante e a jornada exaustiva só indicam que o trabalhador foi submetido à condição análoga à escravidão se ele for vítima de violência ou efetivamente privado de liberdade por meio de agressões ou ameaças. De outra forma, é livre para “abandonar o local e buscar melhores condições de trabalho”.
Procurado por meio da assessoria da justiça federal de Goiás, o juiz Alvesrespondeuque seu voto foi acompanhado nos dois processos, por unanimidade, pelos demais integrantes da Terceira Turma do TRF-1, resultando em decisões unânimes. Com relação ao processo de 2009, ele argumentou, entre outras coisas, que os trabalhadores “nunca foram constrangidos ou ameaçados e não se consideravam escravos” e que “os tribunais têm decidido que o simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo”.
Sobre o processo de 2011, ele disse que as testemunhas não relataram “o uso de violência contra os trabalhadores pelo empregador ou prepostos ou a presença de segurança armada na fazenda, tampouco noticiaram a existência de servidão por dívida ou o impedimento de deslocamento dos trabalhadores”. O magistrado acrescentou ainda que “condena quando há prova acima de dúvida razoável, e, em sentido oposto, absolve quando inexistem provas aptas a expurgar a dúvida razoável”.
Existe, de fato, um entendimento consolidado no meio jurídico de que o trabalho escravo se caracteriza pela privação de liberdade por meio de violência para forçar a permanência da vítima contra a sua vontade. A falta de provas de que as pessoas se sentiam como escravas, aliás, é um dos argumentos que se repetem para absolver os réus em todos os tribunais, de acordo com levantamento de que Miraglia participou. Nas 26 decisões analisadas, os magistrados alegaram que o consentimento da vítima afastaria o delito praticado.
Para a pesquisadora, esse entendimento só comprova quão distantes desembargadores e juízes estão da realidade de um trabalhador, por estranharem que ele não abandone o local de trabalho quando se percebe explorado ou, ainda, que não tenha ciência do crime a que é submetido. “Parece uma situação fácil de ser resolvida. Se não está bom, basta ir embora. É o que essas pessoas fazem nas situações que lhes incomodam. Mas, para muitos brasileiros que precisam de qualquer coisa para sobreviver, não é bem assim”.
No seu voto a favor da condenação de Marcão do Boi, o juiz e relator convocado Fábio Ramiro citou a sentença do juiz de primeira instância para caracterizar o trabalho degradante como “aquele que priva o trabalhador de dignidade, que o desconsidera como sujeito de direitos, que o rebaixa e prejudica, e, em face de condições adversas, deteriora sua saúde”. Segundo o magistrado, a coação moral pode ser mais efetiva que a força física para manter a vítima em condição análoga à escravidão, principalmente quando o empregador lhe impõe dívidas, impedindo seu desligamento do serviço.
112 condenações em mais de 10 anos
De acordo com o raio-x das ações judiciais, as equipes de fiscalização resgataram mais de 20 mil trabalhadores de 2008 a 2019 e mais de 2,6 mil empregadores foram acusados por trabalho análogo à escravidão, mas apenas 112 foram condenados definitivamente – os magistrados absolveram, em primeira instância, quase metade dos acusados por falta de provas. A maior pena de prisão, após o processo transitado em julgado, foi de 11 anos e seis meses.
Mesmo assim, há quem afirme em suas decisões que há exagero nas leis trabalhistas. É o caso da desembargadora Cláudia Cristina Cristofani, do TRF-4. Assim como o desembargador Menezes, ela enfraquece as denúncias usando o mesmo argumento de serem características do meio rural. Em um processo de 2013, do qual foi relatora, a magistrada afirmou que as condições de alimentação e alojamento dos trabalhadores eram precárias, “quando considerados os padrões, elevados e irrealistas, requeridos pelas normas trabalhistas” e que “o empregador rural se vê obrigado a reduzir custos, a fim de manter um lucro cada vez menor”. Por isso, disse no seu voto pela absolvição do acusado, não era “razoável dar relevância criminal ao fornecimento de condições de trabalho idênticas às condições de habitat da localidade em que a atividade estava sendo prestada”.
Procurada por meio da assessoria de imprensa do TRF-4, a desembargadora não se manifestou.
Em 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux reconheceu a repercussão geral de um pedido de recurso extraordinário do MPF para debater o acórdão do TRF-1 que absolveu Marcão do Boi. Os procuradores querem o reconhecimento das condições retratadas nos autos como degradantes e afirmam que a absolvição “pode estimular o empregador rural, proprietário de fazenda no interior, a cada vez mais tratar os seus empregados de forma desumana”. O relator do processo no STF é o ministro Edson Fachin, que defende ser “inconstitucional a diferenciação regional dos critérios para caracterização do trabalho como degradante”.
Se a água era imprópria para consumo, ‘os trabalhadores não estavam impedidos de ferver’.
O procurador-geral da República Augusto Aras concorda com a tese de Fachin. “A efetivação dos princípios da dignidade humana, da erradicação da pobreza e da redução das diferenças econômicas e sociais direciona-se no sentido de proteger o padrão de vida e as condições de trabalho minimamente satisfatórias nas diversas regiões brasileiras, de modo a equalizar a situação do trabalhador em todas as localidades do país”, disse o PGR, em fevereiro de 2022, em sua manifestação no processo.
O procurador também recomendou o restabelecimento da sentença de prisão de Marcão do Boi pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal, ou seja, por submeter pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitá-las a condições degradantes e à restrição de locomoção. Mas quando tudo isso aconteceu, já era tarde demais para o fazendeiro ser punido pelo rigor da lei.
Correção:3 de abril, 17h06 Uma versão anterior deste texto falava em fiscalizações feitas pelo Ministério Público do Trabalho. O órgão correto é o Ministério do Trabalho.
Correção: 10 de abril, 10h28 Corrigimos a comparação de um alqueire roçado a campos de futebol de acordo com o alqueire do Norte.
Além de genro e sócio do escritório advocacia de Sergio Moro, João Eduardo Barreto Malucelli, o filho do desembargador Marcelo Malucelli -que restabeleceu a prisão de Tacla Duran – é também lotado no gabinete do deputado estadual do Paraná, Luiz Fernando Guerra (União), que por sua vez é irmão de um dos suplentes de Sergio Moro no Senado, Ricardo Guerra.
O filho do desembargador do Tribunal Regionarl Federal da 4ª Região (TRF-4) também atua para o irmão do suplente de Moro. No cargo comissionado, o advogado recebe uma remuneração mensal que superam R$ 13 mil brutos e R$ 10 mil líquidos.
Conforme o GGN divulgou aqui, o filho do desembargador do TRF-4 é também sócio de Sergio Moro e de Rosângela Moro no escritório de advogavocia Wolff & Moro Sociedade de Advogados, que permanece ativo. Vide aqui
Ainda, João Eduardo Barreto Malucelli tem um relacionamento com a filha do casal, a advogada Júlia Wolff, ou seja, é genro do ex-juiz da Lava Jato e atual senador.
No Senado, um dos suplentes comissionados de Moro é Ricardo Augusto Guerra, irmão de Luiz Fernando Guerra Filho, deputado estadual reeleito pelo União Brasil, o mesmo partido de Moro.
Agora, sabe-se que o deputado do Paraná também contratou o genro de Moro e filho do desembargador Marcelo Malucelli para o seu gabinete.
Nesta entrevista exclusiva ao jornalista Luis Nassif, o jurista Cezar Roberto Bitencourt fala sobre a tentativa do ex-juiz Sergio Moro e aliados venais do lavajatismo de calar o advogado Rodrigo Tacla Duran. Bitencourt é doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha e professor convidado de diversas universidades, incluindo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O Judiciário não tem o papel de "paladino" no combate à corrupção. O juiz tem a função de analisar as provas que lhe são trazidas, e não pode atuar como "um vingador"
Redação Consultor Jurídico
Foi o que disse o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, em entrevista à revista Veja. O ministro do Superior Tribunal de Justiça acredita que os magistrados não podem ser responsabilizados pela sensação de impunidade no país.
"Ao contrário do que pensa o senso comum, o juiz não pode ter compromisso com um resultado predeterminado, com a punição de quem está sendo acusado. O compromisso de todo e qualquer juiz é julgar de forma célere, resguardar o direito de defesa e aplicar a lei no caso concreto", explicou.
Salomão também se posicionou contra a criação de varas especializadas na área criminal, pois entende que isso gera deformações. "Temas muito midiáticos levam a uma exposição que não combina com a atividade de juiz. Muitos magistrados acabam misturando a atividade com política, se extasiam com reconhecimento, acham que vão resolver todos os problemas do Brasil, extrapolam, abandonam a ideia de imparcialidade, e vai tudo por água abaixo".
Um "exemplo clássico de utilização da toga com finalidade política", segundo o ministro, foi a "lava jato". Na visão do corregedor, a operação "se perdeu quando os juízes confundiram a função deles com uma atividade política e começaram a se expor demais, se acharem paladinos".
Salomão mencionou o caso do juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro e responsável pelos processos do braço fluminense da "java jato". "O processo dele está sob sigilo, mas o Plenário do CNJ reconheceu que ele ultrapassou a linha não só pela mistura da atividade judicial com a política, mas por sua própria conduta, incompatível com o que se deve esperar de um juiz", declarou Salomão.
Ele também citou o caso do ex-juiz Sergio Moro, hoje senador pelo União Brasil do Paraná. "O fato de o juiz deixar a magistratura para trabalhar no Executivo e depois disputar uma eleição parlamentar, por si só, comprova essa mistura", avaliou Salomão. Por isso, ele defende uma quarentena para magistrados que deixam o cargo para entrar na política.
Na entrevista, Salomão também argumentou que a aposentadoria compulsória, aplicada como punição disciplinar na magistratura, não é um prêmio para o juiz.
"O magistrado perde os vencimentos, mas, como contribuiu para a Previdência Social, tem direito a receber o que recolheu. Um criminoso não perde a aposentadoria do INSS porque cometeu um crime. O que qualquer um pagou até o dia da punição entra no cálculo da aposentadoria. Isso vale para todo cidadão, e não só para os magistrados".
Ele ainda sustentou a legitimidade de juízes participarem de palestras ou eventos feitos por entidades ligadas à magistratura. "O que é ruim — e ilegal — é a confusão entre o interesse privado e a atividade pública. A monetização de palestras, a meu ver, é um problema ético que cada juiz avalia do seu ponto de vista. É esperado desse magistrado que se declare suspeito se vier a deparar com um processo desse contratante".
Por fim, o corregedor teceu elogios à atuação do ministro Alexandre de Moraes à frente do Tribunal Superior Eleitoral: "Se ele não tivesse tido a firmeza que teve, as eleições talvez nem tivessem acontecido". Salomão não vê abusos do colega, pois suas decisões foram confirmadas pelo Plenário.
De acordo com o ministro do STJ, "fatos concretos" apontam que "a autonomia e a firmeza" do TSE e do STF impediram "o avanço do sistema autoritário". Ele cita como exemplo a depredação promovida por bolsonaristas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro.
Comentário de Igor de Oliveira Zwicker (Serventuário):
Segundo Sua Excelência,
"O magistrado perde os vencimentos, mas, como contribuiu para a Previdência Social, tem direito a receber o que recolheu. Um criminoso não perde a aposentadoria do INSS porque cometeu um crime. O que qualquer um pagou até o dia da punição entra no cálculo da aposentadoria. Isso vale para todo cidadão, e não só para os magistrados."
Negativo.
Eu até acho justa a aposentadoria levar em conta o que foi recolhido.
Mas e o servidor público civil da União, regido pela Lei n° 8.112/90?
É demitido ADMINISTRATIVAMENTE e perde tudo. Tudo que recolheu para o RGPS ou RPPS deixa de ser considerado.
Portanto, diferente do que disse o ministro, a regra NÃO vale para "todo cidadão".
Desgostosos por serem citados em reportagens, juízes e desembargadores contam com colegas para ganhar processos contra jornalistas e censurar a imprensa.Ilustração: Amanda Miranda para o Intercept Brasil
Levou menos de um mês para o desembargador Erivan Lopes, então presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, levar a melhor num acordo contra três jornalistas em 2016. Ele se irritou com uma reportagem que dizia que sua filha, servidora do Judiciário piauiense desde 2011, tinha sido favorecida com uma transferência para exercer cargo com gratificação no Tribunal de Justiça do Maranhão, antes de cumprir os três anos de estágio probatório.
