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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

11
Dez22

Senzalas & campos de concentração

Talis Andrade

Jornal PASQUIM "Brasileiro é tão Bonzinho! É... Mas

 

Nos consideramos gente boníssima, mas somos?

 

por Alex Castro

O Brasil se considera uma nação boa e pacífica. Mas é só porque esqueceu ter sido a maior economia escravocrata de todos os tempos.

Muitas vezes, o sono tranquilo não é consciência limpa: é falta de memória.

"O melhor bife batido da cidade está na Lanchonete Doi-Codi!"

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Senzalas eram lugares de morte, tortura, exploração. Por que associar seu restaurante a ISSO?

No coração do centro histórico de Paraty, cidade colonial construída com o sangue e o suor de muitos escravos, em pleno mês da consciência negra, acabou de ser inaugurado um novo restaurante:

Senzala Churrascaria Rodízio.

Não deveria me chocar mas ainda me choco. Afinal, o que não falta, em todo Brasil, são estabelecimentos chamados Senzala.

Na Alemanha, pelo menos, não existe nenhum Restaurante Auschwitz.

Eles teriam vergonha.

 

As maravilhas do tráfico humano

Nesse cela, eram colocados para morrer de fome os escravos problemáticos. Elmina, uma maravilha da arquitetura colonial portuguesa!

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Em 2009, Portugal promoveu um concurso para escolher as "7 Maravilhas de origem portuguesa do mundo".

Dentre os vinte e sete indicados, muitos eram locais fortemente identificados com a escravidão, com a compra e com a venda, com a morte e com a tortura, com o desterro e com o desenraizamento de milhões de pessoas. Pessoas como eu e como você. Pessoas cujo sofrimento não deveria ser esquecido:

Por exemplo, o forte Elmina foi construído em 1482 para fazer ali o comércio de escravos, hoje abriga um museu onde os visitantes são convidados a visitar as celas onde os Africanos ficavam confinados antes de serem enviados para as Américas. No sítio da votação, encontra-se uma longa descrição do forte e nem sequer uma linha, uma palavra mencionando o tráfico de africanos escravizados. ...

É como se Auschwitz participasse em uma eleição das sete maravilhas alemãs no mundo.

(Leia mais ou confira a lista dos vencedores.)

 

A feliz união das raças da maior democracia racial do mundo!

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Todos são iguais... mas um tem maior expectativa de vida que os outros. Adivinha qual?

Ninguém realmente deveria ficar surpreso. No mundo lusófono, o apagamento da memória da escravidão sempre foi a regra.

A grande maioria dos brasileiros aprende na escola que nosso lindo país foi construído por brancos, negros e índios, todos felizes, de mãos dadas e cantando kumbayá. Como se a colonização do Brasil tivesse sido um comercial da Benetton.

Para manter a mentira primordial no cerne do nosso mito de origem, a escravidão nunca é mostrada em seu verdadeiro horror:

Sim, alguns de nossos avós escravizaram nossos outros avós, mas, no fim das contas, eram todos bons amigos, os escravos eram muito bem tratados e, olha só, pelo menos nunca tivemos as leis racistas dos EUA! No Brasil, país bondoso e generoso, até a escravidão era a melhor do mundo!

(Aliás, não faz sentido falar em "escravidão melhor" mas, somente nos Estados Unidos, a população escrava tinha crescimento vegetativo, ou seja, aumentava e se reproduzia. No resto da Américas, a mortalidade era tão alta que, mesmo com os nascimentos, era preciso sempre importar novos escravos. O Brasil foi o maior importador de escravos de todos os tempos porque aqui, nessa terra tão bondosa e tão pacífica, era onde eles mais rapidamente morriam. Esse artigo clássico de Herbert S. Klein explora essas contradições.)

 

Somos tão legais hoje que nem parece que éramos tão escrotos ano retrasado!

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Sim, vamos parar de falar de racismo! Afinal, essa tática tem dado tão certo no último século... (pra nós, brancos, claro!)

Um trecho do Hino à Proclamação da República, escrito em 1890:

Nós nem cremos que escravos outrora

Tenha havido em tão nobre País…

Hoje o rubro lampejo da aurora

Acha irmãos, não tiranos hostis.

Somos todos iguais! Ao futuro

Saberemos, unidos, levar

Nosso augusto estandarte que, puro,

Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Somente um ano e meio depois de abolida, a escravidão já começava a ser sistematicamente lavada da memória nacional.

 

Escravidão e Holocausto, ensinados lado a lado

"Eu, Barack Obama, o 44º presidente eleito dos Estados Unidos, peço desculpas pela escravidão."

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Para muitos brasileiros, o bicho-papão racial são os Estados Unidos. Não podemos implementar cotas, pois senão "nos tornaríamos um Estados Unidos"; "temos muitos defeitos mas pelo menos não somos os Estados Unidos", etc etc.

Pois eu morei lá e morei aqui, e estudei a fundo a história da escravidão nos dois países. Somos ambos profundamente racistas, mas o Brasil é pior por um motivo:

A cultura do deixa-disso. Por pensarmos que o não-falar sobre o racismo e a escravidão vai resolver por si só o problema.

Enquanto isso, o presidente norte-americano, em visita a Gana, um dos principais portos exportadores de escravos, afirmou que a escravidão, como o Holocausto, é daquelas coisas que não pode ser esquecida.

Para Obama, a visita aos calabouços de escravos remeteu à sua viagem ao campo de concentração Buchenwald: ambos nos fazem lembrar da capacidade humana para cometer o Mal.

E completou afirmando:

A escravidão e o Holocausto deveriam ser ensinados nas escolas de modo a conectar a crueldade passada aos eventos atuais.

 

Homens que não entendem porque tanto alarde pelo câncer de útero

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"Nunca esqueça! Nunca esqueça! Sai dessa, pô!"

Desconfie sempre de quem fala "sai dessa" quando o "essa" é algo que ele nunca experimentou.

Afinal, do ponto de vista de quem está bem acomodado e seco no convés do barco, não há motivo pra se debater tanto lá embaixo no mar só porque tem água entrando nos seus pulmões... SAI DESSA!

 

"Por que esses cadeirantes preguiçosos não deixam de se fazer de vítima e sobem as escadas como todo mundo, hein?"

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A meritocracia do Brasil, em uma charge.

Pior ainda são aquelas pessoas (muitas negras) que são contra as cotas (e similares) argumentando que "nunca precisaram delas".

E eu faço uma cara pensativa e respondo:

Concordo, claro, como não? E tem mais, também sou contra esse negócio de diálise em hospitais públicos e rampas para cadeirantes nos prédios.

Oras, se passei a vida inteira sem precisar de nenhuma dessas coisas, é porque não são tão importantes assim, certo?

Afinal, dado que eu sou o centro do universo e a medida de todas as coisas, as pessoas só deveriam receber o que eu recebi e as únicas necessidades válidas são as que eu também tenho!

(Sobre isso, leia meu texto O assunto não é você.)

Somos os melhores em esquecer nossos crimes

Durante sete anos, morei em Nova Orleans, principal porto escravista norte-americano. Assim como o Rio de Janeiro, uma bela cidade, sexy e musical, turística e carismática, construída nas costas de escravos desesperados e agonizantes.

