Por que o brasileiro continua um analfabeto político? Como conviver com a ameaça de uma intervenção militar? Este Correspondente tenta buscar respostas na leitura dos jornais
Por que o brasileiro continua um analfabeto político? Como conviver com a ameaça de uma intervenção militar? Este Correspondente tenta buscar respostas na leitura dos jornais
A compulsão por roubar o acompanhava desde pequeno. Como não era bom em nada que fazia precisava aparecer de alguma maneira. Mentir era uma delas. Com isso ganhava até o respeito de alguns amiguinhos. No futebol, que ele não jogava nada, queria sempre ser o juiz. Conhecia as regras e fazia uso delas como lhe conviesse. Apitava jogo na escola, na rua e no clube. Antes tentava sacar qual o time mais disposto a vencer e oferecia uma ajuda discreta para confirmar a vitória. Como o pagamento pelo serviço também era discreto a turma aceitava. Os mais fortes então nem sentiam crise de consciência. Pelas probabilidades iriam vencer mesmo, dai, era só pagar um sorvete, uma coca ou um capilé mais generoso que a vitória estava garantida.
Com isso foi fazendo sua fama. De tanto apitar acabou sacando um pouco das leis do futebol. Mas lei existe para ser transgredida e isso ele sabia fazer como ninguém. Um pênalti não marcado, um impedimento não visto, uma bola na mão salvadora era sempre motivo para discussão, mas ele era firme e data vênia, convencia a todos inclusive a quem tinha cometido a falta que não tinha sido. Esse era seu talento nato. A capacidade de convencer pessoas próximas ou não que ele era um verdadeiro paladino da justiça esportiva.
Dos campos de futebol passou para as tribunas. Se formou com um diploma meio que arranjado e sua tese de mestrado foi justamente sobre a honestidade. Dai, poucos anos depois, foi o doutorado que ele conseguiu e teve uma enorme repercussão sua tese sobre a corrupção. Nesta época os computadores já eram muito usados assim como o copia e colaem que ele se especializou. Quem percebeu fechou os olhos porque afinal, a corrupção precisava ser combatida mesmo com esse tipo de desonestidade.
E por aí foi, galgando seus degraus de areia, até chegar ao posto ambicionado de juiz de primeira instância numa pequena capital do país.
Foi o suficiente para trocar seu guarda-roupa, casar e sonhar com o futuro. Aprendeu mal e porcamente a falar inglês, fez algumas viagens à Disney e a Washington e com alguns contatos bem articulados ganhou a atenção dos gringos. Pensou bem antes de oferecer a Petrobrás aos americanos. Afinal aquele antro de corrupção merecia uma administração mais voltada para a elite branca. Retornou ao Brasil uma das vezes com a missão de acabar com a concorrente tupiniquim ao petróleo norte-americano. Ninguém acreditava nessa história, nem quando ele começou a vestir camisa e grava pretas acharam que aquele gosto duvidoso tinha posição política.
Mas era pouco. Ele precisava dar um golpe que chamasse a atenção dos brasileiros e do mundo. E foi aí que ele decidiu pautar sua vida na perseguição a um ex-presidente de um governo popular de sucesso. Nada melhor para agradar aos gringos.
Continuou fraudando processos, quebrando regras da magistratura, se comportando sem o menor pudor jurídico diante da corte. O processo foi crescendo e apoiado em escutas ilegais, vazamentos programados, acordos internacionais de dar vergonha a qualquer jurista conseguiu levar o ex-presidente para a cadeia. Sua história, que já vinha com manchas anteriores de processos bancários mal julgados, agora explodia em sucesso nacional.
Admiradores começaram a gritar seu nome, a imprensa o tratou como ídolo, venceu e recebeu prêmios, mas esqueceu de controlar sua vaidade e seu talento. Mesmo nos tempos de criança quando apitava as partidas de futebol se preocupava mais com quem estava assistindo ao jogo do que com a própria partida. Não resistiu à tentação. Conseguir tirar o ex-presidente do caminho e elegeu seu candidato ideal. Virou ministro e sua incompetência só aumentou nessa experiência de poder. Tentou mudar a imagem, virar outra pessoa, mas estava tratando com uma matilha mais numerosa e raivosa que a sua.
Caiu em desuso, esquecimento e apesar da tentativa de fugir para a pátria-mãe seus áudios imorais e criminosos vazaram como o xixi vaza de uma criança amedrontada. Foi escorrendo pelas pernas e acabou alagando tudo em volta. O juiz ladrão de uma época acabou se afogando no seu próprio líquido derramado. Os que um dia cantaram em uníssono, numa espécie de monobloco equivocado, hoje disfarçam e mudam de assunto. Mas a história não perdoa quem um dia julgou e julgou roubando.
“Você tem um conjunto de juízes que exorbitam, que comprometem a imagem do Judiciário, mas qualquer medida que se tome contra o Judiciário você corre o risco de tirar a autonomia de um poder que é fundamental”, diz Nassif.
Para entender esse dilema, Nassif entrevista o jurista Lênio Streck, advogado e professor titular dos cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos.