O magistrado ganhou quase R$ 16 mil de indenização por difamação, e a reportagem foi excluída dos sites em que foi publicada. Alguns veículos que replicaram a matériatambém publicaram retratação. Já os jornalistas tiveram que pedir desculpas na audiência e publicar um texto admitindo que erraram como parte do acordo, embora não haja o reconhecimento judicial de que a difamação ocorreu de fato. O resultado da audiência também foi rapidamente anunciado no site do tribunal, sob o título “Jornalistas que difamaram presidente do TJ-PI vão pagar indenizações”. Profissionais da imprensa do estado que leram aquele texto entenderam o recado: não mexam com o desembargador Lopes.
Três anos depois, contudo, o jornalista Arimatéia Azevedo mexeu com o magistrado. Ele cobre a política e a polícia do Piauí há cinco décadas e, em julho de 2019, teve acesso a informações exclusivas sobre umadenúncia feita ao CNJpelo Ministério Público do Piauí. O desembargador Lopes havia sido acusado de comprar um terreno sem documentos e depois usar da sua influência para legalizar a terra – a tradicional grilagem. Azevedo publicou reportagens e notas sobre o caso no seu site, o Portal AZ, e em uma coluna que mantinha no Jornal O Dia, do Piauí. Não deu outra – o jornalista foi processado por Lopes. Embora não haja uma relação direta entre o que aconteceu nos anos seguintes, chama atenção que após contrariar o desembargador, Azevedo tenha passado a sofrer censura na sua atividade profissional e a enfrentar uma série de outras denúncias que culminaram em processos por estelionato e extorsão e em mandados de prisão em 2020, 2021 e 2022.
Em resposta aos questionamentos enviados ao desembargador, eleafirmaque tem “apreço e respeito à liberdade de imprensa”, e reconhece a sua importância para a democracia. Mas, “como qualquer outro direito protegido pela Constituição, a liberdade de expressão encontra limites, de modo a não ofender o direito à honra, à intimidade, à privacidade e à imagem das pessoas”. O magistrado diz, ainda, que busca inibir os ataques contra a sua honra “com o amparo das normas legais”.
De norte a sul do país, magistrados têm interferido na liberdade de imprensa e ganhado um bom dinheiro com isso. Mapeei uma série de casos em que membros do judiciário seguiram o exemplo do desembargador Lopes: desgostosos com o que leem, apelam a colegas de profissão para calar jornalistas. Na maioria das situações, há também pedidos de indenização que chegam a milhares de reais, extrapolando os valores cobrados em ações do mesmo tipo, mas que não têm a imprensa como alvo. Com dívidas judiciais, a sobrevivência financeira – principalmente de profissionais independentes ou de pequenos veículos de comunicação – é dificultada.
Conseguir informações oficiais sobre esses processos não é tarefa fácil. Pedi a todos os estados brasileiros, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre ações de magistrados contra jornalistas porcalúnia,injúriaedifamaçãomovidas entre 2010 e 2020, mas só os fóruns do Amapá e de Roraima me responderam no prazo legal de 20 dias. Para chegar aos casos que cito nesta reportagem, contei com levantamentos feitos pela Associação Brasileira de Jurimetria, a ABJ, pela Associação Brasileira de Jornalismo, a Abraji, e pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, além de notícias divulgadas pela imprensa.
Todos os processos têm em comum o uso da justiça para censurar, intimidar e prejudicar financeiramente jornalistas ou veículos. Como são ações movidas por magistrados e julgadas entre colegas de tribunal, o corporativismo exerce forte influência nas decisões.
Nove anos de prisão
O inferno judicial vivido por Azevedo começou depois que o desembargador Lopes apresentou uma queixa-crime contra o jornalista em julho de 2019. Incomodado com as reportagens publicadas no Portal AZ sobre a denúncia de grilagem de terras, o magistrado concluiu que Azevedo tinha a intenção de ofendê-lo moralmente por meio de “sistemática campanha difamatória” e o acusou de calúnia, injúria e difamação. O desembargador também pediu uma indenização por danos morais, que deveria ser determinada pela justiça.
Por e-mail, Lopes me disse que o jornalista, “aproveitando-se da vulnerabilidade da minha imagem perante a opinião pública”, colocou em prática a sua “pistolagem digital” para o ofender agressivamente com “insultos e adjetivações degradantes até publicações mentirosas e caluniosas que abalaram minha honra e saúde” – diferentemente, a seu ver, dos demais jornalistas e órgãos de imprensa, que apenas noticiavam os fatos relacionados à reclamação disciplinar a que o magistrado respondia no CNJ.
O processo movido pelo magistrado ainda estava em andamento quando a denúncia contra ele no CNJfoi arquivada, em setembro de 2019, e o jornalista repercutiu a informação. Por e-mail, Lopes me disse que as reportagens reiteravam “as ofensas criminosas”. Por conta disso, alegando “fatos novos”, o desembargador fez pedidos mais extremos à justiça. Ele queria que Azevedo fosse proibido de escrever reportagens envolvendo seu nome e que fossem retiradas do Portal AZ todas as notícias que o citavam. Em caso de descumprimento, o magistrado pedia uma multa de R$ 50 mil por matéria e, “sendo necessário”, a prisão preventiva do jornalista.
Liberdade de expressão pode ser censurada quando há excessos e abusos’.
Foram necessários apenas dois meses para que o juiz Almir Abib Tajra Filho, da 8ª Vara Criminal de Teresina, considerasse que os pedidos de Lopes eram apropriados e concedesse uma liminar, em dezembro de 2019, que obrigava Azevedo a cumprir a ordem judicial em 24 horas, sob risco de ser preso. Para Tajra Filho, a “liberdade de expressão pode ser censurada quando há excessos e abusos”. Em março de 2021, o processo foi concluído em primeira instância, com a condenação do jornalista a três anos de prisão pelos três crimes de que foi acusado. Ele recorreu e ainda aguarda decisão em segunda instância. Tajra Filho não respondeu aos meus questionamentos sobre o caso.
Antes dessa sentença, Azevedo já tinha sido preso em junho de 2020, devido a uma denúncia de extorsão. Ele foi acusado de cobrar R$ 20 mil para retirar do ar uma reportagem sobre o erro médico de um cirurgião, que havia esquecido a gaze dentro de uma paciente. O inquérito sobre esse caso foi instaurado no dia 5 de junho pelo Grupo de Repressão ao Crime Organizado, o Greco, e andou rápido. No dia 11, policiais entraram na casa do jornalista para cumprir um mandado de prisão preventiva e apreender seus celulares. Curiosamente, algum tempo depois dessa operação, a imprensa passou a receber vazamentos de informações que só estavam nesses aparelhos, inclusive contatos da lista telefônica de Azevedo.
O mandado de prisão preventiva foi expedido pelo juiz Valdemir Ferreira Santos, da Central de Inquéritos. Ele também proibiu o jornalista de publicar matérias que citassem o médico, o Greco ou qualquer um dos policiais da unidade. Entre abril de 2020 e março deste ano, o magistrado exerceu uma função da confiança do desembargador Lopes, que era o corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí – Santos foi seu juiz auxiliar.
Por e-mail, o magistradoalegouque, por lei, é proibido de se manifestar sobre processos em andamento, mas destacou que “em todos os referidos procedimentos, não se investiga o exercício constitucional do direito fundamental da liberdade de expressão, e sim a suposta prática de delitos graves de extorsão”.
Azevedo tem 69 anos e, à época, sequer conseguiu da justiça estadualo direito de cumprir prisão domiciliar, mesmo sem ter sido condenado nesse caso e com a recomendação do CNJ para que os magistradosreavaliassema situação dos idosos em prisão provisória por conta da pandemia. A decisão só foi revertida cinco meses depois, em novembro de 2020, por decisão unânime do STJ. Para a relatora do pedido de habeas corpus, ministra Laurita Vaz, não existiam motivos para prendê-lo, especialmente porque o crime não teria sido cometido com violência e não ficou comprovado que o jornalista oferecia algum perigo caso fosse solto. Para o ministro Rogério Schietti, a medida mais estranha e “desproporcional” foi a proibição do exercício da profissão. O caso segue em andamento e ainda não teve decisão.
Depois do habeas corpus do STJ, Azevedo voltou ao trabalho, mas foi novamente preso em outubro de 2021, por outra denúncia de extorsão. O mandado de prisão preventiva é do mesmo juiz Santos, que tem cargo de confiança do desembargador Lopes na Corregedoria do TRE do Piauí. Dessa vez, a prisão foi justificada por umainvestigação da Polícia Civil, que apontou que Azevedo e o advogado Rony Samuel estavam tentando tirar dinheiro do empresário Thiago Duarte, proprietário da empresa Saúde e Vida, por meio de notas publicadas no Portal AZ. Tendo o advogado como fonte, o jornalista publicou em sua coluna que o empresário tinha recebido do governo do Piauí pagamentos suspeitos por serviços que não foram comprovadamente oferecidos.
O curioso nesse caso é queo advogado disse, em depoimento à polícia, que repassou as informações a Azevedo porque queria pressionar o empresário Duarte e que o jornalista não sabia das suas verdadeiras intenções. Por meio de lobby, Rony conseguiu que o governo quitasse um débito de quase R$ 500 mil com a empresa Saúde e Vida e ele esperava receber uma comissão por isso, o que não aconteceu. Mesmo assim, o advogado não foi preso, enquanto Azevedo ficou na cadeia por 48 dias, até conseguir um habeas corpus para cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica.
A prisão mais recente do jornalista aconteceu em março de 2022, após sua condenação por estelionato a nove anos de cadeia em regime fechado. Em uma ação movida pelo Ministério Público do Piauí, o jornalista é acusado de falsificar certidões da Receita Federal para receber R$ 68 mil de um contrato com o governo estadual.
Embora três pessoas tenham sido processadas, apenas Azevedo foi condenado pelo juiz Ulysses Gonçalves da Silva Neto. A denúncia contra Maria Thereza Azevedo, que é citada no processo como dona do Portal AZ e é filha do jornalista, foi separada em outro processo que está em andamento. Já Welson Souza Costa, que tinha 1% do capital social do site, foi absolvido. O juiz entendeu que ele estava alheio às “questões gerenciais e diretivas” do veículo e que executava apenas “afazeres de menos importância”.
Para Azevedo, porém, a sentença foi a prisão, mesmo com a condenação apenas em primeira instância. Ele sequer poderia recorrer em liberdade, devido à sua “periculosidade social”, principalmente por causa do “fácil acesso que o réu tem à internet e a dispositivos que permitam continuar utilizando seu jornal, o Portal AZ, como forma de perpetrar crimes”. O jornalista ficou na cadeia pouco mais de um mês e conseguiu um novo habeas corpus. Atualmente, segue cumprindo prisão domiciliar, usando tornozeleira e impedido de exercer a profissão.
Por telefone, a filha do jornalista, Haidyne Azevedo, me disse que existe um “complô judicial” contra seu pai. “É uma articulação voltada a criminalizar o exercício da sua atividade jornalística para que ele perca a credibilidade, tenha honra, reputação e saúde atingidas”, acredita. Já o desembargador Lopes diz que essa “narrativa” de perseguição por parte de autoridades do Judiciário a um jornalista sério e respeitado é falsa. “O fato público e notório é que ele há muito tempo faz uso criminoso da profissão para caluniar e extorquir pessoas na busca de proveito financeiro”, diz Lopes.
Para Giuliano Galli, coordenador da área de Jornalismo e Liberdade de Expressão do Instituto Vladimir Herzog, a tentativa de censura e o assédio judicial a Azevedo se tornam mais evidentes quando se juntam todas as peças de como a justiça respondeu às denúncias contra ele e os termos usados na última condenação. “Falar que um jornalista representa periculosidade social para pedir a sua prisão é um absurdo”, afirmou. “Sem entrar no mérito da culpa, pois isso cabe à investigação, defendemos que os profissionais tenham direito a um sistema de justiça de forma ampla e que qualquer acusação seja investigada dentro da lei, não de uma forma abusiva, como está acontecendo nesse caso” (Continua)
Desabafo do advogado Valério Luiz Filho: “Naquele dia, ao olhar para o carro do meu pai, eu disse para mim mesmo: ‘quem fez isso vai pagar'” | Fernando Leite / Jornal Opção
“Espero que deste caso fique a lição de que a justiça é possível”
O dia 5 de julho de 2012 nunca foi nem será apagado da memória de Valério Luiz Filho. No começo da tarde daquele dia, ele aguardava seu pai para almoçarem juntos, no Jardim América. Mas o comentarista esportivo Valério Luiz não chegaria. Após sair dos debates da Rádio Jornal AM (hoje Bandeirantes), já dentro de seu carro, um Ford Ka preto, ele havia sido executado a tiros por um homem que, em seguida, fugiu em uma moto.
