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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Ago23

As famílias de SP que moram em microcasas para escapar da vida nas ruas

Talis Andrade
Barracas com moradores de rua embaixo do MinhocãoBarracas enfileiradas surgiram embaixo do Minhocão, em São Paulo
 
  • por Katy Watson
  • BBC 

O Minhocão é um dos pontos mais famosos de São Paulo. Uma via elevada que serpenteia o centro da cidade, desenhando um caminho entre prédios populosos.

A via, que tem o nome oficial de Elevado Presidente João Goulart, faz parte do sistema que conecta o leste ao oeste da cidade.

Por mais que domine a cidade pelo seu tamanho, o Minhocão também abriga um número crescente de pessoas.

Abaixo da via elevada, cada vez mais famílias sem-teto erguem suas tendas, expulsas das suas casas pelo aumento dos aluguéis.

Muitos outros têm de se contentar com cobertores que lhes são entregues pela prefeitura.

No inverno, fica mais difícil a cada dia.

As autoridades de São Paulo estimam que cerca de 34 mil pessoas estejam dormindo nas ruas em 2023, enquanto números da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estimam em cerca de 50 mil.

A população sem-teto aumentou mais de 31% desde a pandemia e o número de famílias que dormem na rua aumentou 111% no mesmo período, segundo a prefeitura.

Com um número crescente de pessoas precisando de ajuda, as estratégias tradicionais de cozinhas comunitárias e abrigos estão aquém do esperado.

Portanto, este ano a cidade apresentou uma nova solução temporária: a microcasa.

A primeira vila de microcasas foi construída próxima às margens do Rio Tietê, no bairro do Canindé, na zona norte da capital Paulista.

Lar de uma das primeiras favelas de São Paulo, hoje o local abriga cerca de 20 famílias, cada uma morando em uma caixinha que parece um contêiner e mede 18 m².

Uma praça com um parquinho para crianças dá um ar comunitário ao local. As crianças brincam enquanto os pais, sentados em bancos, as observam.

O objetivo é construir mil casas desse tipo em toda a cidade até o final do ano, abrigando 4 mil pessoas.

“É uma forma de cuidar das pessoas a partir do conhecido conceito internacional housing first (moradia primeiro, em tradução livre), oferecendo habitação como o primeiro passo para ajudá-las a se reerguerem”, explica Carlos Bezerra Júnior, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo, responsável pelo projeto.

Daniela Martins, de 30 anos, apresenta sua microcasa.

Ela divide a cama de casal com o marido Rafael, de 32 anos, e a filha Sofia, de 4 anos. Na parede oposta, há um berço para o bebê Henri, de 3 meses.

A cozinha de canto tem um pequeno fogão, uma pia e uma geladeira. Ao lado, fica um banheiro simples.

A pandemia de covid-19 atingiu duramente a família. Rafael perdeu o emprego como vendedor e o trabalho de Daniela como faxineira acabou.

Eles viveram em um abrigo por oito meses antes que essa oportunidade surgisse.

“Este é um lugar onde estamos tentando voltar a viver em sociedade, a sermos humanos de novo, sabe?”, diz Rafael. “Queremos apenas uma vida normal. Muitos empregadores pensam que as pessoas que vivem em abrigos são pessoas más”.

O estigma que acompanha a perda de uma casa torna muito mais difícil a recuperação de uma família, dizem especialistas de instituições de caridade para moradores de rua.

“Tradicionalmente, quem vive nas ruas é em sua maioria homens, com alguns problemas mentais e familiares”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

“Agora, estamos falando de famílias inteiras vivendo nas ruas. Então, claramente a questão é habitação. E a ideia de que a administração municipal está se mobilizando para abordar o tema é uma boa notícia”.

No entanto, diz ela, as microcasas não são a solução perfeita.

“Há muitas críticas ao formato, à concentração de casinhas agrupadas no mesmo local, formando guetos”, explica.

Ela critica a falta de planejamento urbano e pensa que poderia ser feito um melhor uso das habitações já existentes — muitas vezes abandonadas —, para torná-las também habitáveis.

O Brasil é um país famoso por sua desigualdade e imensas favelas. Mas mesmo nelas — grandes áreas de habitações improvisadas construídas frequentemente por posseiros — tornaram-se inacessíveis para muitos.

“Claro que é grátis para o primeiro que ocupa, mas não é grátis para o segundo, para o terceiro ou para o 10º”, afirma Raquel Rolnik, referindo-se à moradia nas favelas.

“Eles também se baseiam em atividades comerciais – uma atividade que fornece o que não é entregue no mercado formal. E isso num contexto de total ausência de uma política habitacional”.

A segunda maior favela de São Paulo chama-se Paraisópolis, nome que a moradora Eliane Carmo da Silva, que mora em um quarto apertado com mofo crescendo nas paredes, considera irônico.

A casa dela fica num pequeno beco fora da avenida principal, no piso térreo, com pelo menos mais dois andares construídos de maneira improvisada acima dela.

Eliane e o marido pagam R$ 350 por mês por um espaço suficiente para abrigar uma cama de casal, um fogão e uma geladeira.

Esse valor é mais do que eles podem pagar atualmente. A neta deles, Rennylly Victoria, tem uma doença cardíaca, e o pouco que ganham vai para a medicação que a mantém viva.

Embora o proprietário seja compreensivo, está cada vez mais difícil sobreviver, apesar de receberem alimentos e ajuda de instituições de caridade locais.

“Este mês, tivemos que usar o dinheiro do aluguel para comprar os remédios”, explica Eliane, acrescentando: “Nunca vou deixá-la morrer”.

Ela também não deixará sua ambição morrer. “No momento, pagar o aluguel não nos permitiria sobreviver. Sem doações, as coisas seriam incrivelmente ainda mais difíceis”, diz ela.

"Meu sonho é ter minha própria casa, é claro - trabalhar para ganhar dinheiro e avançar."

30
Ago23

'Invisíveis até na morte': a luta de um morador de rua para evitar que sua mulher fosse enterrada como indigente

Talis Andrade
 
Cláudio Oliveira diante de cova da ex-companheira em Fortaleza
Diante de cova de ex-mulher em Fortaleza: corrida contra o tempo pelo direito de reconhecer e sepultar o corpo. Foto Marília Camelo

  • Thays Lavor
  • De Fortaleza para a BBC News

 

"Eu cuidava dela, a gente ia se cuidando. Todo dia penso na Ana Paula, não é fácil perder o amor da gente", lamenta o cearense Cláudio Oliveira, de 48 anos, em meio a garrafas velhas e uma barraca de camping numa praça de Fortaleza.

Cláudio e Ana viveram juntos por 22 anos nas ruas da capital do Ceará. Moraram em oito praças da cidade e criaram quatro cachorros.

A relação selada na rua, no entanto, não deu a Cláudio o direito legal de reconhecer o corpo da companheira, que morreu há quatro meses.

A perda levou Claudio a protagonizar uma corrida contra o tempo, em busca de poder reconhecer e sepultar o corpo da mulher, que não tinha documentos.