“Quando acabou a Lei de Imprensa, o ministro Marco Aurélio de Mello foi o único de bom senso a falar ‘olha, vai deixar tudo solto, como é que vai ser essa questão? Tem que ter jurisprudência'”, explica Nassif. “O grande desafio: você determinar os parâmetros. O Ayres Brito falava que a Constituição dava os parâmetros para você julgar, e o Marco Aurélio Mello falava ‘vai depender de cada juiz’. Havia uma esperança de que houvesse uma razoabilidade, um bom senso do juiz”.
“Não dá para generalizar. Você tem dois tipos de campanhas contra a imprensa alternativa: uma vem do lado dos Bolsonaros, jogando 500 ações em cima das pessoas e os juízes não dão ganho de causa, mas isso vai abafando as condições dos atacados”
“Um segundo tipo são as ações articuladas por juízes. Não dá para aceitar que uma mera foto colocada por engano em uma matéria reverta em condenação de R$ 30 mil, bloqueio de contas como foi feito por esse juiz”.
“Isso depõe contra o Judiciário, assim como o desembargador que chegou e colocou aquela questão do MBL, que está claramente escrito que não estou atribuindo ao MBL financiamento da Lava-Jato (…)”, afirma Nassif.
“Então, vem o juiz de primeira instância, com bom senso, dá uma sentença razoável, vai para a segunda instância e o desembargador diz que não está claro o suficiente. Então, é evidente que é articulação política (…) Mas nem todo mundo é assim”, pontua Nassif.
Nassif ressalta que as queixas contra o Judiciário são generalizadas. “Os Tribunais Eleitorais definem quem vai ser candidato ou não (…) Esses abusos estão vindo de toda ordem, são abusos de toda ordem. Mas como atuar? Para se ver a irresponsabilidade desses juízes: se o Congresso quiser, hoje, ele se junta (os políticos tem bronca dessa arbitrariedade do Judiciário) e podem votar leis que restrinjam a atuação do Judiciário. Mas é isso que vai resolver?”
Após problemas técnicos, Lênio Streck diz que “nós criamos um Judiciário, nós criamos um Ministério Público, nós criamos um imaginário muito conservador e muito, digamos assim, quase subserviente a aquilo que a grande opinião pública pode dizer das decisões judiciais”
“Por exemplo: há uma luta muito grande que a gente está travando em várias frentes. Veja a luta que a gente travou com relação à presunção da inocência e todas essas coisas”, diz Streck.
“Agora mesmo, há uma luta com relação a interpretação do Artigo 139, inciso 4, do Código de Processo Civil que diz que o juiz poderá tomar outras medidas. E os juízes começaram a sequestrar passaportes e carteiras de motorista das pessoas. Por exemplo: a grande luta agora que eu fiz o parecer, e que está com a OAB (…) é com relação a essa questão da liberdade de imprensa. Há vários modos de você garantir a liberdade de imprensa e há vários modos de você sufocar a liberdade – uma das coisas é apertar o bolso”
“Quando você tem um fluxo de alimentação de uma empresa, que é o mínimo que essa empresa precisa para tocar a sua cotidianidade, e você asfixia entrando no núcleo disso, a consequência é que você não pode mais trabalhar”, diz o jurista
“É uma coisa que parece meio óbvia (…) O Darcy Ribeiro dizia assim: ‘Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que nós ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvendar e desvelar as obviedades do óbvio (…)”
“Tem coisas óbvias com relação, por exemplo, o que fez o Supremo ao dar aquela famosa ADPF – ainda essa semana eu falava com o ministro Ayres Brito por telefone (…) Falávamos sobre o que levou o Supremo a dizer ‘olha, todo esse entulho tem que tirar, não dá pra fazer jornalismo se você tem tudo isso”, diz Streck
“Passa tanto tempo, nós devíamos ter aperfeiçoado a liberdade de imprensa. E aí você (Nassif) e a gente vê por aí, a gente vê o contrário (…) Quando se fez o Código de Processos – e eu ajudei a fazê-lo -, eu não pensei que um Código pudesse ser usado. Por isso o parecer que fiz, e que está na OAB, é exatamente no caminho contrário”, diz Lênio Streck
“(O parecer é) para a gente adaptar com a Constituição essas peculariedades do sufocamento das pequenas empresas alternativas de comunicação, que acabam sendo sufocadas por processos. A grande mídia não tem esse problema”, diz Streck
Nassif explica que Streck preparou um parecer sobre o sufocamento financeiro que a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) vai encaminhar ao Supremo – esse parecer foi aprovado pelo Conselho de Constituição e Justiça na OAB e já foi despachado – “nós próximos dias, vamos entrar no Supremo com esse parecer”, afirma Nassif.