O filho foi à cena. Viu o pai morto e sentiu menos tristeza do que revolta. E fez uma promessa a si mesmo: quem fez aquilo não ficaria impune. Iria pagar pelo crime. Depois de muitos obstáculos durante o inquérito e o trâmite judicial, a data de 14 de março, esta segunda-feira, marca para o advogado o cumprimento da própria palavra. Diante de júri popular, estarão os réus Ademá Figuerêdo Aguiar Filho, Djalma Gomes da Silva, Urbano de Carvalho Malta, Marcus Vinícius Pereira Xavier e Maurício Borges Sampaio, todos acusados de homicídio duplamente qualificado – por motivo fútil e sem chance de defesa para a vítima. Ademá é acusado da execução, Sampaio, de ser o mandante. Os demais tiveram papéis intermediários.
Jornal Opção entrevista o advogado Valério Luiz Filho
O filho do jornalista covardemente assassinado fala da longa espera e de seu percurso pessoal durante esta década em busca de justiça
Jornalista Valério Luiz assassinado por um dono de cartório e cartola de futebol associado com juízes vendidos e envolvido com bandidos deputados e corruptos policiais assassinos de Goiás. Fica tanta demorada para um julgamento
Euler de França Belém – Por que exatamente mataram Valério Luiz?
No processo, fica bem clara a escalada das coisas. Em 2010, já havia um boletim de ocorrência de Maurício Sampaio contra meu pai, que havia denunciado que jogadores do Atlético estavam fazendo uso de drogas na concentração e prostitutas circulavam na porta do clube, um jogador dando cavalo de pau no pátio. Enfim, indisciplina dos atletas, de modo geral. Meu pai chegou a jogar no Atlético e era torcedor do clube. Meu avô veio de Anápolis para trabalhar em Goiânia, na Rádio Difusora, em Campinas, na Praça Joaquim Lúcio. E ele também morava ali no bairro, representado até hoje pelo Atlético.
Em 2011, a rixa entre Valério Luiz e Maurício Sampaio se manteve. Em um programa comandado pelo jornalista André Isac, chamado “Tabelando”, na PUC TV, o entrevistado foi Maurício. E ele foi questionado sobre como era o relacionamento dele com a imprensa, se tinha alguém com quem ele não se dava. E a resposta foi clara, ele disse algo como “todo mundo sabe que tem um colega de vocês aqui, o Valério [que à época trabalhava na PUC TV], não gosto dele e acho que a recíproca é verdadeira”. Isso foi em setembro de 2011. No primeiro semestre de 2012, as críticas de meu pai se intensificaram bastante, porque o Atlético, que vinha em uma linha ascendente desde 2005, de repente começou a ir mal. Estava várias rodadas como lanterna do Campeonato Brasileiro, campanha ruim gerando frustração da torcida, insatisfação com o clube. Meu pai, então, fazia comentários muito fortes. Em um deles, quando os muros da sede apareceram pichados com o nome do técnico, de jogadores e de alguns dirigentes, ele levantou a hipótese de que poderia ser algo encomendado pela diretoria, e não um protesto da torcida. E parecia mesmo, porque eram pichações feitas com rolo de tinta ou algo assim, criticando dirigentes como Valdivino de Oliveira [então presidente do clube], alguns jogadores que nem Sampaio nem Adson [Batista, diretor de futebol] gostavam. E não havia nenhuma menção aos dois. Criticavam os patrocinadores do Atlético também, que eram a Linknet e a Delta Construtora. A Delta patrocinava por influência do Carlos Cachoeira [empresário protagonista da Operação Monte Carlo, em 2012], e a Linknet, por Valdivino, que era secretário de Fazenda do governo do Distrito Federal.
Então, meu pai denunciava essas coisas: que o Atlético tinha se envolvido com patrocinadores tenebrosos, que haviam caído em escândalos, e que isso seria o motivo de o clube ter entrado em crise, porque o dinheiro não estava entrando nos cofres mais. Também dizia que as contratações oneravam muito o clube, com atletas que nem jogavam. O clima foi se acirrando com esses comentários. O Atlético havia perdido o Campeonato Goiano para o Goiás e tanto Sampaio como Adson começaram a culpar a Federação Goiana de Futebol (FGF), dizendo que a arbitragem favorecia o Goiás e coisas assim. Meu pai reagia, dizendo que o clube estava acostumado a fazer mutretas, a comprar resultados.
Por fim, com a perda do Goiano e com a crise agravando, tanto Sampaio, que era o vice-presidente, quanto Urzêda [tenente-coronel Wellington Urzêda, então diretor de Relações Públicas do clube] anunciaram que sairiam do clube. E tinha uma questão importante: havia uma disputa interna entre Valdivino e Sampaio. Nisso estávamos na segunda quinzena de junho de 2012. Foi nessa ocasião que meu pai fez várias críticas de uma vez só: falou que Sampaio era descartável no Atlético, que quem conseguia os patrocinadores era Valdivino, que Adson e Sampaio só davam prejuízo ao clube e que naquele momento, quando o time estava mal, era natural que os “ratos” fossem os primeiros a pular fora do barco que afundava.
Elder Dias – Essa frase ficou realmente muito marcada à época.
É verdade. Mas é bom dizer que, antes mesmo dessa frase, já tinha sido divulgada uma carta do Atlético a qual proibia expressamente as equipes da PUC TV e da Rádio Jornal 820 AM – os veículos em que meu pai trabalhava – de entrar nas dependências do clube. No texto, havia a referência direta ao nome do jornalista Valério Luiz, que era classificado como “persona non grata” no Atlético.
No dia desse comentário sobre os ratos pulando fora do barco, o time estava com a delegação em Curitiba. Ligaram de lá para o André Isac – ou Daniel Santana, não tenho certeza – para perguntar sobre esse comentário. Depois de confirmarem que tinha ocorrido mesmo, então, disseram que, chegando em Goiânia iriam tomar as devidas providências.
Logo depois veio também o caso de Charlie Pereira. Ele trabalhava na Rádio 730 AM [hoje Sagres] e também na PUC TV. Veio a determinação da rádio para exigência de exclusividade, de modo que ele não poderia mais trabalhar na TV. Detalhe: Maurício Sampaio era sócio da 730. Então, Daniel Santana, que era um dos coordenadores do programa de esportes de que Charlie participava, chegou a ir até Sampaio, para tentar dissuadi-lo da ideia. Era algo que nunca havia acontecido em Goiás, de forçar um jornalista a sair por não gostar de outro profissional daquele mesmo veículo. Lembro-me de que meu avô e Jorge Kajuru tiveram muitas desavenças entre si comandando equipes de esporte concorrentes, mas nunca chegaram a pressionar os funcionários em comum que tinham. Só que Maurício Sampaio teria dito, então, que ou estavam com ele ou estavam contra ele. Essa escalada culminou com o que aconteceu em 5 de julho de 2012.
Interessante é que a defesa de Sampaio alega que primeiro elegeram um culpado e depois foram atrás das provas. Analisando todos esses fatos, a gente observa que obviamente não é isso, pelo contrário. As investigações se deram com base nos elementos que foram dados. As pessoas já desconfiaram, na época, de que o motivo seria isso que eu relatei porque as circunstâncias eram essas.
Euler de França Belém – O sr. considera que a investigação policial foi bem feita?
Sim, foi bem feita.
Euler de França Belém – A casa em frente à rádio era mesmo de Maurício Sampaio ou estava alugada por ele?
A casa era de Maurício Sampaio e quem morava lá era Urbano, que era uma espécie de faz-tudo – é algo muito comum que pessoas muito ricas tenham alguém assim, para fazer tarefas do dia a dia. Pelo contexto dos áudios da investigação, fica claro que Urbano exercia esse tipo de função para Maurício, fora visto no cartório dele várias vezes, também o acompanhava a jogos no estádio. Então, ele passou a morar naquela casa em 2012, não pagava aluguel. Provavelmente para fazer a campana.
Elder Dias – A casa foi comprada também nesse período?
Maurício Sampaio tem – ou pelo menos tinha – vários imóveis naquela região. A casa fazia parte de uma quadra que já era dele. Só que a casa estava vazia.
As quebras de sigilo telefônico – embora eu não tenha como precisar toda a dinâmica – são muito decisivas para mostrar toda a movimentação dos réus no dia do crime”
Elder Dias – Então, de certo modo, foi uma coincidência a rádio ser ali perto?
Sim. Urbano foi morar lá para monitorar a movimentação. Tanto que, na cena do crime, quem estava lá era ele. Mais do que isso, as ligações entre os acusados estão muito bem delineadas no inquérito. Da Silva e Figuerêdo [policiais militares] faziam segurança pessoal para Sampaio em dias de jogos. O próprio acusado de ser o mandante admitiu que dava contrapartidas financeiras para eles, inclusive com filhos de Da Silva estudando sem pagamento de mensalidade em uma escola cujo proprietário era de Sampaio. As quebras de sigilo telefônico – embora eu não tenha como precisar toda a dinâmica – são muito decisivas para mostrar toda a movimentação dos réus no dia do crime. Um ponto muito importante que a Polícia Civil chegou a pegar é que Urbano habilitou dois celulares especificamente para uso no dia do homicídio. Esses números foram descobertos e se traçou onde eles foram usados e se revelou que isso se deu exatamente no local da ocorrência.
Euler de França Belém – E que usou esses aparelhos?
Urbano e Ademá Figuerêdo. O primeiro de campana, em frente à rádio. Existe uma ligação às 13h57 daquela tarde, de dez segundos. Foi o prazo de meu pai sair da sede e, Figuerêdo, que estava na moto, na outra esquina, ser avisado para tomar a ação. Há uma testemunha – uma funcionária da rádio, que estava subindo, também de moto – que o viu parado na esquina.
Euler de França Belém – Qual teria sido o papel do açougueiro Marcus Vinicius?
Tanto Da Silva como Figuerêdo eram policiais conhecidos como “P2”, do setor de inteligência da Polícia Militar, que trabalham à paisana, colhendo informações para municiar as viaturas ostensivas. Esses policiais têm também uma rede de informantes. Da Silva conheceu Marcus Vinícius no açougue onde comprava carne. Eles também jogavam bola juntos, às vezes, em um grupo de um policial com o qual tinham conhecimento em comum. De certa forma, acabaram se conhecendo por acaso. Só que Marcus era envolvido com a pequena criminalidade ali na região do Parque Amazonas. Existem relatos, em um dos depoimentos do processo, de seu envolvimento com o pequeno tráfico, por exemplo. Sua função, portanto, era passar informações. E o açougue ficava muito perto da rádio, uma distância a ser percorrido em dois minutos de moto. Então, Da Silva e Urbano discutiam o que iriam fazer ali, no açougue do Marquinhos, como o chamavam. Lá, definiram que a moto a ser usada seria a do pai dele, que seria lá no açougue também que deixariam a arma escondida, o capacete, celular e tudo o mais.
Elder Dias – E o pai de Marcus Vinicius, dono da moto, não teve nenhum envolvimento?
Não, nenhum. No dia do crime, Figuerêdo foi deixado lá, pegou a arma e tudo o mais, fez a execução e deixou tudo lá novamente. Marcus devolveu a moto, se desfez do capacete, queimou a camisa utilizada na cena e, depois, Da Silva foi até lá e pegou a arma.
Euler de França Belém – Como Marcus Vinícius foi para Portugal, tempos depois? Quem o mandou para lá?
Não se sabe como ele custeou sua ida para lá – aliás, ele retornou para Portugal. A justificativa que ele dá é o medo. Por várias vezes ele relatou que foi ameaçado por Da Silva. Quando soubemos que ele estava em Portugal pela primeira vez – por meio de fotos da esposa dele no Facebook –, eu imprimi, levei para o juiz e ele decretou a prisão preventiva. A Interpol o capturou no fim de 2014 e ele ficou um ano preso preventivamente aqui. Em outubro de 2015, Marcus Vinicius resolveu falar. Na frente do juiz, ele confirmou tudo o que tinha dito em delegacia, confessando e apontando a participação dos demais.
Marcos Aurélio Silva – E também falou sobre o próprio medo?
Também, o que casa perfeitamente com as provas técnicas. A presença dele no júri, se ele vier, será muito boa. Mas, se ele não vier, há também elementos suficientes para seguir normalmente com o julgamento. Caso condenado, ele será extraditado de novo e volta para cumprir a pena.
