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O CORRESPONDENTE

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O CORRESPONDENTE

31
Mar23

A falácia de sempre da luta contra a corrupção para justificar golpes de Estado

Talis Andrade

DITADURA-O-QUE-FALTA--.jpg

 

Por Guilherme Marchioni /ConJur

 

31 de março marca a data do golpe em que se iniciou o período da ditadura civil-militar em 1964. Passados quase 60 anos da instauração do regime, ampliar a compreensão sobre o período é ainda absolutamente relevante. Em contraposição às pretensões de comemoração daquela data em uma espécie de desafio à democracia, desponta como necessário preservar a memória do período do regime antidemocrático e expor as suas entranhas autoritárias e ofensas aos direitos humanos — para que nunca mais aconteça.

Mais do que isso, vale resgatar as falácias da ditadura que turvam o conhecimento da realidade do período de repressão, limitação às liberdades e violência. Um olhar desatento à legislação da época poderia até mesmo afirmar que a "revolução", como se autodesignava o regime na intenção de camuflar a evidência do golpe, teve como fundamento assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana.

Ora, dignidade humana está surpreendentemente inscrita como um dos valores elencados no Ato Institucional nº 5 de 1968 para justificar a edição do ato que inaugurou a época de maior agressividade do regime autoritário, com a suspensão da garantia de habeas corpus em casos políticos. Ao passo que declarava a intenção de assegurar a liberdade e a dignidade da pessoa humana, na prática desumanizava por sequestros, torturas e assassinatos. Bem por isso, a justiça de transição, as comissões da verdade, e a pauta do direito à memória são tão importantes.

Outro elemento que constava no Ato Institucional nº 5 era o atendimento à reconstrução econômica e financeira pela "luta contra a corrupção", ditando a falsa percepção de que o governo militar era a salvação para um Estado afligido pela corrupção.

É necessário observar, como premissa, que a tomada do poder por regimes autoritários é historicamente precedida de discursos anticorrupção. O emprego do discurso de combate à corrupção como argumento falacioso contra um inimigo interno é útil à instauração de Estados de exceção que declaram suspensão provisória da ordem jurídica, mas que na realidade se prolongamento no tempo. Foi com fulcro nesta espécie expediente que se construiu o rompimento com o Estado de Direito em 1964, culminando na ditadura que se instalou por 21 anos no país [1].

O historiador Carlos Fico [2] aponta que alardear uma "crise moral" foi um dos motes utilizados pelos golpistas de 64 para justificar a derrubada da democracia. Juntamente com o combate à "subversão" e ao comunismo, "acabar com a corrupção" era uma das bandeiras empregadas como pretexto para instalar a ditadura.

Vale ressaltar, com Juarez Tavares [3], que corrupção é um termo polissêmico e pode ser compreendida como uma referência a infração de normas sociais ou jurídicas, caracterizando-se tanto como violação de costumes quanto de proibições previamente definidas, e, portanto, um termo genérico que pode abranger diversos enfoques, a serviço de interesses persecutórios do poder.

Em uma aproximação à acepção jurídico-penal, o jurista Nelson Hungria, em seus Comentários ao Código Penal de 1958, definiu o tipo central da corrupção como a venalidade em torno da função pública, apenando-se na forma passiva quando se tem em vista a conduta do funcionário corrompido, e também na forma ativa ao se considerar a atuação do corruptor [4].

Assim, importa alcançar a questão essencial: era o regime de 64 mais resistente ao crime de corrupção na forma como insculpido no Código Penal?

A evidência é de que a resposta é negativa. Segundo Sérgio Habib em Brasil — 500 anos de corrupção, a partir de 1964 o Brasil ingressou em seu ciclo supremo de corrupção, "jamais tantos casos afloraram e de forma seguida como nos governos que sucederam ao golpe militar".

A censura e a repressão à oposição não evitam ou mitigam a ocorrência de corrupção, mas dificultam que os casos tornem-se conhecidos e sejam investigados, mesmo assim alguns eventos conseguiram romper essas barreiras, tal como as suspeitas de corrupção na construção ponte Rio-Niterói [5], suspeitas de desvio de dinheiro na nunca completamente concluída Transamazônica [6], ou os "escândalos financeiros verificados no país após a criação do Banco Central e reformulação do Sistema Financeiro Nacional (SFN), incluindo casos como Delfim, Halles, Banco de União Comercial" [7].

