O Natal está chegando e ninguém que tenha vergonha e senso de comunidade comerá sua ceia, caso tenha a chance de ter uma, sem vergonha e sem lembrar dos recentes comedores de ouro.
Em meio à Copa do Mundo ocorrida no Catar, a cena chocou muita gente. Um grupo de jogadores convidados por um ex-jogador chamado Ronaldo, alcunhado de “o fenômeno”, foram a um restaurante de carnes onde se serve um bife salpicado de ouro. Houve quem tenha interpretado a cena à luz do neoliberalismo dizendo que eles tinham o direito de comer o que podiam pagar, outros acharam que jogadores brasileiros comendo um bife pelo qual se paga milhares de reais enquanto o Brasil volta ao mapa da fome, era algo absolutamente indigesto.
Ninguém se preocupou com a « politica sexual da carne », que não é um assunto menor, sobre o qual falarei em outro momento. Por enquanto, saibamos apenas que o show era também de horrores machistas e patriarcais. O frisson do futebol é parte essencial do culto patriarcal do macho.
A derrota combinou muito com a seleção atual e o capitalismo esportivo e recreativo como moral da história.
De outro lado, a indústria cultural da alimentação tenta escamotear a desigualdade de classes inventando falsas democracias alimentares como o McDonalds (lixo consumível para todos), enquanto a resistência se faz vegana, vegetariana ou se volta à agricultura agroecológica.
Enquanto o capitalismo segue em seu exercício de dominação amparado pelo patriarcado monoteísta em sua pose de “dominação e devoração da carne” sobre os corpos e seus órgãos, sem jamais esquecer o estômago, o universo gourmet na era do espetáculo, acrescenta a ostentação ao cardápio deixando evidente que vivemos uma luta de classes, na qual os ricos estão em guerra contra os pobres que, perplexos e lançados no estupor diante de imagens humilhantes, seguem hipnotizados para o abatedouro.
No espirito do Natal, gostaria de sugerir as seguintes imagens:
As ilustrações abaixo referem-se à auri sacra fames, a execrável fome de ouro de que falava Virgilio na Eneida e que Max Weber chamou de “pulsão pecuniária”.
Na primeira imagem, Waman Poma de Ayala, cronista inca do século XVI, mostra um Inca perguntando a um espanhol: “Esse ouro, comes?” E o espanhol responde: “Sim, esse ouro comemos”. A filósofa boliviana Silvia Cusicanqui, atribui a derrota vivida por milhares de Incas a um exército de menos de 150 homens espanhóis a cavalo, ao estado de estupor no qual os indígenas foram deixados diante desses seres, os colonizadores, que não comiam alimentos humanos.
A segunda se chama “CEOs ou Os comedores de Ouro I” e faz parte do que podemos chamar de « Surrealismo Capitalista ».
A terceira “Alegoria da América ou Os comedores de Ouro 2”, sendo, este último, uma releitura da obra Conquista da América, (emNova Reperta, c. 1600, Gravura de Philips Galle, 27 x 20 cm, The Metropolitan Museum of Art). Ambas são obras da autora desse artigo que nos últimos anos acabou se tornando artista plástica.
Memorial do Convento, de José Saramago é livro que explicita claramente as posições políticas e religiosas se seu autor, único de língua portuguesa laureado com o Nobel de literatura (merecidamente). É um livro inesquecível. Uma crítica implacável à política econômica de Portugal (e ao capitalismo comercial, em linhas gerais), à falta de planejamento, ao nacionalismo fútil e, principalmente, à irracionalidade religiosa. O autor é irônico. Lembra-nos que se a vida não tivesse boas coisas como comer ou descansar, não valeria a pena construir conventos.
Saramago questiona como os portugueses liquidaram os ganhos que tiveram com as grandes navegações e com o ouro retirado do Brasil. Descreve uma procissão em Lisboa, indagando quantas vidas seriam necessárias para custear tamanha opulência. Há também uma violenta crítica à Santa Inquisição, como talvez nenhum outro autor de língua portuguesa o tenha feito, com tantos pormenores. Ou te corto, ou te queimo, parecia ser o lema dos inquisidores. Na Inquisição, segundo o narrador, eram más todas as razões boas, e eram boas todas as razões más, e quando umas e outras faltassem, havia tormentos de água e de fogo. Não havia como escapar.
