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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

20
Set23

Além da pauta: como a campanha #Chacina11doCurió contribui para qualificar a cobertura do caso

Talis Andrade

Imagem: Samuel Setubal/Jornal O Povo

A campanha  

Passados oito anos desde a chacina, a primeira sessão do julgamento dos 44 réus (todos policiais militares) estava marcada para 21 de junho de 2023. Em meados de abril, as equipes de comunicação da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Ceará, do Comitê de Prevenção e Combate a Violência da Assembleia Legislativa e do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca/Ceará) se reuniram. “Era preciso unificar a comunicação e criar uma unidade visual que retratasse os crimes”, conforme texto disponível no site da Defensoria, a fim de mobilizar a sociedade para buscar a responsabilização dos crimes. 

Além de um site que reconta os fatos daquela noite trágica e resgata as histórias de cada um dos 11, a campanha incluiu um perfil no Instagram e uma identidade visual que se estenderia em banners, adesivos, camisas e faixas usados por aqueles que se uniam às mães para pedir justiça para as vítimas do Curió. O bairro, curiosamente, leva o nome de um pássaro. “É um canto bonito este que se une em solidariedade e em rede por justiça. Embora cheias de dores e de ausências, essas Mães conseguiram selar na história – graças a sua mobilização – o nome dos 11 do Curió, em favor da justiça. Assim como elas se reuniram, as instituições também se unem para um somatório de forças”, continuam em nota os assessores que assinam as peças. 

 

Além das inserções na mídia

Em 12 de maio, o perfil na rede social foi lançado e, de forma inteiramente orgânica, chegou a alcançar quase 60 mil contas em 30 dias. Entre os conteúdos, a história das vítimas, mobilização de parceiros, a cobrança por justiça, orientações para quem pretendia acompanhar presencialmente o julgamento e um balanço diário do júri. A iniciativa passou a concentrar as informações sobre o caso, unificando a comunicação e fortalecendo a mobilização social, sempre na perspectiva das mães das vítimas e não de uma ou outra instituição. 

A imprensa, especialmente a local, que acompanhava o caso com grande atenção desde 2015, ganhou um novo fôlego para a cobertura. Mais do que revigorar a pauta, que com o início dos julgamentos seria naturalmente retomada, a campanha deu mais visibilidade ao caso — contabilizando mais de 60 reportagens em menos de 15 dias, incluindo reportagens no Fantástico e no Jornal Nacional — e ampliou o debate para além dos 11 do Curió, localizando a tragédia dentro de um contexto nacional vivido nas periferias do País. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, entre as 47.508 mortes violentas ocorridas em 2022, 91,4% das vítimas eram do sexo masculino, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos. Somente no ano passado, 6.429 pessoas foram mortas em intervenções policiais, uma média de 17 por dia. 

No último sábado (16), saiu a sentença do terceiro julgamento da Chacina do Curió. Até agora, seis policiais foram condenados à prisão e 14 foram absolvidos. No primeiro Tribunal do Júri, as penas de quatro réus somaram 1.103 anos e 8 meses de reclusão, com regime inicial de cumprimento fechado, e neste último julgamento as penas chegaram a 223 anos. Ainda restam cerca de 30 réus a serem julgados e não há novas datas para os julgamentos. 

A campanha #11doCurió deve seguir acompanhando a luta de familiares, mães e sobreviventes da chacina, colocando na prática aquela ideia aparentemente ingênua de quem ainda acredita que é possível transformar a realidade, partindo dos instrumentos do ofício para dar protagonismo a quem e ao que de fato precisa ser colocado em evidência.

24
Ago23

Parabéns, Celso Marconi. Ou uma vida de cinema

Talis Andrade
Celso Marconi
Celso Marconi (Foto: Reprodução/Vermelho)

 

Aos 93 anos completados nesse 23 de agosto de 2023, Celso Marconi ainda é o mais jovem crítico de cinema do Brasil

 

por Urariano Mota

- - -

Nessa quarta-feira 23 de agosto de 2023, Celso Marconi completou 93 anos de vida. Então eu vou ao texto que escrevi para o seu aniversário antes, quando ele era quatro anos mais novo. Não escrevo isso por graça, e procurarei explicar.

Todos sabemos que agora é mais difícil para ele, quando enxerga com dificuldade. Mas com o auxílio da sobrinha Trude e de uma curiosidade invencível, ele resiste. Então observo primeiro que Celso Marconi tem sido o crítico brasileiro de cinema com maior longevidade. Desconfio que não só no Brasil. Hoje e antes, não se tem notícia de críticos de cinema com a sua idade. Quero dizer, críticos de cinema em ação, a escrever e publicar todas as semanas, como ele veio fazendo até o vigor dos seus 92 anos.

A segunda observação é que aos 93 anos completados nesse 23 de agosto de 2023, Celso Marconi ainda é o mais jovem crítico de cinema do Brasil. Parece até um paradoxo, mas explico. Quem acompanha as mais recentes críticas, que ele tem publicado nas suas colunas do Vermelho, sabe do que estou falando. Lembro o texto-aula “O pioneiro filme crônica de um verão”, e este “Face a Face de Bergman”, em que ele volta ao clássico e relata a mais atual e revoltada percepção em julho de 2019:

 

Face a Face é melhor ser visto num aparelho individual, numa TV grande, mas de maneira que você possa parar quando estiver cansado, prostrado, e sair para comer um chocolate ou tomar um café antes de continuar. Penso que, se eu estivesse vendo esse filme de Ernst Ingmar Bergman hoje numa sala de cinema, eu gritaria para que parassem pra gente descansar um pouco....

A grande sequência do filme ocorre enquanto a doutora está internada no hospital e vive inúmeros momentos de alucinação. O diretor faz as cenas acontecerem em termos realistas, embora sejam todas verdadeiros sonhos. Dessa maneira, o espectador vivencia como se estivesse ele mesmo dentro da mente da personagem – e ele próprio vivendo todo o drama. A atriz Liv Ullmann, com a direção de Ingmar Bergman, consegue isso. Certamente hoje são poucas as pessoas que conhecem o cinema de Ingmar Bergman e isso se justifica pelo fato de que o atual presidente do País (em 2019) não tem a menor noção do que é Cultura, e sem dúvida nunca viu nem um filme de Ingrid Bergman – quanto mais de Ingmar! É uma pena. Com tantos elementos novos e fundamentais para mudarmos a nossa vida e podermos conhecer melhor o que é uma vida amadurecida, é lamentável que estejamos vivendo esse dilema de moralismos inúteis”

24
Jul23

Carol Cospe Fogo (1983-2023): veja 50 charges deste talento de BH

Talis Andrade

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BLOG DA KIKACASTRO

Para leitores pensantes.

Primeira mulher a receber o Troféu Angelo Agostini como melhor cartunista do Brasil, em 2019, Carol Andrade também era designer, e trabalhou em agências de publicidade como diretora de arte e ilustradora.

Apesar de também ser de BH e de trabalhar com muitos designers na minha vida de jornalista, eu não conhecia Carol Cospe Fogo pessoalmente. Era apenas mais uma dentre os milhares de fãs do trabalho dela, que eu acompanhava pelo Instagram (onde ela tinha mais de 15 mil seguidores) e Twitter.

