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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

17
Set22

Suicídio pode estar ligado à questão socioeconômica e à identidade de gênero

Talis Andrade

OAB Pernambuco se engaja na campanha Setembro Amarelo - OAB-PE

 

A constatação é de um estudo da psicóloga Vera Paiva e revela que o suicídio nem sempre é motivado por doenças mentais e que pode estar atrelado a motivos sociais

 
 
Texto Jornal  USP
 

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Neste mês comemora-se o Setembro Amarelo, uma campanha de conscientização da população acerca do suicídio, criada em 2014 pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens entre 15 a 29 anos e 77% deles ocorre em países pobres.

O artigo Prevalência e determinantes sociais da ideação suicida entre estudantes brasileiros em escolas públicas do ensino médio busca sanar uma lacuna nas estatísticas de suicídio entre jovens brasileiros. Comumente associado a doenças mentais, o suicídio pode estar atrelado a motivos sociais, “à desigualdade econômica, um crescimento de desemprego, da flexibilidade de emprego, a falta e a destruição das políticas de proteção social”, como explica a professora do Instituto de Psicologia da USP e um dos autores do estudo, Vera Paiva. Ela também ressalta que esse problema “tem sido associado com desigualdade de gênero”. 

O estudo revela que a taxa de suicídio é maior entre meninos e que está diretamente ligada a fatores socioeconômicos, de bem-estar social e pertencimento, como a renda baixa, bullying e até ao estudo no período noturno. Ainda assim, jovens que estão diretamente expostos à LGBT+ fobia e que se assumem parte da comunidade LGBTQIA+ são o grupo mais afetado.

Mesmo que o número de suicídios não tenha aumentado consideravelmente na pandemia, o que aconteceu foi uma mudança nos grupos que o idealizam. “A gente não viu um aumento expressivo, a gente viu mudanças dos grupos que estão mais ou menos afetados”, explica a professora. 

 

O papel da escola

 

O projeto, financiado pela Fapesp e liderado pela professora e por Marcos Roberto Vieira Garcia, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), surgiu a partir de uma demanda das escolas e dos professores para que o assunto de saúde mental fosse abordado nas escolas.

 “A escola não tem condições plenas de resolver esse assunto, mas tem sim condições de evitar a discriminação, o bullying baseado em qualquer uma desses elementos e fazer o compartilhamento das situações de sofrimento”, ressalta Vera. “As professoras não são capacitadas para lidar com um evento de saúde mental ou lidar com famílias”, observa. 

A atuação das escolas na prevenção do suicídio e na diminuição do sofrimento psicossocial desses grupos mais afetados é muito importante, porém, deve ser direcionado. Abordar o assunto, promover um ambiente de segurança a esses grupos, pautar temas como a LGBT fobia e estar atento a sinais são medidas que podem ser tomadas por essas instituições. Uma das melhores formas de prevenção, segundo Vera Paiva, é o sentimento de pertencimento e poder conversar e se reunir com pessoas parecidas.  

 
 

Vera Paiva 

 

Sistema de saúde

 

A culpabilização dos pacientes e o encaminhamento destes não são o mais recomendado. O Sistema Único de Saúde, que oferece acompanhamento nesses casos, não dispõe de atenção individualizada, o que é imprescindível. “A maior parte do que é oferecido para eles é o atendimento em grupo, e na primeira chegada eles querem ser recebidos individualmente, querem ser escutados individualmente”, explica a pesquisadora. “É necessário mudar o modo como o serviço de saúde acolhe os jovens”, finaliza Vera. 

16
Mai22

Dois milhões de novos eleitores reforçam a crença no Brasil, a quarta democracia de massas do mundo

Talis Andrade

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A boa notícia

 
 
por Gustavo Krause
 
Eis um produto raro. Não falta quem repita a injusta condenação: a culpa é da imprensa, “notícia boa não é notícia”. Ora, o profissional da imprensa não inventa, lida com fatos e fatos que são notícias. Sem prévio juízo de valor desde que sejam de interesse da sociedade e, se possível, que sejam inusitadas. Explico: nas redações, os novatos ouviam dos mais experientes: “o cachorro mordeu o homem não dá manchete, sequer, notícia: agora o homem mordeu um cachorro é manchete e rende muito”.
 

Pois bem, a aldeia global online é uma caudalosa fonte de notícias. Guerra, massacre brutal, um espetáculo de horrores na Ucrânia, com imagem e um enredo geopolítico. Não dá para “poupar” os espectadores. A pandemia foi uma tragédia agravada pela ignorância negativista dos governantes. De positivo, fica o desafio de redefinir a natureza e os rumos da globalização.

Como se não bastasse, o cenário político brasileiro vive sob um festival de encrencas, birras pornofônicas e pornográficas que tomaram o vulto de crises institucionais. As novidades se superam. A pauta jornalística era ditada, cedinho, por um bizarro encontro no “cercadinho” entre o Presidente da República e seus adoradores. As lives, o twitter, as mídias sociais e o ativismo se encarregam de jogar no “ventilador” a obra digital das mentes poluídas.

Agora, o tema é o golpismo. A imprensa não inventou nada. Trump fez escola. E discípulos. A receita é desacreditar as regras da competição eleitoral, comportamento inspirado nas teorias conspiratórias dos autocratas populistas ou na molecagem de melar o jogo para não perder.

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Neste ambiente carregado de incertezas e de mal-estar social agravado pelos efeitos da inflação alta que restaura o rentismo dos ricos e destrói o poder de compras dos pobres, vem a notícia boa: dois milhões de novos eleitores reforçam a crença no Brasil, a quarta democracia de massas do mundo. Os números revelam um crescimento na faixa de eleitores com 16 e 17 anos (voto facultativo) de 47,2%, 57,4% em relação a 2014 e 2018 respectivamente.

A hastag #RolêDasEleições, impulsionado pelo Tribunal Superior Eleitoral, mobilizou instituições, organizações nacionais e internacionais, personalidades brasileiras, estrangeiras e demonstrou a vitalidade da nossa democracia.

Em 2030, o número de idosos, no Brasil, ultrapassará o total de crianças de zero a 14 anos. A previsão é de envelhecimento acelerado. Os jovens votantes rejuvenescem a democracia e renovam esperanças de superar o recorrente dilema de votar no “menos pior”.