Há uma curiosa metáfora que pode substancializar o enredo desse livro. Uma metáfora que remete o leitor à terra e ao espaço. Quanto à terra, Memorial do Convento trata da construção do Palácio Nacional de Mafra. Quanto ao espaço, o livro trata dos esforços do Padre Bartolomeu de Gusmão para construir o primeiro balão que se tem notícia: a Passarola. Tanto o convento quanto o esforço do Padre Bartolomeu são fatos que ocorreram, o que matiza o Memorial do Convento com as cores de um excitante romance histórico. A habilidade narrativa de Saramago torna a ficção historicamente aferível e, ao mesmo tempo, faz da história uma página de um delicioso romance.
Há três personagens centrais. Bilimunda, Baltasar e o Padre Bartolomeu de Gusmão. Num segundo plano o rei, D. João V, e a rainha, D. Maria Josefa. Há muitos padres franciscanos, operários, os pais de Baltasar, a mãe de Bilimunda (executada pela Santa Inquisição) e ainda há espaço para Domenico Scarlatti, napolitano, célebre músico barroco do século XVIII, lembrado por suas peças para cravo, instrumento que dominava com perfeição. Scarlatti compôs sonatas executadas até hoje.
Baltasar (também chamado Sete-Sóis) perdeu a mão na guerra. Retornou a Portugal e encontrou Bilimunda. Formavam um casal apaixonado. Bilimunda tem dons sobrenaturais. Quando acorda, em jejum, tem a habilidade de ver as pessoas por dentro. Certo dia, na Igreja, pode ver o que havia dentro de uma hóstia. A família de Baltasar recebeu a Bilimunda como uma filha.
O Padre Bartolomeu pretendia suspender sua invenção no éter, substância que se acreditava mantinha as estrelas no céu. Com base na sabedoria de Bilimunda, o padre voador acreditava que o sol atrairia o âmbar, que atrairia o éter, que atrairia os ímanes, que atrairiam as lamelas de ferro, de que compunha a nave, e a nave seria atraída para o sol, sem parar. O padre conseguiu fazer voar seu engenho. Incrédula, a população julgava que o Espírito Santo sobrevoava Mafra: um milagre. Mais um milagre. O leitor não se assusta com o fato de que o Santo Ofício foi atrás do padre voador.
O enredo é linear. Os reis de Portugal prometem aos franciscanos a construção de um convento em Mafra, em troca de bençãos que levassem à gravidez da rainha. O casal precisava de herdeiros. A cena da cópula dos reis é antológica. Ambos vestem camisas cumpridas. Antes de subirem à cama ajoelham-se e rezam, rogando para que não morram no momento da conjunção carnal, sem confissão.
Os franciscanos estão à frente na empreitada. Comprovam os milagres que conseguiam e se comprometiam com o milagre da gravidez da rainha. Saramago reflete em torno da religiosidade portuguesa. É um cético. O convento é construído com muito esforço e dificuldade. Baltasar alcança ocupação melhor e dirigirá juntas de boi para os funcionários do rei. O Padre Bartolomeu se perde. Não se tem notícia de seu paradeiro. Baltasar pretende resgatá-lo, chega e encontrar a Passarola, que estava abandonada.
Bartolomeu desaparece e Bilimunda sai em sua procura, por nove anos. As passagens que descrevem a procura são das mais líricas já escritas em língua portuguesa. E não vai aí nenhum romantismo piegas. Andou por Portugal todinho, e descobriu como o país era pequeno. Cruzava a fronteira com a Espanha, não percebia, até o momento no qual ouvia uma língua outra. Então retornava.
Imaginava-se em praça de vila, pedindo esmola, quando um homem com gancho de ferro (no lugar da mão esquerda) se aproximava. Era assim que idealizava o reencontro. Segundo o narrador, Bilimunda andou milhares de léguas, “quase sempre descalça (...) a sola dos pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça (...) Portugal esteve inteiro debaixo desses passos”. Bilimunda encontrou Baltasar. Mas não revelo a quem não leu o livro em que condições. Tem-se o desfecho mais inesperado da literatura em nossa língua. Quem leu, capta na imagem final um acerto de contas entre um escritor corajoso e a superstição que ronda a trama histórica portuguesa.