"Ela era casada, mas nos casamos de novo, na rua. Todo mundo aqui conhecia a gente. De repente ela foi embora, sumiu - quando soube dela, já tinha morrido. Andei muito, fui, voltei, meus pés ficaram inchados de tanto andar. Passei em todo canto para não deixá-la ser enterrada como indigente", conta o morador.

A trajetória expõe um problema ainda crítico no Brasil, o da identificação da população em situação de rua.

Vítimas de inúmeros estigmas, essas pessoas somavam 101,8 mil no Brasil em 2015, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desse total, 40% não possuem documentos de identificação, de acordo com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR).

Tal situação, além de dificultar o acesso a quase todos os direitos negados pela falta da comprovação (de ir e vir, a voto, educação, saúde, habitação e trabalho, por exemplo), também os torna invisíveis na hora da morte. Sem identificação, são enterrados como indigentes em cemitérios públicos.

"Às vezes a gente tem a impressão que até para morrer esse povo não é gente, e a gente precisa muito superar isso", afirma Nailson Nelo, da Pastoral do Povo da Rua.

 

Via-crúcis

Após Ana Paula sumir, Cláudio passou duas semanas à sua procura em praças, abrigos e hospitais da cidade. Em 28 de julho, soube que a companheira, de 51 anos, havia morrido no Instituto Doutor José Frota, um dos maiores hospitais de Fortaleza.

Àquela altura, a mulher falecera havia dois dias e o corpo, sem identificação, já tinha sido encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) - em cinco dias, seria direcionado para sepultamento.

Menos de uma semana: este foi o tempo que Cláudio teve para reclamar o corpo e provar que era companheiro de Ana.

"No hospital, a assistente social confirmou que o corpo já estava no IML, mas não me deixaram vê-la, pois não tinha como provar que a gente vivia junto. Foi difícil, rodei muito até conseguir", conta Cláudio.

Para Fabiana Miranda, representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), ainda há muitos obstáculos, como discriminação e preconceito, para que moradores de rua possam ter acesso a serviços públicos.

"A burocracia ainda é extremamente rígida e não consegue se adequar às necessidades da população de rua. Gestores precisam flexibilizar exigências à realidade dessas pessoas", analisa a defensora pública.

No caso de Claudio, o entrave era a falta de documentação da companheira - ou seja, era preciso provar que o corpo que ele reclamava era mesmo da pessoa a qual ele se referia.

Segundo a assistente social Carla Carneiro de Souza, que acompanhou todo o processo, foram feitos exames de papiloscopia (impressões digitais) e de DNA para comprovar a identidade do corpo.

Nesse processo, descobriu-se que o casal já tinha sido abordado por um dos serviços da prefeitura, o Centro Pop (de referência à população de rua), e que possuía cadastro lá.

"Então foi encontrada uma certidão de casamento de Ana, onde constava o nome real dela, que era Maria Emília. A certidão havia sido tirada para poder emitir os seus documentos civis", conta Carla. Ana Paula provavelmente perdera os documentos.

Nesta busca, também foi identificada uma filha de Ana Paula, que contribuiu ao reconhecimento do corpo, por meio do exame de DNA, mas se absteve da responsabilidade pelo enterro.

Faltava ainda, contudo, comprovar a relação estável do casal.

"Tive muita ajuda. Eu não podia deixar que ela fosse jogada na vala como nada. Era a minha família, a gente ia pra todo canto, pegava a estrada e ia mangueando (mendigar)", conta Cláudio, alcoólatra como a antiga companheira.

Solução

A comprovação da união estável só foi possível por meio do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Ceará, que tomou uma medida denominada liberação administrativa.

Assim, Cláudio pôde reconhecer o corpo da companheira e se responsabilizar por ele. Há pouco mais de dois anos isso não seria possível em um prazo tão curto, e levaria um tempo mínimo de dois a seis meses.

"Antigamente, para conseguir essa liberação, era preciso entrar com uma ação judicial, e eles quase nunca conseguiam, pois normalmente a população de rua não tem nem sequer documentação, ou seja, são invisíveis 100%", explica a defensora pública geral do Ceará, Mariana Lobo.

Antes, através da ação judicial, era preciso oficiar todos os cartórios da cidade para verificar se a pessoa morta ou quem fazia o pedido tinha alguma documentação, processo que poderia levar até seis meses - e os corpos acabavam sendo enterrados como indigentes.

"Além desta situação em que eles estão, negar o direito à cidadania, negar o direito de velar um corpo de um ente querido seria outro ônus e outra invisibilidade colocada em cima deles", afirma a defensora.

'Minha infância foi uma porcaria'

De fato, a vida de Claudio é marcada por dificuldades. Logo ao nascer, ele foi trocado na maternidade. Com dois anos voltou para a família biológica, onde viveu até os 18 anos, no bairro Vila União, em Fortaleza.

Rejeitado pela mãe e alvo de violência doméstica, ele cresceu fugindo de casa. Com laços familiares rompidos, buscou refazer a vida nas vias da cidade, onde conheceu Ana Paula.

"Minha infância foi uma porcaria. Minha mãe me batia, não gostava da minha cor, morreu impedindo que a chamasse de mãe. Com Ana Paula peguei a estrada. Mendigamos juntos, vivemos muita coisa, era minha companheira. O que eu passei com ela, nem com minha família, que é sangue do meu sangue", relembra Claudio, que vive de esmolas e R$ 87 mensais do Bolsa Família.

Obstáculos

Para órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o MNPR, estimativas do Ipea e dos municípios sobre população de rua no país não refletem a realidade. Para eles, o Brasil possui hoje aproximadamente 400 mil moradores de rua.

"A contagem só é feita por meio de números que chegam pela assistência e pela população encontrada nas praças e vias mais movimentadas. Mas a população de rua também está em terrenos baldios, buracos, lixões e outros lugares em que a assistência não chega", diz Leonildo Monteiro, do CNDH.

Segundo ele, as principais demandas que chegam ao CNDH sobre população em situação de rua têm origem na falta de documentação. "Tentamos garantir os direitos que lhe são básicos e que acabam não acontecendo por falta desta identificação, o que é um absurdo", avalia.

Há conversas em curso para que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inicie a contagem desta população em 2020, mas não há nada de concreto em relação a isso.

A Política Nacional para População em Situação de Rua, instituída pelo governo federal em 2009, teve adesão de apenas oito capitais até hoje, segundo o MNPR: Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte , São Paulo, Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. (Publicado em 19 dezembro 2016)

22
Ago23

Etarismo, da invisibilidade à educação intergeracional

Talis Andrade

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Não se trata somente do que pensamos e sentimos sobre a velhice e os velhos, mas esses sentimentos e pensamentos se expressam na prática do dia a dia de modo real como agressividade, violência e discriminação

 

por Flávia Maria de Paula Soares

Você já ouviu falar em etarismo ou idadismo? Ou ainda, velhismo? Se você tem mais de 50 anos, talvez você tenha passado por uma situação de etarismo, mas não saiba o nome. O etarismo, idadismo ou velhismo são estereótipos (a forma como pensamos), os preconceitos (como nos sentimos) e a discriminação (como agimos) em relação à idade mais avançada. A questão do etarismo é que não se trata somente de um conjunto de ideias inofensivas e sem consequências. Não se trata somente do que pensamos e sentimos sobre a velhice e os velhos, mas esses sentimentos e pensamentos se expressam na prática do dia a dia de modo real como agressividade, violência e discriminação.