 
 
 
 
30
Ago21

Estudo mostra consequências da violência armada à saúde mental dos moradores de favelas

Talis Andrade

Operação policial no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Operação policial no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. © Rosilene Miolitti/Redes da Maré

Um estudo lançado segunda-feira (23) mostra como a saúde mental dos moradores de favelas pode ser afetada pela violência armada. A pesquisa “Construindo Pontes” avaliou o cotidiano dos habitantes do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, que frequentemente testemunham assassinatos, agressões e tiroteios, vivendo em um estado permanente de medo.

A ideia de realizar o estudo surgiu com a diretora da ONG Redes da Maré, Eliana Sousa Silva. Moradora do complexo, ela se interessou por investigar o estado da saúde mental dos moradores do local, expostos a uma violência armada cotidiana. Para realizar a pesquisa, ela convidou o britânico radicado no Brasil Paul Heritage, professor de Teatro e Artes Performáticas na Queen Mary University of London e diretor da People’s Palace Projects. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) também é uma parceira do trabalho.

No total, Eliana e Paul dedicaram três anos a investigações do dia a dia dos moradores das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, entre 2018 e 2020. Mais de 1.400 pessoas foram entrevistadas para o trabalho, que resultou em um levantamento quantitativo e qualitativo inédito.

Através deste trabalho foi feito um imenso apanhado sobre o perfil dos moradores da Maré, com dados sobre gênero, idade, cor, origem, nível de estudos e trabalho, mostrando, por exemplo que o local é composto por uma população jovem: 75% dos moradores da Maré tem menos de 50 anos. A pesquisa registrou também a violência armada que essas pessoas vivenciam no cotidiano: tiroteios, assassinatos, agressões, assaltos e até mortes de membros das famílias dos entrevistados nesses incidentes.

“É alarmante. Nossa pesquisa mostra essa exposição à violência armada que chamamos de ‘objetiva’, de fatos que ocorreram. Mas também queríamos saber mais sobre a violência ‘subjetiva’, como a sensação de medo, que é altíssima e constante nessas comunidades”, diz o professor Paul Heritage, em entrevista à RFI.

 

Medo permanente

O estudo avaliou, por exemplo, que 50,2% dos entrevistados vivem, na Maré, uma permanente preocupação de ser atingido por balas perdidas ou que seus familiares sejam alvo de projéteis (55,6%). Esse medo também cerceia as ideias e pensamentos: quase 50% das pessoas ouvidas se preocupa em emitir opiniões no local.

“Claro que tudo isso vai influenciar toda a vida da pessoa: a possibilidade de estudar, de ter um bom emprego, de cuidar de sua saúde física ou mental”, avalia o professor. Segundo ele, a incidência deste medo vem aumentando ao longo dos anos e prejudicando vários aspectos da vida dessas pessoas.

“Esse é um alerta para todos nós como sociedade porque a gente está criando uma geração que está perdendo a capacidade de ter uma vida saudável. Todas as sequelas vão além da violência armada, da pobreza e da restituição de direitos. Além disso, a pandemia de Covid-19 deu mais foco a essa questão de saúde mental”, reitera Heritage.

O professor diz que tem esperanças de mobilizar as autoridades para o problema. Na ausência de políticas públicas que tratem desta questão, a ONG Redes de Desenvolvimento da Maré vem criando iniciativas como a semana de conscientização de saúde mental “Rema Maré”.

A partir desta segunda-feira até o próximo sábado (28), debates, intervenções, webinários e performances artísticas acompanham o lançamento do estudo “Construindo Pontes”.

Charge mostra uma montagem fotográfica, que aparece um prato, garfo e faca sobre uma toalha de mesa listrada em verde amarelo. Sobre o prato, está um fuzil. A legenda da charge aparece a inscrição "Fuzil maravilha".

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28
Jul20

"Um agente do Estado que transgride as normas para violentar os direitos de um cidadão tem que responder por crime hediondo, inafiançável e imprescritível"

Talis Andrade

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II -'Atuação policial contra negros chegou ao limite da irracionalidade', diz reitor da faculdade Zumbi dos Palmares

Leandro Machado entrevista José Vicente

 

BBC News Brasil - Um comandante da Rota (pelotão de elite da PM paulista) disse em entrevista que a polícia não pode agir em bairros de periferia da mesma forma que atua em bairros nobres…

Vicente - Agora, a polícia chegou ao absurdo de agredir as pessoas à luz do dia e na frente das câmeras. Um policial pisou no pescoço de uma mulher de 52 anos na frente dos netos, e com todo mundo filmando.

O código é o seguinte: 'não adianta vocês filmarem ou se rebelarem, porque a lei quem determina sou eu', a despeito de existir o Estado.

Imagina se essa polícia pega alguém do Morumbi (bairro rico de São Paulo)…

 

BBC News Brasil - Quais ações o sr. acha que deveriam ser tomadas para que esse tipo de cena não se repita no Brasil?

Vicente - Precisamos criminalizar de forma rigorosa esse tipo de conduta. Não basta afastar o policial ou transferi-lo para o serviço administrativo, ou instaurar inquérito na Corregedoria, pois a gente não sabe o que acontece lá dentro. Os casos se diluem dentro das instituições.

Um agente do Estado que transgride as normas para violentar os direitos de um cidadão tem que responder por crime hediondo, inafiançável e imprescritível.

O pano de fundo é que nossas forças de segurança são tomadas pelo espírito e pela crença da contenção social. O inimigo da polícia é o povo pobre que coloca em risco a tranquilidade da classe média e da elite brasileira.

Precisamos transformar a polícia em uma polícia cidadã, desmilitarizando-a. Precisamos desconstruir essa crença de que a corporação existe para combater ao invés de proteger.

Também precisamos ter um controle mais efetivo das instâncias da sociedade, sem corporativismo. O Ministério Público, que faz esse controle externo da atuação policial, não cumpre seu papel. As Assembleias Legislativas têm instâncias de monitoramento, mas também não atuam nesse sentido. O mesmo ocorre no Tribunal de Contas, no Judiciário, na Defensoria...