Euler de França Belém – A polícia chegou a descobrir quanto custou o crime?
No depoimento, Marcus Vinicius chega a dizer que recebeu R$ 9 mil. Mas o que teria havido de vantagem para os demais não se descobriu.
Euler de França Belém – Nenhum dos demais confessa nada, negam tudo sempre?
Sim, o único que confessou foi Marcus Vinicius.
Euler de França Belém – Um dos réus, Da Silva, chegou a alegar problemas mentais?
Sim. Ocorre que eles haviam sido mandados para júri em agosto de 2014. Recorreram ao Tribunal de Justiça e a decisão foi confirmada em abril de 2015. A partir daí, começaram os recursos – ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], STF [Supremo Tribunal Federal] –, o que se encerrou em 2018. Então, para atrasar o andamento, Da Silva deu entrada no que se chama incidente de insanidade. Juntou alguns laudas de um psiquiatra particular e alegou que estava com esquizofrenia, algum problema mental. A junta médica do TJ é muito abarrotada de trabalho, então demoraram alguns meses para fazer o exame. O laudo concluiu que, na verdade, ele estava simulando a doença.
Euler de França Belém – Valério Luiz não usava armas?
Não, meu pai nunca andou armado. Entretanto – e isso vai ser levado ao júri, também –, alguns dias antes do crime, ouvi um barulho estranho e fui verificar o que era. Vi meu pai com uma Taser [arma utilizada para imobilizar seu alvo]. Ele nunca tinha usado aquilo na vida. Acho que ele não sabia que eu estava em casa e ficou meio constrangido quando o questionei, disse para mim que era “para proteção”. Acho que ele já esperava que algo fosse acontecer, provavelmente não tinha ideia de que seria aquela operação de guerra.
Elder Dias – Ele nunca relatou alguma ameaça?
Para mim, não. Mas, pensando hoje, pai não relataria ameaças para os filhos, né? Já para minha madrasta, Lorena, ele chegou a falar alguma coisa.
Valério Luiz Filho, em entrevista à equipe do Jornal Opção: “Meu pai era carinhoso. Ele me ajudou a construir a autoconfiança” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Marcos Aurélio Silva – Como era seu pai em casa, com vocês?
Eu tive uma infância muito boa, muito tranquila e feliz. Meu pai era muito carinhoso com a gente. Uma coisa que ele sempre fazia era demonstrar um grande respeito comigo, até incompatível com a idade. Os adultos sempre tendem a não se importar com o que as crianças falam, mas ele sempre me ouvia como alguém cuja opinião era levada em consideração. Isso sempre me estimulou bastante e ajudou a construir minha autoconfiança.
Euler de França Belém – Valério não era explosivo com vocês, como costumava passar pelo temperamento na TV?
Não, com a gente, não. Meu pai era muito reservado na vida pessoal. Tinha alguns momentos de intempestividade, sim, e provavelmente por isso era tão discreto. Quem é mais sistemático geralmente fica mais na sua, não dá tanta abertura, apesar de não deixar de ser educado e cortês. No dia a dia, ele não tinha aquela postura que tinha no microfone, onde buscava o que achava o tom adequado para as críticas que fazia.
Agora, existe um ponto que entra nisso: meu pai era das Testemunhas de Jeová. Eu também fui, até os 18 anos. A gente ia três vezes ao templo por semana, fazia aquele serviço de pregação de casa em casa – provavelmente até visitei algum de vocês (risos) –, essas coisas.
Euler de França Belém – Nos campos de concentração, as Testemunhas de Jeová eram as pessoas que mais resistiam.
Existe isso mesmo. Hoje não sou mais, por não concordar com os dogmas, hoje não me filio a alguma religião. Mas nunca obstinação de meus irmãos de fé daquela época. E meu pai foi assim, até a morte. As Testemunhas de Jeová, como muitas denominações religiosas, acreditam que possuam a verdade, fazendo a distinção entre “nós” e “o mundo”. Meu pai levou isso às últimas consequências, de forma religiosa, refletia em sua profissão, a ponto de, quando emitia uma opinião que considerava ter embasamento, quando acreditava estar mesmo certo, achar que não precisava negociar nada, não precisava medir as palavras. Talvez até por isso sua fala saía de forma tão contundente.
Euler de França Belém – É comum a demora de dez anos para um julgamento?
No nosso caso – em que há advogados, promotores de Justiça, assistente de acusação em cima, o tempo inteiro –, não é comum. Atrasou tanto porque, realmente, os réus têm poder de resistência. Recorreram em tudo que puderam – esse episódio de Da Silva, por exemplo, protelou um ano.
Marcos Aurélio Silva – O poder econômico influenciou nessa demora? Ou seja, um réu mais pobre talvez não tivesse condição de prorrogar por tanto tempo o julgamento?
Isso conta bastante. Eles recorreram exatamente de tudo que puderam, como eu disse: foi para o TJ, depois para o STJ, depois para o STF. Teve uma ocasião no STF, inclusive, no fim de 2017, em que o ministro Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar, numa canetada, anulando processos no Brasil inteiro. Na época, fiquei sem saber o que fazer. Enfim, me acalmei, entrei em contato com algumas organizações com que temos relação a algum tempo. Conseguimos publicar na primeira página do Jota [um dos principais veículos jurídicos do País] e também encaixamos duas matérias no “Estadão”, no blog do Fausto Macedo. A gente mostrou que Maurício Sampaio havia sido beneficiado por Lewandowski em outra decisão liminar, em que ele retornou para o cartório após havia sido afastado, com o concursado (para o cartório) praticamente empossado.
Paralelamente, fui a Brasília e consegui falar com uma das subprocuradoras-gerais da República para pedir que ela recorresse, já que eu não poderia atuar em habeas-corpus. Ela recorreu e, de modo até surpreendente, na volta do recesso, em fevereiro de 2018, a coisa refluiu e o próprio Lewandowski revogou a liminar e negou a alegação deles.
Euler de França Belém – Como foi a alegação de que não havia auditório em Goiânia que desse condições para o julgamento?
Eu achei algo muito estranho aquilo. Nunca tinha visto aquilo. O Tribunal de Goiás não é pequeno, é um tribunal de médio porte. Um juiz [Jesseir Coelho de Alcântara] dizer que não tinha condição de fazer um júri… senti que o próprio tribunal ficou um tanto constrangido com essas declarações do juiz. Na época, o juiz disse que a segurança era frágil, que não tinha estrutura para os jurados etc. Eu me reuni com a Comissão de Direitos Humanos da OAB, também com o procurador-geral de Justiça, e a gente pediu providências para o presidente do TJ-GO, que chegou até a fazer uma reforma em um dos auditórios, do Fórum Cível, onde também tem júri. O dr. Jesseir se deu por suspeito e saiu do processo, que foi para o juiz que está com o caso, Lourival Machado. Ele havia marcado o júri para 23 de junho de 2020, mas tudo ficou suspenso por causa da pandemia. Agora, o júri foi marcado para o plenário do Tribunal de Justiça, que é o local mais amplo que há no Judiciário. Ficou até estranho, porque o lugar é muito grande e, até o momento, não há autorização para acesso ao público – haverá apenas transmissão pelo YouTube.
Marcos Aurélio Silva – Como está a situação dos policiais acusados do crime frente à corporação?
O sargento Da Silva, salvo engano, já está reformado, mas continuava ministrando aulas na Academia da Polícia Militar, como instrutor de tiro. Já Figuerêdo segue trabalhando normalmente, em Senador Canedo. Chegou a sofrer um procedimento administrativo na PM, para apurar a conduta dos policiais, mas a corregedoria interna não tem meios de investigação como a Justiça e a Polícia Civil têm. Nós, aliás, atravessamos um pedido à Corregedoria da PM pela suspensão até a decisão judicial, para evitar, ainda, que houvesse alguma decisão mais corporativista.
Sim, temos medo de – não hoje ou amanhã –, mas alguma represália no futuro. Nós tomamos nossas precauções. Morávamos em uma casa, no Jardim América, e assim que houve o crime nos mudamos para um apartamento. Há cuidados que vamos precisar ter para sempre”
Marcos Aurélio Silva – E sua família, como convive com essa situação? Vocês se sentem ameaçados ou com medo?
Nós tomamos nossas precauções. Morávamos em uma casa, no Jardim América, e assim que houve o crime nos mudamos para um apartamento. Sobre ameaças, elas se dão geralmente em outro contexto, quando não se quer que algo seja dito, quando alguém não quer que algo vá a público. Depois que a coisa já estourou, mesmo se me matassem agora, ainda assim teria o júri na segunda-feira – e talvez com consequências mais sérias. Mas, sim, temos medo de – não hoje ou amanhã –, mas alguma represália no futuro. Por exemplo, os PMs, sendo condenados, serão automaticamente expulsos da corporação, mas vão continuar por aí. Então, há cuidados que vamos precisar ter para sempre.
Euler de França Belém – O luto por uma pessoa assassinada é diferente de outros lutos. Como sua família atravessou – e atravessa – esse processo?
Quando a morte vem por causas naturais, como foi o caso de meu avô [Manoel de Oliveira, o Mané, nome que foi referência da imprensa esportiva em Goiás, que morreu no ano passado, de câncer], traz um sentimento de aceitação, por ser, de certa forma, da natureza da vida e das coisas que assim aconteça. No caso de meu pai não foi assim. Ele foi brutalmente retirado da vida muito novo ainda e isso gerou, pelo menos naquele momento, mais uma sensação de revolta do que de luto, propriamente.
O luto por meu pai veio aos poucos, porque não é só a perda naquele momento. À medida que nossas vidas vão se desenrolando, a gente vai sentido a falta da pessoa em situações nas quais gostaria que aquela pessoa estivesse presente. Meu pai não conheceu nenhum de seus três netos. Eu tenho um filho, minhas irmãs, cada uma, também têm. Minha esposa, por exemplo, ele não chegou a conhecer. Têm várias coisas que eu já fiz, e as quais gostaria que ele estivesse junto de nós, mas que ele não teve essa oportunidade. Então, nesse caso, o luto em si com o tempo até se agrava. Claro que não com aquele sentimento esmagador da época em que tudo aconteceu, mas não é algo que passa.
Elder Dias – O sr. falou em revolta, que foi o que sentiu quando do assassinato. Como foi o dia, o que o sr. lembra?
Eu me lembro vivamente. Tinha 24 anos e me lembro de estar de pé diante daquela cena. Estava claro que tinha sido uma execução. Vocês sabem, todos nós, no decorrer de nossa vida, fazemos promessas para nós mesmos: ou emagrecer, ou fazer determinado curso ou outros pequenos planos. Algumas a gente sabe até que provavelmente não vai cumprir e outras a gente tem certeza de que vai levar até o fim. Naquele dia, ao olhar para meu pai naquele carro e dizer para mim mesmo: “Quem fez isso vai pagar”. É uma das poucas vezes na vida em que se fala uma coisa para si mesmo com uma convicção incontornável, porque não tem como continuar convivendo consigo mesmo se não levar aquilo adiante.
Euler de França Belém – Nesse período, de quase dez anos, o sr. também se tornou outra pessoa. O que o sr. fez durante esse tempo?
O que aconteceu influenciou claramente minhas escolhas, meus objetos de interesse. Eu tinha me formado em Direito, ido para Recife e havia voltado para Goiânia depois de um ano morando lá, trabalhando em um escritório de advocacia tributária. Conversei com meu pai para a gente tentar montar um escritório nosso aqui. Ele estava me apresentando pessoas e, na época, eu também estava estudando para um concurso da Procuradoria-Geral do Estado, que veio a ser realizado no ano seguinte. Então, eram planos normais de um bacharel em Direito, queria ter tempo de escrever, tinha publicado um livro de poesias em 2010. Eu queria ter tempo para me dedicar à literatura. Agora, concluindo o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFG [Universidade Federal de Goiás], devo fazer o doutorado na área de Direito.
Euler de França Belém – O que você estudou no mestrado?
Meu mestrado em Filosofia parte de um julgamento, o de Eichmann [Otto Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela deportação de judeus para os campos de concentração nazistas]. Minha linha de pesquisa é o conceito de banalidade do mal, de acordo com a obra de Hannah Arendt [escritora e filósofa alemã de origem judaica, que escreveu “Eichmann em Jerusalém” e criou o conceito de “banalidade do mal” a partir do julgamento do nazista]. Minha especialização havia sido em Criminologia e Segurança Pública, na qual estudei muitas das circunstâncias que levaram àquele estado de coisas que produziu a morte de meu pai. Aquilo não aconteceu do nada. Como era possível ter um Comando de Missões Especiais daquela forma, com aqueles policiais com histórico de atrocidades no mesmo contingente e com autoridades incrivelmente permissivas com isso? Como um homem como Maurício Sampaio chegou ao nível de poder e influência que tinha? Como foi possível chegar àquela conjuntura a ponto de alguém achar que poderia mandar matar um jornalista e escapar da justiça? Posso dizer que ele [Maurício] estava quase certo disso [de que sairia impune].
