O milionário Thiago Brennand | Foto: Reprodução / Redes sociais
Enquanto imprensa divulga corte de cabelo e outfit na prisão de acusado de abuso sexual, encarcerado comum no Brasil convive com ratos, doenças, agressões e violações diárias de direitos
Sim, leitor, lá vem a Jéssica, de novo, falar sobre privilégio branco. Mas veja se não tenho alguma razão. Eis Thiago Brennand, este moço branco rico, que tem um arsenal com 67 armas, que agride uma mulher em público e nada lhe acontece. É acusado de estuprar mulheres e as tatua com suas iniciais — como se fossem bois — e nada lhe acontece. Que é acusado de usar arma de choque contra o próprio filho e nada lhe acontece. E quando ele — depois de se entocar em outro país — é deportado e preso, subitamente as condições ruins da prisão são magicamente descobertas pela imprensa. Como chamar isso se não privilégio branco?
Faça um exercício, leitor: se Thiago fosse um homem negro, você acha que sua prisão teria a mesma importância? Acha que falariam sobre asuperlotaçãodo presídio ou que ele “escapou” de ter o cabelo cortado ao ser preso ou ainda sobre o “look” que ele vai usar? Você acha que ele ganharia importância da grande mídia? Você acha que os seguranças da academia não teriam reagido caso ele agredisse alguém? Eu acredito que não. Afinal, o negro que vai para a cadeia, vai pro seu lugar, para a senzala onde não tem direitos (sei que vou receber algum e-mail falando “leva para casa” ou falando que somos defensores de bandido, então de antemão, agradeço o engajamento — ainda que seja negativo).
Enquanto a falta de corte de cabelo de Brennand é mote de reportagem, a Ponte noticiou que presos estavam denunciandocortes compulsórios de cabelo e barba. Aqueles que não seguiam a norma eram punidos, de acordo com a Defensoria de São Paulo, que impetrou uma ação civil pública solicitando que o governo paulista proibisse a ação. Também falamos sobre oracionamento de águaque acontece em 70% das prisões em São Paulo, dados da Defensoria.
Que o leitor não se engane: há corpos feitos para terem direitos humanos respeitados e histórias publicizadas à exaustão no horário nobre. E outros que podem morrer em condições subumanas e serem esquecidos – a menos que a Ponte conte suas histórias. Enquanto Thiagos Brennand ganham capas de jornais por seu look no presídio, tem toda uma população carcerária tentando sobreviver em condições terríveis, todos os dias.
Enquanto os golpistas presos pelos atos em 8 de janeiro reclamam falta de wi-fi, em 2022, mães denunciaram à Ponte que a comida que enviavam para suas filhas encarceradas estava roída por ratos. Detalhe: algumas gastam R$ 600 nesse “jumbos” – que são envio de pacotes de alimentos e itens de higiene pessoal – e suas filhas não receberam nada.
Em “O coronel que raptava infâncias”, o repórter Matheus de Moura mergulha da história de Chavarry, condenado por estupro de vulnerável e por corrupção, após tentar subornar os policiais que o aboradaram.
No livro, o jornalista mostra a trajetória de Chavarry desde a década de 1980, incluindo a construção da reputação de contribuições à assistência social de famílias vulneráveis até as acusações de integrar uma rede de pedofilia.
‘O coronel que raptava infâncias’: Matheus de Moura lança livro sobre PM abusador de crianças
Obra do jornalista foi lançada pela editora Intrínseca e narra o passado obscuro de Pedro Chivarry, coronel da PM do Rio de Janeiro responsável por uma rede criminosa de abuso sexual de crianças preso em 2016
Quando ainda era estudante de jornalismo em 2016, Matheus de Moura se deparou com o caso chocante que mudaria o rumo da sua vida pessoal e profissional: o flagrante do coronel reformado da Polícia Militar Pedro Chavarry Duarte, que estava dentro de um carro com uma criança, nua, de apenas dois anos. O episódio, que aconteceu em um posto de gasolina em Ramos, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, ganhou as manchetes dos jornais junto com umvídeo que mostrava Chavarry tentando subornar policiaispara não ser preso.
Na época, mesmo vivendo em Santa Catarina, Matheus de Moura decidiu investigar o passado do PM ao acompanhar a repercussão do caso. Cinco anos depois de uma intensa e profunda apuração, que o fez se mudar para o Rio de Janeiro, o jornalista conta todos os capítulos desta história no seu primeiro livro, O coronel que raptava infâncias, lançado oficialmente pela editora Intrínseca na Academia de Literatura das Ruas da última quarta-feira (18/8). A live conduzida pela editora de relacionamento Jessica Santos foi transmitida no canal daPonte. Foram sorteados quatro exemplares da obra aos membros do Tamo Junto.