Por causa disso, a atuação policial não tem controle, transparência e participação da sociedade. Quem constrói a política de segurança pública no Brasil é a polícia, e não pode ser ela. Tem que ser a sociedade.

 

BBC News Brasil - No manifesto que o sr. escreveu é citada a violência inclusive de empresas privadas, como bancos e supermercados. Como essas instituições também propagam violência contra negros?

Vicente - Com silêncio e omissão. Quando há um comportamento violento, a responsabilidade nunca é do ambiente empresarial, e sim sempre do outro.

Essas empresas usam segurança privada, que cumpre dois papéis. Um deles, em tese, é fazer guarda patrimonial.

O outro serve para criar um muro de proteção. Quando chega alguém desavisado, mal ajambrado e com aparência que não condiz com a estética padronizada, a segurança sai do seu papel patrimonial para o de contenção social.

Na maioria das vezes, há uma seletividade de quem é o 'marginal', aquele que vai poluir a padronização. Quando entra um negro no shopping, o guarda se coloca a acompanhá-lo. As próprias lojas também recebem esse público com estranhamento, com diferenciação.

Quando há uma situação limite, a vítima preferencial é sempre o negro.

Houve aquele episódio (em 2019), no supermercado Extra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em que um garoto foi morto por um segurança. Como se mata alguém na frente de todo mundo, sem que o gerente do estabelecimento sequer saia da sua cadeira para impedir? Depois, a empresa afirma que não 'coaduna' com essas ações e que o problema é da terceirizada de segurança.

O problema é que a segurança que a empresa contrata é estruturada de maneira racista e discriminatória.

Por outro lado, a maioria das empresas de segurança são comandadas por militares ou ex-policiais. Ou seja, esse sistema violento sai das polícias para entrar nas empresas privadas.

Quando algo acontece, o ambiente empresarial sequer é chamado à responsabilidade, a reparar o erro e o crime. O conselho de administração não responde, não acontece nada com o presidente, o compliance não está nem aí… A loja abre no dia seguinte como se estivesse 'tudo bem'.

 

BBC News Brasil - Quais a dificuldades que um jovem negro recém-formado na universidade enfrenta para entrar no mercado de trabalho?

Vicente - Primeiramente a cor da sua pele. Não existem mais placas dizendo 'não aceito negros', mas há restrições pedindo 'boa aparência'. E a gente sabe o que isso quer dizer.

Nós somos uma sociedade patrimonialista, de grupo sociais. A estrutura de manutenção desses grupos se dá em cima de uma rede que se comunica entre si. Mesmo uma vaga de trabalho é resolvida dentro desses grupos, nos quais o negro não tem acesso.

Às vezes, quando surge a oportunidade, o jovem negro nem tem a informação sobre essas vagas de emprego, simplesmente ela porque não chega até ele. Quando a vaga é minimamente publicizada, às vezes para cumprir algum procedimento obrigatório, o candidato que vai passar já foi escolhido antes.

Isso não quer dizer que um ou outro não consiga furar esse cerco. Isso acontece, mas não é uma regra, é exceção.

Atualmente, com as proliferação das cotas, milhares de estudantes negros vão se formar em breve. Nós precisamos criar condições para furar esse muro.

 

BBC News Brasil - Pessoas negras costumam ganhar bem menos do que os brancos. Na sua avaliação, quais seriam medidas efetivas que empresas poderiam tomar para melhorar esse cenário?

Vicente - Cumprir a lei.

Neste mês o Estatuto da Igualdade Racial completa 10 anos. Ele é a constituição de políticas públicas para combater o racismo, a discriminação e elevar o negro ao patamar de igualdade. Está tudo previsto ali: cotas, financiamento, escolas… Mas 10 anos depois, o que aconteceu? Nada.

O que se sabe é que o negro abandona a escola porque precisa trabalhar — ou trabalha ou vai para escola e morre de fome. O estatuto fala em construir condições para que os negros não abandonem a escola.

Mas a escola, por natureza, já exclui o negro. Ela é europeizada: trata o negro de forma discriminatória de modo que ele não se veja em lugar nenhum, nem nos livros didáticos nem nos currículos.

Proporcionalmente não existe professor negro. Não existe história do negro nas aulas. Não existe o negro realizador, grandioso, fantástico. Existe o negro escravo, o negro que apanha da polícia, o negro bandido.

Mesmo quem se mantém na escola não encontra estágio. Quase não há negros na massa de estagiários no Brasil, proporcionalmente. Jovens negros não são escolhidos.

Depois, se o jovem quiser entrar em uma faculdade, vai precisar pagar um preço bastante salgado, porque na universidade pública ele vai enfrentar um limite intransponível, mesmo que hoje existam cotas.

Se ele continuar, as empresas impõem um Muro de Berlim difícil de atravessar. Mas, mesmo aqueles que entram, encontram outra barreira: ele entra assistente e continua assistente para sempre, não desenvolve a carreira. Além disso, o salário é menor em comparação com os brancos.

Imagina que coisa absurda e surreal um país onde as 5 mil maiores empresas não têm negros em seus quadros diretivos. E isso ocorre em um país que tem 54% da sua população formada por negros. (Continua)

 

10
Abr20

Um tempo de grande incerteza. Entrevista com o papa Francisco

Talis Andrade

The Tablet | International Catholic News & Opinion | Graphic ...

Em uma entrevista exclusiva ao The Tablet – a sua primeira para uma publicação britânica – o papa Francisco fala que essa extraordinária Quaresma e Tempo Pascal pode ser um momento de criatividade e conversão para a Igreja, para o mundo e para toda a criação.

Próximo ao final de março, sugeri ao papa Francisco que este poderia ser um bom momento para se dirigir ao mundo da língua inglesa: a pandemia que tanto afetou a Itália e a Espanha estava chegando ao Reino Unido, aos Estados Unidos e à Austrália. Sem compromisso com nada, ele me pediu para que lhe enviasse algumas questões. Eu escolhi seis temas, cada um com uma série de questões que ele poderia responder ou não, conforme ele quisesse. Uma semana depois, recebi o comunicado de que ele escreveu algumas reflexões em resposta às questões.