Streck lembra que quatro ministros do STF não entrarão em recesso. “Se a OAB entrar com pedido e com liminar, tem a chance de não somente cair com o ministro Fux, que é o presidente, mas também a outros quatro ministros que decidiram não fazer recesso”
“Há pouco, o ministro Alexandre de Moraes recebeu o habeas corpus sobre a lei do juiz de garantias (…) Ele recebeu e pediu informações ao presidente Fux, porque o pedido é que se destranque essa questão do juiz de garantias”
“Nesse caso específico em que trabalhei, o dispositivo do Código de Processo que permite, em tese, entrar nas contas, ele deve ser lido de acordo com a Constituição e deve, neste ponto, ser declarado inconstitucional porque ele fere a liberdade de imprensa. Não é muito complexo”, diz Streck. “Agora, a questão é: alguém tem que dizer (…) O sistema brasileiro desde 1891 permite que o próprio juiz faça isso. Não precisa esperar o Supremo”, diz Streck
“Não se precisaria buscar no Supremo Tribunal, por uma ADPF (…) esse caso da liberdade de imprensa e o sufocamento econômico, para ser bem simples”, afirma o jurista, ressaltando que o próprio juiz poderia, no controle difuso, ir dizendo. “Ele tem esse poder”
“O sujeito em Santa Cruz do Sul, tem um pequeno blog e tem um problema com a justiça, e ele é processado. Se entrarem nas contas diretas dele e sufocarem ele, ele tem que fechar seu blog”, explica Lênio. “Deveria ter uma ampla solidariedade dos meios de comunicação, inclusive os grandes, pois nunca se sabe o dia em que um grande vai ter problemas”, diz o jurista.
“Nas democracias, a decisão tem que ser dada segundo a lei, a Constituição, e não sobre as convicções pessoais – essa é uma velha luta minha”, diz Lênio. “O grande problema não é a lei. O grande problema é quem aplica a lei e como aplica a lei. E isso não é um privilégio brasileiro, esse é um problema das democracias”, afirma o jurista.
“Na Alemanha também ocorre ativismo judicial, mas isso não é um problema para eles, porque a democracia é forte. Aqui, a fragilidade da própria democracia, em que todo tempo a gente tem que ficar preocupados, pois afinal de contas ‘o que vai acontecer? Qual será a próxima frase do presidente?’ Então, tudo isso aqui repercute de uma forma diferente aqui”, afirma o jurista.
“No Brasil nós deveríamos ter uma aplicação mais ortodoxa da Constituição, e não flexibilizá-la. E as flexibilizações que ocorrem acabam enfraquecendo a própria percepção que as pessoas tem sobre o sistema”, explica Streck. “Um dos grandes problemas do direito no Brasil é a ausência de controle nas decisões, e pouca accountability”, afirma Lênio. “Então, significa que nós estamos atrasados porque nós não temos uma criteriologia para decidir”
“Se você (Nassif) faz uma crítica à imprensa, é porque você está falando da imprensa como instituição (…) Nós só vamos avançar se tivermos essas possibilidades críticas, e aí entra o papel das liberdades”, afirma Lênio.
“Quando começou esse negócio do direito se impor como a grande linguagem, depois do economês – a economia é minha área de cobertura”, diz Nassif. “É tanto engodo até hoje achar que a economia vai resolver isso ou aquilo. A economia é um meio. E isso foi substituído pelo direito, quando vem Barroso e outros falando ‘ah, acabando com a corrupção tudo melhora’. Daí você abre espaço para formas novas de corrupção, que é a exploração da anticorrupção”
“Então, digamos, esse tipo de manipulação da linguagem, de considerar o juiz como absoluto, precisamos daquelas vozes racionais”
Sobre os dados da covid-19 no Brasil, foram registrados 25.019 novos casos e 527 novos óbitos. A média diária semanal chega a 48.068 novos casos (alta de 11% ante sete dias) e 779 novos óbitos, 20,8% acima.
Na análise por estados, sete estados apresentam crescimento intenso, cinco tem alto crescimento, nove estados mostram patamar estável e seis estados registram queda na variação da média de casos.
Na média de óbitos, 12 estados mostram alto crescimento, três estados apresentam crescimento moderado, 10 estados estão em patamar estável e dois estados mostram queda drástica.