Pouco se fala disso, e essa é uma característica que faz o etarismo se manter e se perpetuar: os eventos etaristas muitas vezes nos passam despercebidos, pois eles têm essa característica de invisibilidade. Mas, se você tem 50 anos ou mais, talvez você já tenha sofrido seus efeitos e sentido um constrangimento, um mal-estar em alguma situação, se sentido desvalorizado ou como se fosse incapaz de fazer algo de que você é capaz de fazer, mas que até há pouco tempo antes dessa situação atual você não se sentia, tudo isso em razão de você ter atingido uma certa idade. O etarismo tem muitas faces, às vezes bem explícitas e grosseiras, como xingamentos e agressões, e outras maquiadas por uma piada ou “brincadeira” em relação à idade. As expressões do etarismo podem ainda ser mascaradas por um modo infantilizado de se tratar as pessoas e/ou pelo cuidado ou excesso de zelo, inibindo os idosos de realizarem atividades das quais têm autonomia para fazê-las.

Mas como mudar essa situação? Como podemos fazer para sustentarmos uma sociedade democrática onde os velhos tenham seu lugar, seu espaço de expressão e direitos de existirem com suas especificidades, estilos e pluralidade? É preciso que a gente reflita e avalie em si mesmo as nossas condutas estereotipadas e preconceituosas sobre idade e que principalmente, a gente fale disso/sobre isso. Muitas vezes não nos damos conta de frases e condutas etaristas (não somente em relação aos velhos/idosos, mas o etarismo também ocorre quando usamos de estereótipos generalizados sobre as crianças e jovens, por exemplo).

A invisibilidade do etarismo acontece porque essas ideias — que são modelitos prontos — sobre “como seria uma pessoa de certa idade” ocorre porque são aprendidas e internalizadas inconscientemente e, muitas vezes, não são por nós, sequer percebidas. Por consequência, não são questionadas. Elas fluem como que automaticamente. Mas é necessário que possamos prevenir que elas ocorram, não porque vamos reprimi-las, mas porque, ao trazê-las à luz, podemos fazer, em um primeiro momento, uma autorreflexão e autoquestionamento sobre qual é a minha ideia sobre a velhice, sobre a velhice dos meus pais e dos meus avós... A velhice, frequentemente, é considerada como uma fase da vida de muitas perdas e associada à morte e, mais raramente, como um tempo de ganho, sabedoria e de um saber-viver.

A autorreflexão e autoquestionamento não são suficientes. É preciso que a gente fale disso, traga o etarismo à visibilidade, à discussão nas nossas relações dentro da família, com amigos, na comunidade em que vivemos e, principalmente, nos diversos campos de educação em níveis de ordem intergeracional, incluindo as pessoas mais velhas. Isso porque, em geral, o etarismo ocorre da parte dos mais jovens em relação aos mais velhos, mas podemos muitas vezes perceber uma identificação ao lugar que é atribuído ao velho nas suas relações com os mais próximos, na comunidade e na sociedade mais ampla. Nesse caso, temos o autoetarismo que pode vir a produzir o sentimento de autodesvalorização, solidão e isolamento culminando no adoecimento psicológico e físico. Quanto mais isolado e sozinho um idoso se sente — mesmo que ele esteja cercado de pessoas — maiores são as chances de adoecimento e de modo mais grave, a sua morte prematura. Se tudo der mais ou menos certo e não morrermos jovens, chegaremos na velhice. Como eu trato os meus e os seus velhos? Como quero ser tratada na minha velhice? Que sociedade queremos para todos nós? Convido todos para pensarmos e falarmos, cada vez mais, sobre a velhice.

03
Jan23

O primeiro discurso de Raquel Lyra depois de eleita

Talis Andrade

 

A governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSDB, lilás), ao lado da vice, Priscila Krause (Cidadania, verde), ao empossar os secretários estaduais — Foto: Reprodução/TV Globo

A governadora de Pernambuco Raquel Lyra ao lado da vice Priscila Krause 

 

 

Boa noite, gente. Que bom poder estar aqui hoje com vocês. Quero iniciar minhas palavras cumprimentando Priscila Krause, vice-governadora eleita, companheira de jornada. Obrigada, Priscila. O que vem pela frente ainda é muito melhor e maior do que a gente construiu até agora. Que Deus nos abençoe. 

Eu quero começar esse meu primeiro discurso como governadora de Pernambuco em um dia histórico para a nossa sociedade me dirigindo especialmente às mulheres. Pela primeira vez desde que nos tornamos uma unidade federativa, uma mulher igual a cada uma de vocês, eleita pela vontade do povo vai ocupar este lugar. É uma honra, um orgulho e uma enorme responsabilidade que esta mulher seja eu. Tendo ao meu lado Priscila Krause, vice-governadora eleita.

Tenham a certeza e a confiança que assim como as heroínas de Tejucupapo, estaremos alertas, vigilantes e determinadas a defender nossa terra, seja qual for o desafio. Junto conosco estão os sonhos e as esperanças de muitas outras. De minha mãe, Mércia Lyra, minhas irmãs Nara e Paula, de tantas Severinas, Marinas, Vanessa, Paulas, que têm esperança de um futuro melhor. 

Esperança, essa palavra feminina que junto de uma outra, a coragem, vão levar Pernambuco para um novo tempo. Quem se dirige a vocês no dia de hoje é a nova governadora de Pernambuco mas, antes de tudo, a mãe de João e Nando, amores da minha vida. E que me deram a força para chegar até aqui. Vocês, meus filhos, tenham a certeza de que tudo que farei aqui será sempre para que no final de cada dia vocês tenham orgulho da mãe que têm.

Se cheguei aqui hoje é porque eu tive ao longo de muitos anos um parceiro de fé inabalável que sonhou meus sonhos comigo, lutou minhas lutas e, dessa maneira, fez com que todo sonho e toda luta não fossem apenas meus, mas fossem nossos. Deu certo, ‘nego’. Você estará comigo aqui hoje e sempre.

 

Raquel Lyra e Fernando Lucena no carnaval

 

Eu quero nessas primeiras palavras trazer a inspiração do que vi na vida. Do que a política me mostrou de melhor. Porque é pela política que podemos garantir a democracia, unir pessoas e melhorar a vida delas olhando de forma especial para os que mais precisam da ação do poder público. Aquelas que se sentem invisíveis porque governo nenhum chega nelas.