A entrevista é de Austen Ivereigh, autor da biografia do papa Francisco, intitulada, em português, "O Grande Reformador", publicada por The Tablet, 07-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

A entrevista também é publicada por Commonweal, EUA, e pelo jornal ABC, Espanha.

 

A primeira questão foi sobre como ele estava vivenciando a pandemia e o lockdown, ambos na residência Santa Marta e na administração do Vaticano (“a Cúria”), mais amplamente, tanto na prática quanto na espiritualidade.

Cúria está tentando fazer o seu trabalho, e vive normalmente, se organizando em escalas, para que não estejam todos presentes ao mesmo tempo. Isso tem funcionado bem. Nós estamos aplicando as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde. Aqui na residência Santa Marta nós temos duas escalas para as refeições, o que nos ajuda a amenizar o impacto. Todos trabalham em seus escritórios ou salas, usando a tecnologia. Todos estão trabalhando; não há infectados aqui.

Como eu estou vivendo a espiritualidade? Eu estou rezando mais, porque eu sinto que devo. E eu penso no povo. Isso é o que me preocupa: o povo. Pensando no povo , isso me faz bem, isso tira a preocupação de mim. Claro, eu tenho minhas áreas de egoísmo. Nas terças-feiras meu confessor vem, e cuido dessas coisas.

Eu penso nas minhas responsabilidades de agora e o que virá depois. O que será do meu serviço como bispo de Roma, como chefe da Igreja, depois disso? O depois já está começando a ser revelado como trágico e doloroso, é por isso que nós precisamos pensar sobre isso já. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral vem trabalhando nisso, e está se reunindo comigo.

Minha maior preocupação – ao menos o que vem através da minha oração – é como acompanhar e estar próximo do povo de Deus. É devido a isso o streaming ao vivo da missa às 7h da manhã, celebrada todos os dias, que está sendo apreciado e seguido por muitas pessoas, assim como a benção do dia 27 de março na Praça São Pedro. Por isso, também, que as atividades de caridade da Esmolaria Apostólica atendem aos doentes e aos famintos.

Eu estou vivendo este como um tempo de grande incerteza. Este é o tempo para inventar, para a criatividade.

 

Na segunda questão, eu referenciei uma novela do século XIX, muito querida pelo papa Francisco, a qual ele recentemente mencionou: I Promessi Sposi (Os noivos), de Alessandro Manzoni. A novela centra-se sobre a praga de Milão em 1630. Aqui estão vários personagens clericais: o covarde dom Abbondio, o santo cardeal Borromeo e os frei capuchinhos que servem aos lazarentos, em uma espécie de hospital de campanha, no qual os infectados estão rigorosamente longe dos saudáveis. Sob a luz da novela, como o papa Francisco vê a missão da Igreja no contexto da covid-19?

O cardeal Federico Borromeo realmente é um herói da praga de Milão. Porém, em um dos capítulos, ele saúda a cidade, mas com a janela da carruagem fechada para proteger a si mesmo. Ele não se sai bem com o povo. O povo de Deus precisa do seu pastor próximo a eles, não superprotegendo a si mesmo. O povo de Deus necessita dos seus pastores fazendo autossacrifício, como os Capuchinhos, estando próximos.

criatividade dos cristãos precisa mostrar novos horizontes, abrindo as janelas, abrindo a transcendência em direção a Deus e ao povo e criando novas formas de estar em casa. Não é fácil estar confinado na sua casa. O que me vem à mente é um verso de Eneida em meio à derrota: o conselho é não desistir, mas salvar a si mesmo para os tempos melhores, por isso relembrar o que aconteceu naqueles tempos nos ajudará. Cuidem-se para um futuro que virá. E lembrar no futuro o que aconteceu fará bem a você.

Cuide do agora, pelo bem de amanhã. Sempre criativamente, com uma criatividade simples, capaz de inventar algo novo a cada dia. Dentro de casa, isso não é difícil de descobrir, mas não fuja, não se refugie no escapismo, que neste momento não é útil para você.

 

Minha terceira questão foi sobre políticas governamentais em resposta à crise. Embora a quarentena da população seja um sinal de que alguns governos estão dispostos a sacrificar o bem-estar econômico em benefício das pessoas vulneráveis, sugeri que também estivesse expondo níveis de exclusão considerados normais e aceitáveis até agora.

É verdade que vários governos adotaram medidas exemplares para defender a população com base em prioridades claras. Mas estamos percebendo que todo o nosso pensamento, goste ou não, foi moldado em torno da economia. No mundo das finanças, parecia normal sacrificar [pessoas], praticar uma política da cultura descartável, do começo ao fim da vida. Estou pensando, por exemplo, na seleção pré-natal. Hoje em dia, é muito incomum conhecer pessoas com Síndrome de Down nas ruas; quando o tomógrafo os detecta, eles são descartados. É uma cultura de eutanásia, legal ou secreta, na qual os idosos estão recebendo medicamentos, mas só até certo ponto.

O que vem à mente é a encíclica Humanae Vitae do papa Paulo VI. A grande controvérsia da época era sobre a pílula [contraceptiva], mas o que as pessoas não percebiam era a força profética da encíclica, que previa o neomalthusianismo que estava começando a acontecer em todo o mundo. Paulo VI soou o alarme sobre essa onda de neomalthusianismo. Vemos isso na maneira como as pessoas são selecionadas de acordo com sua utilidade ou produtividade: a cultura do descarte.

Agora mesmo, os sem-teto continuam sem-teto. Uma foto apareceu no outro dia de um estacionamento em Las Vegas, onde eles foram colocados em quarentena. E os hotéis estavam vazios. Mas os sem-teto não podem ir a um hotel. Essa é a cultura do descarte na prática.

 

Fiquei curioso para saber se o Papa viu a crise e a devastação econômica como uma chance de uma conversão ecológica, de reavaliar prioridades e estilos de vida. Perguntei-lhe concretamente se era possível ver no futuro uma economia que – para usar suas palavras – era mais “humana” e menos “líquida”.