Nassif faz um comparativo da operação Lava-Jato com filmes de suspense. “Você tem o golpe de mestre, calcula tudo. A Lava-Jato, lá trás, calculou um grupo homogêneo de procuradores, junto com Moro e a PF, atuando as três organizações para pegar os alvos”
“Aí, você monta no Tribunal Regional Federal da 4ª Região aquele grupo daqueles três desembargadores (…) Você vai para o STJ: a relatoria de um caso ia cair com um ministro que foi indicado pela Dilma (…) Ele perde uma votação, e tiram a relatoria dele”
“Tem uma regra que vale para o Supremo e vale para o STJ: o sujeito perde um habeas corpus. Quem assume a relatoria? Quem estava no grupo vencedor, e depois volta a relatoria total. No STJ mudaram a regra: o sujeito perdeu uma votação, tiraram dele (…)”
“Quando chega no Supremo Tribunal Federal, o que fizeram em relação ao Teori (Zavascki) para colocar o Fachin…O Fachin estava em outra turma, o transferiram para a Segunda Turma que votava, tinha critérios de antiguidade, ficou ele e ninguém reclamou”
“Muitos dos ministros ficaram até aliviados, porque são ministros que tem critérios, que tem preocupação com a imagem, e se fosse contra aquela onda seriam atropelados. Está tudo redondinho”
“E o que acontece? Que coisa extraordinária, de filme de Hitchcock: em Ribeirão Preto, o hacker de Araraquara, aluno de direito com hiperatividade (…) Daí um promotor invoca com ele e ele acha que está, pela quantidade de remédios, que ele está traficando. Fazem busca e apreensão e levam ele preso”
“Daí, ele consegue provar que aquilo era remédio que ele tomava, farmacêutico comprovou, o médico comprovou. E ele perdeu o amigo e perdeu a namorada – e ela falava assim ‘o Ministério Público não mente’, que era aquela imagem antes da Lava-Jato acabar com o Ministério Público. E ele ficou com aquilo na cabeça”
“Hacker, ele consegue entrar nos celulares da família Bolsonaro, em outros celulares, e fica que nem esses filmes de BBB (…) E vai até a Lava-Jato para poder pegar as sacanagens dos investigados da Lava-Jato”
“Chega lá, e ele se depara com aquelas maluquices, com aquelas conversas, aquelas armações em cima do Lula. E o que acontece com ele? Ele se identifica com o Lula, ele nem deveria ter tendência política antes”
“Ele se identifica com o Lula: assim como ele foi injustiçado por um promotor, o Lula tá sendo injustiçado por um grupo de procuradores. Assim como a namorada dele falou que o Ministério Público não mente, ele tá vendo ali o Ministério Público mentir”
“Daí ele vai juntando tudo aquilo, vê toda a armação (…) A circunstância desse aluno de direito foi fundamental, senão ele não ia entender todas aquelas manobras. Ou seja: os céus conspiraram”
“E daí, quando ele entrava nos telefones dos Bolsonaro, quando eles tinham que conversar eles iam para uma sala reservada que ele não conseguia entrar. Então ele não pegou nada”
“Quando vai até o Dallagnol, como o Dallagnol é um ungido de Deus, ele achava que tudo que estava em nuvem estava protegido por Deus e pelos anjos. E ele levou dois dias para baixar tudo”
“No momento seguinte, ele tem que procurar alguém pra passar, e ele procura a Manuela D’Ávila – se procurasse outro não dava certo (…) A Manuela percebe que o único caminho seria o Glenn (Greenwald) (…)”
“E o Glenn tinha conhecimento suficiente em saber como guardar os arquivos, impedir que houvesse boicote, que a Polícia Federal descobrisse os arquivos”
“E ele já tinha a estratégia que ele montou antes com o Glenn, que era procurar os grupos de mídia e oferecer parceria. O que a Lava-Jato fazia”“E tudo isso resultou, digamos, no desmonte, na destruição completa da ‘maior operação’, na destruição de imagem, e depois o resto vem atrás, da maior operação anticorrupção da história”
Criou-se uma atmosfera em tudo semelhante à dos anos 70, quando muitos profissionais, marcados pela ditadura, eram obrigados a mergulhar, a buscar trabalhos de forma clandestina, para não serem esmagados pelas restrições impostas pela ditadura.
A atuação do Judiciário, em relação às ações contra sites e jornais, está extrapolando qualquer limite de razoabilidade.
A falta de jurisprudência, de consenso, de regras mínimas de atuação está transformando o Judiciário na maior ameaça à liberdade de expressão desde os anos de chumbo da ditadura militar. O protagonismo político da Justiça espalhou-se por todos os poros da corporação. Não há mais limites para a atuação de juizes militantes, fazendo do seu poder uma arma politica, não apenas para inviabilizar a liberdade de expressão, mas para a própria destruição dos “inimigos”.
Criou-se uma atmosfera em tudo semelhante à dos anos 70, quando muitos profissionais, marcados pela ditadura, eram obrigados a mergulhar, a buscar trabalhos de forma clandestina, para não serem esmagados pelas restrições impostas pela ditadura.
Narro a minha situação, que deve ser igual a de outros jornalistas que não possuem o respaldo de empresas jornalísticas, alvos de uma ofensiva que, se não for contida, inevitavelmente atingirá também os grupos jornalísticos.
Estou juridicamente marcado para morrer por críticas que faço ao Judiciário, cumprindo minha função de jornalista.
Caso Luiz Zveiter
O desembargador Luiz Zveiter, com inúmeros inquéritos correndo contra ele no Conselho Nacional de Justiça, entra com uma ação contra mim e o GGN. O juiz fluminense, de 1a instância, estipulou condenação de R$ 100 mil, obrigatoriedade de pagar imediatamente, sob pena de mandar o meu nome para o Serviço de Proteção ao Crédito, e proibição de voltar a criticar Zveiter.
Caso Eduardo Cunha
No último dia 16 minha conta corrente sofreu um bloqueio inusitado, por ordem de um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Confiscaram o pouco que havia e impuseram um bloqueio de R$ 50 mil sobre o saldo devedor, de tal maneira que nos próximos dias, quando cair na conta minha única fonte de renda – proventos de aposentadoria – será completamente sugada por este bloqueio. Não apenas isso. Estão sujeitas ao bloqueio todas as fontes de receita do Jornal GGN, assinaturas, publicidade, em sistemas de pagamento, sem nenhum limite: confiscar tudo o que encontrar pela frente.