Deixo, a seguir, algumas charges da Carol Cospe Fogo, que encontrei eu seu Instagram e Twitter, para que possam ser sempre reencontradas e espalhadas por aí. Vocês vão ver que a maioria é bastante politizada e crítica às atrocidades do (des)governo Bolsonaro. Ou seja, artes NECESSÁRIAS.

Fica sendo minha pequena homenagem à minha conterrânea, tão fera nas charges capazes de “cuspir fogo” em quem merece.

Clique sobre qualquer imagem para ver todas em tamanho maior

18
Abr23

“O Brasil vai ter de se refazer por inteiro”

Talis Andrade
 
 
 
UERJ | RESENHA: Antes de Nascer o Mundo, de Mia Couto - YouTube
 

“Sou ainda um poeta que vai de visita pela prosa”, diz Mia Couto, um dos mais reconhecidos escritores africanos contemporâneos. O autor moçambicano vem ao Brasil para uma homenagem no Clube de Leitura do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 12 de abril, quando fará uma leitura de Antes de nascer o mundo (1999).

Em entrevista à Cult, ele fala sobre as expectativas com o governo Lula, lamenta a falta de maior intercâmbio literário entre o Brasil e o continente africano e faz críticas ao monopólio da informação. “Há gente preocupada com que acabem os jornais impressos. O meu medo é que o jornalismo já tenha acabado”, diz.

Luís Costa entrevista Mia Couto

 
 

Luís Costa/ Cult - É sua primeira visita ao Brasil após o início do terceiro mandato de Lula, a quem declarou apoio nas eleições. Como tem acompanhado o desenrolar desses primeiros meses pós-Bolsonaro?

Mia Couto - Acompanho com muita esperança e mantenho-me o mais possível informado. Eu acho que esta é a fase da euforia, estamos ainda vivendo o que era sonhado numa espécie de estado de graça. É evidente que irão ocorrer aquilo que podemos chamar os pequenos choques da realidade. Por muito que nos guiemos por desejos de ruptura, governar é gerir o possível, é negociar diferenças e fazer cedências que nem sempre nos surgem claras a nós que não estamos no governo. Mas é importante pensar que o Brasil não vai ter apenas um novo governo. Vai ter de se refazer por inteiro e isso é obra que pede uma entrega e um entendimento de todos.

A construção de uma rede de diálogo onde havia apenas um rasgão da incomunicabilidade é talvez o maior desafio para a nação brasileira. Vivemos isso depois do final da guerra civil em Moçambique. Parecia impossível depois de tanto ódio acumulado. O grande desafio era como escutar o outro e como reumanizarmos todos juntos a nossa casa comum.

 

O primeiro governo Lula foi marcado por uma política de aproximação com os países do hemisfério sul, especialmente da África. O que espera desse novo governo?

Não espero, tenho a certeza de que essa tendência de aproximação recíproca vai ser retomada. Aliás, o presidente Lula já anunciou visitas a países africanos que deverão acontecer em breve. Mas não apenas as visitas. As mudanças serão, espero, bem mais profundas do que isso. O que não vai continuar a acontecer é esse virar de costas com os africanos que marcou a governação anterior.

 

Escritores brasileiros estão mais e mais mergulhando em literatura africana contemporânea e descobrindo clássicos do continente. Você considera esse movimento recíproco?

Infelizmente não tanto como deveria ser. É verdade que os brasileiros conhecem hoje muito mais as literaturas africanas (acho que é importante respeitar o plural quando se fala de África). Mas falta que esse conhecimento não fique preso ao que o mercado e as modas constroem. Os africanos também necessitam de ter mais acesso ao que se produz no Brasil. Não existe uma troca. O que existe (e é pouco e irregular) depende exclusivamente de entidades comerciais que são as editoras. Há um espaço dinâmico que são associações cívicas dos dois lados do oceano. Muito pouco é feito pelos governos.

 

Você é um leitor de clássicos brasileiros. É conhecida sua relação com a literatura de Guimarães Rosa. Você tem lido escritores brasileiros recentes?

O que é curioso e triste é que na década de 1960 e até meados dos anos 1970 (em que prevaleciam regimes ditatoriais no Brasil e em Portugal e nas suas colônias africanas) existia uma maior ligação com os escritores do Brasil do que agora. Hoje não chegam livros brasileiros a Moçambique. Assim sendo, tudo o que listar entre autores novos do Brasil fica sujeito a erros e omissões da minha parte. De qualquer modo, tocaram-me muito livros que chegaram a meu conhecimento de autores e autoras como Carla Madeira, Itamar Vieira Júnior, Ricardo Aleixo, Julian Fuks, Aline Bei, Jeferson Tenório, Socorro Acioli, Conceição Evaristo. Acho importante realçar que esse leque de autores mantém e amplifica a enorme diversidade de escolas, estilos e correntes. Essa literatura traduz as vozes tão díspares que compõem as culturas do Brasil.

 

Sua estreia literária foi como poeta e você é leitor voraz de poesia. Por que decidiu pela prosa?

Sou ainda um poeta que vai de visita pela prosa. Para dizer a verdade, faço de conta que acredito nessas fronteiras. Fomos aprendendo a arrumar o mundo, mas essa arrumação nem sempre é a mesma nas diferentes culturas. Em Moçambique, a lógica da metáfora poética contagia todo tipo de pensamento. Não existe nas filosofias indígenas de Moçambique fronteiras que separem o sonho do pensamento, a objetividade impessoal da entidade relacional. Do mesmo modo não se separa o vivo do que não é vivo, o orgânico do inorgânico. Não existe fronteira entre mortos dos viventes. Essa cosmologia tomou posse de mim como de todos os outros escritores moçambicanos.

 

O que tem de método de poesia na sua escrita de prosa?

Tem tudo. Sobretudo, a ausência de método. Essa ausência é bem visível num momento inicial, que é esse momento encantado em que tudo é possível. A história é ainda uma semente, não se sabe que árvore se esconde nela. Depois, a prosa pede escolhas radicais como se, ao podar a árvore, ela mudasse de natureza. O que nasceu como cerejeira pode vir um pé de ipê quando se lhe corta ou acrescenta um ramo. Como se cada galho fosse uma semente e nele morasse todas as potencialidades. Disse na resposta anterior que sou um poeta que, de quando em quando, emigra da oralidade para a nação da escrita em prosa. Mas o que pretendo no texto é sentir que devolvi à palavra escrita as vozes que a fizeram nascer.

 

E o que tem de jornalismo, ofício que exerceu por mais de uma década?

Sempre procurei no jornalismo aquilo que era mais do domínio da subjetividade e, por isso, os meus gêneros eram a crônica e a reportagem. O padrão da objetividade e da linguagem padronizada não exercia nenhum fascínio em mim. Nos dias de hoje, o jornalismo foi assaltado por uma vulgarização muito empobrecedora. Existem vozes e focos que resistem, mas esses nichos contam-se pelos dedos. Isto não tem de nostalgia passadista. Mas existe hoje um monopólio que reduziu a vitalidade e a pluralidade das versões que devem compor o retrato que fazemos do mundo. Há gente preocupada com que acabem os jornais impressos. O meu medo é que o jornalismo já tenha acabado.

 

No Brasil, você fará a leitura de Antes de nascer o mundo (1999), uma trama mágica sobre um refazimento do mundo. Mais de duas décadas depois, como você volta a esse romance a partir de sua leitura do mundo hoje?