Euler de França Belém – No livro de Hannah Arendt, ela fala de Eichmann como um homem do Estado legal, um funcionário administrativo que cumpria ordens absurdas. Já uma biografia mais recente [“Eichmann Before Jerusalem”, ou “Eichmann Antes de Jerusalém”, em português], de Bettina Stangneth, relata que, por conta própria, Eichmann continuou mandando judeus para o campo de Auschwitz. Ou seja, ele não seria um funcionário administrativo comum, uma figura secundária. Como aplicar essa ideia no caso específico do crime contra Valério Luiz?
Elder Dias – Por exemplo, os intermediários e executores, por já serem ligados de alguma forma ao acusado de mandante, não teriam feito apenas uma “tarefa” a mais?
Arendt associa a banalidade do mal à ausência de reflexão sobre os próprios atos. Ela diz que um dos principais freios éticos seria este: conviver consigo mesmo em relação ao que fez, funcionar como seu próprio juiz, chegar em casa, colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo. Então, ela coloca que há algumas pessoas que sistematicamente evitam esse encontro consigo mesmas, não pensam nunca sobre o que fazem. Esse tipo de gente não tem qualquer limite: o que ela faz hoje, amanhã já esqueceu. São as mais perigosas.
Nós somos acostumados a pensar que o mal precisa ter motivações profundas. Muitas vezes me perguntavam: por que mataram seu pai? Quando eu respondia que eram por comentários esportivos, diziam “mas é mesmo? É tão pouco!”. É como se, para fazer um mal tão grande, precisaria de uma motivação também grave. Para nós aqui nesta mesa, matar uma pessoa é algo do outro mundo, mas para esse tipo de gente, não. Eles já conviviam em um universo em que matar alguém era uma coisa comum. Já tinham acesso fácil aos meios de violência, porque os homens mais violentos do Estado estavam à mão, logo ali. E outra questão: pela condição financeira e de poder, não encaravam as outras pessoas como seus pares. São estes os dois pontos para que a banalidade do mal aconteça: criar um ambiente no qual as pessoas não precisam pensar sobre o que estão fazendo e desumanizar as vítimas desse mal, colocando-as como menores.
“A defesa alega que primeiro elegeram o culpado e depois foram atrás das provas. A gente observa que obviamente é o contrário” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Marcos Aurélio Silva – Um podcast chamado “Pistoleiros”, da Globo, fala sobre o grupo conhecido como Escritório do Crime, de milicianos do Rio de Janeiro. Aborda a execução da vereadora Marielle Franco, mas vai bem além disso. Enquanto o sr. colocava essa correlação, me lembrei de como ocorreram as ligações naquele meio carioca: pessoas do jogo do bicho, do futebol, das escolas de samba e que passavam a ter ligações com militares. Em sua cabeça, haveria aqui em Goiânia algum paralelo com o que ocorre no Rio?
Para mim, existia um projeto abrangente de poder. Sampaio, por exemplo, era na época sócio de uma rádio, estava no comando de um cartório que lhe rendia milhões de reais por mês e cujo faturamento era aumentado por suas relações com um juiz [Ari Ferreira de Queiroz], que acabou sendo punido pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Estava também na direção de um clube de futebol e estava tentando – isso era uma das hipóteses de meu pai na época – conseguir a presidência da Federação Goiana de Futebol.
Da mesma forma, no próprio Atlético, havia muita gente poderosa entre os demais dirigentes: Valdivino de Oliveira, presidente do clube, que havia sido secretário do DF e depois foi deputado federal; Jovair Arantes, à época deputado federal e articulador da bancada da bola; e o tenente-coronel Urzêda, que estava à frente do Comando de Missões Especiais (CME) da PM.
Euler de França Belém – Como era a questão da inspeção veicular no Detran ligada ao cartório de Maurício Sampaio?
O juiz Ari de Queiroz deu uma especial interpretação ao Código Civil, de modo que o Detran, apesar de órgão estadual, teria de fazer todos os registros de financiamento de veículo na Comarca de Goiânia. Portanto, na prática, todos os veículos financiados em Goiás tinham de ser registrado no cartório que, naquele momento, estava no comando de Maurício Sampaio. Cartorários do interior entraram com mandados de segurança para ter direito a isso e, por alguma razão, todos os mandados caíram exatamente para Ari de Queiroz, que negava tudo. Por causa dessa decisão dando essa espécie de monopólio a Sampaio, a demanda do cartório aumentou demais. Nesse contexto, fizeram um sistema de ligação direta do cartório com o Detran, que era ilegal, porque operava fora dos meios oficiais.
Eu entrei com ação popular contra, pedindo a destituição de Sampaio do cartório. Logo depois, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) entrou com ações civis públicas no mesmo sentido. Quando isso ocorreu, o presidente do TJ-GO na época suspendeu essa liminar de Queiroz que beneficiava Sampaio, no uso de uma prerrogativa excepcional prevista em lei.
Elder Dias – No mesmo dia do assassinato de Valério Luiz, houve outro homicídio marcante em Goiânia, que vitimou o advogado Davi Sebba Ramalho, no qual também há envolvimento de policiais. O sr. tem acompanhado esse caso?
Na verdade, o assistente de acusação do caso Davi Sebba, Allan Hanemann, é meu amigo. Ele é também professor da UFG no polo da cidade de Goiás. Eu o conheci na atividade jurídica, principalmente na questão dos direitos humanos. Também convivi muito com Pedro Ivo Sebba, irmão de Davi. Naquele período, a polícia estava fora de controle, havia tido a Operação Sexto Mandamento [que investigou um grupo de extermínio na PM] no ano anterior [fevereiro de 2011]. Lembro-me de uma capa do jornal “O Popular” – uma das mais icônicas, em minha opinião – com a frase “Mato por satisfação”, que era o trecho de um diálogo interceptado pela Polícia Federal, de um policial militar com um comandante, falando algo como “sem novidades, capitão, um pouquinho de sangue na farda é bom, né? Mato por satisfação”. Por conta daquela capa, as viaturas da Rotam, na época, fizeram um processo de intimidação em da sede da então Organização Jaime Câmara [hoje Grupo Jaime Câmara], com os giroflex ligados. Foi o que levou o então governador Marconi Perillo (PSDB) a dissolver o batalhão da Rotam. O pessoal estava completamente louco, a coisa estava tão fora de controle, que foi uma das primeiras vezes, senão a primeira, que o Conselho dos Direitos da Pessoa Humana fez uma sessão fora de Brasília, vindo a Goiânia no segundo semestre de 2012. Foi a partir disso que surgiu o encaminhamento de federalizar casos de crimes em Goiás. Na época, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, recebeu uma carta, se sensibilizou e fez o pedido de um dos casos para o STJ. Minha família e a de Davi Sebba também foram incluídos na lista, mas nossos processos, ainda que lentamente, tiveram andamento, então não justificava a federalização.
Marcos Aurélio Silva – Como surgiu a ideia de criar o Instituto Valério Luiz e o que ele tem feito?
É o nome que a gente deu para uma associação simples, que reúne advogados, jornalistas, ativistas e amigos em geral. A ideia surgiu em 2013, quando sentimos que tínhamos de nos organizar de forma a poder pressionar mais efetivamente pela solução do caso, não apenas de forma pessoal, para não ficar algo personificado. Durante esse tempo, conseguimos atuar de forma bastante consistente, acompanhando outros casos até o tribunal do júri. Uma reunião que fizemos à época, com a então ministra Maria do Rosário [da Secretaria dos Direitos Humanos], foi especialmente produtiva, porque levamos o quadro que estava ocorrendo em Goiás e desenvolveu uma série de sugestões para políticas públicas. Tudo isso serviu para que o Brasil fosse denunciado na Corte Interamericana por causa do descaso com os direitos humanos dos jornalistas no Brasil.
Euler de França Belém – Mané de Oliveira, seu avô, foi a vida inteira um homem batalhador. No período em que ficou doente, ele chegou a falar com o sr. sobre o caso?
Meu avô era um otimista patológico. Ele não chegou àquele momento de aceitar a própria finitude. Durante o tempo inteiro, ele lutou para sair daquela situação, mesmo com a doença já em um estágio avançado. Houve apenas uma vez em que ele me ligou, de manhã, e chorou ao telefone. Disse que não estava tudo bem e que não conhecia meu filho ainda e que tinha esse desejo. Então, ele foi lá em casa, a gente conversou, mas naquele dia a gente não falou do caso do meu pai. Eu também não queria falar desse assunto num tom que pudesse passar a ideia de que ele não fosse estar mais aqui, me pareceu um pouco cruel fazer assim. Teve um dia no hospital em que a situação se agravou muito, ele chegou a ter, acredito, até uma parada cardíaca, porque ele estava muito agoniado, não queria ficar no leito. A coisa escalou até ele realmente falecer. Foi tudo muito rápido, também.
Deveria ter sido uma coisa natural, acontecer um crime dessa forma e todos se movimentarem, especialmente as autoridades, com as pessoas que fizeram isso indo logo a julgamento. Mas não, precisei gastar dez anos de minha vida para que isso acontecesse”
Euler de França Belém – Ele chegou a pedir para não desistir da luta?
Ele não chegava a me pedir isso expressamente, porque era algo meio tácito entre nós. Mas uma coisa que não me esqueço é de quando você, Euler, me disse “não fica só nisso, faça outras coisas”. É que existe o luto quanto a isso também: é um sentimento um pouco amargo, no sentido de que eu precisei me concentrar muito nesta luta, porque os obstáculos eram muitos e enormes. Foi preciso fazer esse combate feroz porque as resistências pareciam ser infinitas. O que me deixa um pouco triste e amargo é que não deveria ter sido assim. Deveria ter sido uma coisa natural, acontecer um crime dessa forma e todos se movimentarem, especialmente as autoridades, com as pessoas que fizeram isso indo logo a julgamento. Mas não, precisei gastar dez anos de minha vida para que isso acontecesse. Ao mesmo tempo, a gente sente orgulho pelo que fez e também uma gratidão a quem realmente colaborou.
Euler de França Belém – Apesar da demora, o sr. está satisfeito com o trabalho feito pela polícia e pela Justiça?
Sim e não. Houve gente que tivemos de enfrentar durante esse tempo. O delegado Manoel Borges, por exemplo, tentou interferir no processo. O então juiz Ari Queiroz acabou aposentado compulsoriamente pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], estava beneficiando Maurício Sampaio. Teve também aquele episódio com Lewandowski. Enfim, houve várias circunstâncias em que sentimos que as pessoas estavam usando suas prerrogativas públicas para impedir um desfecho justo. E isso nos feria demais.
Por outro lado, houve os delegados que fizeram sua tarefa de forma exemplar, como Wellington Carvalho e Adriana Ribeiro, que conduziram o inquérito e fizeram seu trabalho com lisura. Todos os membros do Ministério Público que atuaram no caso, inclusive os três promotores que estarão no júri – Maurício de Camargos, Renata de Oliveira e Sebastião Martins – e os anteriores, com Paulo Pereira e Eni Lamounier. Todos sempre atuaram de forma correta. Os vários juízes que, durante todo esse tempo, tomaram decisões que, tenho certeza, implicaram risco pessoal. Enfim, a todos os que exerceram bem sua função eu tenho muita gratidão. Pode ser simplesmente cumprir o dever por parte de alguém que exerce uma função pública, mas a gente consegue perceber o tamanho do bem que se faz e da repercussão que se tem.
Euler de França Belém – E a imprensa, cobriu o caso com correção?
Em sua imensa maioria, sim. Meu avô tinha 50 anos de jornalismo em Goiás, todo mundo o conhecia e muitos iniciaram a carreira com ele. Meu pai também passou por vários veículos de comunicação. Enfim, havia uma relação que talvez tenha ajudado nesse empenho. Embora também tivessem havido dissabores, com um jornalista ou outro que soltava um artigo contrário, ao qual eu mesmo fazia questão de responder. Mas foi coisa localizada, sempre tivemos um amplo apoio da imprensa daqui.