A sentença do Tribunal de Justiça do Rio reverteu decisão de 1a instância e me condenou por difamar… Eduardo Cunha, “equiparando-o a sonegadores”. Cunha está condenado por crimes muito mais graves do que a sonegação. Consumado o confisco, ficarei sem recursos para bancar faculdade de filhas, planos de saúde, pensão a ex. E, concretizado o bloqueio sobre o GGN, não haverá recursos para salários e sequer para manutenção de servidores de Internet.
Tempos atrás, Joyce Hasselman foi absolvida por ter chamado Lula de “ladrão” e “corrupto” em vídeos assistidos, em geral, por mais de um milhão de pessoas. De acordo com o juiz, “a evidente gravidade dos dizeres dirigidos ao Querelante mostra-se, no entanto, francamente proporcional à extrema gravidade dos fatos notórios, que ao tempo publicação no blog já eram de amplo conhecimento público”. “Diante dos fortes indícios de existência de corrupção no governo federal, em proporções nunca antes vistas, não seria possível esperar uma reação por parte da opinião pública (e consequentemente, também da imprensa) que não fosse de absoluta reprovação e revolta.”
O desembargador em questão já pensou diferente, como no processo de Ricardo Teixeira contra Juca Kfoury.
“Na espécie, repito, o réu apenas informou aos seus leitores a notícia veiculada pelo jornal suíço, sem fazer acusação ou denegrir a honra e dignidade do autor.
É certo que a matéria é crítica e demonstra, um tanto, a insatisfação, à época e ainda evidente, da sociedade civil com os escândalos que insistem em assombrar nosso esporte, especificamente o futebol masculino nacional.
Contudo, diversas notícias envolvendo o autor, então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), foram publicadas por outros veículos da imprensa, algumas com fortes denúncias sobre sua conduta à frente da referida instituição, não havendo, nos presentes autos, qualquer informação acerca de eventuais medidas porventura tomadas pelo autor.
Nesta senda, em que pesem os eventuais danos de ordem moral sofridos pelo autor, não restou comprovada a conduta ilícita imputada ao réu, já que estamos diante, em verdade, do regular exercício do direito de informar, expressão da própria liberdade de imprensa, sem a qual o Estado Democrático de Direito sobreviveria.
A conclusão a que se chega é a de que a matéria reproduzida pelo réu não alcançou dimensão suficiente para denegrir a honra do autor, mormente quando comparada a um sem número de reportagens já veiculadas sobre a gestão do autor quando respondia pela aludida entidade”.
Uma mera fotomontagem, incluindo por engano foto de homônimo, resultou em uma condenação em tempo recorde pelo juiz de 1a instância, confirmada por um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O juiz decretou bloqueio de R$ 30 mil em uma conta conjunta que tenho com esposa. Ela entrou com uma medida para desbloquear sua parte e o juiz limitou-se a decidir não decidindo – manteve o processo parado e a conta bloqueada. Decretou outros bloqueios em contas pessoais, contas de assinaturas do GGN.
Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu de R$ 60 mil para R$ 20 mil a condenação da TV Record, por ter veiculado reportagens – em um dos maiores canais abertos – acusando falsamente um homem de crimes de sequestro e estupro coletivo. A alegação foi a de que os males causados à sua imagem não foram tão relevantes.
No meu caso, não foi necessário que o reclamante apresentasse qualquer evidência de que uma mera foto, em uma fotomontagem, em uma reportagem que sequer mencionava seu nome, tivesse acarretando consequências profissionais ou pessoais para ele.
Tempos atrás, Joyce Hasselman fez um ataque torpe a uma filha minha, para seus mais de um milhão de seguidores, confundindo-a com uma homônima. Sua condenação foi de metade do valor da que recebi por ter publicado uma foto incorreta em uma mera fotomontagem.
Caso João Dória Jr
O governador João Dória Jr entrou com uma ação contra o GGN, devido a artigo publicado por um colaborador. Pediu R$ 50 mil de indenização. O juiz aumentou de ofício para R$ 100 mil, alegando que o escritório do GGN fica em bairro nobre e isso justificaria as condições da empresa para pagar indenização maior. O escritório fica no endereço residencial de uma sócia, em um bairro de classe média.
O caso MBL
O MBL entra com uma ação me acusando de ter dito que ele recebeu dinheiro da Lava Jato. O texto apenas mencionava a eficácia do grupo – de ter conseguido eleger bancadas com R$ 5 milhões de financiamento – para comprovar o potencial político dos R$ 2,5 bilhões da Fundação pretendida pela Lava Jato de Curitiba para gerenciar as multas da Petrobras. Não havia nenhuma afirmação de que os R$ 5 milhões do MBL seriam provenientes da Lava Jato. O texto era claro. O juiz de 1a instância rejeitou a ação. O desembargador me condenou a R$ 10 mil alegando que o texto não era claro.
Simples assim: bastou achar que não era claro (e era) para avançar sobre mais R$ 10 mil, com total desconsideração pelo trabalho alheio.
O cerco
O cerco imposto está me expulsando do exercício do jornalismo. Pouco importa se tenho 50 anos de carreira, inúmeras premiações, um trabalho reconhecido na área de economia e na defesa dos direitos.
Assim como os malditos pela ditadura, continuando essa escalada terei que arrumar outra ocupação, manter-me no anonimato para que novos proventos não sejam confiscados, já que até a aposentadoria recebida está sob ameaça de confisco, e possa manter o apoio à minha família e recursos para meu sustento.