Um dia, enquanto passeava com meu cachorro pelo bairro universitário, uma soccer mom enfiava cuidadosamente seus quatro filhinhos, todos brancos e roliços, em seu jipão utilitário de luxo, também branco e roliço. Era uma senhora baixinha e gorducha, bochechas rosadas e orelhas de abano, carregando mochilas e merendeiras, parecendo dotada daquela infinita paciência que só uma mãe de quatro meninos pode ter. E, em seu para-choque traseiro, discretamente, estava o adesivo:

The South Will Rise Again (“O Sul se Erguerá Novamente”)

Como não se sentir ameaçado? Não conheço o contexto dessas palavras. Por tudo que sei, é um inocente desejo de revitalizar a economia local. Mas, ainda assim, nenhuma racionalização poderia apagar o meu calafrio ao ler aquela frase; nenhuma explicação lógica faria aquele adesivo soar menos sinistro. De certo modo, era como se o ressurgimento do Sul fosse indistinguível e indissociável do reescravizamento de toda uma raça.

E pensei: o Brasil foi tão ou mais escravista do que o Sul dos Estados Unidos, e resistiu por muito mais tempo até libertar seus escravos. Ainda mais doloroso pra mim, dos nove únicos deputados que tiveram a cara-de-pau e a temeridade de votar contra a Lei Áurea em pleno maio de 1888, já na véspera do século XX e na contra-mão de todos os ventos filosóficos do XIX, oito eram do Rio de Janeiro. Legítimos representantes eleitos do meu estado.

Entretanto, não ficamos nem o Rio e nem o Brasil maculados por essa nódoa. Um adesivo “O Brasil Crescerá” despertaria calafrios? Claro que não. Nem o Paraguai tem medo do Brasil. E concluí, aliviado: ainda bem que pelo menos o bom nome do meu país e do meu estado não estão ligados à escravidão.

Um segundo depois, bateu o estranhamento: mas… por que não?

A falta de calafrios não corresponde à falta de crimes. O Sul dos EUA teve, no Norte, um vizinho incômodo que manteve viva a memória de seus crimes. Já em nosso caso, simplesmente varremos nossos crimes para debaixo do tapete.

Não somos mais virtuosos: somos melhores em esconder o corpo.

(Ao contrário do que muita gente pensa, a Abolição não foi um "presente da monarquia", mas uma lei disputada voto a voto no Parlamento, somente sancionada pelo Poder Executivo, naquele momento representado pela Princesa Isabel. Mais detalhes nesse meu rascunho de uma História da Abolição.)

 

"Shoah", um documentário impossível

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"Shoah", o fim da viagem.

Shoah é uma palavra íidiche que significa "calamidade". Para muitas pessoas, é um termo preferível à Holocausto – que, afinal, significa "oferenda aos deuses".

"Shoah" também dá título a uma das grandes obras de arte, de qualquer arte, do século vinte, realizado pelo boy-toy de Simone Bouvoir, Claude Lanzmann.

São nove horas de filme, sem nenhuma imagem de arquivo: são somente depoimentos, e depoimentos, e depoimentos. Lanzmann entrevista três tipos de pessoa: sobreviventes, algozes (oficiais de campos de concentração) e testemunhas (poloneses que moravam perto dos campos).

Com os sobreviventes, Lanzmann é implacável. Ele praticamente os obriga a falar:

“Não foi uma crueldade fazê-las reviver, através da fala, tudo o que sofreram, no caso dos judeus. Era absolutamente necessário. Não acho que tenha sido sádico, mas fraternal. Durante as entrevistas, eu toco suas mãos, seus ombros, seus braços. Uma forma de dizer ‘eu estou com você’. Não faço interrogatórios para que alguém se diga culpado. Eles sofrem. Mas eu também sofro. Eu não os torturei. Eles se sentiram liberados. Eu não estava falando com uma pessoa qualquer, mas com um grupo muito especial de sobreviventes – e não há mais do que um punhado deles no mundo”.

Abaixo, talvez a cena mais emocionante no filme. O barbeiro não consegue falar, mas Lanzmann pressiona (em inglês):

Link YouTube | "Shoah", e a impossibilidade de lembrar

"Shoah" é um filme de insuportáveis silêncios: das nove horas de filme, cinco horas e meia são de puro silêncio. Diz Lanzmann:

"Não é uma reconstituição, não é uma ficção, não é um documentário. O filme é uma ressurreição, uma reencarnação, tem uma arquitetura, uma construção em torno de uma obsessão pessoal. Eu fazia sempre as mesmas perguntas, geralmente referentes à primeira vez. E não tinha nenhuma intenção de acusar, denunciar, culpar. Nada disso, isso não me interessava.

Houve uma decisão consciente de fazer um filme sobre o presente, e não sobre o passado:

"O pior dos crimes, ao mesmo tempo de ordem moral e artística, quando se quer consagrar uma obra ao Holocausto, é considerá-lo como passado. Meu filme é uma anti-lenda, um contra-mito, vale dizer, uma investigação sobre o presente do Holocausto ou, ao menos, sobre um passado cujas cicatrizes estão ainda tão fresca e vivamente inscritas nos lugares e nas consciências que ele se dá a ver numa alucinante intemporalidade. ... Os homens e as mulheres que falam diante da câmera dão sempre a impressão de não estarem contando lembranças, mas de as viverem mesmo, com força e clareza, no presente. ... Enquanto fazia o filme, a distância entre o presente e o passado foi totalmente abolida. Em Treblinka só havia pedras, filmei as pedras como um louco, por todos os lados. Quando o espectador vê as pedras de Treblinka, ele vê os judeus sendo mortos. Da mesma maneira que quando o trem chega a Treblinka o espectador vê a tabuleta com o nome do campo exatamente como os judeus que iam para morte deviam ver. É um ato de cinema muito violento. Por isso o filme é fundamentalmente uma invenção, não uma lembrança. ... O filme é sobretudo uma ressurreição, as pessoas entrevistadas revivem aquele tempo de tal maneira que, quando falam, até alternam os tempos dos verbos – presente e passado. ... No filme, quando as pessoas falam, confundem presente e passado. Na mesma fala, dizem: eu estava lá e pouco depois: eu estou lá."

Mais do que tudo, é um filme sobre a impossibilidade de recordar, de conceber, de articular o Mal:

Comecei precisamente com a impossibilidade de recontar essa história. Situei essa impossibilidade bem no início do meu trabalho. Quando comecei o filme, tive que lidar, por um lado, com o desaparecimento dos vestígios: não havia coisa alguma, absolutamente nada, e eu tinha que fazer um filme a partir desse nada. E por outro lado tive que lidar com a impossibilidade, até mesmo dos próprios sobreviventes, de contar essa história; a impossibilidade de falar, a dificuldade que pode ser vista ao longo do filme de trazer luz e a impossibilidade de nomear: seu caráter inominável.

Para celebrar os 30 anos de sua estréia, "Shoah" está sendo lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles. Recomendo nos mais enfáticos termos.

Mas não assista sozinho. É muito duro.

(Sobre "Shoah", leia também: A dificuldade de falar de "Shoah" e It's a beautiful thing.)

 

O Holocausto foi terrível mas não foi único

Estudo raça e racismo há muitos anos. Um dos meus livros preferidos sobre o tema é The Racial Contract, de Charles W. Mills.

Segundo Mills, o racismo seria um sistema político e uma estrutura de poder baseados em um Contrato Social (na verdade, um Contrato Racial) no qual os membros da raça dominante formariam um acordo tácito de, ao mesmo tempo em que garantem para si a maior parte das riquezas/oportunidades/etc da sociedade, também consentem em não ver o próprio sistema, criando assim a “alucinação consensual” de um mundo sem raças, meritocrático e igualitário, que passa a mediar sua interpretação da realidade.