Nesse livro Saramago quebrou a lógica do amor convencional. Lembro-me o roteiro de Milliet. Satisfeito o desejo, liquidado o interesse, aplacada a vaidade, cada qual dos amantes fecha-se novamente em seu mundo próprio. Não somos capazes de pensarmos fora de nós mesmos, precisamos assim de analogias e de cumplicidades. Parece que nunca nos entregamos com confiança e desprendimento.
O fecho de Memorial do Convento corta esse roteiro romântico e nos mostra que o pavor da perda pode ser tão penoso quanto a própria perda. É com perdas que devemos dialogar na vida real, como condição de sobrevivência. Viver é perder. Sobreviver é saber perder.
"Entre os 248 conflitos armados ocorridos entre 1945 a 2001, 201 foram iniciados pelos EUA, representando 81% do número total", destacam os chineses
Sputnik -A embaixada da China na Rússia qualificou os Estados Unidos de "ameaça real ao mundo".
Neste sábado (26), os diplomatas chinesesretuitaramuma imagem compartilhada anteriormente por Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, que enumera os países que forambombardeados por Washingtondesde a Segunda Guerra Mundial.
"Nunca se esqueçam quem é a verdadeira ameaça ao mundo", lê-se na imagem
Esse é o ponto, este mais que esse; nosso é o tremor. Este é o ponto, um espanto análogo a quando avisam:Aqui passa o Trópico de Capricórnio, Aqui termina o Brasil, Aqui acaba a Polôniaetc. Aqui, exatamente aqui, você não vê, mas não duvida do enunciado dir-se-ia sagrado, vindo de um deus dos limiares. Como um sol ele irradia, como um rei é que decide história, destino —
aqui você pode respirar, aqui podemos nos casar, aqui o fascismo não mete o nariz. Eis que passamos a ser nada, nossa sombra ficou do outro lado. Acuado pelo inimigo que avança, alguém sempre tira a própria vida. Agora conheceremos o que é vida.
Pois assim como tremo se me sei bem em cima do meridiano ou da fronteira, este é o ponto em que me quedo, o ponto de virada, de intelecção, a terra à vista de um problema e seu contorno. Ah o verdadeiro, o autêntico problema — que frêmito raro se o encontramos.
Presente nas comemorações alusivas aos 80 Anos da Força Aérea Brasileira (FAB), o presidente Jair Bolsonaro foi recepcionado, na noite desta segunda-feira (30/11), com uma ópera do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883). O artista ficou conhecido pelo antissemitismo e foi exaltado pelo Terceiro Reich, como símbolo de música nacionalista pelos nazistas.
Wagner morreu antes da ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, mas exerceu forte influência sobre a doutrina nazista. Era um dos principais compositores usado na propaganda nacional-socialista comandada pelo Führer. Não é a primeira vez que o compositor alemão vira referência durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. O ex-secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim, tinha Richard entre seus artistas prediletos.
A ópera tocada no evento desta segunda-feira foi Os Mestres Cantores de Nuremberg: Prelúdio. Como parte das comemorações alusivas aos 80 Anos da FAB, foi realizado o Concerto de Estreia da Orquestra Sinfônica da Força Aérea Brasileira. Transmitido pelo YouTube, o evento começou às 20h. Além do presidente, outras autoridades estiveram presentes. Jair Bolsonaro não se pronunciou na solenidade.
O Correio entrou em contato com a FAB, mas até o momento não obteve resposta. O espaço permanece aberto para manifestação do órgão.
Quem foi Richard Wagner
Além do talento para a música, o compositor Richard Wagner (1813-1883) ficou conhecido pelo antissemitismo — uma das razões para ser reverenciado por Hitler. O autor, que pertencia ao grupo conservador dos "nacionalistas alemães", teria publicado nos anos 1850 e 1869 um panfleto denominado "Sobre o Judaísmo na Música", no qual menosprezava a produção artística de judeus contemporâneos a ele, como Giacomo Meyerbeer e Mendelssohn-Bartholdy.
“As composições de Richard Wagner eram sempre tocadas nos comícios do governo nazista. Nos dias de hoje, os historiadores rotulam a idéia do ‘germanismo ariano’ dentro das obras do artista. A corrente wagneriana dos dias atuais está sempre em aproximação com Hitler”, explica ao Correio o historiador pela Universidade de Brasília (UnB) Jonas Carreira.