Há muitos anos eu ainda era uma menina e meu pai, João Lyra, então prefeito de Caruaru, me levava junto com minha mãe para rodar a cidade inteira, ver quais eram os problemas. Os buracos nas ruas, olhar nos olhos das pessoas, conversar. Numa dessas andanças lembro de algo que me marcou para sempre. Eu vi a fome, o rosto dela. Seus cabelos e olhos escuros. Era uma mulher e seus filhos. Uma família que tinha muito pouco, quase nada. Só tinham a si mesmos e a esperança de que alguém fizesse por eles. 

Passados tantos anos, aquela menina está aqui diante de vocês como governadora. Mas a fome ainda permanece no rosto de milhões de mães, pais e filhos de Pernambuco. Não podemos seguir com esse que é o sinal mais claro e doloroso da falta do Estado na vida do povo. É por aí que a mudança vai começar, com mães de Pernambuco. No auxílio financeiro que vai chegar para quem mais precisa para ajudar a colocar comida no prato. 

Meu tio, Fernando Lyra, que foi o ministro da Justiça que assinou a Lei que acabou com a censura no Brasil afirmou certa vez que o maior problema brasileiro era o apaartheid social. Como se existissem países diferentes dentro do mesmo território. Como se existissem Pernambucos diferentes dentro de um mesmo território. Dividindo os mais ricos e os que não têm nada.

Diminuir estas fronteiras levando educação, trabalho, moradia, saúde, cidadania e dignidade não é apenas uma meta para mim. É, antes de tudo, uma definição de vida. É o que me motiva a estar aqui. É o que vamos perseguir diariamente. 

Neste novo ciclo que começamos a construir juntos a partir de agora, ainda há mais a ser feito do que havia em 2007, quando Eduardo Campos e João Lyra assumiram o Governo de Pernambuco. Muito do que foi construído em um passado recente foi perdido nos últimos anos. 

O Pernambuco que recebemos lidera indicadores nacionais de desemprego, miséria, violência e desalento. Não podemos aceitar sermos uma sociedade em que parte das pessoas não come enquanto outra parte não dorme com medo da violência.

Os ingredientes da paz social são o amor, o trabalho e o pão. A pobreza novamente é um desafio a ser enfrentado exigindo de todos nós unidade, capacidade de dialogar e entrega de trabalho. Sabemos que as pessoas esperam de nós uma gestão pautada, Priscila, pela Justiça. Sensível às desigualdades, criativa em busca das soluções e com agilidade para fazer mais.

Dom Helder Câmara costumava dizer que é graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada certa. Mas, graça das graças, é não desistir nunca e a gente não desiste. O nosso governo persiste e não desistirá. Não podemos mais dar raízes para os problemas. temos que dar gotas das soluções.

Para combater a violência que aflige nosso Estado, vamos construir uma política pública eficiente, chamando todas as forças envolvidas nesse processo para participar e ajudar a pacificar as ruas.

Quem mora aqu não pode continuar vivendo com medo. Quem vem nos visitar tem que voltar para casa com o desejo de retornar mais vezes à nossa terra. O Juntos Pela Segurança vai ser uma das nossas prioridades, assim como a saúde que anda tão combalida. 

É preciso requalificar os hospitais e construir novas instalações. Agir emergencialmente para reduzir as filas de exames e consultas. Não é do dia para a noite que a gente resolve essas questões. Mas a gente vai trabalhar exaustivamente para que pouco a pouco, passo a passo, elas passem a ser solucionadas.

Como afirmamos durante a  campanha olhando nos olhos das pernambucanas e pernambucanos, vamos trazer de volta as oportunidade para que o povo tenha trabalho. Para que os jovens possam estudar, se qualificar e depois tenham uma  vaga de emprego.  Para que as mães vejam filhas e filhos crescendo com segurança.

O Governo tem a tarefa de induzir o desenvolvimento, de preparar o Estado e facilitar a vida de quem quer empreender e gerar os novos negócios  no nosso estado. De quem vive aqui e de quem pode chegar de fora para investir no Estado que já foi líder do Nordeste brasileiro, gerando um ambiente de negócio que seja dinâmico, arrojado e ativo. 

O Desenvolvimento não pode e não estará restrito a apenas uma região do nosso Estado. Sou filha do Interior. A primeira a ser eleita governadora de Pernambuco. Eu sei das dificuldades para quem vive e quer trabalhar por lá. Conheço esse Estado inteiro, cada região. Sei das suas diferenças, das suas vocações e possibilidades. 

Mas sei também que ninguém faz nada só. Não iremos governar de cima para baixo, sob a força da caneta, da coação e nem do medo. Vou continuar percorrendo Pernambuco, escutando as pessoas e fazendo as escolhas com elas. Quem tem habilidade para escutar mais certamente vai errar menos.

Desde os tempos em que éramos uma colônia portuguesa, Pernambuco sempre teve uma postura de liderança. Mesmo sendo um Estado pobre, Pernambuco se fazia ouvir e respeitar com voz, altivez, coragem e atitude. Esse protagonismo estava apagado, está apagado. Teremos importância e relevância no cenário nacional. Tenho convicção: esse tempo acabou. Essa página está virada. 

Nós vamos trazer de volta a força dos pernambucanos. Nos colocando nos debates nacionais, participando e discutindo a pauta brasileira. Pernambuco sempre foi e vai novamente fazer  questão de ser ouvido. Nossa bandeira e nossas mãos vão estar o tempo inteiro prontas a erguer pontes, mas sem nunca deixar que sejamos subjugados ou colocados em segundo plano.

Estamos assumindo no dia de hoje, no Governo do Estado, em uma casa que ao que tudo indica está bagunçada e mal cuidada. E nisso, o olhar de não apenas uma, mas muitas mulheres que entram nesse governo junto comigo, fará toda a diferença.

Teremos dificuldades, mas vamos superá-las. teremos dias ruins, mas se seguirão de dias bons. teremos pedras no  caminho, mas o nosso caminho nunca foi fácil. Dessas pedras construiremos as pontes que nos levarão ao futuro. 

Aqui, bem perto das pontes que caracterizam nossa capital. Que unem os dois lados do capibaribe, eu reafirmo que vocês terão em mim uma líder capaz de construir o Estado construindo pontes, jamais muros.

Pontes com os nosso representantes no Legislativo, a quem agradeço a confiança, a presença. No Legislativo Estadual, no municipal, aos milhares de vereadoras e vereadores que tem no Estado de Pernambuco, na Câmara dos deputados e no Senado federal. Com nossos prefeitos e prefeitas, como um governo amigo das cidades, sempre atendo às suas demandas e às suas especificidades. Pontes com o Judiciário, com o Ministério Público, com os representantes da sociedade civil e ponte com o Governo Federal.

Estarei em Brasília em breve para apresentar nossas demandas emergenciais e aquelas que são estruturais. Farei isso quantas vezes for necessário. Eu torço para que o presidente Lula, eleito pela vontade do povo brasileiro, que também tomou posse hoje, não falte ao nosso estado e trabalharei para que isso não aconteça.

Se somos conhecidos como Leões do Norte, coragem temos de sobra para buscar os recursos, apoios e parcerias necessários a garantir os investimentos para que Pernambuco saia desse estado de marasmo.

