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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

16
Dez21

Em um governo que abraçou a morte, a liberdade é para poucos

Talis Andrade

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Em discurso no Palácio do Planalto na semana passada, Jair Bolsonaro, o genocida de plantão, comparou o chamado “passaporte vacinal” a uma “coleira no povo brasileiro”, repisando uma vez mais a mentira de que as medidas de prevenção à covid-19 são autoritárias e ameaçam nossa liberdade.

E asseverou, em tom de falsa preocupação: “Cadê a nossa liberdade? Eu prefiro morrer a perder a liberdade”.

A frase foi reiterada dias depois pelo Ministro da Saúde (da saúde!), o médico (médico!) Marcelo Queiroga, que lançou mão dos versos do hino da independência – “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil” –, escrito há quase dois século e no contexto de construção do Estado nacional, para justificar a declaração presidencial.

Não foi a primeira vez. Em maio do ano passado, em reunião com Dias Toffoli, então presidente do STF, ao defender a flexibilização do isolamento social sob o pretexto de salvaguardar a saúde econômica do país, Bolsonaro afirmou a necessidade de preservar “um bem muito maior até que a própria vida (…) a nossa liberdade.”

Antes como agora, é possível ler as falas do presidente a partir de diferentes prismas: a reação de um governante incompetente e insensível, diante de uma tragédia sanitária pela qual é grandemente responsável; o quanto sua personalidade autoritária é refratária às críticas; ou ainda como um egoísta ressentido ao ver negada a satisfação imediata de seus desejos narcísicos.

Tudo isso é verdade. Mas não é suficiente, me parece, para elucidar o que está efetivamente implicado em uma fala que, disfarçada pela aparente imaturidade, expressa um vínculo que está no cerne do governo Bolsonaro, e do próprio bolsonarismo. Refiro-me ao nexo entre Bolsonaro, seu governo, e o neoliberalismo, que a gestão da pandemia escancarou tragicamente.

Uma associação cuja ressonância extrapola os limites de Brasília. Principalmente no início da pandemia, não faltaram vozes empresariais que, preocupadas com a diminuição da atividade econômica e, consequentemente, de seus lucros, não apenas minimizaram a pandemia, como as mortes que ela já começava a produzir.

Se a declaração infame do fundador e dono da rede Madero, Junior Durski, em que arriscou o prognóstico de mortes e desdenhou, com base nessa expectativa, que “não podemos parar por 5 ou 7 mil pessoas que vão morrer”, repercutiu mais intensamente, ele não estava sozinho.

Nas semanas e meses seguintes, a ele se juntaram, entre outros, Luciano Hang, da Havan; Roberto Justus; Alexandre Guerra, do Giraffas; e Abílio Diniz, ex-presidente do grupo Pão de Açúcar.

Mais recentemente, em agosto último, foi Fábio Rigo, herdeiro da marca Prato Fino, quem deu o tom do escárnio. Em suas redes sociais, atacou o SUS (“Quero mais que seja vendido”), sem o qual nossos mortos seriam em número ainda maior, e defendeu o que chamou de “lei da selva”: “Quem pode mais chora menos. Lei da selva. Tive covid e não me fez cócegas. Prefiro o covid do que essa merda de vacina”.

Também nesses casos é possível atribuir a indiferença pela vida e a truculência verbal dos empresários à sua opção ideológica e a adesão ao bolsonarismo. Mas não se trata apenas disso.

Com Bolsonaro e Queiroga, os empresários compartilham uma visão de mundo segundo a qual a vida, e mais particularmente a vida dos outros, não tem outro valor além de integrar a grande engrenagem do mercado. Que os primeiros falem em nome da liberdade e os segundos, da economia, pouco importa. Na lógica neoliberal, não há liberdade que não seja individual, e tampouco se é livre fora dos limites do mercado.

 

Neoliberalismo e autoritarismo

 

Não é de hoje que autoritarismo e neoliberalismo caminham pari passu.

Em 1927, Mises festejou o papel que o fascismo desempenhou na “contenção” do bolchevismo, cujo sêmen, fértil, ele encontrava no interior das democracias europeias do pós-guerra e seus primeiros experimentos de bem-estar social. Para Mises – que foi conselheiro econômico do governo austro-fascista de Engelbert Dollfuss –, a potência autoritária e antidemocrática do fascismo, “salvou a civilização europeia”.