O historiador Gustavo Glielmo destaca que em Israel, por exemplo, o compositor ainda hoje causa mal-estar. “É de muito mau gosto tocar Richard Wagner em Israel. Por esse mesmo motivo. Muitos músicos de renome já tiveram problemas porque insistiram em tocar Richard Wagner no país”, afirma.
Glielmo ressalta que, apesar de ser exaltado, Wagner não pode ser considerado nazista, pois viveu muito antes do Terceiro Reich. “Richard é muito anterior ao nazismo. Ele morreu no século 19, e o nazismo é do século 20. Os nazistas encontraram alguma inspiração nele, mas ele não contribuiu em nada com o nazismo”, diz. “Richard Wagner era um antissemita declarado. Era um compositor admirado por Hitler, sem dúvida alguma. O músico era entendido pelo nazismo como parte das raízes culturais alemãs”, conclui.
Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir
por Urariano Mota
Na altura dos meus 70 anos, notei que a partir de certa idade a nossa memória é histórica. Mas para um escritor, o maior trabalho é narrar essa memória que se fez histórica. A seleção de acontecimentos, a sua organização em destinos e pessoas/personagens, é difícil. E mata de dor ou renova sobre a dor quem narra o lembrado. Outro fenômeno que observei nos penúltimos tempos foi a ligação indissolúvel entre o passado e o presente. Os anos findos, na aparência findos, renascem transformados. O passado não é morto. É vivo, hoje, passou por aqui agora. Disso eu não sabia. Essa descoberta me ocorreu ao escrever “A mais longa duração da juventude”. Para mim, foi uma iluminação, que eu nem imaginava antes desse livro.
E por que escrevo as linhas acima? – É que nesta semana pude ver a crítica do mestre Helder Santos Rocha a meu romance. Na sua fala, vi confirmadas, de um ponto de vista erudito, as linhas da minha intuição. A crítica veio à luz na live da III Jornada de estudos sobre ficção histórica.Como um dos participantes, Helder Santos Rochaapresentou um trabalho sob o título de “Ficção e Memória em ‘A mais longa duração da juventude’”. Acompanhem por favor trechos da sua intervenção.
“No romance de Urariano Mota há cenas de inúmeras reativações do tempo, nele existem propostas estéticas de coparticipação para o leitor do presente, muito mais que informes de acontecimentos do passado ditatorial.
Afinal de contas, como bem nos adverte Vladimir Safatle, precisamos encarar o neoliberalismo como a lógica da destruição máxima da solidariedade e dos laços comunitários. No que tange à memória sobre a ditadura pós-64, a comunidade pode ser uma resistência às perdas arquivísticas dos feitos de indivíduos invisibilizados e esquecidos por uma narrativa oficial em torno da repressão e da militância. A comunidade resiste ainda aos movimentos e gestos neoliberais que buscam só abafar as relações sociais calcadas na solidariedade e no convívio coletivo.
Diante disso, o que significa coviver, conviver? Não apresentamos uma resposta objetiva, mas recorremos às reflexões do próprio romance. Vejamos em dois excertos:
‘Quarenta e seis anos depois a pergunta ganha outro significado. No dia do enterro, com o cadáver saído do necrotério, quando a repórter perguntou ‘quem era Luiz do Carmo?’, eu respondi que para ele ainda não havia soado o momento da justiça. Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá de uma pessoa fundamental que não é celebridade? Mas o impossível ali eu recupero. Era irônico que, perseguido na ditadura como um terrorista, ainda depois, no tempo dos anistiados, Luiz do Carmo não conhecesse a justiça. Se antes havia tido a negação absoluta de direitos e de leis democratas, agora nos anos de governo eleito pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudamos nós, e continuávamos mudos para todos. Pois o reconhecimento público não chegava. Em seu favor, ela poderia dizer que seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o seu chefe, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase ‘A memória dos jornais é bem seletiva’. A culpa – se usamos a palavra redutora – era do conjunto da sociedade que esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa’.