Há uma expressão em espanhol: “Deus sempre perdoa, nós perdoamos às vezes, mas a natureza nunca perdoa”. Não respondemos às catástrofes parciais. Quem agora fala dos incêndios na Austrália, ou lembra que há 18 meses um barco poderia atravessar o Polo Norte porque todas as geleiras haviam derretido? Quem fala agora das inundações? Não sei se é a vingança da natureza, mas certamente são as respostas da natureza.

Temos uma memória seletiva. Eu quero me debruçar sobre este ponto. Fiquei impressionado com a comemoração do septuagésimo aniversário do desembarque na Normandia, com a presença de pessoas dos mais altos níveis de cultura e política. Foi uma grande festa. É verdade que marcou o início do fim da ditadura, mas ninguém parecia se lembrar dos 10 mil jovens que permaneceram naquela praia.

Quando fui a Redipuglia, pelo centenário da Primeira Guerra Mundial, vi um belo monumento e nomes em uma pedra, mas foi isso. Eu chorei, pensando na frase de Bento XVinutile strage (“massacre sem sentido”). O mesmo aconteceu comigo em Anzio no Dia de Finados, pensando em todos os soldados norte-americanos enterrados lá, cada um deles com uma família e como qualquer um deles poderia ter sido eu.

Neste momento na Europa, quando começamos a ouvir discursos populistas e testemunhar decisões políticas desse tipo seletivo, é muito fácil lembrar os discursos de Hitler em 1933, que não eram tão diferentes dos discursos de alguns políticos europeus atualmente.

O que vem à mente é outro versículo de Virgílio[forsan et haec olim] meminisse iubavit [“talvez um dia seja bom lembrar dessas coisas”]. Precisamos recuperar nossa memória porque a memória virá em nosso auxílio. Não é a primeira praga da humanidade, as outras tornaram-se meras anedotas. Nós precisamos lembrar de nossas raízes, de nossa tradição repleta de memórias. Nos exercícios espirituais de Santo Inácio, na Primeira Semana, bem como na “Contemplação para alcançar o Amor”, na quarta semana, são completamente lembrados. É uma conversão através da memória.

Essa crise está afetando a todos nós, ricos e pobres, e colocando em foco a hipocrisia. Estou preocupado com a hipocrisia de certas personalidades políticas que falam em enfrentar a crise, no problema da fome no mundo, mas que, entretanto, fabricam armas. Este é um momento para ser convertido a partir desse tipo de hipocrisia funcional. É hora de integridade. Ou somos coerentes com nossas crenças ou perdemos tudo.

Você me pergunta sobre conversão. Toda crise contém perigo e oportunidade: a oportunidade de sair do perigo. Hoje acredito que temos que diminuir nossa taxa de produção e consumo (Laudato Si’, 191) e aprender a entender e contemplar o mundo natural. Precisamos nos reconectar com nosso ambiente real. Esta é a oportunidade de conversão.

Sim, vejo sinais precoces de uma economia menos líquida, mais humana. Mas não vamos perder nossa memória depois que tudo isso tiver passado, não vamos arquivá-la e voltar para onde estávamos. Este é o momento de dar o passo decisivo, de passar do uso e mau uso da natureza para a contemplação. Perdemos a dimensão contemplativa; temos que recuperá-la neste momento.

E por falar em contemplação, gostaria de me debruçar sobre um ponto. Este é o momento de olhar para os pobresJesus diz que sempre teremos os pobres conosco, e é verdade. Eles são uma realidade que não podemos negar. Mas os pobres estão escondidos, porque a pobreza é tímida. Recentemente, em Roma, no meio da quarentena, um policial disse a um homem: “Você não pode estar na rua, vá para casa”. A resposta foi: “Não tenho casa. Eu moro na rua”. Descobrir o enorme número de pessoas que estão à margem... E não as vemos, porque a pobreza é tímida. Eles estão lá, mas nós não os vemos: eles se tornaram parte da paisagem; são coisas.

Santa Teresa de Calcutá os viu e teve a coragem de embarcar em uma jornada de conversão. “Ver os pobres” significa restaurar sua humanidade. Eles não são coisas, não são descartáveis; eles são pessoas. Não podemos nos contentar com uma política de bem-estar como a que temos para animais resgatados. Muitas vezes tratamos os pobres como animais resgatados. Não podemos nos contentar com uma política de bem-estar parcial.

Vou me atrever a oferecer alguns conselhos. Este é o momento de ir ao subterrâneo. Estou pensando no romance curto de Dostoiévski, Memórias do Subsolo. Os funcionários daquele hospital prisional ficaram tão acostumados que tratavam seus pobres presos como coisas. E, vendo a forma como era tratado alguém que acabara de morrer, o que estava na cama ao lado lhes diz: “Basta! Ele também teve uma mãe!”. Precisamos dizer isso a nós mesmos com frequência: aquela pobre pessoa teve uma mãe que o criou com amor. Ao decorrer da vida não sabemos o que acontece. Mas é bom pensar no amor que ele recebeu pela esperança de sua mãe.

Nós desempoderamos os pobres. Não lhes damos o direito de sonhar com suas mães. Eles não sabem o que é carinho; muitos vivem das drogas. E vê-los pode nos ajudar a descobrir a piedade, as "pietás", que apontam para Deus e para o próximo.

Desçamos ao subterrâneo e passemos do mundo hipervirtual e sem carne para o sofrimento da carne dos pobres. Esta é a conversão que temos que passar. E se não começarmos por aí, não haverá conversão.

Hoje estou pensando nos santos que moram ao lado. Eles são heróis: médicos, voluntários, irmãs religiosas, padres, lojistas – todos cumprindo seu dever para que a sociedade possa continuar funcionando. Quantos médicos e enfermeiros morreram! Quantas irmãs religiosas morreram! Todos servindo... O que me vem à mente é algo dito pelo alfaiate, na minha opinião, um dos personagens com maior integridade em Os noivos. Ele diz: “O Senhor não deixa seus milagres pela metade”. Se tomarmos consciência desse milagre dos santos da porta ao lado, se pudermos seguir seus rastros, o milagre terminará bem, para o bem de todos. Deus não deixa as coisas pela metade. Somos nós que fazemos isso.

O que estamos vivendo agora é um lugar de metanoia (conversão), e temos a chance de começar. Então, não vamos deixar escapar isso, e vamos seguir em frente.