Mais próximos de nós no tempo e no espaço, são amplamente conhecidas as declarações de apoio de dois dos principais herdeiros de Mises, Milton Friedman e Friedrich Hayek, a Pinochet e ao golpe de Estado que derrubou Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, instaurando uma das mais terríveis e violentas ditaduras da história recente da América Latina.

Alheio ao terror de Estado e aos milhares de chilenos assassinados pelo regime, Hayek chegou a afirmar, em entrevista de abril de 1981, que embora fosse, pessoalmente, contrário às ditaduras “como instituição de longo prazo”, uma ditadura “pode ser um sistema necessário para um período de transição. Às vezes, é necessário que um país tenha, por um tempo, uma ou outra forma de poder ditatorial”.

Conhecendo a proximidade e a simpatia dos “Chicago Boys” por “uma ou outra forma de poder ditatorial” no Cone Sul, é mais fácil contextualizar a alusão ao AI-5 feita por Paulo Guedes, em novembro de 2019. Naquela ocasião, nosso ministro da Economia recorreu à memória do Ato Institucional como uma alternativa política e de Estado, para conter a ameaça de levantes populares como os que ocorriam, principalmente, no Chile.

São mentirosos, portanto, os discursos que defendem uma espécie de continuidade natural entre democracia, liberdade e neoliberalismo. Como regime de governo, o neoliberalismo encontra terreno fértil no enfraquecimento da democracia e na produção de um imaginário onde inexistem quaisquer outras possibilidades de invenção democrática.

A desvalorização da política, da esfera pública e de propósitos coletivos, da construção do comum, substituídos pela lógica concorrencial e da guerra de todos contra todos, que está no cerne do neoliberalismo, não apenas atestam sua face antidemocrática, como assinalam suas muitas convergências com a experiência do fascismo.

E que incidem no modo como o discurso neoliberal compreende a própria noção de liberdade. Como qualquer outra coisa ou mercadoria, ela não é percebida em sua dimensão política e social, mas como aquilo que se possui e concede, ao indivíduo – junto com o Estado, uma das mais bem sucedidas ficções do Ocidente – o direito de usá-la a seu bel prazer.  

No Brasil de Bolsonaro e do bolsonarismo, particularmente, o desmonte da democracia e o cerceamento das liberdades são favorecidos pela profunda desigualdade que impõem, a milhões de pessoas, a necessidade imperiosa de lutar, cotidianamente, pela sobrevivência em um país, além de economicamente fragilizado, devastado em sua capacidade de mobilização política.

As prometidas e permanentemente anunciadas medidas de austeridade, as reformas econômicas, o desmonte da educação e dos serviços públicos, o menosprezo pelos direitos das comunidades e grupos sociais vulnerabilizados, reforçam, entre nós, a percepção de que a liberdade é, antes, um privilégio que a poucos é dado ter e exercer.

Não é casual ou gratuito, mas um projeto executado com rigor e método, a ênfase no discurso meritocrático de valorização do indivíduo e o desmantelamento das redes mais amplas de inclusão e proteção social. Frequentemente associadas, no discurso bolsonarista, à esquerda e ao fantasma do comunismo, elas são representadas como uma ameaça à “verdadeira liberdade”, basicamente, viver sem ser constrangido ou coagido, pouco importam as circunstâncias.

Como parte da ideologia neoliberal, mesmo o Estado é reduzido à sua função de polícia – e no caso brasileiro, também sua função de milícia. Seu papel não é mais o de assegurar, ainda que parcial e provisoriamente, mecanismos políticos e institucionais que minimizem as desigualdades. Mas garantir, pela força das leis ou das armas, as condições de uma liberdade que, não ultrapassando as fronteiras do indivíduo, autoriza, legitima e justifica que sempre os mesmos sejam livres.

É por isso que para Bolsonaro é preferível “morrer a perder a liberdade”. Ele sabe, como o sabe a elite neoliberal que o apoia, que não há o menor risco de que eles precisem, em algum momento, fazer essa escolha.

Enquanto milhões de brasileiras e brasileiros estão condenados a viverem sem liberdade e sob a iminência da morte, vitimados seja pela covid, a fome ou a violência policial, Bolsonaro e a elite neoliberal que o apoia, gozam o privilégio de quem gerencia os mecanismos que permitem a manutenção e reprodução de suas próprias vidas e de sua liberdade. Sustentadas, ambas, pelo sofrimento e o desaparecimento de outros tantos.