O Brasil e boa parte do mundo vivem um momento em que a polarização política deixou de fazer adversários para fazer inimigos. As eleições acabaram, não há mais palanques na praça. Nosso mandato foi dado pelo povo de Pernambuco e queremos governar para todas as pessoas. As picuinhas e desavenças não vão nos ajudar em nada nem nos levar a canto algum. 

Aprendi que um governante precisa estar disposto a conversar com franqueza e serenidade. Diferente de nós, é um direito que só a democracia nos dá e é por isso que ela é tão delicada. Respeitar a opinião dos contrários e encontrar nas críticas motivos que nos façam refletir, mostrar a maturidade de quem governa. 

Estou sempre pronta e de coração aberto para as pessoas que quiserem debater Pernambuco mas, sobretudo, construir um novo Pernambuco independente das suas preferências políticas. Com a mesma serenidade que me trouxe até aqui irei governar o nosso Estado. 

Eu e Priscila. Olhando para as pessoas, fazendo o agora acontecer e mirando o futuro. Temos a pressa de quem precisa caminhar veloz porque o tempo não vai nos esperar. Temos a fé de nossa gente, a certeza da caminhada e a raça de uma mulher pernambucana. 

Sem ódio, sem medo e com o coração tomado de coragem, amor e esperança. Que Deus nos proteja nessa nossa jornada. Eu conto com vocês.

 

30
Dez22

Acampamentos patriotários

Talis Andrade

Imagem: Marcelo Jaboo

 

A mise-en-scène pseudopatriótica com o pavilhão verde-amarelo disfarça a vileza, para enganar os bobos

por Luiz Marques /A Terra É Redonda

A democracia nasceu cinco séculos antes da era cristã, em Atenas. À mesma época, tinha início a transição romana do reinado à república aristocrática, democratizada por pressão dos plebeus e seus líderes que se julgaram qualificados o suficiente para integrar o círculo político de poder, apoiados no forte princípio da igualdade. Depois, a democracia hibernou durante mais de um milhar de anos, para redespertar aos poucos nas pólis de Veneza e Florença, já na Itália medieval e renascentista.

Robert A. Dahl, em A democracia e seus críticos, compara as experiências igualitaristas e isonômicas de dois mil e quinhentos anos atrás “à invenção da roda ou à descoberta do Novo Mundo”. Etimologicamente o termo “democracia” deriva do grego, combina demos (povo) com kratia (governo, autoridade). Portanto, é o “governo do povo”. Um achado revolucionário que trouxe possibilidades inusitadas para a administração da sociedade, jamais imaginadas noutras modalidades de governo. As cidades-Estado deram lugar aos Estados-nação.

A democracia viveu problemas de identidade, no percurso. Há distintos modos ditos democráticos de governar. Na Antiguidade, prevaleceu a participação direta; na Modernidade, a representação. Ao se pronunciar no Ateneu Real de Paris, em 1819, Benjamin Constant avaliou que o deslocamento da participação para a representação esteve vinculado à metamorfose da concepção de liberdade dos antigos (dedicada à vida pública) para a concepção de liberdade dos modernos (dedicada à vida privada), dadas as circunstâncias históricas. Tudo sob os controversos avatares da democracia.

Em uma obra instigante sobre o tema, Democracia e representação, Luís Felipe Miguel considera que esses são territórios em disputa. “A expressão ‘democracia representativa’ guarda uma tensão interna que não deve ser escamoteada, mas mantida como um desafio permanente. A representação estabelece, por sua lógica, um movimento de diferenciação oposto ao requisito da igualdade, que é próprio da democracia. Lutar contra essa tendência, buscando a redução do diferencial de poder entre os representantes e os representados, é uma tarefa sempre renovada”. (Veremos em 2023).

Hoje, a passagem da participação para a representação possui um caráter geopolítico. Textos de ciência política escritos por sul-americanos evocam a participação; escritos por autores europeus destacam principalmente a representação. Onde o Estado se deixa permear por demandas sociais, a representação é bem acatada. Onde o Estado é mera correia de transmissão das classes dominantes, a participação é uma exigência das classes trabalhadoras para compensar o handicap. Não à toa, as edições inaugurais do Fórum Social Mundial (FSM) ocorreram na América Latina, em Porto Alegre, a capital do Orçamento Participativo (OP) para aprimorar a gestão das finanças públicas.

 

Democracia e república

Demos é uma noção polissêmica, às vezes exclusiva de segmentos (nobres, proprietários, homens, brancos); às vezes inclusiva da população (mulheres, imigrantes, negros, analfabetos). No fundo, a dificuldade está em que a democracia designa um ideal de governança e, em simultâneo, descrições empíricas da institucionalidade em países que aparentam incongruência ao utilizar a terminologia. A polissemia também atinge a tradição republicana: ora aristocrático-conservadora com uma solução de equilíbrio entre os ricos e os pobres; ora democrático-progressista com a recusa à coexistência de instituições com pontos de vista classistas. A contraposição do interesse geral ao dos particulares simplificou o dilema; em tese, sem a divisão de classe incrustada no aparato de représentation.

O caminho para a democracia e a república é sinuoso e contraditório. Vide a Venezuela, que polariza emoções no espectro político ocidental. Uns classificam o Estado venezuelano de ditatorial, comandado pela mão de um tirano, e propõem romper relações diplomáticas. Outros reputam-no democrático, a cargo de um legítimo exponencial da vontade majoritária, ungido pelo voto em eleições livres. Os contorcionismos sobre os significantes esvaziam a sua (a nossa) inteligibilidade.

O passo das cidades-Estado aos Estados-nação levou às associações políticas transnacionais. ONU, UE, Nafta, Otan, Brics e COPs são articulações mais complexas do que as registradas no alvorecer da democracia. Entre a Grécia clássica e o século XVIII, se postulou que os Estados democráticos e republicanos deveriam ser minúsculos, em território e população, pelos padrões atuais. Das cidades-Estado, restaram San Marino e Liechtenstein como legados pitorescos de um passado desaparecido. As reuniões em assembleias com a totalidade dos cidadãos, de logística complicada nas ágoras, tornaram-se quimeras. O aumento populacional fez John Stuart Mill descartar o assembleísmo.

A representação procura aplicar o vetor da igualdade aos sistemas políticos de magnitude. Corpos legislativos, que na Idade Média garantiam os predicados de donos das terras e dos comerciantes, se transmutaram em órgãos para atender o conjunto da população (válida). A democratização dos Estados nacionais não partiu de uma tábua rasa. Seu desdobramento discursivo, em instituições imprescindíveis nas sociedades de porte volumoso, foi esmiuçado pelo conceito de “poliarquia” formulado por Robert A. Dahl. A poliarquia (“governo de muitos”) não é mais do que a democracia liberta de incumbências pelos democratas insatisfeitos, com ela. Corresponde a uma “democracia formal”, sem um poder demiúrgico e disruptivo para reordenar o mundo à revelia da política.