 

Minha quinta questão é centrada nos efeitos da crise sobre a Igreja e a necessidade de repensar nossas formas de operar. Ele vê emergir uma Igreja mais missionária, mais criativa, menos preocupada com as instituições, a partir disso? Estamos vendo uma nova forma de “Igreja nas casas”?

Menos apegado às instituições? Eu diria menos apegado a certas maneiras de pensar. Porque a Igreja é instituição. A tentação é sonhar com uma igreja desinstitucionalizada, uma igreja gnóstica sem instituições ou sujeita a instituições fixas, que seria uma igreja pelagiana. Quem faz a Igreja é o Espírito Santo, que não é gnóstico, nem pelagiano. É o Espírito Santo que institucionaliza a Igreja, de uma maneira alternativa e complementar, porque o Espírito Santo provoca desordem através dos carismas, mas daí a desordem cria harmonia.

Uma igreja que é livre não é uma igreja anárquica, porque a liberdade é um presente de Deus. Uma igreja institucional significa uma igreja institucionalizada pelo Espírito Santo.

Uma tensão entre desordem e harmonia: esta é a Igreja que deve sair da crise. Temos que aprender a viver em uma igreja que existe na tensão entre harmonia e desordem provocada pelo Espírito Santo. Se você me perguntar qual livro de teologia pode melhor ajudá-lo a entender isso, seriam os Atos dos Apóstolos. Lá você verá como o Espírito Santo desinstitucionaliza o que não é mais útil e institucionaliza o futuro da Igreja. Essa é a Igreja que precisa sair da crise.

Cerca de uma semana atrás, um bispo italiano, um tanto perturbado, me ligou. Ele andava pelos hospitais querendo dar absolvição àqueles dentro das enfermarias do corredor do hospital. Mas ele conversou com advogados canônicos que lhe disseram que não, que a absolvição só poderia ser dada em contato direto. “O que você acha, padre?”, me perguntou. Eu disse a ele: “Bispo, cumpra seu dever sacerdotal”. E o bispo disse “Grazie, ho capito” (“Obrigado, eu entendi”). Descobri depois que ele estava dando absolvição por todo lugar.

Esta é a liberdade do Espírito no meio de uma crise, não uma Igreja fechada em instituições. Isso não significa que o direito canônico não seja importante: é, ajuda e, por favor, façamos bom uso dele, é para o nosso bem. Mas o cânone final diz que toda a lei canônica é para a salvação das almas, e é isso que abre a porta para sairmos em momentos de dificuldade para trazer o consolo de Deus.

Você me pergunta sobre uma “igreja local”. Temos que responder ao nosso confinamento com toda a nossa criatividade. Podemos ficar deprimidos e alienados – através da mídia que pode nos tirar da realidade – ou podemos ser criativos. Em casa, precisamos de uma criatividade apostólica, uma criatividade despida de tantas coisas inúteis, mas com um desejo de expressar nossa fé na comunidade, como povo de Deus. Então: estar preso, mas ansioso, com aquela memória que anseia e gera esperança – é isso que nos ajudará a escapar de nosso confinamento.

 

Por fim, pergunto ao papa Francisco como está sendo o chamado para viver essa Quaresma e Tempo Pascal extraordinários. Perguntei se ele tinha uma mensagem particular aos idosos que estão sofrendo com o autoisolamento, para os jovens confinados, e para aqueles que encaram a pobreza como resultado da crise.

 

Você fala dos idosos isolados: solidão e distância. Quantos idosos existem cujos filhos não vão visitá-los em tempos normais! Lembro-me de Buenos Aires, quando visitava as casas de idosos, e perguntava: como está sua família? Bem, bem! Eles vêm? Sim, sempre! Então a enfermeira me chamava de lado e dizia que os filhos não os viam há seis meses. Solidão e abandono... distância.

No entanto, os idosos continuam a ser nossas raízes. E eles devem falar com os jovens. Essa tensão entre jovens e idosos deve sempre ser resolvida no encontro entre si. Porque o jovem é broto e folhagem, mas sem raízes, não pode dar frutos. Os idosos são as raízes. Hoje eu diria a eles: sei que sentem que a morte está próxima e têm medo, mas procurem outro lugar, lembrem-se de seus filhos e não parem de sonhar. É isso que Deus pede de vocês: sonhar (Joel 3, 1).

O que eu diria aos jovens? Tenha a coragem de olhar para o futuro e ser profético. Que os sonhos dos velhos correspondam às suas profecias - também Joel 3, 1.

Aqueles que foram empobrecidos pela crise estão hoje desprovidos, são adicionados como mais um número de desprovidos de todos os tempos, homens e mulheres cujo status é “desprovido”. Eles perderam tudo ou vão perder tudo. Que significado a misériatem para mim, à luz do Evangelho? Significa entrar no mundo dos necessitados, entender que quem já teve, não o tem mais. O que eu peço às pessoas é que levem os idosos e os jovens sob suas asas, que levem a história sob suas asas, as pessoas carentes sob suas asas.

O que vem à mente agora é outro verso de Virgílio, no final do Livro 2 da Eneida, quando Eneias, após a derrota em Troia, perdeu tudo. Dois caminhos estão diante dele: permanecer ali para chorar e acabar com sua vida, ou seguir o que estava em seu coração, subir a montanha e deixar a guerra para trás. É um verso bonito: Cessi, et sublato montem genitore petivi (“Dei lugar ao destino e, carregando meu pai nos ombros, fui para a montanha”).

É isso que todos temos que fazer agora, hoje: levar conosco as raízes de nossas tradições e fazer o caminho, subir a montanha.

02
Abr20

OMS alerta que jovens e crianças também correm riscos

Talis Andrade

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DW

A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um alerta nesta quinta-feira de que crianças e jovens também correm o risco de ser infectados e potencialmente morrer devido ao coronavírus.

"A noção de que a 'covid-19 afeta apenas pessoas idosas' está factualmente errada", disse Hans Kluge, diretor regional da OMS na Europa, em pronunciamento pela internet.