“Eu olhei aquele cara da polícia militar tentando subornar com tanta facilidade, como quem parece que faz aquilo muitas vezes, e pensei que esse é um comportamento repetido, sistemático e provavelmente tem o lastro de anos. Fiquei aficionado nessa ideia de que por trás daquela ação tinha uma história muito maior”, lembra o jornalista do dia que assistiu o vídeo do coronel em uma reportagem do Fantástico.
Hoje, Matheus de Moura é mestrando em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colabora para veículos como aPonte, o The Intercept Brasil e o UOL escrevendo sobre direitos humanos, segurança pública e crime organizado.
Desvendando o passado de Chavarry
O caso de 2016 não foi o primeiro flagrante envolvendo Pedro Chavarry. Já na década de 1980, o coronel foi preso após a polícia encontrar um bebê de três meses abandonado em situação precária dentro de uma casa que pertencia a ele em Bangu. “O chefe da associação de moradores já observava que ele sempre parava o carro lá, deixava uma mala e voltava. Toda semana tinha esse momento”, explica Matheus sobre a desconfiança dos moradores do bairro que chamaram a polícia.
Naquele local, foram encontrados indícios de que pelo menos outras quatro crianças haviam sido alvos de Chavarry. “Ele mentia que existia uma creche, em nome da Polícia Militar, e que ele cuidava destas crianças. Só que era balela, não tinha nada. Era um homem que no máximo tinha uma ajuda de uma senhora bem idosa de vez em quando, mas que tinha comprimidos de calmante para adulto nas coisas das crianças, uma câmera cujo filme estava destruído, e que ninguém sabia para que servia”, detalha Matheus sobre o que foi encontrado na casa.
No entanto, mesmo acusado de abandono e maus tratos, o coronel ficou preso por uma noite e foi absolvido em segunda instância, mantendo as funções dentro da PM. Segundo o jornalista, Chavarry voltou aos noticiários quando foi denunciado por receber propina do jogo do bicho junto com outros policiais. A partir de 2010, o coronel volta a aparecer na cena política, construindo “uma imagem de que ele é um homem de Deus, um homem do bem” e se torna presidente da Caixa Beneficente da PM do Rio de Janeiro, que assegura benefícios e serviços à policiais militares.
“Quando ele é pego em 2016, o policial Batista, que o prendeu, recebe uma ligação de um amigo de outro batalhão falando: ‘você prendeu o Chavarry, cara? Chavarry a gente não prende, a gente mantém solto’”, conta Matheus sobre o reconhecimento e a impunidade em torno da figura do coronel que era responsável por uma rede criminosa de abuso sexual de crianças.
Exploração sexual de crianças
Nos últimos anos, ao se mudar para Niterói, Matheus de Moura percorreu diversos pontos do Rio de Janeiro para falar com as vítimas, os familiares e encontrar documentos sobre o histórico de Pedro Chavarry. O jornalista diz que muitas mães relataram que se sentem culpadas pelo que aconteceu com seus filhos. Grande parte das crianças vítimas dos abusos moravam em favelas e eram de famílias humildes, em situação de vulnerabilidade.
Na obra, Matheus traz também a entrevista de um parente do coronel que contou mais detalhes de como era o convívio dele com a família. A narração também abre o debate para diferenças acerca de pedofilia e exploração sexual. Ele destaca que Chavarry atuava como explorador sexual. “São pessoas que constroem a vida para poder exercer poder e poder sexual”, ressalta. Ao mesmo tempo, a imagem do coronel era relacionada aos programas de assistência social que ele liderava.
Matheus avalia que os casos de abuso sexual envolvendo crianças causam mais comoção e indignação atualmente. “Hoje a gente presta atenção na infância como algo a ser protegido e isso é bom, mas ainda não se reflete totalmente em crianças que vivem na rua, pois aí não é mais criança, é o ‘de menor’, uma forma de tipificar criminalmente uma criança que está na rua”, ressalva.
Na visão do jornalista, a cobertura da imprensa comete erros nos casos de abusos sexuais de crianças ao confundir o crime com pedofilia, que é uma doença pela qual as pessoas precisam buscar tratamento. “São duas coisas diferentes. Enquanto a gente continuar tratando doença como crime, a gente não vai conseguir avançar na discussão”, aponta. Segundo ele, o próprio Ministério Público evita acusações usando o termo pedofilia.
Em 2017, o coronel da PM foi condenado a 11 anos de reclusão por estupro de vulnerável e corrupção ativa e dois anos mais tarde foi preso. Atualmente, Chavarry segue fazendo parte da corporação mesmo detido no Batalhão Prisional da PM, em Niterói, e recebe salário.