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12
Mar20

Todos os patifes do presidente

Talis Andrade

Não há mais margem de manobra, espaço para os panos quentes, as meias-palavras ou o veja-bem: ou você admite aquilo que é inegável ou faz parte do enorme viveiro de patifes que sustenta o consórcio

 

por Sandoval Matheus

Enquanto o gângster de picadeiro que convencionamos chamar de presidente da República ri, mais e mais brasileiros são atirados à masmorra da miséria. A fila de pobres-diabos suplicando o exíguo valor do Bolsa Família chega agora a 3,5 milhões de pessoas.

Na semana passada, ficamos sabendo que dos pouquíssimos benefícios concedidos em janeiro (100 mil, ao todo), apenas 3% foram destinados ao Nordeste. É nessa região, no entanto, que estão 36,8% dos pobres e extremamente pobres do país.

Um único estado do Sul Maravilha, Santa Catarina, recebeu o dobro de auxílio, 6% do total, mesmo tendo uma população oito vezes menor.

O motivo: Bolsonaro venceu espetacularmente as eleições de 2018 no Sul, mas perdeu no Nordeste.

O Bolsa Família pode ser a diferença entra a vida e a morte de uma criança por inanição. Jogar com isso é mais do que perseguição política, é psicopatia.

Não é um governo, é um consórcio de assassinos. Isso está claro há tempo suficiente. Quem ignora, endossa. Não há mais margem de manobra, espaço para os panos quentes, as meias-palavras ou o veja-bem: ou você admite aquilo que é inegável ou faz parte do enorme viveiro de patifes que sustenta o consórcio.

Cada vereador, cada deputado, cada empresário, cada madame, cada velhote apoiado em um balcão no fim de tarde vociferando contra inimigos imaginários e fechando os olhos para o óbvio – todos patifes.

O dono de uma rede de restaurantes que se autocongratula por fazer “o melhor hambúrguer do mundo”? Que divulgou um vídeo aderindo às manifestações convocadas por Bolsonaro e que estimulam um golpe de Estado? O mesmo que há alguns anos, segundo a Justiça do Trabalho, metia a mão nas gorjetas de seus garçons?

Patife.

(A propósito: as chances de “o melhor hambúrguer do mundo” ter saído de Curitiba são as mesmas de eu ganhar um galardão de astrofísica até o fim da semana.)

O prefeito higienista de uma capital fria que manda roubar cobertores de mendigos? Que ofertou uma medalha a Sergio Moro, o ministro-símbolo do bolsonarismo?

Patife.

(Mais do que um patife, Rafael Greca é o tipo que anseia por uma suposta urbanidade europeia quando na verdade não passa de um arremedo de africâner.)

O governador que ao menor aceno corre emocionado para os braços presidenciais? Um dos poucos que não assinou uma carta de repúdio no momento em que Bolsonaro aperta ainda mais o garrote do autoritarismo? Que há poucos dias nomeou um secretário ligado à Opus Dei? Aquele que, sem se dignar a dar maiores satisfações à ralé, é o único a ir com o chefe da facção à Flórida, numa viagem cujo maior propósito é render uma foto à mesa com Donald Trump?

Patife.

Democracia não exige jeans e blazer, pose de administrador jovem e antenado, discurso 4.0, um giro aleatório por Miami. Exige coragem para, numa situação-limite, mandar o cálculo político para o inferno. Exige diálogo, barganha e negociação, sim, mas também espinha. Coisa que Ratinho Jr não tem.

O que, no caso, é uma tradição familiar. Seu pai, o apresentador Ratinho, é o subserviente entrevistador preferido de Jair Bolsonaro. E encheu as burras de dinheiro para propagandear a reforma da Previdência. Na TV, tinha a exemplar cara de pau de perguntar à população: “Você acha que se a Previdência fosse ruim para o povo, eu estaria a favor?”.

Ao preço de R$ 915 mil por quatro falas breves, acho sim.

Lá fora, há uma visível escalada autoritária, promovida pela família presidencial e seu séquito de patifes. Eu gostaria de acreditar que, um dia, Jair Bolsonaro, Junior Durski, Rafael Greca, Ratinho Jr e muitos outros acabarão na famigerada lata de lixo da história. Mas não há consolo no Terceiro Mundo. No Brasil, a história não tem sequer lata de lixo. Tem uma usina de reciclagem de patifes. 

 

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