Países com governos poliárquicos caracterizam-se pela universalização dos direitos individuais, funcionários concursados, sufrágio direto e inclusivo, direito de concorrer aos cargos eletivos, liberdade de expressão, informação alternativa e autonomia associativa. Essa taxonomia contém o mínimo para uma nação merecer o selo de autenticidade democrática – e dirimir dúvidas a respeito.

Se comunidades pequenas acarretam a opressividade dos indivíduos não-conformistas (Atenas foi intolerante com Sócrates), comunidades populosas tendem a ser tolerantes em face das dissidências. Para tanto, é essencial lideranças que prezem o pluralismo político e ideológico, os conflitos se atenham em limites suportáveis e não se esgrimam coerções violentas (polícia, militares) para conquistar e manter o domínio em “hegemonias fechadas”, pelo autoritarismo ou o totalitarismo.

 

O processo democrático

O processo democrático permitiu à humanidade alcançar: (a) a liberdade política sob o crivo da autodeterminação individual e coletiva; (b) o desenvolvimento humano com autonomia moral e responsabilidade pelas próprias escolhas e; (c) a proteção e a promoção dos interesses e dos bens que as pessoas compartilham entre si. Esse processo, que está longe da perfeição, está ligado aos valores da igualdade. Fato que o converte em “um meio necessário para a justiça distributiva”.

A visão democrática vai além do edifício do real ao focar na perspectiva de mudança do status quo, por via pacífica. Caso contrário, a democracia não teria superado as instituições e as crenças que sustentavam o feudalismo, ou o fascismo e o nazismo na Europa, ou as ditaduras civis-militares sangrentas em nosso continente. A democracia se reinventa nas lutas por direitos, na direção do igualitarismo possível para construir uma sociedade sem discriminação, acolhedora e plural.

O ataque à democracia foi revigorado na década de 1980, com a crescente dominação desde então do neoliberalismo em nível internacional. O receituário neoliberal não é só um modelo econômico, mas “la nouvelle raison du monde” como mostram Pierre Dardot e Christian Laval, em um livro de mesmo título. A nova razão do mundo separa as aspirações democráticas do princípio de igualdade. Defende a desigualdade como meta prioritária dos governantes, fiel ao Consenso de Washington. O retrocesso civilizacional destruiu os imperativos éticos vindos da Revolução Francesa, através da tríade liberté, égalité et solidarité para a sedimentação de um Estado de direito democrático.

“Liberdade”, no sentido que se possa viver sem estar submetido às arbitrariedades de ninguém. “Igualdade”, no sentido positivo da equanimidade para que cada um tenha acesso aos expedientes de uma vida com autonomia. “Igualdade”, no sentido negativo contra a exclusão social e política, bem como contra a pobreza, a humilhação e a invisibilidade. “Solidariedade”, no sentido da dupla realização da liberdade e da igualdade para transcender os particularismos, acessar as oportunidades justas de autodesenvolvimento e comungar o bem comum com direito a um tratamento digno para todas, todos e todes. As estruturas sociais e a consciência andam juntas com a cidadania plena.

Alguns citam Alexis de Tocqueville, em A democracia na América, ao argumentar sobre a suposta dinâmica que ao unir a democracia e a igualdade dispararia uma propensão autodestrutiva, a longo prazo. O colapso das instituições democráticas na Itália, na Alemanha e na Espanha, entre 1923 e 1936, confirmaria a conjectura do pensador. Contudo, a tempestade teve uma curta duração.

Não é a expansão do igualitarismo nos hábitos, costumes e ideias, senão a introjeção inconclusa dos valores da igualdade que acirra os conflitos, em defesa dos privilégios de classe. As políticas igualitárias necessitam de um tempo para formar um novo senso comum, na sociedade. Nos países em que as instituições democráticas existem há mais de uma geração, e houve um acerto de contas transparente com o passado, a substituição da democracia por um regime de exceção é algo raro.

 

Os acampamentos patriotários

“O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, a frase do crítico literário inglês Samuel Johnson data de 1775. Referia-se aos que por detrás das juras de amor à pátria e à liberdade, hipocritamente, escondem as ambições pessoais. A pantomima não é uma invenção da extrema-direita bolsonarista. Mas foi aperfeiçoada pela massa de manobra que aterrizou defronte os quartéis e, inclusive, na frente de uma loja da Havan, em Santa Catarina. Como se enviassem uma mensagem criptografada ao “pato manco” que ainda chora a derrota nas urnas, apesar dos estupros eleitorais cometidos na campanha com dinheiro público e privado. Ou como se cobrassem, do Véio, um cachê atrasado.

Estados antidemocráticos funcionam como moedas aos que vendem seu apoio e voto, em troca de proventos espúrios com a hiperexploração dos trabalhadores e a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários dos mais vulneráveis. É o que mobilizou frações da burguesia financeira, industrial e comercial em favor da reeleição do genocida que carrega no currículo 400 mil óbitos evitáveis, na pandemia do coronavírus. A mise-en-scènepseudopatriótica com o pavilhão verde-amarelo disfarça a vileza, para enganar os bobos com uma estética que recende as manifestações nazifascistas.

Ações externas após os eventos de 2013 e 2015 ressignificaram, com o mote da corrupção, o período em que o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) governaram o Brasil (2003-2016). O questionamento sobre o resultado das eleições de 2014, vencidas por Dilma Rousseff, e a guinada programática que fez a presidenta eleita pressionada pela crise econômica “largar a mão da esperança”, de um lado; de outro, as pautas de lesa-pátria introduzidas pelo inominável pulha que mandava na Câmara dos Deputados redundaram no impeachment, capitalizado pelo extremismo da direita populista que eclipsou a centro-direita tradicional. Com as peças em movimento no tabuleiro de xadrez, um palhaço sociopata subiu a rampa da presidência e municiou organizações criminosas.

Em Brasília, o acampamento patriotário teve dez mil membros; agora contabiliza menos de 800 zumbis. Arsenais de armas pesadas (fuzis, submetralhadoras) foram apreendidos. O incêndio de carros, ônibus, agressões e intimidações extrapolaram a legalidade. Implodiram a sociabilidade do demos, com a conivência de autoridades corrompidas pelo bolsonarismo. No apagar das luzes do sinistro espetáculo, que foi o desgoverno, decretos oficiais liberam a devastação de terras indígenas e indicam um militar para ocupar a Secretaria de Cultura nas últimas semanas, com o propósito de atiçar as pulsões de morte. Os terroristas, com a bomba armada no caminhão de combustível para aviões, no aeroporto do Distrito Federal, pretendiam suscitar o caos – para variar. Eles merecem ser punidos com exemplaridade, “dentro das quatro linhas da Constituição”. Não é o circo, é o terror.

O novo governo precisa mostrar que sabe cuidar do povo e, o povo organizado, do governo de reconstrução. Vai para o lixo da história o golpe malogrado. Os financiadores do mal e os fanáticos negam ao eleitorado a isonomia participativa e representativa, e o igualitarismo político para eleger o presidente do Brasil. Creem-se superiores à soberania popular, em uma realidade paralela. Mas a força da ideologia democrática é tal que até o déspota do Qatar rendeu-se: “Esta foi a Copa da igualdade”. Descontado o cinismo, importa o reconhecimento sub-reptício da democracia. Ouçam o rufar dos tambores: O patigiano portami via / O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao

24
Nov20

O que está por trás do racismo?