Emblemático para ilustrar a ilusão da luta contra a corrupção naquele período é o caso do diplomata José Jobim, que foi sequestrado, torturado e morto pela ditadura em 1979 pouco depois de revelar que denunciaria o superfaturamento na construção da usina hidrelétrica de Itaipu [8].

É sabido que os arquitetos do golpe de 1964 não foram isoladamente as forças armadas, o rompimento democrático se deu no contexto de uma articulação entre empresários, militares e apoio estrangeiro. Destas relações pode ser compreendida a gênese de alguns dos casos de corrupção durante a ditadura civil-militar, casos dos quais pouco foi elucidado, mas que naquilo que revelados se revelam significativos.

A intenção de enfrentar a corrupção que prejudica a administração pública, ao contrário do que se poderia esperar com base no discurso empregado pelos correligionários do regime autoritário, deixou de constituir um projeto essencial para dar lugar à perseguição política. A corrupção na ditadura não deixa de existir, o que arrefece é a sua percepção pela ausência de denúncias públicas e punição, ocasionadas pela ausência de uma imprensa livre e de órgãos de apuração independentes [9].

Vale ressaltar que no Estado democrático de Direito há, sim, o enfrentamento do delito de corrupção, sendo idealmente realizado a partir de apreciação dos fatos pelos órgãos e agentes do Estado com respeito a direitos fundamentais e a condição de pessoa de investigados e acusados. Fatalmente, a garantia de direitos é absolutamente compatível com a perseguição e punição de comportamentos ilícitos.

- - -

[1] FERNANDES, Fernando Augusto. Geopolítica da Intervenção. São Paulo: Geração editorial, 2020, p. 429.

[2] FICO, Carlos. Como eles agiam – os subterrâneos da ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 149.

[3] TAVARES, Juarez. Corrupção. In: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de; et al. Dicionário de Direitos Humanos. Porto Alegre: Fi, 2023, p. 69.

[4] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 365.

[5] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/12/10/voce-sabia-que-a-ponte-rio-niteroi-e-a-pm-sao-herancas-da-ditadura.htm

[6] https://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/02/projeto-polemico-transamazonica-faz-40-anos-sem-nunca-ter-sido-concluida.html

[7] CAMPOS, Pedro Henrique. Ditadura, interesses empresariais, fundo público e corrupção. In: Projeto História, vol. 66, 2019, p. 94.

[8] https://oglobo.globo.com/epoca/diplomata-foi-morto-pela-ditadura-antes-de-denunciar-corrupcao-no-regime-confirma-nova-certidao-23089585

[9] SERRANO, Pedro. A justiça na Sociedade do espetáculo. São Paulo: Alameda, 2015, p. 249.

11
Jul22

Chumbo Quente - Terceiro parte

Talis Andrade

No terceiro programa da série sobre os 50 anos do Golpe Militar, o Observatório da Imprensa relembra as mortes de Carlos Marighella, Frei Tito, Carlos Lamarca, Vladimir Herzog, Stuart e Zuzu Angel e do embaixador José Jobim.

Também são recuperadas, além de casos emblemáticos como o atentado do Riocentro e a guerrilha do Araguaia. O programa vai relembrar uma das mais eficientes táticas da esquerda nos anos de chumbo: o sequestro de embaixadores. Além de trocar os diplomatas por presos políticos, a resistência exigia a publicação de manifestos nos grandes jornais e garantia a visibilidade perdida com a censura. O Observatório também mostra o apelo do ex-delegado Cláudio Guerra, que executou dezenas de integrantes da esquerda, para que as Forças Armadas dialoguem com as famílias dos desaparecidos e esclareçam o paradeiro dos corpos de vítimas da repressão.

 

O Observatório da Imprensa relembra o período mais sombrio da história do país – a ditadura militar – pela ótica da mídia: uma das protagonistas do golpe, logo convertida em vítima do regime de exceção.

Apresentado pelo jornalista Alberto Dines, o programa da TV Brasil entrevistou 35 personagens, entre jornalistas, historiadores, ex-guerrilheiros e famílias de vítimas da ditadura.