Não se culpe o Judiciário como um todo. Há juízes profissionais, que cumprem com rigor a nobre função de julgar. Mas o poder perdeu o controle sobre o ativismo de juízes e desembargadores partidarizados, especialmente depois que o Supremo Tribunal Federal acabou com a Lei de Imprensa, não colocando nada no lugar e que Ministros, como Luis Roberto Barroso, passaram a estimular o protagonismo dos juízes.
Não há mais limites para condenações, sequer obediência a princípios básicos de razoabilidade.
Se não houver um movimento nacional de conscientização, envolvendo a parte saudável do Judiciário, dos Tribunais, a OAB, ABI, órgãos representativos da mídia, se não cair a ficha dos grupos de mídia sobre essa escalada contra a liberdade de expressão, se não cair a ficha de Barroso sobre o monstro que criou, se não cair a ficha do próprio Judiciário sobre as ameaças desse tipo de atuação à sua própria imagem, a ditadura poderá se tornar irreversível.
Certamente num delírio narcísico, se entregou à volúpia de achar que tinha o Brasil a seus pés. Pediu até demissão do cargo de juiz. Achou que seria presidente da República num estalar de dedos.
Aceitou ser ministro de Bolsonaro como cereja do governo. Não entendeu que no governo não cabia dois candidatos à presidência da República. Acabou se demitindo, numa cena humilhante.
Com a demissão, tentou fazer de Bolsonaro guindaste para alçar sua candidatura, mas a imprensa do poder econômico, que usou e abusou dele e da Lava-jato para tentar destruir o PT e o ex-presidente Lula, deixou-o no relento, como um cão depois da caça, abandonado pelos caçadores.
Descartado, Moro vai morar nos Estados Unidos exatamente no momento em que processos contra o ex-presidente Lula estão sendo arquivados por falta de provas.
Não só isso, a ação de suspeição contra ele, quando juiz da Lava-jato, deve ir para as mãos do futuro ministro do STF, Kassio Nunes, que se diz garantista. Bolsonaro, que é um pote até aqui de mágoas, causa dúvidas e calafrios em Moro, sobre o que espera por ele no STF. Isso pode ter feito com que ele apressasse a arrumação das malas para sair do país.
Deltran Dallagnoll também saiu de fininho, alegando problemas familiares. Mas não é apenas por esse motivo. Ele desapareceu da mídia porque o serviço que era para ele e outros capatazes da Lava-jato fazerem para a Casa Grande acabou.
Os processos forjados, Power Point exposto numa coletiva à imprensa, acusando o PT de ser uma organização criminosa e o ex-presidente Lula “chefe da organização”, com base em “convicções” pessoais, como ele disse, a prisão do ex-presidente Lula e o impedimento dele ser candidato à presidência da República, foi o ápice da tarefa dos integrantes da Lava-jato. Queiram ou não, esses episódios já estão afixados na parede da história do Brasil.
Os processos contra Dallagnoll se avolumam e ele pode sofrer um revés, por formular denúncias contra inocentes, sem provas, e imputar crimes com base em “convicções” pessoais.
Os processos, antes no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, que mais parece um departamento de defesa corporativa dos procuradores, estão sendo abertos em instâncias do judiciário.
O procurador Carlos Fernando, o fanfarrão, que acusou o PT de querer acabar com a Lava-jato e viu Bolsonaro dizer, com toda pompa, que ele acabou com a Lava-jato, também sumiu, se aposentou, não é mais nada na vida pública.
Enfim, todos sofrem agora do mesmo infortúnio: o descarte, o caminho para o ostracismo. O poder econômico é cruel. Usa descarta e segue em frente cuidando dos negócios das suas corporações nacionais e transnacionais.
CINCO SUÍTES, LAREIRA, três banheiras de hidromassagem, escadaria em mármore, espaço gourmet, churrasqueira, pomar, jardim, garagem para quatro carros, sauna, um campo de futebol próprio e até uma piscina aquecida que avança pela sala. [Cotação de setembro de 2018] Por R$ 5,8 milhões é possível comprar a humilde casa de campo em que os juízes federais Marcelo e Simone Bretas fogem do atarefado dia a dia que envolve, entre outras coisas, os julgamentos dos casos da Lava Jato no Rio de Janeiro.
Em abril [ de 2018], a revista Piauí somou em R$ 6,4 milhões o valor dos imóveis do casal. O patrimônio dos juízes – que entraram na Justiça para garantir o auxílio-moradia, penduricalho que permite que magistrados embolsem até R$ 4.377,73 caso não tenham um imóvel do Judiciário a seu dispor na cidade onde vivem –, no entanto, é ainda maior. Quase o dobro, de acordo com escrituras obtidas pelo Intercept.
Em junho, os Bretas colocaram a mansão à venda. Localizada em Itaipava, a 80 km do Rio de Janeiro, o imóvel de 600 m² faz parte de um condomínio de luxo, onde o casal divide áreas de convívio com vizinhos como o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto da Costa, um dos delatores condenados na Lava Jato. Bretas e Costa são vizinhos, separados por um bosque.