Já a imprensa nacional, nem tanto. Saía alguma coisa, ocasionalmente, principalmente em mídia impressa. Mas da sociedade civil organizada nacional tivemos apoio, sim. Porque não é questão de tomar determinado lado: é que houve um fato que ocorre e, sinto dizer, para os que serão julgados, mas todos os elementos estão do nosso lado. Não tem como apagar a história. Há fatos estabelecidos. Desde 2012 eu ouço quem quer que esteja em defesa dos acusados falando que a verdade vai aparecer, que vão descobrir os verdadeiros criminosos. Nunca aconteceu nada, nada que mudasse o rumo das investigações. O que era lá no começo continua sendo da mesma fora agora. Lá era isso e hoje ainda é isso, a mesma história.
Marcos Aurélio Silva – Qual será a linha da defesa?
Vai ser basicamente tentar desqualificar a investigação, tentar álibis para os acusados e negar, partindo para o “in dubio pro reo” [“na dúvida, em favor do réu”, em latim]. Sempre foi isso, na verdade.
Euler de França Belém – No caso de condenação, há a possibilidade de alguma indenização?
Com a condenação pelo júri, existe uma ação civil chamada “ex delicto”, pela qual se pode pegar a sentença e processar cada um deles na área cível. Pela lei, quem produz o dano é obrigado a indenizar. Nem haveria outro processo, porque, se já foi reconhecido isso pela Justiça criminal, a questão é apenas entrar com uma petição na Cível solicitando que seja afixada uma indenização cabível.
Euler de França Belém – O sr. pretende ingressar com essa ação?
Pretendo, sim, para todos eles. Agora, se vão ter condições de arcar com isso, não sei.
Euler de França Belém – Qual é o legado que vai ficar de toda essa história?
Quando somos mais novos, somos educados a lutar para mudar o mundo, mas talvez seja tão nobre quanto isso lutar para que o mundo não acabe. Naquele período, do começo da década passada, as coisas por aqui estavam em um estado inacreditável de corrupção das instituições, da polícia, de tudo. Estava sem limites. Veja o trabalho que isso deu, o tempo que nos foi tirado, o que ocorreu com minha família, por, naquele ambiente, ter surgido pessoas que acreditavam ter poder de vida e morte sobre os outros. Do ponto de vista cívico, então, a lição que eu tiro é de que não podemos desanimar e que, mesmo que não seja para mudar o mundo, nosso dever é ficar zelando para deixá-lo habitável, digno, para não chegar ao ponto de um Sampaio da vida decidir sobre a vida dos outros. Espero que fique também a lição de que a justiça é possível.
O advogado Valério Luiz de Oliveira Filho narra o calvário que percorre há quase dez anos em busca de justiça para seu pai, o jornalista Valério Luiz, assassinado em 2012. O julgamento do crime acontece nesta segunda (14/3)
por Valério Luiz de Oliveira Filho /Ponte
O crime
Valério Luiz foi assassinado dentro do carro (Foto: Laerte Junior)
5 de julho de 2012, quase 14h. O programa terminou, o jornalista Valério Luiz está prestes a sair da Rádio Jornal 820 AM, onde trabalha, no setor Serrinha, bairro de Goiânia (GO). Segundo informações do inquérito policial, Urbano Malta já se encontra na esquina em frente, a postos, com um celular pré-pago nas mãos. Assim que Valério sai do portão em direção ao carro, Urbano faz uma rápida ligação, e uma moto, que estava parada no começo da rua, acelera para pegar o jornalista a tempo. Valério acionara a ignição, estava manobrando para tomar o rumo de casa, quando, da janela esquerda, seis tiros o atingem. O Ford Ka preto chegou a andar mais alguns metros, desgovernado, até parar no meio da rua, em posição diagonal.
De dentro da rádio, ouviram os estampidos. O primeiro colega a correr para a rua foi Alípio Nogueira, que avistou Urbano espiando Valério Luiz baleado dentro do carro. “Liga pro Da Silva”, disse Urbano a Alípio, que não entendeu o pedido, e ligou para uma ambulância. Minutos depois, porém, quem chegou foi um comboio de viaturas de polícia especializada, cujos policiais imediatamente começaram a intimidar trabalhadores de uma obra contígua, que poderiam ter visto demais. Rapidamente a notícia se espalhou, e a rua foi sendo tomada por peritos criminais, autoridades e curiosos.
Dias antes, o sargento da PM Djalma Gomes da Silva estava, na companhia de Urbano, comendo espetinho no açougue de um informante da PM, Marquinhos, pequeno meliante da região. O sargento disse a Marcus que precisaria de sua ajuda para “passar um susto” em determinado sujeito, a mando do patrão de Urbano. Não tardou até que Urbano retornasse ao açougue, munido de dois celulares. Haviam sido habilitados no CPF de um terceiro, e Marcus devia fazer a guarda de um deles, ficando ainda encarregado de providenciar, e deixar de prontidão, uma camiseta, um capacete e uma moto discretos.
No dia 4 de julho de 2012, o sargento Da Silva passa no açougue de Marcus e deixa um revólver calibre 38 prata, cromado. Não podiam esperar mais. O patrão estava pressionando. Por isso, no dia seguinte, o cabo Ademá Figuerêdo chegou ao açougue, pouco antes das 14h, no banco do passageiro de uma viatura descaracterizada do Comando de Missões Especiais (CME), grupamento de elite da PM no qual trabalhava juntamente com Da Silva. O militar vestiu a camiseta e o capacete, pegou a arma e o celular, subiu na moto e foi cumprir a ordem.
Naquele dia, almocei em casa e estava esperando meu pai. Como ele não costumava enrolar no estúdio após o fim do programa e a rádio ficava perto de onde morávamos, no máximo até 14h15 o Ford Ka preto costumava apontar no nosso portão. Lembro de olhar no relógio do celular, que marcava 14h22, e pensar que meu pai estava atrasado. Naquele mesmo instante, a tela acendeu sua luz azul: era uma chamada de Lorena, minha madrasta, que raramente me ligava. “Valerinho, pelo amor de Deus, vem aqui pra rádio que seu pai tomou um tiro!”, disse ela, arfando, e desligou.
Tentei retornar, e nada. Contato então Pedro Gomes, administrador da rádio. “Você está em casa? Espera aí que vou mandar um carro da rádio te buscar. Seu pai tomou uns tiros aqui”. O plural me saltou aos ouvidos. Fui para a porta esperar, e logo apareceu o Uno branco plotado, com motorista, e o banco do passageiro vazio. Assim que me sento, sinto uma mão vir de trás e tocar levemente meu ombro, como numa condolência. Era Elisvânia, coordenadora financeira da rádio. Ali, pressenti o pior. No caminho, muitas pessoas me ligavam, perguntavam se eu estava bem, mas evasivamente.
Quando o Uno chegou à esquina da Teixeira de Freitas, rua da rádio, não pôde continuar, devido ao excesso de gente. Desci e continuei o trajeto a pé. À medida que me aproximava, fui paulatinamente vendo as câmeras, alguns policiais, e as faixas amarelas, aquelas que colocam para isolar cenas de crime. Finalmente vi o Ford Ka preto parado na diagonal, as portas abertas com os vidros crivados de balas, e uma imagem que se impregnou particularmente em mim: o pé do meu pai pendurado para fora do carro, com o tênis cinza de corrida e a meia levantada dos quais eu sempre caçoava.
Fui eu quem precisou dar a notícia para minha irmã mais nova, que, a esta altura, me ligava sem parar: “Nosso pai morreu, Laura”. Quando meu avô Manoel chegou ao local, esbravejava, inconformado com a ausência de uma ambulância. Ao ser informado pelos colegas que não havia mais nada a se fazer, desabou: “Mataram meu filho! Mataram!”. Os gritos daquela voz poderosa e rasgada de velho radialista, tão conhecida dos goianos pelos 50 anos de profissão, consternavam as faces de todos, nas quais se via, como que estampada, a mesma pergunta: como as coisas chegaram a esse ponto?
O contexto
Há algumas semanas eu já notava algo de estranho com meu pai: falava em abandonar a profissão, em se mudar para a Patagônia, que não gostava mais daqui. Coisas que nunca falara antes. O ponto mais fora da curva, contudo, foi quando o flagrei testando uma pistola taser em casa, aquelas que dão choque. Constrangido, ele disse que era “para proteção”. Meu pai pressentia que uma represália estava para atingi-lo. Só não esperava, penso eu, que a brutalidade e a covardia seriam tamanhas, e que o poder do dinheiro mobilizaria até o aparato do Estado para lhe negar qualquer chance de defesa.
Meu avô, quando veio para Goiânia, ainda na década de 1960, trabalhar na Rádio Difusora, instalou-se em Campinas, bairro do Atlético Clube Goianiense. Meu pai, portanto, cresceu ali, nos arredores do Estádio Antônio Accioly, e se tornou atleticano. Provavelmente por isso, suas críticas jornalísticas eram mais contundentes quando se tratava do “Dragão Campineiro”, que experimentara uma ascensão meteórica desde o ano de 2008, saindo da série C para a série A do campeonato brasileiro, mas, em 2012, enfrentava uma má fase na competição, além de crises na sua diretoria.
“O Atlético pode estar na série A, mas não é time de série A, não”, disse Valério em um dos seus comentários na televisão. Denunciava também que o vice-presidente do clube, Maurício Sampaio, pagava a torcida organizada para pichar os muros do próprio estádio com impropérios contra jogadores e treinadores que porventura caíssem no desagrado da diretoria, forçando assim tais profissionais a romperem unilateralmente os contratos, deixando seus respectivos postos sob condições mais vantajosas, do ponto de vista financeiro, para o Atlético, que então não arcava com multas rescisórias.
Valério era o único jornalista de Goiás com coragem para falar abertamente sobre a causa oculta da ascensão meteórica do Atlético: uma injeção de dinheiro por “patrocinadores tenebrosos”, como ele os chamava: Linknet, envolvida no escândalo que derrubou José Roberto Arruda do Governo do Distrito Federal após a Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, e Delta Construções, protagonista da famosa Operação Monte Carlo, que resultou na cassação do então Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e na prisão do bicheiro Carlinhos Cachoeira, ambos amigos pessoais de Sampaio.
Valério Luiz, o filho (autor deste texto) e o pai covardemente assassinado
Talvez não por acaso, Valdivino de Oliveira, enquanto presidente do Atlético Goianiense, foi secretário da Fazenda do Governo Arruda e posteriormente eleito deputado federal pelo PSDB. Outro deputado federal, Jovair Arantes, então líder do PTB na Câmara e principal articulador da “bancada da bola”, era membro do Conselho Deliberativo do Dragão Campineiro. Valério defendia a tese de que o Atlético, por meio dos patrocínios, era usado para lavagem de dinheiro e, com os escândalos da Caixa de Pandora e Monte Carlo, poderia ter suas asas de cera derretidas e cair para a série B.
Meu pai era um cronista esportivo. Não tinha a intenção de fazer denúncias de cunho político ou criminal. E assim teria sido, se o futebol fosse só futebol. O problema é que, no Brasil, as diretorias dos clubes costumam estar entranhadas nas estruturas de poder local, quando não são os próprios políticos e os grandes empresários que, por trás dos panos ou de papel passado, dirigem os times. E Valério queria dar as razões verdadeiras da notícia, sem enganar a audiência. Qual seria o sentido de comentar, por exemplo, a qualidade técnica de um jogador comprado para não entrar em campo?
Esse era o teor de outra das denúncias: a diretoria do Atlético, empresários ligados ao clube e particularmente Sampaio, estariam usando recursos do Dragão para a aquisição de jogadores que mal seriam testados, serviriam apenas de lucro em futuras negociações com outros cartolas. André Isac, colega de bancada do meu pai, conta que, dias antes do crime, chegou ao estúdio com uma lista de jogadores comprados e jamais utilizados pelo Atlético. Já preocupado com o clima de animosidade, Valério disse “André, deixa eu te pedir uma coisa: não mexe com isso. Essas pessoas são muito perigosas”.
Àquela altura, o Atlético Clube Goianiense havia enviado uma carta aos veículos de comunicação nos quais meu pai trabalhava, proibindo as respectivas equipes jornalísticas de adentrarem nas dependências do clube, bem como de entrevistar jogadores e funcionários, enquanto Valério Luiz permanecesse no ar. Assinada por Valdivino de Oliveira e Maurício Sampaio, a carta chamava Valério de “persona non grata”. Corriam boatos de propostas financeiras pela demissão do jornalista, e Adson Batista, então treinador e hoje presidente do Atlético, virava a cara para os repórteres.