Existe no romance um pai que se tornou insano por razões íntimas, mas que também deixou, como todos nós, de reconhecer o mundo como sendo dele, deixou de ser capaz de se sentir em casa e na família alargada que dizem que somos como humanidade. Esse pai tirano não interdita apenas ideias. Ele proíbe as lembranças, os sonhos, as rezas, as canções. Contudo, ele sabe que há no silêncio a gestação de toda a música. E é nesse nicho de falsas ausências que ele reconstitui a sua humanidade.

Esse livro foi escrito em 2009 e havia nessa altura, em Moçambique, a terrível herança de um conflito violentíssimo que dilacerou famílias e a nação inteira. Mas será que esse cenário mudou assim tanto mesmo depois de mais de duas décadas de paz? Quantas guerras nos continuam dilacerando em Moçambique e no mundo e que não são visíveis porque as notícias são produzidas com o fito de vender e de ocultar essas outras violências. Uma das guerras (talvez a mais grave) que está no livro e que permanece inalterada até hoje é a guerra contra as mulheres.

 

Moçambique enfrenta agora uma nova crise de cólera, agravada pela destruição causada pelo ciclone Freddy. Em 2019, o ciclone Idai já tinha arrasado Beira, sua cidade natal. Como você absorve esses desastres e essa permanência de uma tragédia que se renova?

Moçambique é uma das nações mais pobres do mundo. Enfrenta uma crise estrutural que é a miséria cotidiana que se reproduz em mais miséria. Não são apenas esses eventos episódicos que se tornam notícia internacional que temos de superar. Recordo-me que, na nossa guerra civil que durou 16 anos e fez um milhão de mortos, metade do país foi forçada a fugir e a refugiar-se nos países vizinhos, que são também pobres. Sete milhões de refugiados. Isso foi notícia nos media internacionais? Não.

Os ciclones possuem um efeito de espetáculo dramático, mas de efeito pontual como se, na rotina do cotidiano, tudo decorresse sem drama. É preciso, apesar de tudo, admitir que os ciclones em Moçambique serão muito provavelmente mais frequentes e intensos. Acontecerão com regularidade que os tornará menos propensos a serem noticiados. O que há a fazer? Uma vez mais, teremos de internamente arregaçar as mangas e lutar para prevenir e remediar de forma mais eficaz. Necessitamos de contar com a solidariedade internacional sem nunca ficarmos dependentes dela. Quatro anos depois da tragédia do ciclone Idai estamos ainda à espera de grande parte da ajuda prometida.

 

Está escrevendo ou planejando escrever um novo livro?

Sim. Estou desde há um ano a trabalhar num novo romance que tem como ponto de partida o início da Primeira Guerra Mundial em Moçambique. Este ano será publicada no Brasil uma antologia de contos intitulada As pequenas doenças da eternidade.

 

09
Mar23

JORNALISTAS Três pedras no nosso caminho

Talis Andrade

 

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É possível enfrentar as questões atuais do jornalismo e ainda encontrar equilíbrio? Foto: Rawpixel.com /post-image /Autor: Rogerio Christofoletti

 

por Carlos Castilho /objETHOS

Este texto é uma proposta de reflexão sobre três temas que já estão mudando a nossa visão do que é o jornalismo e qual a sua função dentro da realidade digital que começa a contagiar o mundo em que vivemos. A nova relação do jornalismo e dos jornalistas com a sociedade, as comunidades de trabalho como forma de exercício da atividade jornalística e a notícia vinculada à produção são três questões fundamentais no conjunto de novas práticas e teorias que já estão definindo a forma como a produção noticiosa é desenvolvida atualmente.

Notem que uso a expressão “atividade” em vez de “profissão” porque esta diferença está ligada à nova relação dos jornalistas com as comunidades que o cercam. A distinção é importante porque o termo “profissão”, dentro do campo do jornalismo, foi associado à condição de assalariado de uma corporação ou de alguém que vende trabalho físico ou produção intelectual.

A atividade jornalística na era digital começa a perder seu caráter fundamentalmente empregatício para assumir uma função social e isto não é apenas o resultado de uma opção ideológica, política ou humanitária. É sobretudo uma consequência do fato de que a produção de notícias está deixando de ser financiada por publicidade paga para se dependente do apoio de pessoas que necessitam de dados e fatos para tomarem decisões que afetam o seu dia a dia e sua sobrevivência.

Trata-se de uma mudança fundamental na atividade noticiosa porque até agora a maioria esmagadora dos jornalistas tinha em mente o establishment e os seus patrões na hora de produzir uma notícia, comentário, entrevista ou investigação. A prioridade no relacionamento com as pessoas ainda é um comportamento pouco presente na atividade jornalística, mas as redes virtuais ampliaram consideravelmente o alcance dos novos ecossistemas informativos (1) forçando o surgimento de pautas noticiosas mais vinculadas aos interesses dos segmentos tradicionalmente excluídos do debate público.

Há uma rápida multiplicação de softwares e estruturas de engajamento entre jornalistas e comunidades, o que reforça a tendência à inovação no âmbito das novas práticas do jornalismo contemporâneo. Há necessidade de que os cursos de jornalismo, tanto os presenciais como os a distância, levem esta discussão para as salas de aula, no mínimo para incentivar a interatividade entre professores e alunos sobre uma realidade que afeta ambas as partes. Há urgência na abertura de fóruns dentro das redações e fora delas para que repórteres, editores, comentaristas, programadores e designers percebam como os ecossistemas informativos estão mudando no Brasil e no mundo.

 

São Sebastião: O vácuo noticioso local

 

As fontes do jornalista estão deixando de priorizar os especialistas, dirigentes empresariais, governantes ou líderes políticos para, cada vez mais, recorrerem às personagens comuns que frequentam supermercados, farmácias, lojas, escolas e clínicas médicas. São estas pessoas que enfrentam problemas à espera de soluções que, em sua maioria, dependem de informações para serem alcançadas. São indivíduos que dependem das informações publicadas por jornalistas em blogs, páginas noticiosas locais ou redes sociais para decidirem o que fazer na sua rua, bairro, casa, transporte, educação ou saúde.

A agenda de Brasília concentrada nas polêmicas sobre teto de gastos, equilíbro fiscal e desoneração da gasolina continua relevante, mas perde o espaço na agenda jornalística local para questões como a solução do problema dos desabrigados pela tragédia de São Sebastião, no litoral de São Paulo. Alguém acha que as centenas de pessoas afetadas pela enchente do Carnaval está preocupada em ler a Folha ou o Estadão para saber se o Congresso nacional vai ou não votar o teto de gastos públicos?

Todas as atenções dos moradores de São Sebastião estão voltadas para os problemas de uma cidade que não tem canais de informação jornalística local e hiperlocal. É apenas um exemplo dramático de como o jornalismo local tem uma função social insubstituível numa situação extrema. Você, leitor, não acha que se houvessem jornalistas no local, informando sobre o local para moradores da região, todos teriam interesse direto na sobrevivência financeira desta iniciativa? Isto mostra como as pessoas podem vir a sustentar um jornal local desde que ele se torne indispensável para o bem-estar da população.