Ele observou que de 10% a 15% dos infectados com menos de 50 anos foram atingidos pela doença de forma moderada ou severa. Na Europa, a vítima mais jovem a não resistir à infecção foi uma menina de 12 anos na Bélgica. Já os EUA relataram a morte de um bebê de seis semanas. "Idade não é o único risco de doença grave", acrescentou Kluge.

O alerta vai na contramão de um pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro na semana passada, em que ele usou o argumento de que idosos são o grupo de risco e disse que 90% da população não apresentaria sintomas da doença se for infectada para defender a reabertura das escolas e do comércio no país.

Mais da metade da população mundial está confinada

Mais de 3,9 bilhões de pessoas – mais da metade da humanidade – estão confinadas em suas casas devido à pandemia de coronavírus, segundo contagem mantida pela agência de notícias francesa AFP. Medidas de prevenção ao vírus, que incluem confinamentos obrigatórios ou recomendados, toques de recolher e quarentenas, já foram implementadas em mais de 90 países e territórios.

Austrália terá creches gratuitas por seis meses 

A Austrália anunciou nesta quinta-feira (02/07) que creches serão gratuitas por seis meses, como parte de uma tentativa para manter algumas empresas operando durante a pandemia. Segundo dados preliminares, as medidas de contenção adotadas pelo governo indicam sinais precoces de que a curva de contaminação está achatando. A Austrália registrou cerca de 5,2 mil infecções e 25 mortes. 

De acordo com o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, o subsídio de 1,6 bilhão de dólares manterá cerca de 13 mil creches abertas. O valor se soma ao pacote de apoio de cerca de 121 bilhões de dólares do governo para tentar fazer "hibernar" a economia até a crise passar. Após seis meses, o subsídio das creches será reavaliado. 

Manter os centros infantis abertos também permitirá que profissionais como os da área da saúde, de limpeza e de distribuição de alimentos continuem trabalhando, reforçou Morrison. 

As restrições adotadas pela Austrália devem levar a economia do país à primeira recessão em quase três décadas e dobrar o índice de desemprego.Image

 

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27
Mar20

Adolescente de 16 anos morre com coronavírus na França; país teve 365 mortes em 24h

Talis Andrade
Equipe médica transfere um paciente com a Covid-19 para um TGV que saiu de Estrasburgo, no leste, para levá-los a hospitais de outras regiões da França.
Equipe médica transfere um paciente com a Covid-19 para um TGV, um trem de alta velocidade, que saiu de Estrasburgo, no leste, para levá-los a hospitais de outras regiões da França. REUTERS - CHRISTIAN HARTMANN

 

Uma adolescente de 16 anos morreu após ter sido contaminada pelo coronavírus na região de Paris. A jovem é uma das 365 vítimas do vírus na França nas últimas 24 horas, anunciou nesta quinta-feira (26) o diretor-geral de Saúde, Jérôme Salomon. 

A garota, que morava em Île de France, não tinha histórico de doenças. Ela é a primeira vítima nessa faixa etária no país europeu.

Até o momento, a França conta 29.155 pessoas contaminadas pelo vírus. Do total, 13 mil pessoas diagnosticadas estão hospitalizadas, 3,4 mil delas internadas em leitos de UTI.

O número oficial de mortes no país desde o início desta epidemia é de 1.696 vítimas. Na lúgubre estatística, a França é o terceiro país da Europa em número de vítimas, atrás dos seus vizinhos Itália (8.215 mortes) e Espanha (4.145).

No entanto, os dados franceses estão subdimensionados, pois só levam em conta as mortes em hospitais, deixando de contabilizar óbitos em casas de repouso ou em casa.

Só na região de Paris, 150 casas de repouso declararam ter tido contaminação pelo coronavírus, segundo o presidente da Federação Francesa de Hospitais, Frédéric Valletoux. Em uma dessas unidades, 16 idosos morreram nos últimos dias.

"Hoje não sabemos como medir a extensão dos danos nas casas de repouso", resumiu.

Transferência de pacientes com trem-bala

Com uma grande quantidade de casos na região leste, a França começou hoje a transferir pacientes para hospitais de outras regiões em um trem-bala transformado em ambulância.

O comboio saiu de Estrasburgo levando 20 pacientes que precisavam de terapia intensiva para hospitais da região Pays de Loire, no oeste do país.

Além do confinamento nacional, que já dura dez dias, a transferência de pacientes de áreas mais afetadas para regiões com leitos disponíveis é uma das estratégias adotadas pela França para tentar reduzir o número de mortes causados pelo coronavírus e pelo colapso dos hospitais.

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25
Mar20

"Incendiário", "inacreditável" e "contraditório": imprensa europeia analisa pronunciamento de Bolsonaro sobre coronavírus

Talis Andrade

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A imprensa europeia destaca, nesta quarta-feira (25), as declarações do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, durante pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão realizado na noite de terça-feira (24). Para os jornais, as declarações do líder da extrema direita do Brasil são "incendiárias", "difíceis de acreditar" e vão de encontro com as próprias recomendações do Ministério da Saúde do país.

Para o jornal francês Le Mondeo presidente "minimiza os riscos relacionados à pandemia da Covid-19 ao criticar as medidas tomadas em diversas cidades e Estados do país, em um momento em que um terço da população mundial é colocada em confinamento".

O diário também destaca que Bolsonaro acusou as mídias do país de propagar "histeria", diante da pandemia que já causou mais de 18 mil mortos no mundo. "O Brasil está protegido da doença, segundo ele, devido ao clima quente e a população majoritariamente jovem", reitera a matéria.

O jornal Le Parisien lembra que, no momento do discurso de Bolsonaro, o Brasil contabilizava 2.201 casos de coronavírus e 46 mortes. "Mas as deficiências do sistema de saúde, além da pobreza e a insalubridade nas quais vivem uma grande parte da população, ameaçam agravar a epidemia na primeira economia da América Latina", afirma o diário.

 

Discurso resultou em "panelaços"

O jornal britânico The Guardian destaca que o presidente brasileiro declarou que "nada sentiria" caso fosse contaminado pela Covid-19. A matéria classifica as afirmações do presidente como "incendiárias" e ressalta que o discurso provocou grandes "panelaços" no Rio e em São Paulo.