O clima ficou ainda mais pesado quando um colega de meu pai, Charlie Pereira, foi forçado a sair do programa. Charlie trabalhava também na Rádio 730 (hoje Rádio Sagres), cujos sócios, na época, eram Sampaio, o advogado de Sampaio, Neilton Cruvinel Filho, e o apresentador Joel Datena, filho do popular José Luiz Datena. Charlie teve, então, de escolher. Daniel Santana, um dos coordenadores do programa no qual meu pai comentava, chegou a procurar Maurício para dissuadi-lo da absurda exigência, mas teria ouvido do rico cartola que “quem não está comigo está contra mim”.
Meu pai não resistiu, porém, à tentação de desferir uma última levada de críticas. Além de estar na zona de rebaixamento do brasileirão, o Atlético perdeu a final do campeonato goiano, naquele ano de 2012, para o Goiás Esporte Clube. Como era de costume, a diretoria campineira culpou a arbitragem e começou a acusar a Federação Goiana de Futebol de favorecer o time esmeraldino. Valério, então, abriu uma antiga ferida: disse que Adson e Sampaio estavam acostumados a “tentar comprar resultados”, como em 2007, quando teriam feito uma proposta para o time Barras, do Piauí.
Após a derrota no campeonato goiano, Maurício Sampaio anunciou que deixaria a Vice-Presidência do Atlético. Diante do anúncio, o diretor de comunicação do clube, o tenente-coronel da PM Wellington Urzêda, também colocou o cargo à disposição, em solidariedade. Quando as saídas dos dois foram abordadas pelo âncora do programa, já perto do encerramento, meu pai pediu dois minutos para comentar. Disse que Sampaio e Urzêda eram descartáveis no Atlético, e uma frase que ficaria marcada: “Em filme de aventura, quando o barco está afundando, os ratos são os primeiros a pular fora”.
Alguns dizem que, ali, foi assinada a sentença de morte. Por isso, quando a brutal execução de Valério Luiz irrompeu nos noticiários, todos sabiam muito bem qual era o contexto. André Isac conta que Felipe Furtado, então assessor de imprensa do Atlético, lhe telefonou alertando que o crime não deveria ser associado ao clube. E, na noite daquele 5 de julho, o telefone das redações dos jornais tocava com pessoas que, se identificando como policiais do outro lado da linha, tentavam plantar todo tipo de pistas falsas, como a de um suposto caso extraconjugal de Valério, que, claro, nunca existiu.
Duelo nos jornais, duelo nos tribunais
No dia 1º de fevereiro de 2013, recebo uma ligação do Euler Belém, editor-geral de um importante jornal da capital goiana: “Está sabendo das prisões no caso do seu pai?”. Eu ainda não estava sabendo. Corri para a Delegacia de Homicídios, já abarrotada pela imprensa, por advogados, delegados e agora também por nós, familiares. Falavam por alto de um açougueiro, de um homem chamado Urbano, de policiais militares. As peças do quebra-cabeça estavam se montando, mas parecia faltar uma. No dia seguinte, 2 de fevereiro, foi decretada a prisão temporária de Maurício Borges Sampaio.
A conclusão do inquérito chegara, mas somente depois de meses e meses de protestos, como quando, em 21 de julho de 2012, no Estádio Serra Dourada, os jogadores do Goiás Esporte Clube entraram em campo vestindo camisetas estampadas com a foto do meu pai e a inscrição: “Não deixem que o povo esqueça esse crime”. Faixas cobravam respostas das autoridades, e meu avô Manoel requereu empenho, pessoalmente, em diversas visitas à Secretaria de Segurança Pública. Temíamos muito que o inquérito fosse arquivado por falta de provas, se todas as providências não fossem tomadas a tempo.
Manoel de Oliveira, durante protesto em 2012: ele morreu no ano passado, sem ver justiça para seu filho | Foto: Arquivo pessoal
O medo não estivera restrito ao destino do inquérito. Naquele julho de 2012, uma carta anônima intitulada “Nada muda na PM goiana” caiu como uma bomba nas redações dos jornais, na Secretaria de Segurança e no meu coração. A denúncia abordava macabros assassinatos executados por policiais do Comando de Missões Especiais, mencionava uma olaria que supostamente servia para incinerar os corpos dos executados, e apontava o cabo Figuerêdo como autor dos disparos contra Valério, além de associar o crime às críticas do jornalista contra a diretoria do Atlético Goianiense.
Lembro vivamente de perambular, de um lado para o outro, me sentindo ridiculamente pequeno e impotente. Era esmagadora a sensação de que forças tão maiores, inclusive do próprio Estado, haviam montado uma operação de guerra para matar meu pai. Não hesitariam, pensei, em atingir a mim e ao restante da minha família. Foram meses de tensão, saindo à rua o mínimo possível. E a preocupação não se mostrou infundada, pois as investigações da Polícia Civil confirmaram o teor da carta e de fato identificaram o cabo Ademá Figuerêdo, do letal CME, como a pessoa que puxara o gatilho.
As investigações demonstraram ainda que o sargento Djalma Gomes da Silva e o cabo Ademá Figuerêdo eram seguranças de Maurício Sampaio, e que Da Silva inclusive mantinha os filhos matriculados, sem o pagamento de mensalidades, em uma escola infantil de propriedade do cartola. Urbano também era funcionário de Sampaio, uma espécie de faz-tudo, e exercia vigilância sobre a rotina de entrada e saída do alvo, Valério Luiz, a partir de uma discreta casa, ocupada sem aluguel, exatamente em frente à rádio. A casa, como tantos imóveis em Goiânia, era propriedade de Maurício.
Maurício Borges Sampaio o mandante
As quebras de sigilo telefônico mostraram um intenso fluxo de ligações entre todos os acusados no dia do crime, o que, somado ao arcabouço probatório de mais de 500 páginas de inquérito, possibilitou ao Ministério Público denunciar, em 27 de fevereiro de 2013, Urbano de Carvalho Malta, Djalma Gomes da Silva e Marcus Vinícius Pereira Xavier como articuladores do homicídio; Ademá Figuerêdo Aguiar Filho como o executor dos disparos; e Maurício Borges Sampaio como o mandante. No início de março, todos estavam presos preventivamente, e havia uma boa expectativa de justiça.
Protesto diante da sede administrativa do Governo do Estado de Goiás, em 5 de julho de 2013 | Foto: Arquivo pessoal
Acontece que Sampaio, então dono de uma poderosa emissora de rádio e um dos homens mais ricos do Brasil, tinha condições de se defender, dentro e fora dos tribunais. Começaram a pipocar artigos, de conhecidas figuras venais do jornalismo goiano, defendendo sua soltura. Artigos contra os quais pedi direito de resposta e contraditei um a um, pessoalmente. No Tribunal de Justiça de Goiás, impetravam um habeas corpus atrás do outro. A chuva de pedidos de soltura só cessou quando conseguiram liberar Sampaio através de um depoimento “novo” que, depois se verificou, era forjado.
A Polícia Civil anulou o documento e afastou temporariamente o delegado responsável pela manobra processual, Manoel Borges. Mas a soltura se manteve. E Manoel acabou reintegrado às suas funções. Quanto ao andamento da ação penal do caso Valério Luiz, com o réu apontado como mandante solto, as defesas dos demais acusados pediram a soltura de seus respectivos clientes, e foram atendidos. Ocorre que havia uma ameaça de morte de Da Silva contra Marquinhos, e este, portanto, fugiu. Não compareceu a nenhuma das audiências de instrução e nem ao seu próprio interrogatório.
Açougueiro Marcus Vinícius Pereira Xavier
Só mais de um ano depois descobri, através do Facebook, que o fugitivo estava em Portugal, na região de Caldas da Rainha. Haviam fotos de Marcus passeando com a família pela Europa, uma delas até mesmo agradecendo a Deus pela “segunda chance”. Imediatamente imprimi tudo e informei o juiz do caso, que prontamente decretou a prisão preventiva. O mandado chegou até ao Ministério das Relações Exteriores e o nome de Marcus Vinícius Pereira Xavier foi incluído na Lista Vermelha da Interpol. No fim daquele ano (2014), Marquinhos foi, enfim, capturado e extraditado.
Todas essas surreais circunstâncias, que acompanharam e ainda acompanham o processo desde o princípio, me fizeram perceber que nos seria impossível chegar a um desfecho justo enquanto Sampaio permanecesse na sua maior fonte de poder e influência: um multimilionário cartório, que herdara do pai, Waldir Sampaio, e que ocupava ilegalmente, sem concurso, desde 1988. A renda do tabelionato ainda era aumentada por uma série de decisões judiciais escusas de um juiz chamado Ari de Queiroz, graças a quem o cartorário chegou a ser intitulado, por um grande jornal, como o “czar do papel”.
Entre as decisões estava uma que permitia ao cartório, que registrava protestos, cobrar emolumentos (taxas) com base na tabela dos tabelionatos de imóveis, mais cara. A decisão mais famosa, contudo, foi a que concedeu a Maurício uma espécie de monopólio de registro de contratos de financiamento de veículos em território goiano. Se alguém quisesse financiar um veículo em Santa Teresinha de Goiás, extremo norte do Estado, deveria se dirigir ao cartório WSampaio e registrar o contrato. Intentamos, então, uma ação popular, à qual se seguiram ações civis públicas por parte do Ministério Público.
Ainda em 2013, conseguimos o afastamento de Sampaio do cartório. Em 2015, o juiz Ari de Queiroz foi aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça, justamente sob acusações de beneficiar indevidamente o ex-cartorário. Também no ano de 2015, a vitória mais esperada: embora com todos os réus já respondendo processo em liberdade, o Tribunal de Justiça de Goiás enviou, definitivamente, Sampaio e os outros quatro a júri popular pelo assassinato do jornalista Valério Luiz. Era o encerramento de uma importante etapa, mas o começo de outra que se mostrou igualmente difícil: marcar o julgamento.
O calvário até o júri
Apesar de, no que diz respeito ao cartório, termos conseguido o afastamento liminar de Sampaio logo em 2013, todos os recursos da nossa ação popular foram finalizados apenas em 2021. Com a decisão que enviou os réus a júri no caso Valério Luiz, ocorreu algo parecido. Moveram recursos ao STJ e ao STF, e optamos por aguardar seus respectivos julgamentos, para evitar qualquer chance da sessão do júri, uma vez instalada, ser suspensa por qualquer liminar de Brasília. Por meses fui a tais tribunais superiores, na condição de advogado, pedir celeridade aos ministros.
No Superior Tribunal de Justiça (STF), a irresignação dos acusados foi exemplarmente fulminada pelo ministro Felix Fischer. No fim de 2017, contudo, um dia antes do recesso judiciário, veio uma surpresa do STF: em liminar no Habeas Corpus nº 144.270, o ministro Ricardo Lewandowski anulou praticamente todo o processo, lançando uma sombra de impunidade sobre o caso. Eu já vinha bastante calejado de surpresas desagradáveis, considerando que, durante os julgamentos dos recursos dos réus em Goiás, até um conhecido padre, amigo de Sampaio, apareceu no tribunal para falar bem do réu a magistrados católicos.
Mantive a calma e contatei entidades parceiras na luta pela liberdade de expressão no país, como Artigo 19, Abraji e Instituto Vladimir Herzog. Em uma ação conjunta de comunicação, publicamos artigos em alguns dos principais jornais do país, conscientizando a comunidade jurídica sobre o desacerto da decisão e o risco que representava para os comunicadores brasileiros. Também contatei a Procuradoria-Geral da República, que recorreu da liminar. Em 1º de fevereiro de 2018, o ministro Lewandowski refluiu, restabelecendo o júri para todos os acusados.
Os percalços, no entanto, não pararam por aí. No mesmo ano de 2018, o sargento Djalma Gomes da Silva ingressou com uma petição alegando insanidade. O processo foi então suspenso para exames pela Junta Médica do Tribunal, o que levou mais de um ano. Ao fim e ao cabo, concluiu-se que o PM estava simulando doença mental. Após a conclusão do exame, nada mais impedia, juridicamente, a realização da sessão do júri. Por isso, qual não foi nossa surpresa quando o juiz encarregado, Jesseir Alcântara, alegou que o Tribunal de Goiás não tinha condições físicas para abrigar o julgamento.
Jesseir argumentou que a estrutura das salas de Júri estava precária para evento de tamanha monta, além de contar com “segurança frágil”. Reuni-me então com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás (OAB-GO), com o procurador-geral de Justiça de Goiás, e pedidos de providências foram encaminhados à Presidência do Tribunal, que chegou a reformar um dos seus auditórios. Jesseir acabou se dando por suspeito no processo, e o novo condutor, juiz Lourival Machado, marcou o júri para 23 de junho de 2020. Algumas semanas antes, contudo, explodiu a pandemia de Covid-19.