Raça, para eles, sera invisível porque o mundo seria estruturado em função deles; eles seriam a norma em oposição a qual seriam medidas as pessoas de outras raças (“esses outros tem raça, não eu!”). Assim como o peixe não vê a água, os membros da raça dominante não veriam o racismo.

Mills também embarca em uma comparação perigosa, mas praticamente inevitável, entre o racismo e o Holocausto.

Visto de fora pelos não-europeus, que sabem na pele que a civilização européia se baseia em praticar barbarismo fora da Eueropa, o Holocausto não representaria “uma anomalia transcendental no desenvolvimento do Ocidente”, mas, pelo contrário, sua unicidade estaria apenas no aplicação do Contrato Racial contra europeus.

Ao colocar o Holocausto no contínuo cultural de outras políticas exterminatórias colonialistas européias, Mills não deseja negar o seu horror, mas somente sua singularidade histórica.

Tudo o que o nazismo tinha de operacional já vinha sendo aplicado, legitimado, tolerado, negado e esquecido pelos europeus há muitos séculos: a maior transgressão de Hitler seria aplicar contra europeus métodos que antes eram aplicados exclusivamente contra árabes, negros e índios.

A própria percepção do Holocausto, de um horror tão fora de escala e colocado num plano moral muito diferente de todos os outros massacres de não-europeus por toda a história, seria evidência da força ideológica do Contrato Racial.

Além disso, ao narrar o racismo como uma invenção aberrante de figuras como Gobineau e Goebbels, o Holocausto presta à intelligentsia européia do pós-guerra um importante serviço: sanitizou seu passado racial.

Link YouTube | "Nação do Medo", legendado, completo, um filmaço de ficção científica.

Por fim, Mills cita o romance de ficção científica “A Nação do Medo” (Fatherland), que mostra um futuro alternativo onde os nazistas ganharam a guerra e nunca existiu a memória do Holocausto.

Na verdade, aponta Mills, nós JÁ vivemos nesse mundo não-alternativo: a única diferença é que os vencedores foram outros, mas eles também apagaram a memória dos massacres que cometeram, esvaziando sua importância e subtraindo seu ultraje.

Daí o esquecimento dos horrores da escravidão.

(O livro de Mills é realmente brilhante: leia minha resenha completa.)

 

O Epcot da escravidão nos Estados Unidos

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Em Williamsburg, escravo é perseguido.

Mas se devemos lembrar sempre a escravidão... como?

Nos Estados Unidos, a cidade de Williamsburg oferece uma janela ao passado. Em troca do passe diário de US$36, o visitante passa o dia em uma "autêntica" vila colonial, onde tudo é como antigamente (menos os banheiros!), todos estão vestidos à caráter, em roupas de época, falando em vocabulário antigo, essas coisas. É um dos destinos turísticos e educacionais mais famosos do país.

Entretanto, sempre foi criticado por apresentar uma versão muito fácil, sanitizada e maniqueísta da história. Mais do que tudo, cadê os escravos? Afinal, na época da colônia, os Estados Unidos tinham escravidão e metade da população de Williamburg era negra.

Hoje em dia, o parque faz um esforço consciente (e polêmico, claro) para retratar a escravidão: além de incluir mais atores negros, criou-se também um "passeio" chamado Enslaving Virginia ("Escravizando a Virgínia") especificamente sobre os horrores da escravidão.

Deve ser horrível mesmo: vários atores negros já se recusaram a interpretar os escravos (por considerar muito humilhante), as crianças choram tanto que foram criadas sessões explicativas posteriores para enfatizar que era tudo faz-de-conta e já aconteceu de visitantes interromperem o passeio para "salvar os escravos".

Melhor assim. Preferível ser repelido por um simulacro do horror que nos gerou do que fingir que ele nunca existiu.

 

Encenação da escravidão à brasileira

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O guia do engenho, vestido de escravo, se oferece para ser chicoteado pelos turistas.

E no Brasil?

Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, já foi uma das cidades mais ricas do país, no centro da região que produzia a mais importante riqueza nacional: café. Hoje, é uma cidadezinha de vinte mil habitantes, que vive dos turistas que atrai com seus palacetes e fazendas coloniais – algumas com polêmicas encenações históricas.

Na fazenda São João da Prosperidade, há cinco gerações com a mesma família, a proprietária recebe os turistas vestida de sinhá e suas empregadas, de escravas:

Da janela, aponta a senzala: "Tenho 300 escravos" orgulha-se, voz impostada e dedo em riste. De repente, entra correndo pela varanda uma negrinha com remendos de algodão e cabelos presos em tranças. A menina, de apenas seis anos, se agarra à barra da saia da sinhá, põe o dedo polegar na boca e fixa os olhos nos visitantes. Basta um gesto da sinhazinha para que a pequena escrava abaixe a cabeça e saia da sala. "Não vê que estou com visitas?" – esbraveja a senhora. A menina vai brincar no alambique. Pouco depois, uma mucama adentra o salão, sob ordens de servir café aos convidados. (fonte)

Em uma fazenda próxima, Cachoeira Grande, que eu visitei agora em novembro, são só os empregados que estão vestidos à caráter: os proprietários se vestem e falam como se estivessem no século vinte.

Mais para o norte, na Zona da Mata de Pernambuco, o engenho Uruaé também encena a escravidão:

Vestido como "escravo da casa", o jovem guia mostra o "quarto da sinhazinha" e explica a genealogia da família proprietária do engenho através dos retratos na parede. Na senzala, que chegou a ter 300 escravos de uma vez, ele coloca uma peça de ferro no pescoço e anuncia, sorridente: "Quem era moreno como eu era aqui". O mais constrangedor vem depois, do lado de fora: o guia se amarra no tronco e pede que um voluntário simule açoitá-lo. Foi difícil arranjar alguém disposto a interpretar o papel. (fonte)

O engenho Uruaé também está na mesma família há sete gerações. Durante a visita, a proprietária afirma:

"A gente tem mais é que se orgulhar dos nossos que vieram antes. Nós ainda não fizemos nada."

Fui só eu que achei esse "ainda" um pouco sinistro? O que essa senhora ainda está planejando fazer, meu Deus? Re-escravizar todo mundo?

Mas isso é implicância minha. A raiz filosófica do problema é outra:

Como retratar os horrores do passado?

 

Qual é a medida certa do horror?

As encenações históricas da escravidão nas fazendas coloniais parecem não agradar ninguém.

Por um lado, argumenta-se que elas não são horríveis o suficiente. Que encenam somente os aspectos mais, digamos, reprodutíveis da escravidão, aqueles por definição mais doces e inofensivos. Que perpetuam a ideia de que a escravidão era somente uma forma de trabalho entre tantas outras.

Afinal, se a escravidão é algo que uma doméstica contemporânea pode reproduzir, se a escravidão se resumia a se vestir de branco e trazer café pra uma mulher que você chama de "sinhá", bem, então não era tão ruim assim, né? (Ou talvez ser empregada doméstica é que é horrível demais, mas não entremos nisso.)