Talis Andrade

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Não é preciso refletir muito para entender o que está por trás do racismo. É o ressentimento de uma elite branca, privilegiada, que vê seu espaço social tomado por uma maior diversidade cultural, escreve Michel Aires de Souza Dias.

Isso fica bem demonstrado nas eleições deste ano. Curitiba e Joinville, pela primeira vez,  elegeram uma vereadora negra. Benedita da Silva perdeu para governador do Rio de Janeiro. Em 1998 foi eleita porque era vice. Assumiu o cargo de 6 de abril de 2002 a 1 de janeiro de 2003, quando Garotinho renunciou para se candidatar a presidente.

O Sul e Sudeste são pra lá de suprematistas. O demo, o capeta, não deixa nenhum preto se eleger governador ou prefeito do Sul: Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Nem do Sudeste: São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.

São Paulo teve Celso Pitta prefeito (1997-2000), mas era o Sérgio Camargo de Paulo Maluf. 

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Já vi branquelo chamar Boulos de negrinho. O 'radicalismo' de Boulos está na negritude que lhe sobrou: na cultura, na convivência com o povo, nos gostos e jeitos, e nos "beiços e cabelo ruim".

Veja que 33 juízes abandonaram a Associação dos Magistrados de Pernambuco (Amepe), pelo atrevimento de um seminário sobre Racismo nas Palavras. Na Lava Jato nunca existiram juiz, juíza, procurador, procuradora, delegado, delegada de cor. A Lava Jato sempre lavou mais branco.

Dados do censo do CNJ mostram, no entanto, que a questão de gênero emperra quando é sobreposta à raça. Mulheres brancas são 23,8% dos juízes federais, enquanto pardas são 12,7% e pretas somam apenas 1,5%. Para ter ideia do tamanho do abismo racial, os dados do levantamento apontam que o total de magistradas pretas é de 12 profissionais na Justiça Federal.

Indaga Urariano Mota: "Onde estavam os generais, almirantes e brigadeiros negros? Onde estavam os reitores, presidentes de senado, da câmara, governadores negros? Onde estavam as nossas misses e modelos negras? Onde estavam, de modo mais sério, os nossos grandes físicos e cientistas negros? Onde estão?"

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O que está por trás do racismo?

por Michel Aires de Souza Dias

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No Carrefour de Porto Alegre homem negro foi brutalmente assassinado por dois seguranças brancos. Foi um ataque covarde e desproporcional. Apesar de parecer mais um caso de assassinato, são os negros que mais morrem por causa da violência no Brasil. Um levantamento feito em 2018, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que eles representam 54% da população, mas respondem por 75,7% das mortes. Ou seja, de cada 100 vítimas de homicídios, 75 são negras. Ao analisar os dados da última década, as estatísticas mostraram que as desigualdades raciais se aprofundaram ainda mais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros e não negros. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%

Nestas eleições também vimos muitos ataques racistas. Em Joinville, a primeira vereadora negra, Ana Lucia Martins, foi alvo de ataques racista e de ameaças de morte por um grupo ligado à Juventude Hitlerista. Em São Paulo, no Dia da Consciência Negra, tentaram assassinar o professor de jornalismo, Juarez Xavier, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). No Espírito Santo, a candidata a vice-prefeita de Cariacica sofreu ataques racistas em um comício. Em Porto Alegre, o candidato à prefeitura Valter Nagelstein (PSD) criticou de forma racista vereadores negros eleitos pelo PSOL. A declaração do candidato Valter Nagelstein, derrotado na eleição, obtendo apenas 3,10% dos votos, nos dá uma amostra do tom racista da sociedade brasileira.  

A declaração foi confirmada pelo candidato e por sua assessoria de imprensa, e está circulando em um áudio nas redes sociais. O candidato afirmou sem pudor que, “fica cada vez mais evidente que a ocupação que a esquerda promoveu, nos últimos 40 anos, da universidade, produzem os seus resultados. Basta a gente ver a composição da Câmara, cinco vereadores do PSOL. Muitos deles, jovens, pessoas negras, vereadores esses sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal“.

Em Porto Alegre, dos 36 vereadores eleitos, cinco são jovens negros. Ao contrário do que diz Nagelstein, todos esses jovens possuem curso superior e trabalham, são atuantes em suas comunidades e militantes em seus partidos. Eles são qualificados e possuem grande consciência da realidade que os discriminam e da dívida histórica que a sociedade tem com o povo negro.  Nota-se que o objetivo de Nagelstein foi desqualificá-los, associando a cor da pele a um baixo nível de instrução, de preparo e capacidade para fazer política.

Não é preciso refletir muito para entender o que está por trás do racismo. É o ressentimento de uma elite branca, privilegiada, que vê seu espaço social tomado por uma maior diversidade cultural. A sociedade brasileira é fundada em relações hierárquicas, onde certos espaços sociais são determinados por uma hierarquia de prestígios e privilégios.  Os negros começa a ocupar esses espaços, que antes pertenciam a uma casta de brancos com certo poder aquisitivo. Desse modo, o ressentimento surge por causa da perda relativa de prestígio e status fruto da mobilidade social promovida nos últimos anos.

Hoje, o maior símbolo do racismo no Brasil é representado pelos baixos índices socioeconômicos da população negra e pelo acesso desta às posições na pirâmide social.  Historicamente, sempre houve maiores níveis de vulnerabilidade econômica e social nas pessoas de cor preta e parda. Contudo, algo vem mudando nos últimos anos. Devido as políticas afirmativas iniciadas no governo PT, os negros começaram a ter maior acesso às universidades e a uma melhor qualificação profissional. A pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada pelo IBGE, em novembro de 2019, mostrou que, pela primeira vez, o número de negros e pardos nas universidades públicas brasileiras ultrapassou o número de matriculados brancos, chegando a 50,3%. Essa maior escolarização tem possibilitado que os negros ocupem espaços sociais que anteriormente eram excluídos. A precária representação desse grupo na política tornou-se motivo de reivindicação por uma maior participação.  Houve também uma maior conscientização e engajamento desse grupo nas causas sociais e nos movimentos de resistência populares. Os movimentos negros hoje estão muito mais preparados, organizados e engajados na luta pela igualdade, equidade e respeito às diferenças. Cada vez mais a população negra se organiza e se envolve com a política. Cada vez mais eles exercem o poder do dissenso na sociedade.