 

As comunidades jornalísticas de prática

 

O segundo tema desta proposta de reflexão é o trabalho coletivo dentro da atividade jornalística. Até agora predominou o esforço individual como motivação principal do trabalho noticioso. Há razões tecnológicas, funcionais e contextuais que explicam este comportamento, mas desde que as tecnologias digitais empurraram o jornalismo para o uso de múltiplas mídias, o exercício da atividade se complicou. A visão individualista ainda é majoritária no exercício do jornalismo, mas ele depende cada vez mais da interdisciplinaridade para produzir, por exemplo, noticiários mais envolventes graças ao uso combinado de texto, imagens (fotos, vídeos e animações), sons, dados e interatividade com outras pessoas. Na era analógica, já era necessária uma boa dose de trabalho em equipe, especialmente na televisão e no cinema. No ambiente digital, esta exigência se tornou ainda mais intensa e imprescindível.

O jornalismo online multimídia, o jornalismo do futuro, depende de equipes de trabalho onde as funções de complementam e se somam. Os softwares mudam constantemente o que obriga a atualização permanente dos envolvidos em atividades jornalísticas. Não dá para uma só pessoa estar permanentemente atualizada em todos os aspetos da multimídia o que impõe uma integração forçada dos encarregados de cada função e é aí que ocorre o conflito entre os comportamentos, regras e valores associados ao individualismo e as rotinas do trabalho coletivo. Esta mudança de comportamento não ocorre da noite para o dia e nem de forma espontânea. Ela precisa ser induzida pelo debate teórico e por instrumentos como as comunidades de prática (2). O trabalho coletivo em equipe é condição básica para a inovação informativa, algo que é permanente e estrutural na atividade jornalística.

Muitos ainda perguntam se nessas condições o diploma de jornalismo é indispensável para o exercício da atividade noticiosa. O diploma como pedaço de papel não vale nada. O que conta é a competência de quem participa da produção de conhecimentos e informações vinculadas ao interesse social em pequenas e médias comunidades. Isto é facilmente detectável pela prática tanto da convivência social com o público alvo como pela habilidade no manejo de programas e equipamentos eletrônicos. A nova conjuntura torna inevitável uma atualização e revisão dos currículos universitários do jornalismo em instituições de ensino superior, tanto na modalidade presencial como online. Mais ainda quando começa a ficar claro que as faculdades de jornalismo não produzem mais mão-de-obra para o mercado corporativo, mas promovem a formação de especialistas em informação para atuação em comunidades.

 

A falácia da notícia velha

 

E por último, o terceiro ponto a refletir é sobre o novo caráter da notícia. Ela perde o caráter de commodity comercializável na troca por publicidade e passa a ser um elemento fundamental na produção de conhecimentos, principalmente das pessoas comuns. Não se trata de um desejo, mas de uma realidade criada pelo fato de a internet ter gerado a publicação de uma superabundância de dados, fatos e eventos que reduziram a quase zero o valor econômico da notícia. Em compensação, aumentou a sua importância social porque as pessoas passaram a poder tomar decisões mais acertadas por disporem de mais opções de escolha.

Além disso, as novas tecnologias digitais de informação e comunicação acabaram com o conceito de notícia velha. O que temos hoje é a notícia não atualizada porque a produção noticiosa tornou-se um processo contínuo, dependente apenas do interesse e recursos de jornalistas investigativos. Os formatos clássicos de apresentação das notícias, como o uso da pirâmide invertida já não tem mais a relevância que tinham antes por que as narrativas se diversificaram em função da enorme variedade de produtores de informações viabilizada pelas redes sociais. A padronização de estilos imposta pelas limitações tecnológicas da era digital na hora de publicar notícias estão cedendo espaço para formatos tipo contador/a de histórias, especialmente quando a narrativa usa recursos multimidia e não linearidade.

Os três temas mencionados neste texto não são novos. Muitos de vocês talvez já tenham lido a respeito. O que ganha cada vez mais urgência é o fato de que estamos sendo atropelados pelas mudanças tecnológicas como a que já está em agenda como o uso da inteligência artificial para produção de conteúdos jornalísticos e a chegada em breve da computação quântica. A inovação tecnológica move-se por uma dinâmica própria e o jornalismo precisa assumir que o seu papel é de mediador entre a tecnologia da informação e as necessidades das pessoas. Não conseguiremos cumprir esta missão sem remover antes as três pedras colocadas em nosso caminho.

São muitos os enfoques e abordagens que podem ser adotados no debate sobre os três pontos que levantei. Eles não são definitivos e nem muito menos completos, porque o máximo que podem pretender é motivar interações no ambiente acadêmico.

 

Notas

  1. Ecossistema informativo é um conceito novo e que expressa o amplo conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, geográficos e culturais que condicionam os fluxos de dados, fatos e eventos a que estão expostos os membros de comunidades locais e hiperlocais. Um ecossistema não se restringe aos limites municipais ou distritais e nem ao tipo de veículo noticioso predominante na região, porque no ambiente digital as fronteiras físicas se tornaram fluidas e nebulosas.
  2. Comunidades de prática são estruturas formadas por pessoas com interesses comuns na busca de soluções de problemas, através da produção coletiva de conhecimentos. O elemento fundamental numa comunidade de prática é a adesão voluntaria e incondicional à proposta do grupo, porque disto depende a interatividade e criatividade na e

 

25
Nov22

Jornalismo, uma profissão que expulsa mulheres

Talis Andrade

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Em curso um possível processo de "desfeminilização" no jornalismo, mesmo com maioria feminina.

 

por Dairan Paul /objETHOS

Escrevi, em meu último comentário para o objETHOS, sobre o custo emocional de ser jornalista. O argumento central do texto relacionava as condições precárias da profissão às rotinas e valores que orientam o jornalismo. Parte disso envolvia um imaginário de sacerdócio e missão inerente à figura do repórter, disponível a trabalhar 24 horas em nome de sua “causa”.

Neste texto, desdobro uma nova discussão para aprofundar os aspectos de gênero que sustentam a cultura “heroica” do jornalismo. São valores que acabam condicionando o acesso, permanência e ascensão de mulheres jornalistas em suas carreiras.

Em “News stories about fallen journalists”, Raymond McCaffrey, professor de ética na Universidade de Maryland, argumenta que a figura do jornalista como “herói” é um mito histórico. Advém de uma cultura das redações que recompensa comportamentos de risco, masculinos, em detrimento daqueles que expressam emoções – caso de coberturas duras, como guerras e acontecimentos traumáticos. “Na superfície, esse ethos não se relaciona diretamente aos princípios do jornalismo, como verdade, equilíbrio, independência e imparcialidade”, explica o pesquisador. No entanto, normas profissionais podem derivar de mitos que reforçam qualidades ausentes dos códigos profissionais, como a coragem e a propensão a tomar riscos. Assemelha-se ao discurso religioso do jornalista-sacerdote, acrescido de valores masculinistas que exaltam uma ideia de “força” e “poder”.

Tal conjunto de valores é apenas um dos fatores que explicam os entraves à permanência de mulheres no jornalismo. Indo mais além, recorro à diferença entre dois importantes conceitos, feminilização e feminização.

Neste artigo, Andressa Kikuti, Jacques Mick e Paula Melani da Rocha explicam que o aumento numérico da mão de obra feminina denomina-se feminilização. Feminização, por outro lado, refere-se às mudanças nas condições de trabalho por conta da inserção de mulheres no campo profissional. São as alterações que efetivamente põe em xeque as relações de poder sob domínio dos homens, impactando, por exemplo, as tomadas de decisão e cargos de chefia das redações.