Por outro lado, argumenta-se que são horríveis demais. Que mesmo doces e meigas, ainda mais quando encenadas pelos descendentes das vítimas, são sempre humilhantes:

Outros, no entanto, não sabem como reagir diante da interação realista dos 'escravos', que circulam vestidos em pobre algodão e, não raro, se curvam para obedecer às ordens da sinhazinha. "Será que esta criança tem idéia do que está fazendo? Ela ainda não tem idade para entender e pode ficar com a idéia de que deve se comportar como escrava, de que isso é normal" - indigna-se uma visitante paulistana, depois de recusar um copo d'água servido pela 'mucama'.

Já o historiador Milton Teixeira, que trabalha como guia de turismo nas fazendas do café, defende a prática:

Não é degradante representar um escravo. Se o turista se sente incomodado, muito bem. O passado de escravidão tem de incomodar bastante, e não deve ser esquecido. ... Ora, representações são feitas em toda parte do mundo. Na Europa, tem famílias pré-históricas; nos Estados Unidos, há simulação das batalhas da Guerra de Secessão, e, aqui no Brasil, é natural que haja uma encenação com escravos. Muito pior seria querer mostrar que não houve escravidão. (fonte)

Não deixa de ser simbólico que muitas dessas fazendas ainda estejam nas mãos das mesmas famílias. Ontem, lucraram nos ombros de seus escravos plantando cana ou café. Hoje, a mesma família continua lucrando nos ombos dos descendentes dos escravos, agora reduzidos a guias de turismo que reproduzem para turistas curiosos o horror da vida de seus avós.

Como escreveu o historiador e jornalista Fabiano Maisonnave, para a Folha:

De forma explícita ou não, as visitas aos engenhos transformam esses verdadeiros campos de concentração numa bufonaria, diluindo um dos piores crimes da humanidade, principal responsável pela imenso fosso social brasileiro, em um exemplo acabado do "racismo cordial". A escravidão é exaltada, a casa-grande, absolvida, e a cana-de-açúcar, revalorizada como "energia renovável", se torna bênção econômica do passado e do presente.

Mas como reproduzir de forma correta e didática o verdadeiro horror da escravidão? Como mostrar os corpos jovens mas enfraquecidos e fragilizados pelo criminoso excesso de trabalho? Como mostrar as marcas da tortura? Como mostrar as frequentes mutilações causadas pelo machete durante o corte da cana ou pelas engrenagens dos engenhos durante a moagem? Como mostrar as feridas emocionais de famílias desfeitas e de vidas sem esperança? Como mostrar os escravos revoltosos que davam e tiravam vidas para não voltarem ao cativeiro?

Será possível mesmo começar a quantificar esse horror? Quem dirá reproduzi-lo?

Existem encenações históricas em Auchwitz? O que o mundo pensaria de ver sorridentes atores descendentes de arianos brincando de depositar chorosos descendentes de judeus dentro dos fornos? Mas é só mentirinha, gente! É educacional!

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Holocausto reencenado na Polônia. Grande idéia. Só que não.

(Na verdade, como o instinto humano da burrice é inesgotável, já houve tentativas de encenar o holocausto, como essa aqui na Polônia. Muitas vezes, dá merda e acaba em processo, como dessa vez no Texas.)

 

Escravidão: essa pica é nossa!

A escravidão africana nas Américas foi talvez a maior tragédia da Era Moderna.

Estima-se que cerca de 11 milhões de pessoas tenham sido transportadas à força da África para a América.

(Outras estimativas mais agressivas calculam que cerca de 40 a 75 milhões de vidas africanas tenham sido perdidas por causa do tráfico, entre mortos em guerras para obter escravos, em emboscadas para capturar escravos, ou em marchas forçadas para os portos exportadores de escravos no litoral.)

Dentre as muitas nações responsáveis por esse lucrativo e criminoso tráfico, os maiores culpados são os portugueses.

(Principais transportadores de escravos para as Américas: Portugal, 4,6 milhões; Reino Unido, 2,6 milhões; Espanha, 1,6 milhão.)

Dentre as muitas nações que receberam esses escravos e que construíram sua riqueza nas costas deles, o maior culpado é o Brasil.

(Principais destinos de escravos nas Américas: Brasil, 4 milhões; América Hispânica, 2,5 milhões; Índias Ocidentais Britânicas, 2 milhões.)

Reparem no tamanho da seta que nos cabe.

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Dentre os muitos portos brasileiros que receberam essa massa humana desgraçada, o principal foi o Rio de Janeiro. (Dos nove deputados que votaram contra a Lei Áurea, vamos lembrar, oito eram da província do Rio.)

Além disso, quem inventou esse lucrativo e terrível modelo de negócios foram os próprios portugueses – não por acaso, os primeiros homens brancos a explorar sistematicamente a África. Em 1441, Antão Gonçalves teve a dúbia honra de se tornar o primeiro europeu a comprar e trazer para casa escravos africanos.

Depois disso, a história se desenrolou rapidamente, comprovando o tino comercial dos portugueses: já em 1452, arrancaram do Papa uma bula autorizando-os formalmente à escravizar os infiéis; em meados de 1470, estavam comerciando escravos no golfo do Benim e no delta do rio Níger; e, finalmente, em 1482, construíram a Fortaleza de São Jorge da Mina, em Gana, que em 2009 seria indicada candidata a "maravilha de origem portuguesa do mundo".

(Por si só, a escravidão é mais antiga que andar pra frente. Todos os povos de todos os continentes de todas as épocas já tiveram algum tipo de escravidão, mas quase sempre cerimonial e economicamente insignificante. A escravidão africana nas Américas é um novo tipo de fenômeno humano porque, pela primeira vez, temos nações economicamente dependentes de milhões de escravos que compõem muitas vezes a maior parte de suas populações.)

Por fim, muitos e muitos séculos depois, no outro extremo dessa triste história, a última nação das Américas a abolir essa escravidão africana inventada pelos portugueses, a nação que mais teimosamente se agarrou aos seus escravos até o último minuto possível, foi justamente a nação gerada do ventre português: o Brasil. Nós.

De um modo bem real e doloroso, é difícil evitar a conclusão que esse enorme crime contra a humanidade é, em grande parte, uma responsabilidade lusófona e, dentro disso, brasileira. (E, mais especificamente ainda, e não que os outros estados sejam inocentes, carioca e fluminense.)

Passei seis meses na Alemanha durante a década de noventa. Mesmo cinquenta anos depois da Segunda Guerra, mesmo entre meus amigos adolescentes cujos pais nem eram nascidos durante a guerra, basta uma menção a nazismo, Holocausto ou Auschwitz para fazê-los abaixar a cabeça em silêncio, envergonhados, culpados, tristes.

Nós, brasileiros, se tivéssemos vergonha na cara, se tivéssemos um pouco mais de memória, faríamos a mesma coisa ao ouvir menções a senzala, navio-negreiro, escravidão.

Essa pica é nossa.

 

Cais do Valongo, o elevador de serviço do século XIX

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Desembarque de escravos no Cais do Valongo, pintado por Rugendas em 1835.

No Rio de Janeiro, o principal porto de desembarque de escravos foi o Cais do Valongo. Estima-se que, entre 1758 e 1843, tenham chegado por ele quase um milhão de pessoas. (897.748, segundo o The Transatlantic Slave Trade Database.)

Provando que não foi de repente que nos tornamos o povo que faz subir pelo elevador de serviço a doméstica que faz o nosso serviço sujo, em 1770 o desembarque de escravos é proibido no porto principal da cidade (onde hoje fica a Praça XV e o Paço Imperial) e transferido exclusivamente para o distante Valongo.