Segundo o filósofo francês Jacques Rancière (1996), o dissenso na política não é um conflito de ideias, não é um conflito entre esquerda e direita ou a oposição entre o governo e as pessoas que o contestam, mas um conflito sobre como o mundo deve ser organizado, ou seja, sobre “a configuração do mundo sensível”. É um conflito estruturado em torno de quem tem o direito a palavra; daqueles que podem fazer parte da ordem do discurso e aqueles que estão excluídos dessa ordem; de quem deve ter visibilidade e dos que são invisíveis; dos que possuem propriedades e aqueles que são despossuídos de qualquer propriedade; dos que possuem títulos e dos que não os possuem, da distribuição de lugares e ocupações em um espaço comum e aqueles que estão excluídos desse espaço. Hoje, os negros cada vez mais exercem o direito a palavra, cada vez mais eles têm conseguido ocupar o espaço político que sempre lhes foi negado. Cada vez mais eles têm conquistado visibilidade. Cada vez mais eles ganham consciência das forças que lhes oprime.

Para Rancière (1996), a política como dissenso surge porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de se colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo dos que participam e o mundo dos que não participam. O objetivo do dissenso, portanto, é democratizar o espaço político pela afirmação do princípio de igualdade, próprio à esfera do político. Como avalia Pallamin (2012), a política, colocada em termos de dissenso, perturba a ordem dada e a malha de desigualdades sociais na qual se assenta. Ela opera através da enunciação e colocação em prática de um discurso igualitário que coloca em questão as subordinações e identidades estabelecidas. Nesse sentido, o dissenso promove uma forma de resistência expressa em um processo de subjetivação política que começa com o questionamento do que significa “falar” e ser interlocutor em um mundo comum, tendo o poder de definir e redefinir aquilo que é considerado o comum de uma comunidade (MARQUES, 2011).

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Referências

MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro e LELO Thales. Democracia e pós-democracia no pensamento político de Jacques Rancière a partir das noções de igualdade, ética e dissenso. Revista Brasileira de Ciência Política, nº15. Brasília, setembro – dezembro de 2014, pp. 349-374. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n15/0103-3352-rbcpol-15-00349.pdf> Acesso em novembro de 2020.

PALLAMIN, Vera. Cidade e Cultura: conflito urbano e a ética do reconhecimento.   Revista Rua, Campinas, Número 18, V. 2, Nov. 2012. Disponível em < https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8638285/5906> Acesso em novembro de 2020.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.

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09
Mai20

Pandemia expõe “necropolítica à brasileira” e uma certa elite que não vê além do umbigo

Talis Andrade

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Para psicanalista Christian Dunker, desigualdade provoca distorção da realidade que atinge parte importante das classes altas

por Heloísa Mendonça

El País

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Mas na medida em que a população mais rica começa a se sentir confiante de que a maior ameaça― para eles ― já passou, um movimento perigoso avança no Brasil, na visão do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker. “Há uma negação do que se sabe de outros países: de que quando chega o ponto mais crítico, o ponto de saturação do sistema de saúde público e privado, não adianta você ter dinheiro ou ser de uma classe mais alta porque não haverá sistema disponível”, afirma. Segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS), em ao menos seis Estados já há saturação dos sistemas públicos e privados de atendimento.

O psicanalista afirma que a onda negacionista e a percepção de estar fora de perigo abrange, sim, uma parte importante da elite nacional, e tem como base uma crença dessas pessoas de que são excepcionais, fora de grupos de riscos, já que são privilegiados. Por isso, podem relaxar regras de isolamento e até promover encontros com amigos. “Escuto muito isso no consultório. Que as pessoas se sentem especiais, que são saudáveis, atletas como Bolsonaro e que isso é uma gripezinha. O presidente repetiu à exaustão esse discurso de negação da realidade assim com várias lideranças religiosas.”

Dunker ressalta que essa narrativa se instala mais fortemente na sociedade brasileira pela negação da desigualdade social já existente. “Esta é a realidade primeira da qual nós não queremos saber”, pontua. Em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, o psicanalista explica como, há anos, as classes média e alta lidam com o conflito: com a construção de um muro e a designação de seus síndicos, responsáveis por manter em dia a dia de seu status quo. “Essa ideia de negação do conflito e da diferença já estava lá em 1970, quando inventamos um Brasil em que a gente aparta a diferença. E acho que agora estamos regredindo para uma maneira de ver o mundo, até favorecida pelas medidas sanitárias, em que o mundo é o tamanho do seu condomínio”, diz.

A vida privada dos condomínios é também uma janela que expõe abismos sociais —em geral, quanto maior a renda, maior a chance de realizar trabalho remoto. Em meio à escalada do coronavírus, os locais, em geral, mudaram regras de convivência, com restrições de acesso a visitas e entregadores. Áreas de lazer e academias de uso coletivo também foram interditadas, mas, já passadas algumas semanas de isolamento, embates começam a ser travados entre vizinhos para afrouxar as medidas, o que pode colocar em riscos moradores, mas também funcionários que seguem trabalhando. “Esse trabalhadores nunca deixaram de ser invisíveis, assim como os moradores de ruas, pedintes, os informais, os precarizados. Eles são formas de vidas que não fazem parte dos ‘outros’. Mas, no contexto da pandemia, são também elementos que transmitem o vírus, o que se choca muito com essa administração imaginária do mundo ”, lembra o psicanalista. Nesta quarta, provocou debate o fato de o serviço doméstico ter sido considerado essencial em Belém, que está em regime de bloqueio total de atividades não essenciais (lockdown), já que os profissionais ficariam impedidos de fazer a quarentena ou cuidar da própria família por causa da ausência de creches e escolas. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), argumentou que pessoas, como profissionais de saúde, "precisam, pela necessidade de trabalho essencial, ter alguém em casa”.

Necropolítica já estava aí

Na visão de Christian Dunker, a pandemia trouxe mais à tona a “equação obscena” da escolha entra a vida ou a economia fortemente martelada pelo empresariado. O grupo, por sua vez, tem respaldo ativo de Jair Bolsonaro. O psicanalista frisa que o movimento apenas escancara a ideia de ter vidas matáveis que já existia na necropolítica à brasileira, diz ele, citando um conceito desenvolvido em 2003 pelo intelectual camaronense Achille Mbembe, que questiona os limites da soberania do Estado na escolha de quem deve viver e quem deve morrer. “Neste momento de impasse e crise da economia, vai se comunicar com as classes mais elevadas e populares a ideia de que é melhor continuar trabalhando e ganhando do que morrer de fome. Apesar do aumento do sofrimento e da crise alimentar, obviamente a gente teria medidas de suporte para isso sem chegar a essa equação”, afirma.

A insistência no argumento de que é preciso privilegiar o funcionamento da economia em detrimento das medidas de isolamento social ficou evidente de novo nesta quinta-feira. Em mais um movimento para pressionar a retomada da atividade econômica, o presidente levou uma comitiva de empresários e ministros para a sede do Supremo Tribunal Federal (STF) para alertar o presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, sobre os impactos que o isolamento social tem gerado na iniciativa privada e como a paralisia econômica pode transformar o Brasil “em uma Venezuela”. “Nós devemos nos preocupar com economia, sim. Mas também com empregos”, declarou Bolsonaro. “Emprego é vida.” Na ocasião, empresários procuraram chamar a atenção dizendo que as “indústrias estão no UTI”, alheios às filas de pessoas que estão morrendo por falta de leitos em vários pontos do país. (Transcrevi trechos)

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