Os Bretas também aceitam alugar a casa pelo valor de R$ 10 mil mensais, pouco a mais do que os R$ 8.755 que os dois juízes ganham juntos por mês a título de “auxílio-moradia”.
Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça proíbe o pagamento do bônus a dois juízes que morem sob o mesmo teto. Mas, por uma falha do Judiciário, o casal tinha o benefício. Marcelo Bretas ganhou o direito ao penduricalho graças a uma decisão em 1ª instância da Justiça Federal do Rio, em 2015. No começo do ano, a Advocacia-Geral da União solicitou à segunda instância, o TRF-2, que reavalie a decisão – o órgão não havia recorrido até então.
O salário de Marcelo Bretas, que já condenou o ex-governador Sérgio Cabral a mais de 100 anos de prisão e faz questão de adicionar lições de moral em suas sentenças contra corruptos, é de R$ 43.910,62 mensais; o de Simone, R$ 44.555,62, ambos já com o auxílio somado. Se o reajuste de 16,38% para o salário dos magistrados for aprovado, os dois devem passar a receber ainda outros R$ 7 mil a mais cada um.
O auxílio-moradia aos juízes existe formalmente desde 2000. Foi a forma encontrada pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso para encerrar uma greve da categoria. Não é necessário comprovar seu uso no pagamento de aluguel. Ou seja, os valores podem ser utilizados como os juízes quiserem.
Cerca de 17 mil juízes recebem auxílio-moradia – entre janeiro e agosto, o pagamento já custou quase R$ 1 bilhão aos cofres públicos. Mas, mesmo para magistrados que tenham residência própria na cidade onde trabalham – caso dos Bretas, que vivem num apartamento com quatro suítes e vista para o Pão de Açúcar no bairro do Flamengo, na zona sul do Rio –, essa “ajuda de custos” não é ilegal.
Uma ação que pode derrubar o auxílio está parada no STF desde março. Na quarta-feira passada, o presidente Michel Temer acenou com a possibilidade de cortar o bônus em troca do aumento de R$ 8 bilhões nos contracheques de ministros do STF (e, em cascata, nos de todos os juízes) proposto pelo próprio Judiciário.
Em 2014, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux concedeu liminares a entidades representativas dos juízes liberando o pagamento a toda a magistratura. Entre os argumentos de Fux estava o de que tribunais nos estados já concediam o benefício por conta própria. Com isso, segundo ele, criou-se uma “odiosa” diferenciação entre os magistrados que recebiam e os que não recebiam o favorecimento.
Ao ser questionado sobre o auxílio-moradia por um deputado, Bretas respondeu aos seus quase 60 mil seguidores no Twitter que tinha apenas ido atrás de um “direito”.
“Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu VOU À JUSTIÇA e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto, ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito”, escreveu o juiz no dia 29 de janeiro.
Três dias antes, ele questionou o porquê de apenas o auxílio-moradia dos juízes federais ser debatido.
As duas mensagens já foram apagadas. Através da assessoria de imprensa da Justiça Federal, os Bretas informaram que não iriam se manifestar sobre a mansão na serra.
O condomínio
Após se tornarem juízes federais, Marcelo (1997) e Simone (1998), compraram um terreno de 3.600 m² em 2000. A construção da casa, registrada em cartório, foi finalizada em 2006 no Condomínio Quinta do Lago, considerado um dos melhores da região, com uma taxa de administração que ultrapassa os R$ 2 mil mensais.
Trecho da certidão de compra do terreno em que os Bretas construíram a casa, no Condomínio Quinta do Lago.
Há ainda uma casa para o caseiro, que recebe R$ 1.200 por mês, e a opção de manter sempre por perto uma cozinheira, também por R$ 1.200.
As ruas do condomínio, em plena serra fluminense, são margeadas por um córrego de águas cristalinas e mansões de, no mínimo, R$ 3 milhões – por regulamento, as casas no local precisam ter ao menos quatro suítes. Além de espaços coletivos como piscina, quadra de esportes e academia coletiva, os residentes do Quinta do Lago têm direito ainda a um cinema privado e até a um haras. São 3,7 milhões de m² de área verde, o equivalente ao tamanho do bairro de Copacabana.
Vizinho dos Bretas, Paulo Roberto da Costa comprou um terreno de 4.630 m² no local em 2005, por R$ 200 mil. Em 2012, anexou a área ao lado, já com uma casa de 419 m², por R$ 450 mil.
A casa hoje é o local onde o ex-executivo da Petrobras cumpre sua prisão domiciliar desde que foi condenado na Lava Jato pelo juiz Sérgio Moro. O imóvel está entre seus bens bloqueados pela Justiça. Além de pagar uma multa de R$ 5 milhões, ele também precisa devolver à Justiça os 25,8 milhões de dólares que mantinha em contas bancárias na Suíça e nas Ilhas Cayman.
Um morador ouvido pelo Intercept comentou o endereço do morador presidiário aos sussurros, como quem revela uma doença. Mas se orgulhou em dizer que o condomínio tem “muita gente de bem, como empresários poderosos e o ministro Barroso”.