Segundo trecho:
‘De muitos, que atravessaram na militância clandestina naqueles anos, poderíamos falar de uma Vida Curta e Triste sob o terror de Estado. E de todos podemos dizer que tínhamos vida dupla, uma oculta e outra legal. Sendo mais preciso, tínhamos uma existência legal e uma vida clandestina. Na primeira, mantínhamos uma dolorosa e sufocante aparência de ser, em si mesma uma farsa que representávamos sob ameaça de morte. Na segunda, éramos quase livres, pois mantínhamos um espaço de humanidade, de pessoas apesar da opressão. Uma vida, enfim, que sorria para nós como prometida amante. Era, portanto, na sua negação legal, um suplício de Tântalo. Quando queríamos pegar a flor vermelha, papoula, narcótica e doce, ela se afastava. E quando apressados íamos tomá-la nas mãos, a morte nos imobilizava. Isso conduzia também a uma dupla moral. Os que nos submetíamos à tortura da sobrevivência em trabalho alienante, onde amargávamos ser jovens bobos e calados, estranhos, contribuíamos para os clandestinos que levavam a vida gloriosa. Natural e necessária a contribuição. Natural a glória, porque estavam no front. Mas os da retaguarda estaríamos a salvo se os da frente caíssem? Quase nunca. Se não se vê uma ironia nesta frase, digo que o terror era democrático. A sociedade sem classes que sonhávamos, em uma versão macabra o terror fascista realizava. Onde antes a tortura e o assassinato de presos haviam sido exclusivos de negros e pobres, agora atingiam a todos. Em uma só fila, com faces idênticas, todos éramos terroristas. Assim nos chamavam em infame versão os terrorista de Estado. No entanto, de terror era a vida de animais caçados’.
Se a arte não é o real, tampouco ela se opõe a ele. Diversos textos literários têm tratado do período ditatorial e da sua herança traumática nos últimos anos com maior ênfase, acompanhando as discussões e os questionamentos levantados pelos usos do passado por parte das instituições da sociedade civil.
Eunice Figueiredo propõe a escritura literária, sobre os arquivos da ditadura, que permite imaginar situações e experiências extremas vivenciadas por homens e mulheres durante o período. Na esteira da proposta da pesquisadora, indo um pouco além, os recursos narrativos da ficção também questionam os arquivos existentes, assim como a ausência de outros. Caso em que o romance de Mota parece intervir de forma contundente ao reivindicar a existência de uma comunidade invisibilizada no ontem por necessidade de sobrevivência e no hoje, por manutenção de uma injusta relação com os espectros. Assim, história e literatura não são opostas, mas também não produzem os mesmos efeitos, ainda que utilizem os mesmos materiais de linguagem e de referenciais sociopolíticos. Conforme Jacques Rancière nos induz a pensar, não se trata pois de dizer que a História, com H maiúsculo, é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a razão das histórias e a capacidade de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto saberes constroem ficções, isto é, rearranjos materiais e símbolos das imagens das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. Nesse sentido, a ficção que dialoga com o passado ditatorial é sintoma e resistência ao mesmo tempo, pois confirma a permanência dos fantasmas, mas combate enquanto arte ativa ou escritura do artivismo os apagamentos forçados do passado.
Portanto, em ‘A mais longa duração da juventude”, o passado é um tempo alargado por opção e confissão do narrador. Diz o narrador:
‘Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há 44 anos. E diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos’.
A convivência com as lembranças dos companheiros próximos ou não é a esperança que o autor e narrador cultiva, e a partir da forma romanesca, os vírus detentores dessa dívida com o passado, eu, você, nós, ao claro enfrentamento conjunto aos tempos árduos e solitários do presente e futuro.
O romance de Mota não opera a manutenção de uma imagem fixa e cristalizada da militância e resistência do passado. Mas antes, reivindica no presente da escritura e no sempre presente da leitura, espaços na história contemporânea para os pequenos feitos daqueles grandes indivíduos que ele presenciou como resistentes solitários e anônimos. Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir.
Uma das cenas marcantes nesse romance que toca na memória coletiva é a chacina da Chácara São Bento, em 1973, Pernambuco, onde seis militantes foram brutalmente assassinados por delação de um infiltrado, que reivindica hoje uma verdade alternativa: o famoso cabo Anselmo. Para quem ainda não o conhece, ele se infiltrou durante muito tempo nos grupos de militância, como a VPR, e entregou, escrúpulo ele não tem nenhum, teve a ação nefasta de entregar a sua própria companheira, que estava grávida, e morreu grávida, que foi a Soledad, que era uma militante paraguaia e viveu no Brasil seus últimos dias. Sobre ela, Urariano tem outro romance.