Em quatro episódios, a série especial Chumbo Quente revela porque grande parte da imprensa, apavorada com a guinada à esquerda do país, conspirou para a queda do presidente João Goulart e apoiou a tomada do poder pelos militares. A atração jornalística examina as reações dos veículos de comunicação à quartelada e a mudança de posição de algumas publicações logo após o golpe.

“A série Chumbo Quente embute dentro dela a proposta de história continuada, história viva, principalmente porque a imprensa, cujo papel desgraçadamente foi tão relevante para o golpe e a ditadura militar que a ele se seguiu, também é um organismo vivo e como tal precisa ser permanentemente observado”, explica o experiente Alberto Dines.

Durante os programas, que serão exibidos sempre às terças-feiras neste mês de janeiro, o apresentador discute o tema com personalidades como a escritora Ana Arruda Callado, os jornalistas Carlos Heitor Cony, Fernando Gabeira, Hildegard Angel, Mário Magalhães, Milton Temer e Sérgio Cabral, além dos historiadores Alzira Abreu, Carlos Fico, Daniel Aarão Reis e James Green.

O jornalista Carlos Heitor Cony recorda o agravamento da situação a partir de 1968. “O AI5 realmente matou a esperança de muitas pessoas. Lembro que muita gente mudou de ideia por causa do AI5. Aí foi que veio a escalada da tortura”, analisa o também escritor.

Já Mário Magalhães é ainda mais enfático. “A imprensa brasileira divulgou não só acriticamente a palavra da ditadura. A imprensa chancelou as iniciativas da ditadura”, afirma o jornalista.

No quarto programa da série, Alberto Dines recebe o também jornalista Chico Otávio e o historiador Carlos Fico para refletir sobre as consequências dos 21 anos de ditadura militar no país. O trio discute assuntos como a lei da anistia, a redemocratização e o recente trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

 

Censura e resistência

 

A proposta da série é também resgatar o impacto do AI-5 e mostrar como os jornalistas driblaram a censura. Com a mídia convencional amordaçada, nasceram os jornais alternativos, bravos adversários da ditadura militar.

As mortes de Carlos Marighella, Frei Tito, Carlos Lamarca, Vladimir Herzog, Stuart e Zuzu Angel e do embaixador José Jobim também são recuperadas, além de casos emblemáticos como o atentado do Riocentro e a guerrilha do Araguaia.

O programa da emissora pública ainda destaca uma das mais eficientes táticas da esquerda nos anos de chumbo: o sequestro de embaixadores. Além de trocar os diplomatas por presos políticos, a resistência exigia a publicação de manifestos nos grandes jornais e a garantia a visibilidade perdida com a censura.

 

Primeiro programa

 

Na estreia da série Chumbo Quente, o jornalístico apresentado por Alberto Dines analisa em que a imprensa errou no período do Golpe Militar. Ao costurar entrevistas com imagens de arquivo, o Observatório da Imprensa traça um panorama sobre os motivos que levaram à ditadura no Brasil e a influência dos veículos de comunicação nesse momento histórico.

Poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ferreira Gullar é taxativo ao lembrar os nos de chumbo. “Tem que apurar o que aconteceu e fazer parte da história do Brasil para as gerações que vêm aí a verdade desse regime abominável”, opina o renomado escritor.

O programa mostra que a imprensa não levou em conta a crise política e se submeteu a um cronograma militar sem dar chance para recuos, ajustes e negociações. Mesmo com o avanço da violência e a concretização do novo regime, a imprensa não se uniu. O mínimo de solidariedade corporativa poderia ter abortado o ímpeto da linha dura comandada por Costa e Silva, mas com hipóteses, não se faz história, nem se evitam tragédias.

Participam do episódio inicial da série sobre os 50 anos do regime militar realizada pelo Observatório da Imprensa os historiadores Alzira Abreu, Carlos Fico e Daniel Aarão Reis, os escritores Marco Antônio Coelho e Moniz Bandeira, a professora de Ciência Política Maria Celina d’Araújo, além dos jornalistas Ana Arruca Callado, Carlos Chagas, Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar, Fuad Atala, Gilles Lapouge, Hélio Fernandes, José Maria Mayrink, Milton Coelho da Graça, Milton Temer, Pinheiro Júnior e Wilson Figueiredo.

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