The Guardian lembra que as duas maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio e muitas outras em todo o país, confinaram seus moradores "para salvar vidas". O jornal também destaca que muitos opositores de Bolsonaro acreditam que sua resposta à epidemia de coronavírus no Brasil "vai ser o fim de sua carreira política".

Em editorial, o jornal espanhol El País analisa como a América Latina lida com a pandemia e afirma que Bolsonaro "é o pior caso" entre alguns líderes da região que tentam minimizar a situação. Para o diário, o presidente está mais preocupado com a briga política com os governadores de São Paulo e do Rio – estados que concentram 60% dos casos de coronavirus do Brasil – do que com os riscos da pandemia.

"E os riscos são gigantescos!", afirma o editoralista. "As declarações oficiais de que o Brasil dispõe de recursos suficientes para enfrentar esse tsunami são difíceis de acreditar", reitera o artigo. Para El País, a situação catastrófica de falta de material médico, hospitais e profissionais da área da saúde que vivem atualmente a Europa e os Estados Unidos pode se repetir no Brasil. "O vírus se comporta de maneira similar em todas as latitudes", conclui.

 

Contra recomendações do Ministério da Saúde

Na live que faz diariamente em seu site, o jornal português Público lembra que o apelo de Bolsonaro pela reabertura das escolas e o restabelecimento do funcionamento do comércio contrariam as recomendações do próprio governo brasileiro. "No site, o Ministério da Saúde brasileiro aconselha a população a evitar aglomerações, a reduzir os deslocamentos para o trabalho, defendendo o ‘trabalho remoto’ e a ‘antecipação de férias em instituições de ensino’, especialmente em regiões com transmissão comunitária do vírus".

O jornal também destaca que Bolsonaro subestima a pandemia, ao afirmar que se fosse contaminado "não precisaria se preocupar". "O chefe de Estado do Brasil já se submeteu a dois exames ao novo coronavírus, ambos de resultado negativo, segundo o próprio. A imprensa pediu a divulgação pública dos resultados, mas sem êxito", conclui o diário. 

 

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25
Mar20

Bolsonaro defende isolamento apenas para idosos e grupos de risco

Talis Andrade

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Alerta de riscos também para jovens

O presidente Jair Bolsonaro defendeu nesta quarta-feira o isolamento parcial de pessoas em meio à pandemia do coronavírus. Em entrevista diante do Palácio da Alvorada, ele disse que apenas pacientes que fazem parte de grupos de risco, como idosos, devem ficar em isolamento domiciliar.

"Vou conversar com ele [o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta] e tomar a decisão. Cara, você tem que isolar quem você pode. Você quer que eu faça o quê? Eu tenho o poder de pegar cada idoso e levar para um lugar? É a família dele que tem que cuidar dele no primeiro lugar", disse o presidente.

Bolsonaro ainda criticou as medidas restritivas adotadas por governadores para diminuir a circulação de pessoas no país, adotando tom similar ao de seu pronunciamento nacional da véspera. Segundo o presidente, as medidas estaduais prejudicam a economia e podem criar instabilidade democrática porque geram uma atmosfera de caos no país.

Na terça, em seu terceiro pronunciamento sobre o coronavírus em menos de 20 dias, Bolsonaro atacou a imprensa e acusou meios de comunicação de espalharem "histeria" no país, além de criticar as medidas já aplicadas por governadores para conter o avanço da pandemia.

O presidente voltou a chamar a covid-19 de "gripezinha" e afirmou que idosos são o grupo de risco, alegando que mortes entre menores de 40 anos são raras e que 90% da população não apresentará sintomas da doença se for infectada.

"Jovens também podem morrer de coronavírus"

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O presidente do Instituto Robert Koch, Lothar Wieler, alertou contra o comportamento despreocupado de muitos jovens e disse que eles também podem ficar gravemente doentes de covid-19. "Jovens também podem morrer disso", afirmou. 

Em redes sociais, muitos jovens alemães expressam despreocupação por causa da idade e marcam encontros nas chamadas corona-partys, literalmente "festas do corona".

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28
Fev20

O golpe de Bolsonaro está em curso

Talis Andrade

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Já está acontecendo: a hora de lutar pela democracia é agora

por Eliane Brum

Só não vê quem não quer. E o problema, ou pelo menos um deles, é que muita gente não quer ver. O amotinamento de uma parcela da Polícia Militar do Ceará e os dois tiros disparados contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), em 19 de fevereiro, é a cena explícita de um golpe que já está sendo gestado dentro da anormalidade. Há dois movimentos articulados. Num deles, Jair Bolsonaro se cerca de generais e outros oficiais das Forças Armadas nos ministérios, substituindo progressivamente os políticos e técnicos civis no Governo por fardados – ou subordinando os civis aos homens de farda nas estruturas governamentais. Entre eles, o influente general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, segue na ativa, e não dá sinais de desejar antecipar seu desembarque na reserva. O brutal general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chamou o Congresso de “chantagista” dias atrás. Nas redes, vídeos com a imagem de Bolsonaro conclamam os brasileiros a protestar contra o Congresso em 15 de março. “Por que esperar pelo futuro se não tomamos de volta o nosso Brasil?”, diz um deles. Bolsonaro, o antipresidente em pessoa, está divulgando pelas suas redes de WhatsApp os chamados para protestar contra o Congresso. Este é o primeiro movimento. No outro, uma parcela significativa das PMs dos estados proclama sua autonomia, transformando governadores e população em reféns de uma força armada que passa a aterrorizar as comunidades usando a estrutura do Estado. Como os fatos já deixaram claro, essas parcelas das PMs não respondem aos Governos estaduais nem obedecem a Constituição. Tudo indica que veem Bolsonaro como seu único líder. Os generais são a vitrine lustrada por holofotes, as PMs são as forças populares que, ao mesmo tempo, sustentam o bolsonarismo e são parte essencial dele. Para as baixas patentes do Exército e dos quartéis da PM, Bolsonaro é o homem.

É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.

Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.

Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.

Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.

A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.

Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.

Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.

Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.

O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?

Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.

Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.

As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?

É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.

A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.

Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.

Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.

A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.

Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.

Publicado originalmente em 'El País'

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