Estes dois conceitos ajudam a explicar uma situação que, à primeira vista, poderia soar contraditória: como mulheres não recebem tratamento igualitário nas redações se o jornalismo brasileiro é uma profissão exercida majoritariamente por elas?

Ainda que os dados do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 apontem uma leve redução de 6% no número de profissionais mulheres (de 64% em 2012 para 58% no estudo mais recente), o jornalismo continua sendo uma profissão bastante feminina. Ser maioria, entretanto, não implica mudanças automáticas na cultura machista das redações ou mesmo na ascensão de carreira das profissionais. Em outras palavras, o processo de feminilização não leva necessariamente à feminização.

É por isso que Kikuti, Mick e Rocha, ao analisarem as duas pesquisas (de 2021 e 2012), identificam uma possível “desfeminilização” no jornalismo – mesmo com uma maioria numérica na profissão. Percebem, quando se debruçam sobre os dados da survey nacional realizada no ano passado, que há uma queda no número de mulheres ainda atuantes na mídia, principalmente em cargos de editoras e repórteres. É o contrário dos homens, que permanecem atuando no jornalismo e, de quebra, detêm faixas de renda mais elevadas, superando dez salários mínimos. Daí a conclusão: o aumento de mulheres não implica automaticamente em maior equidade na divisão sexual do trabalho. Kikuti, Mick e Rocha afirmam que “a mídia brasileira mandou parte das mulheres para casa” – ao menos no jornalismo mainstream, nos quais cargos de chefia ainda são exceções para elas.

Essa percepção também é ratificada em outro estudo que investigou mudanças na carreira de 517 jornalistas brasileiros, cinco anos após participarem do Perfil de 2012. Camilla Tavares, Cintia Xavier e Felipe Pontes identificam que mulheres estão entre a maioria a deixar a profissão para exercer outras atividades, como assessoria de imprensa ou docência. O alto número de mulheres que não trabalham mais com jornalismo e estão desempregadas, 60%, é um possível indício das dificuldades estruturais de gênero no mercado de trabalho, afirmam as autoras.

O dilema entre vida social e profissional também contribui para a expulsão de mulheres no jornalismo brasileiro. Conforme atesta Felipe Pontes, “o jornalismo é uma profissão que tende a privilegiar os solteiros. E esse filtro dos que permanecem no jornalismo é mais estreito para as mulheres”. Isso porque o salário baixo reduz as expectativas de que constituam famílias; quando conseguem, isso se torna um problema, já que “[elas] tendem a não ver espaço nas hierarquias mais bem remuneradas do jornalismo – simbólica e materialmente dominada por homens”.

Diante desse quadro, afirmar que o jornalismo expulsa mulheres não parece soar tão exagerado. Embora não seja exclusividade da profissão, mas parte de um problema estrutural, busquei ressaltar neste texto alguns aspectos do jornalismo que contribuem para um entendimento masculinizado da profissão. Essa compreensão se dá a partir de valores que, por sua vez, representam horizontes desejáveis a determinados padrões de conduta para um jornalismo de “excelência” – como a coragem heroica e propensa a tomar riscos. E, a partir dessa qualidade estipulada, tomam-se decisões organizacionais que, eventualmente, barram a entrada e permanência daqueles(as) que não estão “aptos” ao ethos das redações.

24
Out22

Covarde agressor de cinegrafista durante prisão de Roberto Jefferson é identificado e exonerado do cargo de assessor de vereador

Talis Andrade

Imagem com montagem das fotos do assessor Diogo Lincoln Resende e do cinegrafista Rogério de Paula

Diogo Lincoln Resende, ex-assessor parlamentar, e Rogério de Paula, cinegrafista da Globo 

 

247 - A Câmara de Vereadores de Três Rios (RJ) exonerou o assessor parlamentar Diogo Lincoln Resende, que foi filmado agredindo o cinegrafista Rogério de Paula, da Inter TV Serramar, afiliada da Rede Globo, durante a cobertura  da prisão do ex-deputado bolsonarista e ex-presidente do PTB Roberto Jefferson, na tarde do domingo (23), no município de Comendador Levy Gasparian. Lincoln era assessor do vereador da cidade de Três Rios Robson Souza (PSDB), conhecido como Robson Dentista.

Segundo o G1, a Câmara de Vereadores de Três Rios divulgou uma nota afirmando que o pedido de imediata exoneração à presidência da Casa foi feito pelo vereador Robson de Souza (Robson Dentista), assim que soube do ocorrido: ‘não teve outra alternativa’.

Diogo Lincoln foi identificado após as imagens em que aparece dando um soco no cinegrafista serem divulgadas nas redes sociais. O cionegrafista também foi jogado ao chão e teve uma crise convulsiva após bater a cabeça contra o piso do local. Até a manhã desta segunda-feira Rogério de Paula permanecia internado na UTI. O quadro de saúde do profissional, porém, é estável

De acordo com a Polícia Civil, o agressor miliciano será indiciado pelo crime de lesão corporal e deverá prestar depoimento nesta segunda-feira (24).

Conforme informações divulgadas pela Inter TV, o cinegrafista Rogério de Paula passou por exames e seu quadro de saúde é estável. Ele deixou a UTI (Unidade de Terapia Intensiva) na manhã desta segunda (24), mas continua internado no quarto comum do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Três Rio. Ainda de acordo com o G1, a previsão é de que ele receba alta da unidade médica nesta terça (25).

Rogério de Paula completou 31 anos de trabalho na Inter TV na semana passada. No sábado (22), teve seu premiado documentário 14 Bis – Voando pela História exibido no Festival de Cinema de Petrópolis. O repórter cinematográfico da parceria da emissora líder também foi vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo em 2011, pela cobertura da tragédia que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro no mesmo ano.

 

Exonerado bolsonarista admirador de Roberto Jefferson miliciano

 

“Casa Legislativa trirriense vem a público externar repúdio às atitudes do assessor parlamentar Diogo Lincoln Resende, no episódio ocorrido em Comendador Levy Gasparian neste domingo, dia 23.

Essa não é a atitude que se espera de um servidor.

Informamos também, que após ter ciência do ocorrido, o vereador Robson de Souza (Robson dentista) não teve outra alternativa e solicitou à presidência, a exoneração imediata do servidor. Já que o vereador não compactua com qualquer tipo de violência e desrespeito. Ainda mais com um jornalista no exercício da sua função. Ressaltamos que o vereador é a favor da democracia, diálogo e da liberdade de expressão.

O presidente da Câmara de Vereadores, Ercules Rodrigues (Professor Erquinho) – defensor da liberdade de imprensa e do respeito aos profissionais que fazem seu trabalho com responsabilidade – também manifestou-se e repudiou todo e qualquer tipo de agressão seja verbal ou física .

Ao cinegrafista, nossos votos de célere recuperação”

21
Out22

Jornalistas fazem ato em defesa da democracia e debate sobre voto evangélico (charges curralzinho)

Talis Andrade

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A relevância nestas eleições do voto evangélico e a defesa do jornalismo e da democracia são temas de dois eventos, organizados por entidades de jornalistas relacionados às eleições. O primeiro deles, pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, avaliará em que proporção a população evangélica está no centro do debate eleitoral deste ano. Isso em razão da sua relevância numérica e, principalmente, por ser por ela que a extrema direita se aproveita da chamada pauta de costumes para implementar sua agenda ultraconservadora.