As medidas sanitárias permitiram que o júri fosse remarcado apenas para este ano, 2022, na data próxima de 14 de março. Quase dez anos após aquele sombrio 5 de julho de 2012. E mesmo com toda essa demora, digo que os obstáculos narrados não teriam sido ultrapassados sem uma forte mobilização da imprensa e da sociedade civil organizada na cobrança por respostas. Chegamos a apresentar painéis no famoso Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji e, a convite da Artigo 19, também em sessão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, nos EUA.
Até hoje realizamos, todo dia 5 de julho, um protesto por justiça nas ruas de Goiânia. Tais mobilizações não restaram, claro, sem reações. Nos anos de 2014 e 2015, tivemos de conviver com páginas e perfis anônimos no Twitter e no Facebook cujo objetivo era difamar a vítima, Valério Luiz, bem como nós, familiares. Em março de 2015, conseguimos uma decisão judicial que ordenou, aos escritórios das citadas redes sociais no Brasil, a exclusão das páginas. Com a proximidade do júri, as atenções precisam estar redobradas, tanto por um julgamento escorreito quanto por nossa segurança.
Meu pai, comentando futebol, chegou, ainda que intuitivamente, a uma conclusão acertada: o que estava acontecendo em 2012 era a tentativa de tomada da imprensa, do Judiciário e do próprio Estado goianos por um grupo de poder no centro do qual estava o cartola e cartorário Sampaio, e o Atlético Goianiense era só a ponta do inceberg, o braço da rede de influências no futebol. Não por acaso, toda essa rede precisou ser enfrentada no caminho da responsabilização dos assassinos. O “caso Valério Luiz” talvez seja a ilustração do coronelismo incrustado nas elites não só de Goiás, mas do país.
A quadrilha dos intocáveis e covardese cruéis assassinos do jornalista Valário Luiz: o milionário tabelião Maurício Sampaio, os policiais militares Ademá Figueredo Aguiar Filho e Djalma Gomes da Silva, o motorista Urbano de Carvalho Malta e o açougueiro Marcus Vinícius Pereira Xavier, o Marquinhos. Eles são réus no caso Valério Luiz, cronista assassinado em julho de 2012
Três produtores rurais do Paraná ficaram de 60 a 90 dias presos sob suspeita de desviar recursos do governo federal. Eles foram absolvidos quatro anos depois, mas programa de agricultura familiar foi esvaziado no estado
Três agricultores presos em 2013 por ordem do então juiz Sérgio Moro ajuizaram uma ação em que pedem reparação de danos à União e acusam o ex-titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba de ter cometido uma série de arbitrariedades e erros ao longo do processo. Os produtores rurais das cidades de Irati e Inácio Martins, na região central do Paraná, ficaram de 60 a 90 dias presos preventivamente e foram inocentados em 2017.
As prisões foram feitas no dia 24 de setembro de 2013, na operação Agro Fantasma, que investigou supostos desvios de recursos públicos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), parte do programa Fome Zero, lançado em 2003 pelo governo federal. Onze pessoas foram presas, entre elas um diretor regional da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). A Polícia Federal também cumpriu 37 mandados de busca e apreensão e 37 de condução coercitiva em 15 cidades do Paraná, Bauru (SP) e Três Lagoas (MS).
Moro expediu os mandados no dia 13 de agosto, apesar do entendimento do Ministério Público Federal (MPF) de que poderiam ser tomadas medidas cautelares contra os suspeitos. Os três agricultores que estão processando a União faziam parte da Associação de Agricultores Ecológicos São Francisco de Assis, com sede em Irati. A entidade vendia alimentos por meio do PAA, com distribuição simultânea para creches e entidades de cinco municípios da região.
Iate e colarinho branco
Moro ficaria nacionalmente conhecido a partir de 2014, com a operação Lava Jato, mas a lógica de tomar medidas consideradas “duras” para combater os “crimes do colarinho branco” já estava presente na operação Agro Fantasma. A sequência das investigações e o arquivamento dos oito processos decorrentes da operação que mirou em supostas irregularidades no PAA, no entanto, mostraram uma realidade bem diferente da divulgada pelos jornais da época: nesse caso não havia colarinho branco nem crime.
Roberto Carlos dos Santos tinha 46 anos quando foi preso. O produtor rural de Irati diz que os policiais federais perguntaram onde ele escondia “o iate” e “o carro do ano”. Sem ser informado dos motivos, foi levado para a carceragem da PF em Curitiba. Ficou 48 dias preso. Em entrevista ao jornalista Marcelo Auler, em agosto de 2018, Santos contou que era tratado como “bandido perigoso” e “chefe de quadrilha” na carceragem da PF.
O iate nunca apareceu, até porque Irati fica a cerca de 300 km do mar. E os valores movimentados pela associação, que contava com 125 famílias associadas em 2013, não indicam crimes de “colarinho branco”. O valor máximo era de R$ 4,5 mil por ano para pequenos produtores, na modalidade compra e doação simultânea, e de R$ 8 mil por ano na modalidade de compra direta, por meio de cooperativas e associações.
Em quatro anos, de 2009 a 2013, todas as famílias de agricultores que participaram do programa no município de Inácio Martins, por exemplo, receberam um total de R$ 78 mil, uma média de R$ 19,5 mil por ano, valor a ser dividido entre todas as famílias. Em Fernandes Pinheiro, o valor foi de R$ 80 mil em quatro anos; em Rebouças, de R$ 27 mil; em Teixeira Soares, de R$ 70 mil; e em Irati, município com o maior número de famílias, de R$ 196 mil no mesmo período. Um iateAzimut 72 S atualmente à venda no Guarujá (SP) custa R$ 10,6 milhões.
A suspeita era que os agricultores desviavam recursos federais ao não entregar os produtos. O PAA previa a compra da produção de pequenos agricultores, com dinheiro do programa Fome Zero, como forma de incentivar a produção familiar. Em contrapartida, as famílias faziam doações de alimentos para creches, escolas e outras instituições. Durante as investigações, testemunhas confirmaram que os alimentos eram entregues.
“O programa tinha regras bastante burocráticas. O que acontecia é que eles pactuavam de entregar um produto e, às vezes, entregavam outro, no mesmo valor, com base nos critérios estabelecidos pelo programa”, diz a advogada dos agricultores, Naiara Bittencourt.
Não se chegou a nenhum desvio de recursos, a nenhuma apropriação indevida. A substituição dos produtos era feita para se adequar à realidade da agricultura, os contratos eram feitos até seis meses antes e havia interferências climáticas.”
O reconhecimento de que agentes públicos agiram com parcialidade na condução da "lava jato" deve ser um ponto de partida para uma reflexão sobre o uso ilegítimo da Justiça, assim como pode servir para o aprimoramento dos órgãos de controle do Poder Judiciário.
A avaliação é do advogado Cristiano Zanin, que na última quarta-feira (2/3) obteve no Supremo Tribunal Federal a suspensão, por indícios de suspeição e incompetência de dois procuradores da República, do último processo penal que tramitava contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo Zanin, decisões como a da semana passada, além da declaração de suspeição do ex-juiz Sergio Moro, feita pelo STF no ano passado, deveriam servir de lição e podem também inspirar mudanças no controle da magistratura e do Ministério Público.
"Esse conjunto de decisões tomadas no passado mais recente deve servir como uma espécie de alerta e como lição para que a Justiça não mais seja utilizada para a obtenção de fins ilegítimos, sejam eles de natureza política, geopolítica ou comercial, tal como vimos acontecendo na 'lava jato' por meio da prática do lawfare. Nós temos de proteger a imagem da Justiça brasileira", disse Zanin.
"É possível, a partir dessa experiência muito ruim para o Estado de Direito, que possamos também aprimorar alguns mecanismos de defesa. Não estou, de forma alguma, dizendo que não deve haver o combate à criminalidade ou o combate à corrupção, e tampouco que membros do Ministério Público e da magistratura tenham de ser tolhidos em suas iniciativas", observou o advogado, durante entrevista ao canal de YouTube da Revista Fórum.
Zanin falou também sobre a liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski no processo sobre supostas irregularidades na compra de caças suecos para a Aeronáutica, na época em que Lula era presidente.
"Nós mostramos ao Supremo que esse processo estava dentro daquele contexto que a 'lava jato' havia programado para mover inúmeras ações contra o ex-presidente Lula a fim de prejudicar sua reputação e também para deixar seus advogados sem tempo para defendê-lo. Os procuradores que fizeram a ação sabiam que o ex-presidente não havia praticado qualquer ilícito", disse ele.
Zanin avaliou a atuação do ex-juiz e pré-candidato à Presidência Sergio Moro, que tem criticado o entendimento do STF em relação à "lava jato", enquanto afirma também que suas decisões contra Lula foram confirmadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
"O então juiz Sergio Moro conduziu todo o processo. Então, aquilo que chegou às instâncias superiores é um material produzido pelo próprio Moro, é um material que foi deturpado pela sua parcialidade e foi reconhecido de forma definitiva pelo Supremo Tribunal Federal".
Sobre a relação da imprensa com os protagonistas da "lava jato", o advogado considera ter lutado contra o poder da "propaganda" feita pela mídia a favor da "força-tarefa".
"A 'lava jato' se desenvolveu também graças a uma enorme propaganda que foi feita por parta da imprensa brasileira, que tomava todas as afirmações como se verdadeiras fossem, deixando de exercer o papel crítico e de fiscalização do poder", avaliou Zanin.
O deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) anunciou, nesta segunda-feira (14), no Twitter que vai requerer acesso a delações premiadas com o objetivo de "produzir provas" contra o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, após o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes decidir compartilhar com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acusações de irregularidades contra o magistrado.
"Vou requerer acesso as delações para produzir provas. Vou requerer acesso as delações para produzir provas. Vou requerer exceção da verdade para ter acesso aos inquéritos no CNJ e STJ. @wadih_damous vai ser meu advogado e aguardo a ação", disse Pimenta nas redes sociais.
Segundoinformações de Veja, publicadas nesse domingo (13), "no acervo em poder de Gilmar estão relatos de episódios presenciados por José Antonio Fichtner, delator da Lava-Jato que acusa Bretas e os procuradores da força-tarefa do Rio de 'tortura psicológica' para que acusados como ele se tornassem colaboradores da Justiça e entregassem uns aos outros".
Paulo Pimenta@DeputadoFederal escreveu: "Gilmar Mendes compartilhou com o CNJ provas de 3 delações que incriminam MARCELO BRETAS!!
Bretas tinha parceria com advogado e vendia sentenças em troca de muito dinheiro, segundo as delações. "Mais um covarde, falso paladino da moralidade que será desmascarado em breve !!!"
Em delação, advogado acusa Bretas: "é policial, promotor e juiz"
O advogado criminalista Nythalmar Dias Ferreira Filho acusa Marcelo Bretas de fazer manobras, combinações, estratégias, acordos e negociações ilegais.
Marcelo Bretas, juiz responsável pela Lava Jato no Rio de Janeiro, é policial, promotor e juiz ao mesmo tempo. Quem afirma isto é o advogado criminalista Nythalmar Dias Ferreira Filho em acordo de colaboração premiada com a PGR. As informações do acordo foram divulgadas em reportagem da revista Veja, que salienta as práticas ilegais do juiz Federal nos processos.
Em outubro do ano passado, Nythalmar Filho foi alvo de operação da PF, acusado de cooptação indevida de clientes da Lava Jato, justamente na vara em que atua Marcelo Bretas (7ª vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro). Agora, o criminalista tentará a homologação de sua colaboração premiada com a PGR.
De acordo com a reportagem, Bretas negocia penas, orienta advogados, investiga, combina estratégias com o Ministério Público, direciona acordos, pressiona investigados, manobra processos e "já tentou até influenciar eleições".
A Veja diz que a delação tem oito anexos que tratam de manobras, combinações, estratégias, acordos e negociações ilegais que teriam sido feitas pelo juiz e pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato no Rio. Leia mais in Migalhas
Juiz safado, politiqueiro, fez jejum para Lula ser preso
Bretas é um juiz político. Tão partidário quanto Sergio Moro, filiado ao partido Phodemos da família Abreu de São Paulo. Tão suspeito, quanto o procurador parcial Deltan Dallagnol, que fez jejum para o presidente Lula ser preso, e assim eleger Jair Bolsonaro presidente no golpe eleitoral de 2018.