Eu queria deixar marcado aqui o quanto a gente precisa cada vez mais se conscientizar com essas reflexões e leituras, porque eu acredito que a literatura é muito mais que um passatempo, é muito mais que a mera imaginação do passado, mas uma imaginação do passado para a construção do presente e do futuro. É exatamente para combater essas ‘verdades’ alternativas que esses sujeitos vêm aí a campo dizer que são os donos”.
O vídeo da fala do mestre Helder Santos Rocha aqui:
Quando viram pela primeira vez um manto tupinambá, por trás de uma vitrine da exposição que comemorava os 500 anos do Brasil, Dona Nivalda e Seu Aloísio choraram. “Toda história do nosso povo está aqui”, disse a líder indígena na ocasião. O manto de penas vermelhas do século 17 exposto era um dos raros exemplares desse objeto histórico e ritual tão importante para comunidades da costa brasileira, todos conservados em museus da Europa.
O episódio da visita à peça marca a intensificação de um ciclo de luta pelo território e de valorização da cultura tradicional, que culmina agora na confecção de um manto de 1,2 metro e mais de 3 mil penas pela artista e liderança indígena Glicéria Tupinambá.
Nivalda e Aloísio já não estão nesta terra, mas o manto voltou para a aldeia da Serra do Padeiro.
O novo manto não tem o vermelho exuberante das penas de guará, ave que não se encontra no território Tupinambá de Olivença. Sua cor predominante é o marrom, das plumas de aves da comunidade e da terra que defendem – o grupo luta pela conclusão da demarcação de sua terra indígena, alvo de ataques armados e invasões.
'Tudo a seu tempo’
O percurso foi longo para reunir os saberes necessários para a confecção da peça sem nunca ter visto um manto presencialmente, conta Glicéria. A primeira tentativa de fazer um manto foi em 2006. A ideia era recriar a peça a partir de uma foto para a principal festa da comunidade, comemorada em janeiro.
“Painho [o pajé da comunidade] me explicou como era a paleta, como era o algodão, como era isso e aquilo. Mas eu ainda não sabia quais eram as medidas, como era a malha. Sabia que dava para fazer uma capa, com o ponto que tínhamos na aldeia”, explica a artista.
A peça realizada foi usada em rituais da comunidade. “Na festa, eu pedi para o Encantado [entidade tupinambá] me guiar para conseguir resgatar cada vez mais a nossa cultura, e ele me disse: ‘Calma, tudo a seu tempo’. Na hora eu não entendi”, conta a líder indígena. “Agora eu sei que o manto não é só fazer o manto, aplicar as penas, é fazer todo um percurso”, explica Glicéria.
Esse primeiro exemplar foi cedido para a exposição "Os Primeiros Brasileiros" e passou a integrar o acervo de etnologia do Museu Nacional. A indumentária poderia ter uma vez mais desaparecido, queimada no incêndio que destruiu o prédio do museu em 2018. O manto se salvou, estava naquele momento exposto em Brasília. "Para você ver como o manto é poderoso."
Nessa trajetória de 15 anos, o encontro da artista com um manto tupinambá do século 16 foi fundamental. Em 2018, Glicéria foi convidada para dar uma palestra em Paris. Durante a viagem, ela pôde visitar um manto guardado a sete chaves na reserva técnica do museu do Quai Branly.
“O manto estava me esperando, e eu vou lá para ver as penas, fazer a análise da malha, entender o manto. Vi as posições e o caimento das penas, o ponto da malha, que era como o de jereré [instrumento de pesca tradicional] que fazemos aqui. A gente ficou quase uma hora com o manto e eu tentei memorizar tudo o que ele tinha ali”, relembra.
A majestosa peça plumária é considerada uma joia nas coleções europeias etnográficas. O objeto visto por Glicéria não está em exposição. A peça de 1555, a mais velha da coleção etnográfica do museu francês, é considerada frágil demais.