Afinal, quando se está chegando de um grand tour pela Europa, a última coisa que se quer ver é um escravo nu agonizando no cais perto de você! Pelo amor de Deus!

Por fim, em 1843, cada vez mais envergonhado com a escravidão que lhe pagava as contas, o Império desativa e aterra o Cais do Valongo, construindo por cima dele o elegante Cais da Imperatriz.

E fim de história. Assim esqueceu-se o Valongo. Afinal, nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país!

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Uma escavação arqueológica em pleno centro do Rio de Janeiro.

Fast-forward para o presente. Em meio a um frenesi de obras para preparar o Rio de Janeiro para a Copa e para os Jogos Olímpicos, a prefeitura acabou de descobrir e desencavar o Cais do Valongo em pleno centro da cidade.

Agora reformado e reembalado para turistas ("são nossas ruínas romanas!", disse o empolgado prefeito), o Cais do Valongo foi inserido no recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, ao lado de outras atrações como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos (onde eram enterradas as vítimas da travessia atlântica) e os Jardins Suspensos do Valongo, esses últimos uma das coisas mais lindas e surpreendentes que já vi nessa cidade. (Veja o mapinha abaixo.)

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O recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, no Rio de Janeiro.

Mas que não seja só um espaço para turista tirar fotos.

O que falta ao Brasil e ao Rio de Janeiro, e o que esse circuito histórico pode começar a timidamente fornecer, é uma verdadeira compreensão dos horrores que engendramos, um pálido retrato do terror que aconteceu (e ainda acontece) debaixo dos nossos olhos, nesse nosso chão, na nossa senzala, no nosso quartinho de empregadas.

O texto que você está lendo só existe porque calhei de visitar o Cais do Valongo no dia seguinte de assistir "Shoah".

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O Cais do Valongo, hoje, aberto à visitação pública.

 

É possível quantificar o horror?

O Holocausto perpetrado pelos alemães matou cerca de seis milhões de judeus, um terço de todos os judeus no mundo. Além de incontáveis milhões de outras pessoas.

Não é minha intenção negar nem suavizar esse horror.

Mas não foi nem de longe o único horror perpetrado por europeus em sua longa história de horrores.

É impossível visitar lugares de tortura e morte como Auschwitz, Treblinka, Sobibor sem uma atitude de respeito e reflexão, sem pensar na memória das centenas de milhares de pessoas que sofreram ali.

Mas por que nós, brasileiros, não temos a mesma atitude ao visitar uma senzala, o Pelourinho (onde os escravos eram castigados publicamente) ou o Cais do Valongo?

Auschwitz matou 1,1 milhão de pessoas, Treblinka, 900 mil, Sobibor, 200 mil.

Enquanto isso, o Brasil recebeu 4 milhões de escravos, sendo que um milhão só pelo Cais do Valongo, logo ali, no centro do Rio.

Quem consegue compreender a enormidade desses números? Quem consegue quantificar tamanho sofrimento?

 

O passado é presente

Por isso, ali de pé diante do Cais do Valongo, um dia depois de assistir "Shoah", eu tentei esquecer os números e somente imaginar como teria sido a experiência individual, una, indivisível, de pisar em terra firme ali, naquelas pedras, naquele chão.

Imagino que fui arrancado de minha família e de tudo que conheci; que atravessei o oceano cercado de pessoas agonizantes em um navio infecto; que não pude trazer uma roupa, um livro, nenhum objeto pessoal; que não sabia se jamais veria minha terra; que estava condenado a um castigo literalmente e potencialmente infinito, pois a escravidão não seria apenas minha, mas sim herdada por todos os meus descendentes até o fim dos tempos.

Imagino que o Rio de Janeiro, para mim, escravo recém-chegado, era um lugar desconhecido e cheio de horrores. Era o porto onde meus companheiros mais fracos vinham morrer. Era o chão onde começava a escravidão do meu corpo. Era minha primeira experiência nesse novo mundo onde seria cativo e explorado.

Imagino então que hoje o Rio de Janeiro continua sendo um lugar de horror para os meus descendentes, que são ao mesmo tempo a maior parte das vítimas de assassinato e também a maior parte da população carcerária, e ainda têm que ouvir que racismo não existe no Brasil.

Tudo isso aconteceu ontem, e continua acontecendo hoje. O passado, como uma pedra jogada no lago, cria ondas concêntricas na água e repercute no presente. O passado é o presente.

As cotas raciais são necessárias hoje não para corrigir as injustiças históricas do passado, mas para corrigir as injustiças cotidianas de hoje. As cotas raciais são necessárias porque hoje a Polícia Militar não invade do mesmo jeito a cobertura do descendente do escravista e o barraco do descendente do escravo.

O que fica claro é que não dá pra pensar nesses fenômenos como se pertencessem a universos tão diferentes assim. Não faz sentido chorar assistindo A Lista de Schindler e depois ir espairecer tomando o milkshake do Senzala.

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Esse texto faz parte do livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Outrofobia, o espetáculo | alex castrooutrofobia | alex castro

 

11
Out22

Damares uma "atini" para despertar o ódio racial contra os povos indígenas

Talis Andrade

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Damares Alves, ex-assessora do senador Magno Malta, quando foi anunciada como ministra da nova pasta das Mulheres, Família e Direitos Humanos, já colecionava falas polêmicas e acusações.

A ONG Atini, fundada por Damares, é alvo de denúncias do Ministério Público e de indigenistas, que falam em tráfico e sequestro de crianças e incitação ao ódio contra indígenas.

ATINI significa “Voz” na língua suruwahá.

Em 2016, a Polícia Federal pediu à Fundação Nacional do Índio (Funai) informações sobre supostos casos “de exploração sexual e tráfico de índios”. No despacho estaria a ONG de Damares e outras duas. A informações são do jornal Folha de S. Paulo.

A acusação é duplamente dramática levando em conta que em 2019 a Funai ficou sob o guarda-chuva de Damares.

Ela deixou a ONG em 2015, quando passou a atuar no gabinete de Magno Malta e fazer assessoria para a bancada evangélica no Congresso.

Com sede em Brasília, a Atini – Voz Pela Vida tem como uma das principais bandeiras o combate ao infanticídio. A acusação é de que a ONG teria usado um falso apelo humanitário – que é a morte de crianças indígenas – para prover tráfico e exploração sexual.

A ONG Movimento Atini - Voz Pela Vida, comandada pela pastora Damares Alves, foi denunciada, pelo Ministério Público Federal (MPF), por "dano moral coletivo decorrente de suas manifestações de caráter discriminatório à comunidade indígena". 

A denúncia do MPF contra a ONG, que diz ter como missão "promover a conscientização e a sensibilização da sociedade sobre a questão do infanticídio de crianças indígenas", foi feita em 2015, após a Atini divulgar um vídeo sobre a questão do infanticídio indígena. Na ação, o MPF pede que a ONG pague R$ 1 milhão a título de danos morais, além da proibição da veiculação do documentário "Hakani – A história de uma sobrevivente".

Para os procuradores, o filme buscava "chamar atenção acerca do tema 'infanticídio indígena', para "legitimar as ações missionárias no interior das comunidades indígenas". O vídeo foi produzido em parceria com a instituição Jovens Com Uma Missão (Jocum), denominação adotada no Brasil pela organização evangélica norte-americana Youth With a Mission.

Ainda segundo o MPF, o vídeo causou "profunda indignação na sociedade, gerando manifestações preconceituosas e discriminatórias em face das comunidades indígenas", além de "atingir a dignidade humana deste grupo perante a sociedade".