A organização do debate avalia que as eleições deste ano podem ser definidas como “um plebiscito entre a civilização e a barbárie”. “(A população evangélica foi) decisiva em 2018, na eleição que alçou o fascista Jair Bolsonaro ao poder impulsionada por uma impiedosa máquina de mentiras e desinformação fortemente calcada em temas como costumes e religião, a escolha eleitoral de milhões de brasileiros pode não estar selada como antes”, afirma o Barão, em nota.

Três especialistas participaram do debate sobre o voto evangélico: A pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), Romi Bencke; o sociólogo e líder ecumênico metodista Anivaldo Padilha; e o repórter autor do livro O Reino – A história de Edir Macedo e uma biografia da Igreja Universal, vencedor de 10 prêmios de jornalismo pelo conjunto de sua obra, Gilberto Nascimento

 

O reino: A história de Edir Macedo e uma radiografia da Igreja Universal  (Portuguese Edition) eBook : Nascimento, Gilberto: Amazon.de: Kindle-Shop

 

Jornalismo e democracia

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Entidades jornalísticas e organizações que defendem a liberdade de imprensa e os direitos humanos, entre elas a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), realizaram, na noite desta terça-feira (27/09), um ato em defesa das e dos profissionais de imprensa e da Democracia, na Pontifícia Universidade Católica (PUC), na zona oeste de São Paulo.

“Estamos reunidos aqui hoje porque o jornalismo e a própria democracia estão sob forte ataque nos últimos anos. E essa gravíssima situação chegou agora ao ápice. Estamos aqui juntos para dizer que basta!”, afirmou Paulo Zocchi, vice-presidente da FENAJ, que discursou em nome das 16 entidades organizadores do evento.

“Em situações normais, o jornalismo não é, nem poderia ser, uma profissão de risco. Mas no Brasil, nos últimos anos, a violência contra profissionais é preocupação constante e crescente de nossa categoria”, disse Zocchi.

Segundo Zocchi, os profissionais são agredidos pelo poder de Estado, notadamente pela Polícia Militar; são perseguidos judicialmente, e aí se inclui infelizmente até mesmo o Supremo Tribunal Federal; e também são agredidos, em grande medida, por Bolsonaro e por apoiadores incentivados pelas ações do presidente.

O dirigente sindical citou levantamento da FENAJ de acordo com o qual, em 2018, foram registrados 135 casos de agressões a jornalistas, contra 430 em 2021. “Com Bolsonaro no governo, há três vezes mais agressões a jornalistas do que havia antes. É mais do que uma por dia! Desde que chegou à Presidência, ele é o principal agressor: em 2021, Bolsonaro realizou 147 agressões a jornalistas, 34% do total nacional”, destacou.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 353 ataques a jornalistas entre o início deste ano e a semana passada. Outra entidade do setor, a Repórteres Sem Fronteiras, contabilizou no primeiro mês de campanha eleitoral mais de 2,8 milhões postagens com conteúdos ofensivos a jornalistas brasileiros.

 

A repórter da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello, participou do evento e fez relatos sobre as agressões que tem sofrido nos últimos anos. Ela foi vítima de ataques sexistas de Bolsonaro.

Patrícia é autora de uma série de reportagens que revelou um esquema de contratação de empresas para realizar disparos em massa durante as eleições de 2018, que fizeram dela alvo preferencial de bolsonaristas nas redes sociais.

“É muito estranho que, desde 2018, nós jornalistas, nós repórteres, tenhamo-nos transformado em alvo. Em um país democrático, supostamente democrático, que tem um governo eleito democraticamente, mas que a imprensa se transformou em um alvo, especialmente as mulheres”, disse Patrícia.

Ela lembrou os ataques que recebeu, entre eles, ligações, e ameaças de agressão física. Ela também recebeu muitas mensagens com conteúdo pornográfico.

O Negócio do Jair - Juliana Dal Piva - Grupo Companhia das Letras

Além de Patrícia, Bianca Santana, Juliana dal Piva, Flávia Oliveira, Carla Vilhena e outras jornalistas de diversos veículos de todo o Brasil participaram do evento com depoimentos em vídeo.

As profissionais contaram alguns dos casos de ataques sofridos e falaram sobre as consequências das agressões. Medo de exercer a profissão, depressão, e danos a saúde mental, foram alguns dos efeitos relatados.

Daniela Cristóvão, da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB, também esteve no evento e afirmou que quando um jornalista é ameaçado no desenvolvimento da sua profissão a cidadania de todos está ameaçada.

Na mesma linha ocorreu a participação de Ana Amélia, advogada e membro do grupo Prerrogativas. “A liberdade de imprensa é essencial ao jornalismo. Não existe democracia sem a liberdade de imprensa e sem o papel essencial, sério, informativo do jornalista”, disse.

“A principal aliada é a imprensa na luta pelos direitos humanos”, disse Ariel de Castro, do Tortura Nunca Mais. “Imagina o que acontece com os jornalistas que estão na periferia, no interior, que não estão em grandes órgãos de imprensa. E o assédio judicial?”, questiona.

O evento foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), FENAJ, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Abraji, Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Repórteres sem Fronteiras (RSF), Instituto Vladimir Herzog, Associação Profissão Jornalista (ApJor), Barão de Itararé, Intervozes, Fotógrafas e Fotógrafos Pela Democracia, Associação Paulista dos Jornalistas Veteranos, Centro Acadêmico Vladimir Herzog e Centro Acadêmico Benevides Paixão.

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03
Out22

Evitar notícias é uma questão jornalística?

Talis Andrade

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Dados do Reuters Institute fortalecem a percepção de que cada vez mais pessoas estão evitando consumir notícias. O relatório de 2022 contrasta com os dados de 2021, que apontavam para o crescente número de consumo e percepção sobre a credibilidade da informação jornalística.

O relato de 54% dos entrevistados brasileiros afirmando que, frequentemente ou às vezes, fez pausas no consumo de notícias, coloca o Brasil na 3ª colocação mundial no que o Reuters Institute chamou de “evitação seletiva de notícias”.

Este comportamento foi acentuado pela continuidade da pandemia de Covid-19, mas a crise sanitária não é o único tema que gera a evasão da audiência. No contexto mundial, a guerra na Ucrânia e a crise climática foram sinalizadas como temas sensíveis. Já no Brasil, a inflação e a atuação do governo Bolsonaro foram listados como os mais evitados pelo público.

Se por um lado evitar notícias pode ser visto como comportamento diante de uma situação estressante (crises sanitária, política e climática), por outro pode dar pistas sobre o efeito cumulativo da produção noticiosa massiva no meio digital, atrelado a uma conscientização do público sobre a saúde mental.

Lançar luz sobre a questão pode fazer emergir percepções importantes sobre o trabalho do jornalista, para repensar a construção de pautas, a escolha de fontes e a relação com público, favorecendo, até mesmo, a saúde mental dos jornalistas.

 

Quem lê tanta notícia?

 

A pergunta de Caetano Veloso não foi pensada para um contexto de produção noticiosa digital, atualizada 24 horas por dia, 7 dias por semana, acessível a um toque de distância. Mas bem que poderia ser feita em uma das reuniões estratégicas dos grandes empresários da mídia. A sede pelos cliques, além de abarrotar os bancos de dados dos veículos, está, de fato, gerando consequências no modo que o público se relaciona com a produção jornalística.

Vale se questionar: quais os ganhos de um modelo de negócios com grande produção de notícias, enquanto a “demanda”, ou seja, o interesse do público pelo produto está diminuindo?