Em 2000, Barroso e a esposa adquiriram um terreno de 9.300 m² por R$ 230 mil. De lá para cá, construíram uma casa de oito quartos e 870 m², hoje também à venda por R$ 8,6 milhões.
Juízes não querem transparência
A luxuosa casa dos Bretas vai ao encontro de uma das mais marcantes características do judiciário brasileiro: o acúmulo de riqueza, que agora a classe quer tentar esconder.
Desde 2012, os salários dos magistrados são divulgados na página do Conselho Nacional de Justiça. A Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo entrou com um pedido no STF para que os magistrados do TRF-2 não sejam obrigados a divulgar seus vencimentos.
A associação, da qual Bretas faz parte, questiona a relevância do acesso público a informações e argumenta que sua publicação apenas compromete a privacidade e a intimidade da classe.
Casualmente, o caso ficou a cargo do vizinho do juiz, Barroso, que rejeitou a ação na semana passada. “É o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio do estado republicano”, afirmou o juiz ao declarar a legalidade da determinação do CNJ. [Data da publicação: 5 de setembro de 2018]
Paula Adamo Idoeta entrevista Frederico de Almeida
BBC News Brasil - Para além do episódio que vimos em Santos, essa dinâmica é perniciosa?
Almeida -É uma coisa histórica, muito pouco regulada. O Judiciário sempre foi muito resistente a controles externos. Ele sempre esteve muito sob ameaça, principalmente no período da ditadura militar, de ser tutelado pelo Executivo.
Quando vem a Constituição de 1988 e ele conquista autonomia inclusive administrativa e financeira, e pode decidir sobre salários, penduricalhos e demais questões materiais, ele acaba virando um Poder mais poderoso ainda, e muito baseado nessa lógica corporativa.
E todos os esforços, desde a redemocratização do país, de tentar restabelecer um controle externo social e democrático sobre o Judiciário sofreram muita resistência.
A primeira ideia de reforma que não foi aprovada, lá nos anos 1990, era de um controle realmente externo, com membros externo
Hoje, o controle externo, (...) que é o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), criado com a reforma de 2004, é o que na ciência política a gente chama de órgão de governo judicial, não órgão de controle externo. É basicamente um conselho nacional, formado predominantemente por membros da própria magistratura, de tribunais diferentes, (...) sob a presidência da Presidência do Supremo (Tribunal Federal). Então não é um controle externo, é interno.
O que de certa forma me surpreendeu nesse caso (de Eduardo Siqueira) foi a resposta muito rápida do Tribunal de Justiça de São Paulo, que costuma ser muito corporativo. (...) Não legitimou a posição do desembargador Siqueira, mas mesmo assim o CNJ chamou para si o caso, que poderia ficar na competência da corregedoria local.
É muito pouco para a gente festejar uma mudança de cultura, mas é uma sinalização importante quando um tribunal fala 'não dá'. (...) Ainda tem muito trabalho para fazer — trabalhos formais de controle disciplinar e uma coisa mais de longo prazo, que é uma mudança de cultura, de concepção do Judiciário, sobre seu papel, e se pensar como um funcionário público, (igual a) um professor, um médico de Unidade Básica de Saúde, um policial. Porque eles são isso.
BBC News Brasil - Recentemente fizemos duas reportagens que falavam sobre iniciativas que tentavam mudar essa cultura. Uma era sobre membros do Poder Judiciário que pediam para não serem chamados de doutores. Outra, sobre um projeto da Escola Judicial do TRT-RJ em que juízes faziam, durante um dia, funções ditas "subalternas", como de limpeza, para que não se distanciassem da população cujos casos iriam julgar. São indicativos de mudança ou são iniciativas muito pontuais?
Almeida - Iniciativas assim existem há muito tempo. (...) O próprio juizado especial, antes juizado de pequenas causas, foi uma iniciativa de juízes, com essa ideia de 'temos de nos aproximar do cidadão comum'.
Quais os problemas disso: primeiro, essa boa vontade pode se perder nesses aspectos culturais. Eu fiz uma pesquisa sobre uma dessas iniciativas que existiam em São Paulo, e havia de fato um juiz que ia vestido de camisa conversar com as pessoas, mas tinha um juiz que fazia questão, lá no Jardim São Luís (região vulnerável no extremo sul paulistano), de vestir a toga, porque ele falava que isso era importante em uma comunidade que não tinha familiaridade com a presença do Estado, para que percebessem que ele era o Estado. A ideia era colocá-lo próximo do povo, e ele se veste de toga para mostrar que ele é o Estado perto do povo.
Mudanças (visando a aproximação com a população) têm sido cada vez mais comuns, o Judiciário tem premiado iniciativas dessas, mas elas acabam sendo meio ambíguas: não se tornam reformas estruturais e acabam servindo de bons exemplos de uma mudança que está acontecendo, mas que na verdade não é estrutural — é pontual.
E muitas vezes, por ser algo informal e por não mudar a forma de funcionamento do Judiciário, acabam indo para essas iniciativas os chamados 'vocacionados'. Ou elas viram um castigo: 'tem que ir lá varrer o chão por um dia', sem que o cara (juiz) mude a concepção dele.
São movimentos ambíguos e insuficientes para a gente pensar realmente em uma mudança de postura. (Continua)