O filme picareta continua à disposição de qualquer vítima das tramas de Damares Alves e associados. Uma picaretagem que já lhe uma assessoria parlamentar, um ministério no governo Bolsonaro e a eleição de senador pelo Distrito Federal. 

Foi deixar o cargo de ministra , que Damares voltou a espalhar mentirar, boatos sobre os povos indígenas.

Informa 247:

O Ministério Público Federal (MPF) solicitou nesta segunda-feira (10), à secretária executiva do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Tatiana Barbosa de Alvarenga, informações sobre supostos crimes contra crianças que a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves anunciou ter descoberto em visita ao arquipélago do Marajó (PA).

O anúncio de Damares, que gerou indignação nas redes sociais, foi feito no sábado, durante discurso em Goiânia (GO). Segundo Damares, crianças do Marajó teriam sido traficadas para o exterior e submetidas a mutilações corporais e a regimes alimentares que facilitam abusos sexuais.

Ela afirmou, ainda, sem apresentar nenhuma prova, que “explodiu o número de estupros de recém-nascidos” e que no MMFDH há imagens de crianças de oito dias de vida sendo estupradas. Segundo Damares Alves, um vídeo de estupro de crianças é vendido por preços entre R$ 50 e R$ 100 mil.

Membros do MPF no Pará pedem à Secretaria-executiva do MMFDH que apresente os supostos casos descobertos pelo ministério, indicando todos os detalhes que a pasta possua, para que sejam tomadas as providências cabíveis.

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Índia adotada por Damares desmente rapto: "Foi amor à primeira vista, o resto é mentira"

Uma reportagem publicada pela revista Época na última quinta-feira (31), tentou sustentar uma acusação de que a ministra Damares Alves teria sido cúmplice no “rapto” da índia Kajutiti Lulu Kamayurá, ainda criança de uma aldeia no Xingu. Porém, tanto a ministra quanto Lulu — hoje com 20 anos — desmentiram a informação, assegurando que a garota não foi levada à força da aldeia.

"Foi amor à primeira vista. Ela se apaixonou por mim e depois eu por ela. O resto é tudo mentira", disse a índia.

A reportagem da revista Época diz trazer depoimentos de índios da aldeia Kamayurá, no norte do Mato Grosso, de onde Lulu saiu ainda criança. 

[O nome dessa criança, hoje adulta, muda de reportagem para reportagem]

Em entrevista para a UOL, Lulu explicou que se lembra de ter deixado a aldeia aos seis anos para fazer um tratamento dentário em Brasília, com autorização de seus pais biológicos. Ela partiu em uma viagem de barco até a cidade Canarana e embarcou em um ônibus para Brasília, onde ficou hospedada na casa da missionária Márcia Suzuki, que desenvolvia um trabalho voluntário na aldeia. Foi na casa de Márcia que a menina conheceu Damares.

Lulu contou que Damares se "apaixonou" por ela e, após conseguir autorização de seus pais, a levou para casa. Como era muito nova, não conseguir apontar as datas com precisão por si só, durante a entrevista. Porém destacou que não foi algo repentino. A mudança para casa de Damares teria ocorrido três anos após sua chegada à capital federal. 

Além de Lulu, dois de seus irmãos também foram para Brasília... 

[Quando Damares tinha seis anos começaram os estupros de dois pastores hospedados na casa do pastor pai de Damares. Estupros que continuaram por dois anos, e Jesus no pé da goiabeira nada fez. Damares recorda o que chama de holocausto, mas jamais denunciou os pastores... Jamais. E o pai, homem santo e cego para o sofrimento da filha. Por que essa tara de pastor pedófilo e livre? ]

27
Mai22

Policiais rodoviários repetiram método nazista para matar Genivaldo

Talis Andrade

www.brasil247.com -

 

A mesma prática - a de matar pessoas por asfixia com gases venenosos no interior de veículos -, foi usada pelos nazistas desde 1939

 

por Denise Assis

As cenas que chocaram o país, exibindo ao vivo a morte de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, após abordagem de policiais rodoviários federais, no município de Umbaúba, no sul de Sergipe, são o máximo da brutalidade, mas não são novidade. A mesma prática - a de matar pessoas por asfixia com gases venenosos no interior de veículos -, foi usada pelos nazistas desde 1939, para eliminar judeus nas cidades pequenas do interior da Alemanha, de acordo com o portal Enciclopédia do Holocausto.

 São cenas que não se descolam da retina. São cenas de mais um homem negro morrendo ao vivo. De barriga para cima, batendo os pés, enquanto um spray é acionado em sua direção, pelos dois policiais - sem desrespeito a ele ou à família, foi apenas uma imagem que me veio à mente -, o transformaram em uma espécie de “inseto”. Os policiais o trancaram em seguida na caçapa do camburão, inalando a nuvem tóxica, exatamente como fazemos ao dispensarmos uma barata, trancada na lata do lixo, ainda nos estertores da morte.  

A dupla “da lei” não se intimidou com a presença do sobrinho - mesmo alertada de que ele era portador de transtornos mentais - ou de dezenas de testemunhas e de celulares vigilantes. Continuaram a execução, compenetrados na “função” de matar. Vida negra, ordinária, improdutiva.

“Eu estava próximo e vi tudo. Informei aos agentes que o meu tio tinha transtorno mental. Eles pediram para que ele levantasse as mãos e encontraram no bolso dele cartelas de medicamentos. Meu tio ficou nervoso e perguntou o que tinha feito. Eu pedi que ele se acalmasse e que me ouvisse”, contou.

Como em todas as vezes, em todos os casos, os superiores dos dois policiais - ou podemos já chamá-los de assassinos? – vêm a público anunciar ao “distinto público” que ambos estão afastados das ruas. Genivaldo está afastado para sempre do convívio da família. E, sabemos todos, a “ação” criminosa não vai dar em nada. Em tempos de “revival” do nazismo, agentes policiais estão à serviço do poder central, no trabalho de eliminação dos que incomodam, dos que “sobram”, dos que estão nas bordas do Estado.

O sobrinho de Genivaldo, Wallyson de Jesus, contou que o tio foi abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), enquanto pilotava uma motocicleta, e reagiu. Chegou a ser levado a um hospital, mas já chegou sem vida. Morreu na “câmara de gás” improvisada no interior do camburão, exatamente como faziam as diligências nazistas.

Quantas vezes vocês já leram e vão ler o desfecho da notícia dessas mortes, com os seguintes termos: “a Polícia Federal investiga o caso”? Mais protocolar impossível. Porém, uma perda de um familiar não cabe em protocolos. Ainda mais num contexto de tamanha violência. Seus crimes: “desobediência e resistência à prisão”. Para quem cometeu durante anos o crime de “rachadinha”, tudo! Para Genivaldo uma nuvem de spray tóxico. A pena de morte imediata.

Foi no ano de 1939, quando já se preparavam para as operações de assassinato em massa, que os nazistas iniciaram experimentos com gases venenosos em doentes mentais (“euthanasia”). Tratava-se de um eufemismo usado por eles, os nazistas, para o morticínio. A eliminação sistemática daqueles alemães que os nazistas consideravam "indignos de viver", por portarem alguma deficiência física ou mental.  