Se a pergunta anterior for feita de maneira séria, vem acompanhada de um segundo questionamento: o que estamos fazendo para contribuir com este cenário e para responder a ele?

Evidente que não é apenas o fator jornalístico que está em cena. O primeiro ano da pandemia provou que não é o produto jornalístico ou o modelo de negócios que são decisivos para o comportamento do público. Com a alta do consumo e da credibilidade jornalística em 2020, ficou perceptível que o público considera os veículos de comunicação como fonte de informação confiável.

Porém, passados alguns meses de entendimento da pandemia e o retorno para uma “normalidade”, os índices de evasão voltaram a aumentar (no Brasil a evasão duplicou em 5 anos, saindo de 27%, em 2017, e alcançando os 54%, em 2022).

A relação da evitação de notícias com a saúde mental pode ser identificada pelos motivos listados pelos entrevistados, em que:

  • 36% dizem que as notícias têm efeito negativo sobre o humor;
  • 29% dizem que estão desgastados pela quantidade de notícias e
  • 16% dizem que não há nada que possa ser feito com as informações.

É oportuno citarmos, também, que o índice de evitadores de notícia é maior entre pessoas com menos de 35 anos. Os dados apontam que a evitação de notícias faz parte de um comportamento geracional, em que os mais jovens dão espaço para as mídias sociais em detrimento dos veículos de comunicação. Entre os motivos para evasão de notícias entre os jovens, 15% diz que é difícil acompanhar notícias.

Assim, ainda que a evasão de notícias esteja dentro de um cenário amplo, há pistas do que jornalistas e veículos de comunicação podem fazer para responder uma transformação no modo de consumo de informação.

 

Ingredientes de notícias para humanos

 

O incômodo que a jornalista Amanda Repley sentia por estar consumindo cada vez menos notícias serviu como ponto de partida para sua coluna no Washington Post, sobre possibilidades para notícias mais alinhadas a um contexto de crescimento de evitadores de notícia.

Repley defende que as notícias, mesmo as impressas, não são mais projetadas para humanos, mas para vender. A influência das métricas na produção de notícias já reúne estudos e reflexões importantes, seus efeitos a curto prazo podem funcionar, mas estamos vendo que a longo prazo não há sustentabilidade.

No seu trabalho de investigação sobre produções jornalísticas mais conectadas com as necessidades humanas, a jornalista focou em elementos para além do interesse público (e interesse do público) para entrevistar médicos, cientistas comportamentais e psicólogos.

Ao analisar o fator humano e psicológico que contribuem com o “transtorno de estresse das manchetes” (tradução livre para “headline stress disorder”), a jornalista sugere três ingredientes que podem contribuir com notícias que causam menos fadiga e, consequentemente, diminuir a evitação de notícias: 

  • a esperança – biologicamente relacionada a baixos índices de depressão e ansiedade, a possibilidade de mudança é importante fisiologicamente para o ser humano; 
  • a “agência” – a possibilidade de ação diante de um cenário noticiado está relacionada à esperança e é mais evidente em produções sobre as mudanças climáticas e 
  • a dignidade – considerar o valor da vida, seja da fonte entrevistada ou do público, vistos como humanos e não, apenas, como parte do trabalho.

Apesar de conflitarem com gatilhos de interesse público que já estão em nosso imaginário, como a morbidez e a catástrofe, as perspectivas de Repley não parecem excludentes, mas sim complementares para as produções jornalísticas da atualidade.

Se, cada vez mais, a importância da saúde mental está sendo evidenciada, é natural pensar que ela deve ser considerada em nossas produções. Muitos desafios devem ser levados em conta, desde os conflitos organizacionais até a práxis jornalística, mas o fato é que não podemos continuar insistindo em um modo de produção se o modo de consumir está, evidentemente, mudando.

 

 

13
Set22

A primeira vítima

Talis Andrade

O jornaleiro

 

Cesar Valente /objETHOS

Vocês, que nasceram ontem, talvez não consigam avaliar o tamanho da decepção que sinto sempre que vejo um colega, que tem quase tanto tempo de vida e profissão quanto eu, tratar com desleixo, incompetência ou mesmo má fé as informações que publica em seus espaços. A dor é ainda maior quando esse espaço é num veículo de comunicação que o remunera, teoricamente, por um trabalho profissional.

Esse sofrimento, embora possa parecer, não é coisa nova. Não surgiu com a popularização da internet e suas ferramentas. Bem antes, havia colegas que se entregavam ao uso preguiçoso e não raro delituoso do off. O off, como imagino que todos saibam, é aquela informação cuja fonte quer permanecer oculta.

Trata-se de um recurso muito útil em algumas situações. Na ditadura militar que infelicitou o Brasil, por exemplo, poderia ser necessário não citar o nome, para garantir a segurança daquela pessoa. Ou o emprego.

E, claro, é campo fértil para engodos, trapaças e plantações. Um jornalista aético pode servir a vários senhores publicando, como “de fonte próxima aos fatos”, informações de interesse deste ou daquele, para atingir algum objetivo situado a léguas de distância do que deveria ser o objetivo de uma informação jornalística.

Sem muita surpresa, mas nem por isso com menos tristeza, vez por outra vejo que o mesmo colega que me espantou fazendo mau uso do off, décadas atrás, agora faz mau uso do material que recebe em grupos de WhatsApp.

Houve tempo em que chamávamos alguns colegas apanhados no mau exercício da profissão, de “picaretas”. Era uma enorme vergonha, para a maioria de nós, ser chamado de “picareta”. Significava, no mínimo, que era possível comprar citações elogiosas, menções abonadoras, em textos revestidos daquela aura jornalística que lhes emprestava, em certa medida, fé pública.

Nem todos os leitores desconfiavam que as críticas (ou elogios) não eram resultado de uma apuração honesta dos fatos e suas circunstâncias, mas de um acerto financeiro qualquer, realizado sob um manto espesso de sigilo. E quem sabia de tais descaminhos, não tinha muito o que fazer. Ou nem sabia como reagir.

Olhávamos com certa inveja para os Conselhos Federais de outras profissões, no que eles representavam de possibilidade de controle do exercício profissional. Não só nunca conseguimos nos organizar para criar uma instituição semelhante, como em algumas das vezes em que essa ideia foi à público, houve um bombardeio intenso e de múltiplas origens, rotulando a coisa como “tentativa de censurar a imprensa”. Era o contrário, mas ninguém parecia disposto a ouvir, muito menos a conversar e entender.

Passaralhos e o muro

Durante algum tempo, em várias cidades, grupos grandes de jornalistas faziam a avaliação ética e moral da forma como a profissão era exercida, nas mesas dos bares. Não por acaso, alguns dos bares frequentados por jornalistas depois do expediente, onde essas discussões fundamentais se davam, tinham nomes como “Pé Sujo” ou “Sujinho”.

Os “maus jornalistas”, segundo as atas das reuniões de final de noite, escritas em papéis manchados de molho de pimenta e selados com a marca circular de algum copo de cerveja, não estavam nesses bares: jantavam nos restaurantes finos frequentados pelos donos das empresas jornalísticas. O que pode ser apenas rancorosa maledicência.