A “limpeza étnica” começou com seis instalações, início do projeto de mortandade por gás, criadas como parte do Programa de Eutanásia: Bernburg, Brandenburg, Grafeneck, Hadamar, Hartheim e Sonnenstein. Estes campos de extermínio utilizavam o monóxido de carbono em sua forma pura, produzido quimicamente.

Com a invasão da Alemanha à União Soviética, em junho de 1941, e das atividades de fuzilamento em massa de civis, levadas a cabo pelas unidades móveis de extermínio (Einsatzgruppe), os nazistas começaram os experimentos com asfixia por gás nas chamadas “vans de gás”. Estes veículos eram caminhões hermeticamente fechados com o cano de escapamento voltado para o compartimento interior. Um método econômico.

O uso do gás foi iniciado após os membros dos Einsatzgruppen reclamarem da fadiga que sentiam ao atirar em enormes grupos de mulheres e crianças. Some-se a isto o fato de que o gás era um método mais econômico. Naquele mesmo ano, os nazistas criaram o campo de Chelmno, na Polônia, e lá judeus e ciganos da sub-etnia Roma, que viviam na área de Lodz, naquele país, foram mortos em “vans de gás”.

Os Einsatzgruppen (unidades móveis de extermínio) assassinaram centenas de milhares de pessoas nas operações de asfixia por gás, a maioria deles judeus, ciganos Roma, e deficientes mentais. Em 1941, a liderança das SS chegou à conclusão de que deportar os judeus para os campos de extermínio (para serem envenenados por gás) era o método mais eficaz para alcançar rapidamente a "Solução Final".

Auschwitz: libertação do campo de concentração nazista completa 77 anos

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09
Fev22

Moro, seu chefe de campanha defende o ‘nazismo livre’. Vai se calar?

Talis Andrade

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por Fernando Brito

Promovido a interlocutor-mor de Sergio Moro, convidado a ser a referência de integridade para ajudá-lo a tentar explicar o embrulho de estar recebendo dinheiro de uma empresa que administra as empreiteiras que a Lava Jato levou à garra, Kim Kataguiri não pode mais ser considerado um penduricalho do morismo, mas um integrante do núcleo central da candidatura do ex-juiz.

Portanto, a defesa que o chefe do MBL fez da legalização do nazismo é de uma enorme gravidade, porque significa que Moro, ainda que não vá admitir, tem junto de si pessoas que acham possível permitir que se organizem como força política pessoas que defendem a supremacia racial, o extermínio de pessoas e a repressão brutal a todo os tipos de diferença – social, racial, ideológica.

Ou seja, àquilo que é intolerável pelas cláusulas pétreas de nossa Constituição e, se ainda que não o fosse, ofende a consciência de qualquer pessoa civilizada, depois do assassinato de milhões de pessoas na 2a. Guerra Mundial, sejam os judeus, os ciganos, os russos, poloneses, eslavos e muitos mais, inclusive os que, por “acusação” de homossexualidade ou de “ser esquerdista” foram fuzilados ou sufocados em câmaras de gás.

Não há, até o momento em que escrevo, nem uma só palavra de Moro diante disso. Muito menos uma atitude, indispensável, do afastamento de Kataguiri do comando de sua campanha, o mínimo a que está obrigado em respeito a quem perdeu pais e avós torturados e executados pelo nazismo.

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28
Jan22

Arrastados: histórias de vida e morte nos três anos de Brumadinho

Talis Andrade

 

Bombeiros recuperam corpo soterrado de vítima do rompimento da barragem de Brumadinho: livro reconstitui história três anos depois da tragédia (Foto: Mauro Pimentel / AFP – 28/01/2019)

Elis Marina Costa planejava ficar noiva ao comemorar seu aniversário de 25 anos, em 13 de março de 2019, em Ouro Preto, onde morava com seus pais. Em 13 de março, o nome de Elis ainda fazia parte da lista de dezenas de desaparecidos na tragédia de Brumadinho, onde, no dia 25 de janeiro, três barragens de rejeitos de mineração da Vale romperam e deixaram um rastro de lama, destruição e morte. O corpo da jovem técnica de segurança do trabalho só foi encontrado em novembro de 2019, quase 10 meses depois do desastre, a cerca de três metros de profundidade e a mais de dois quilômetros da barragem da B1, a primeira a entrar em colapso.

Jornalista Daniela Arbex lança livro sobre tragédia da Vale, em Brumadinho, às vésperas de completar três anos. — Foto: Bruno Latoya / TV GloboJornalista Daniela Arbex lança livro sobre tragédia da Vale, em Brumadinho, às vésperas de completar três anos. — Foto Bruno Latoya / TV Globo

Leu essa? Brumadinho: do luto à impunidade, uma tragédia sem fim

Funcionária da empresa Fugro Geotecnia, contratada pela Vale para substituir equipamentos de monitoramento, Elis estava dentro de uma picape, com outros dois colegas, no alto da B1, a 70 metros de altura, quando a barragem, com quase 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, rompeu, derrubou outras duas e gerou a avalanche de lama. No mesmo veículo, estava o auxiliar de sondagem Olímpio Gomes Pinto, então com 57 anos, casado e com três filhos adultos. Três anos depois, o corpo de Olímpio é um dos seis ainda não encontrados, entre os 270 mortos na tragédia de Brumadinho.

Na lista da Avabrum (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão), o número sobe para 272 porque duas mulheres estavam grávidas. Como Elis e Olímpio, a engenheira Eliane de Oliveira Melo, de 39 anos, funcionária da Retramax, outra contratada da Vale, estava numa outra picape arrastada pelo tsunami de lama. Grávida de cinco meses, já havia escolhido o nome da filha, Maria Elisa. A família de Eliane precisou esperar 69 dias até seu corpo ser encontrado.

 

Imagem 1 de 1 de Arrastados: Os Bastidores Do...1ªed.(2022) - Livro
 

Leu essa? Brumadinho: 300 quilômetros de medo, insegurança e incerteza

Para o técnico de mina Gleison Pereira e o operador Carlos Antônio de Oliveira, a caminhonete onde estavam foi salvação e não túmulo. Quando ouviram o estrondo, saíam de uma mina em direção a outra. Em disparada, a caminhonete levou os dois para fora da Vale, não sem antes parar para pegar três funcionários desesperados que lotaram a caçamba do veículo. Carlos estava em lágrimas: o filho Diego, 27 anos, engenheiro da Vale, estava no refeitório engolido pela lama.

As histórias de Elis, Olímpio, Eliane, Gleison, Carlos e Diego estão entre as muitas contadas pela jornalista mineira Daniela Arbex no livro Arrastados – Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil, em que ela reconstitui os momentos que precederam a tragédia e as 96 horas seguintes ao rompimento das barragens. O livro – que será lançado nesta terça-feira (25/01) pela Editora Intrínseca – é resultado de mais de 300 entrevistas realizadas em um ano e meio de trabalho de apuração da jornalista, autora também de Holocausto brasileiro: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil e Todo dia a mesma noite – A história não contada da boate Kiss.

A enxurrada de resíduos de mineração matou trabalhadores dentro do complexo da Vale – no maior acidente de trabalho da história do Brasil -, moradores de dois distritos rurais de Brumadinho – Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira – e até turistas hospedados na Pousada Nova Estância, vizinha da barragem, que foi completamente destruída. O colapso da barragem, em 2019, atirou quase 10 milhões de metros cúbicos de lama no Rio Paraopeba, um dos formadores do São Francisco, impactando o meio ambiente e a saúde da população que vive às margens.