Mas, coincidência ou não, enquanto voejavam os passaralhos (nome vulgar que identifica uma leva de demissões de jornalistas. Nunca ficou muito claro a partir de que número de demissões simultâneas se autoriza o uso desse nome. Mas quando são demitidos mais de dez jornalistas de uma vez, trata-se, sem dúvida, de um passaralho), aqueles colegas que nos espantavam porque suas colunas vertebrais tinham uma flexibilidade quase olímpica, em geral sobreviviam e não eram alcançados nem pelas garras da contenção de despesas, nem da reacomodação organizacional.

Uma das lendas do jornalismo (surgida, como tantas, nos jornais dos Estados Unidos) era o muro que deveria separar a redação (onde era produzido o material editorial), do comercial (de onde vinham os recursos que financiavam a operação editorial). Como toda utopia, parecia não só muito razoável, como até exequível.

Ao comercial cabia oferecer, aos clientes interessados em fazer suas mensagens chegar aos leitores, ouvintes, telespectadores, espaços naquele veículo. Que seriam ocupados, mediante remuneração, por material publicitário produzido pelo cliente que, de maneira alguma, poderia confundir-se com o material editorial do veículo.

Tudo ia muito bem até que um dia um cliente, cheio da grana, fez a seguinte proposta para o vendedor de espaços comerciais de algum jornal: “Se o jornal fizer uma reportagem assim e assim, mostrando isto e aquilo, eu fecho um contrato de seis meses com vocês”. Claro que essa historinha é inventada. Acabei de pensar nela para exemplificar uma das tentações que atacavam diariamente os veículos. O que é verdade é que propostas como essa sempre fizeram brilhar os olhinhos de muita gente.

E o muro? Ora, quando se trata de dinheiro, os donos dos veículos nunca ficam em cima do muro. Sempre se preocupam com a viabilidade do negócio. Mais ou menos como os governos brasileiros sempre se preocupam com a governabilidade. Em nome da governabilidade, digo, da viabilidade, não custa nada reunir a chefia da redação e a chefia do comercial, para encontrar um ponto comum. Provavelmente no centro.

É importante lembrar a quem, apesar do que já foi dito, continua lendo, que ainda estamos no final do século passado, quando ainda havia jornais e veículos onde o comercial (ou o marketing) não estava hierarquicamente acima da chefia da redação. E essas conversas entre comercial e redação, intermediadas por figurões da “alta direção” da empresa, eram também conhecidas como “conversa de levar gato para tomar banho”.

Entre os chefes alguns eram mais resistentes, outros mais compreensivos e alguns decididamente coniventes. Alguns aceitavam pensar na possibilidade de incluir os temas na pauta, mas informavam que o material seria tratado com rigor profissional. Outros só faltavam pedir que o cliente mandasse o texto e as fotos. E, se não fosse possível, que não se preocupasse, que ele mandaria o texto para uma revisão antes da publicação.

Tive a felicidade de trabalhar num jornal cujas chefias estavam entre as que ainda resistiam ao assédio, ao charme, aos apelos e às vezes às ameaças do comercial e (não raro) dos acionistas controladores da empresa. Por incrível que possa parecer, o jornal se chamava Gazeta Mercantil e tratava, essencialmente, de economia e negócios.

Uma das formas que o jornal encontrou para ampliar as possibilidades de anúncio, foi a criação de cadernos especiais (chamados de Relatórios). Como fazer isso sem se entregar de corpo e alma ao “inimigo”? E respeitando o que o minucioso manual de redação do jornal prescrevia?

Conheço essa história porque fui, por alguns anos, “editor de Relatórios”, que era como me apresentava e pouca gente na própria redação ouvia sem perguntar “o que é mesmo que tu fazes? Qual é tua editoria?” E funcionava assim: eu e uma pequena equipe fixa produzíamos, com ajuda de repórteres da casa, chamados conforme a área, esses cadernos, que não eram diários.

Alguns temas, como “Oportunidades na Amazônia”, “Transporte Ferroviário”, “Bancos”, poderiam parecer, à primeira vista, caça-níqueis, uma capitulação editorial às pressões dos interesses dos anunciantes. Mas, para tranquilidade da minha consciência, eram elaborados com esmero jornalístico: jornalistas da sede eram enviados para reportagens que duravam vários dias, correspondentes em várias capitais eram acionados, a pauta era discutida internamente, sem a participação (e sem o conhecimento) do comercial.

O comercial sabia, claro, que estava sendo preparado um relatório sobre tal tema, com circulação tal dia. Alguns dos temas tinham sido sugeridos por eles. E cessava ali a troca de gentilezas. Mas eles sabiam que podiam oferecer a seus clientes da área, espaços num material que teria apuração cuidadosa, texto informativo e abundante: os relatórios tinham em média de oito a dez páginas tamanho standard.

Sem teto, mas com colunas

Claro que essas tentativas de relacionamento sadio com os financiadores da operação sempre muito cara que é o jornalismo de qualidade não foram suficientes. No começo do século XXI, o jornal definhou, rastejou e depois fechou, como tantos outros.

Com a crise se alastrando, e o desconhecimento de que crise, afinal, é essa, os jornais e veículos sobreviventes, assustados, começaram a entregar os anéis para tentar preservar os dedos. Se quisermos usar uma imagem bem educada.

A primeira vítima em toda crise que tenha componentes financeiros, nos veículos de comunicação, é a vergonha na cara. Desaparece. O pudor que eventualmente alguém teve, um dia, de vender uma pauta, de aceitar matéria paga, de cobrar por notinhas nas colunas, some completamente.

E, pior, foi substituída por uma volúpia aética de fazer caixa a qualquer custo. Por que ter motoristas para conduzir repórteres? Basta exigir, na contratação, carteira de habilitação para dirigir. Por que ter fotógrafos se os celulares têm câmeras ótimas e se o repórter que fará o texto tem celular? Por que ter repórteres se as principais informações estão na internet e custa nada transcrevê-las? Ou, se “todo mundo” tem assessoria de imprensa e manda material prontinho e grátis?

Aos poucos, os jornais sobreviventes ganharam uma aparência daquele antigo templo grego na Acrópole, o Partenon: dezenas de colunas que não sustentam coisa alguma, porque o teto já ruiu. Dezenas de colunas. Pra nada. Alguns jornais chegam ao ponto de cobrar dos colunistas para que publiquem suas colunas. Outros ainda remuneram (mal, claro) os colunistas, mas fazem vista grossa, ou até estimulam, os usos pouco republicanos daquele espaço.

E acabamos voltando ao lamento cheio de mimimi com que iniciei este comentário: o último dos moicanos, um dos escassos jornalistas ainda remunerados para escrever, que tem a dádiva de uma coluna (local onde, teoricamente, poderia tratar, com maior liberdade do que numa reportagem, das questões fundamentais da humanidade, ou pelo menos da rua onde ele/ela vive), joga décadas de história profissional na lata do lixo porque achou uma boa ideia aceitar a sugestão da esposa, do dono do jornal, de algum “empresário” cuja lancha usa de vez em quando e transcreveu, acriticamente, uma bobagem que recebeu pela internet.

O triste fim da história é que nem adianta chamar a atenção, avisar do equívoco, do desvio. Lembram que disse, há poucos parágrafos, que a primeira vítima nessas “crises” é a vergonha na cara? Pois é. Só quem ainda tem vergonha na cara, quando confrontado com algum equívoco ou erro que tenha cometido, trata de remendar, corrigir, desculpar-se. Não é, portanto, o caso.

 

 

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