Três anos depois da tragédia de Brumadinho, o Brasil ainda tem mais de 120 barragens consideradas em estado crítico – 65 são barragens a montante, a maioria em Minas Gerais – do mesmo tipo de estrutura que rompeu em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019. A Vale já pagou mais de R$ 2 bilhões em indenizações a vítimas; e outros R$ 37 bilhões em acordos com os governos.

Na esfera criminal, a reparação é mais lenta. O Ministério Público de Minas Gerais denunciou, em 2020, 16 pessoas pelo crime de homicídio qualificado das 270 vítimas fatais da tragédia. No fim do ano passado, contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a denúncia, transferindo para a Justiça Federal a competência para jugar os responsáveis pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Há 10 dias, o MPMG recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra a decisão do STJ.

Neste dia 25 de janeiro de 2022, os três anos da tragédia serão lembrados em Brumadinho com missa no Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora do Rosário, presidida pelo arcebispo de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em seguida, os integrantes da Avabrum lideram uma caminhada até o letreiro de Brumadinho onde será realizado um ato público de protesto contra a impunidade e de reparação às comunidades atingidas pelo rompimento da barragem.

Leia mais

 
 
Duzentas e setenta pessoas morreram na tragédia de Brumadinho e são relembradas todo dia 25, no letreiro da cidade. — Foto: Anna Lúcia Silva/G1

Duzentas e setenta pessoas morreram na tragédia de Brumadinho e são relembradas todo dia 25, no letreiro da cidade. Foto Anna Lúcia Silva/G1

 
 
 
 

'Arrastados' reconta as 96 horas após o rompimento da barragem da Vale

Carlos Eduardo Alvim entrevista Daniela Arbex. Leia aqui 

29
Abr21

O Brasil é um país genocida

Talis Andrade

O que foi a tragédia do Hospital Colônia de Barbacena? | SuperConhecida como Cidade dos Loucos, Barbacena quer se reabilitar do passado -  Jornal O GloboHolocausto Brasileiro: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil - La ParolaAssombrado: Hospital Colônia de Barbacena-MG - Holocausto Brasileiro

"Somos um país genocida. Não apenas hoje, quando temos quase 400 mil mortos pela pandemia. Mas desde sempre". Quenm mata 60 mi pessoas em um único hospício. Mata dez vezes mais no Brasil inteiro, para economizar o dinheiro com vacinas

 

O Brasil é um país genocida

A cultura do extermínio e da sua naturalização acompanha o Brasil ao longo dos séculos. De indígenas a vítimas da ditadura e da covid: as vidas e as mortes de pessoas supostamente menos humanas parecem pouco importar.

 
por Ynaê Lopes dos Santos /DW
- - -
 

Há muito tempo, uma grande amiga, também historiadora, me disse: "Você precisa ler este livro."

O tema é devastador. O genocídio no maior hospício do Brasil. Eu, que já trabalho com um dos temas mais violentos da história brasileira, retardei minha leitura por anos. E quando a fiz, foi de supetão, numa espécie de atropelo guiado pela fina escrita da autora Daniela Arbex e por toda a violência e tristeza que o livro carrega. Como um remédio amargo, que tomamos num gole só. Foram 60 mil mortos dentro de uma instituição, administrada pelo Estado, que tinha a função de oferecer tratamento e condições de vida adequadas àqueles considerados doentes mentais.

O Hospício de Barbacena, fundado em 1903, abrigou milhares de vidas. E, infelizmente, destituiu de humanidade praticamente todas elas, naquilo que a autora bem chamou de "Holocausto brasileiro", expressão que dá título ao livro. Uma sucessão de tragédias pessoais, incompreensões da natureza humana, racismo, machismo e decisões políticas criminosas que resultaram num campo de concentração em pleno sudeste de Minas Gerais. Um retrato do que temos de pior.

A leitura de Holocausto brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil em plena pandemia, quando o Brasil vive a pior crise sanitária de todos os tempos, foi uma atitude quase masoquista da minha parte. Todavia, essa experiência foi fundamental para solidificar a certeza de que somos um país genocida. Não apenas hoje, quando temos quase 400 mil mortos pela pandemia. Mas desde sempre. E se engana quem considera que essa constatação retira a responsabilidade de governantes e instituições públicas pelo que está acontecendo. Na realidade, tal constatação nos devolve à História, essa senhora do tempo, que nos ensina a diferenciar tragédias de projetos políticos. Porque, quando a tragédia tem destino certo, ela perde a sua imponderabilidade e, por isso, precisa ganhar outro nome. E, em certa medida, é isso que nos falta por aqui: rememorar e nomear as nossas carnificinas. 

O número de homens e mulheres indígenas mortos desde 1500 é praticamente incalculável. As estimativas apontam que 70% do total da população nativa foi dizimada, o que, numa perspectiva bem conservadora, indica que praticamente 2,5 milhões de indígenas sucumbiram ao projeto que estava sendo gestado no período colonial. O Brasil também foi o território da América que mais recebeu africanos escravizados. Ao menos 4,5 milhões de homens e mulheres foram retirados à força do continente africano e subjugados à instituição escravista em terras brasileiras. Isso sem contar a violência inerente e cotidiana da vida em cativeiro, fosse para os africanos, fosse para aquelas e aqueles nascidos no Brasil.

Mesmo horrorizados, muitos dirão que apesar de profundamente violentas, as trucidações pelas quais indígenas e negros passaram ao longo de quatro séculos da história do Brasil não podem ser lidas de forma anacrônica. O que é verdade. A escravização e a catequese forçada, por exemplo, foram duas instituições que tiveram respaldo legal e moral por séculos. E, mais do que isso, foram práticas disseminadas que formataram a sociedade brasileira. Entretanto, isso não significa dizer que elas foram os únicos projetos vigentes à época. Basta um olhar mais atento para a história do Brasil, para observamos que ela está cravejada de lutas e formas de resistência implementadas por homens e mulheres que não aceitaram viver apenas sob o signo da violência, e que forjaram outros mundos, outras possibilidades de ser, pagando preços altos por tais ousadias.

Ou seja, não houve um único período da história do Brasil no qual a escravidão e as explorações coloniais não estivessem sendo questionadas e combatidas. O que nos leva a pensar sobre a legalidade e a moralidade como atributos historicamente construídos, que serviram a interesses e grupos sociais específicos. E ao optarem repetidamente por uma legalidade e moralidade de extermínio, esses interesses criaram uma cultura na qual é muito nítido o escalonamento da humanidade: há vidas que valem mais do que outras. E o que determina o valor dessas vidas é a combinação entre cor da pele, gênero e condição socioeconômica.

Mesmo com transformações políticas e econômicas significativas do período republicano e o avanço na luta dos direitos humanos, a cultura do extermínio e da sua naturalização nos acompanham. Há pessoas que são, supostamente, menos humanas que outras e, por isso, suas vidas e mortes parecem pouco importar. O que dizer dos 25 mil assassinados em Canudos? Dos milhares de mortos desaparecidos e torturados em nossas experiências ditatoriais? Dos 111 detentos mortos no Carandiru?  Do massacre da Haximu? Das chacinas da Candelária e do Vigário Geral? Do massacre de Eldorado dos Carajás? Das vidas ceifadas por balas perdidas? Da imensa maioria dos 400 mil mortos pela covid?

Como definir esses episódios da nossa história?

Extermínio, genocídio, massacre, matança, aniquilação, mortandade, trucidações. Sinta-se à vontade para escolher.

 

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