Como este, há cerca de uma dezena de mantos tupinambás dos séculos 16 e 17 conservados em museus na Europa – na Bélgica, Itália, Suíça e Dinamarca. São remanescentes de uma intensa interação cultural e comercial entre europeus e indígenas durante o período da colonização, explica a pesquisadora de antropologia histórica Mariana Françozo, professora da Universidade de Leiden, na Holanda.
“Já a partir do século 16, a gente vê nas fontes escritas, mas também nas pinturas feitas por europeus, um interesse muito grande em tudo aquilo que as Américas tinham e os europeus não conheciam. Essa curiosidade vem obviamente ligada a interesses comerciais e com base em uma relação não igualitária”, sublinha.
Françozo estudou a coleção formada por Maurício de Nassau, que governou a colônia holandesa em Pernambuco, e diz que os mantos eram muito valorizados como símbolos do Novo Mundo e entraram em uso na Europa.
“No caso da Holanda, temos registros de pelo menos duas vezes em que mantos de penas vindos do Brasil – se eram tupinambás, não sabemos –, que foram usados em festas da nobreza”, detalha a antropóloga.
Adriaen Hanneman
Portrait of Mary Stuart with a Servant
Assim como os mantos, há milhares de artefatos indígenas brasileiros dentro dos acervos de museus pelo mundo, especialmente na Europa, sem que haja uma catalogação devida. Muitas dessas peças são artefatos únicos, que mesmo as comunidades que as produziram não têm mais.
“Temos atualmente uma aliança entre povos indígenas e pesquisadores para tentar descobrir quantos são, o que é que está e onde está. E, a grande questão, é o que fazer com essas peças, a quem elas pertencem”, assinala Françozo.
O resgate deste conhecimento sobre essas peças tem sido objeto de estudos recentes, mas ainda há muito o que fazer na área.
A antropóloga Nathalie Le Bouler Pavelic, que pesquisa os Tupinambás de Olivença, destaca que nos museus esses artefatos muitas vezes ainda são vistos como vestígios do passado, sem relação com um povo que ainda existe.
“Não é porque é um artefato nos museus que não é uma peça do cotidiano dos povos e que tenha uma importância muito grande para eles em alguma área, ou religiosa ou do dia a dia. Daí a importância dos museus de trabalharem junto com os povos indígenas e saber como é que aquilo vive atualmente dentro das aldeias”, defende.
“A gente lutou pela revitalização do meio ambiente, da mata, pela volta dos animais. A gente tem uma recuperação muito forte do nosso território. E o manto só passa a existir porque existe um equilíbrio na natureza do território da Serra do Padeiro”, afirma.
“Faltava o manto, e ele chega neste momento, quando o Brasil está em uma crise daquelas terríveis, onde tudo é contra os povos indígenas, tudo é contra a demarcação das terras indígenas. Ele vem quando é preciso ele existir.”
O manto ritual está na aldeia e foi vestido pelo cacique Babau durante a cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia em junho deste ano.
Pergunto à líder indígena se ela gostaria de reaver as peças que estão nos museus europeus. Ela rejeita a proposta e diz que receber o manto de volta seria perdoar os crimes cometidos contra seu povo.
“Para nós de Serra do Padeiro, o manto lá é como uma condenação para os europeus, a pena deles é cuidar dos vestígios do povo tupinambá. Mas queremos que eles abram espaço para receber os povos indígenas, para que possamos também ter contato com as pegadas do nosso povo”, conclui.
Com a retomada da técnica de produção, Glicéria teceu um segundo manto, atualmente em exposição. O manto ritual pode ser visitado na Funarte Brasília, na mostra “Essa é a grande volta do manto tupinambá”, ao lado de obras de Edimilson de Almeida Pereira, Fernanda Liberti e Gustavo Caboco.
Serviço:
Kwá yapé turusú yuriri assojaba tupinambá | Essa é a grande volta do manto tupinambá
Procuradores da Operação Lava Jato: uma gang de caçadores (crédito: divulgação)
Por Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay)
“A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza de espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la”. Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego
Era uma 2ª feira, 17 de março de 2014, quando o telefone tocou cedo. Uma operação da Polícia Federal. Nesses casos, a gente sempre espera para ver a dimensão da operação antes de aceitar qualquer cliente. Logo em seguida, 3 dias depois, foi preso Alberto Youssef. Mal sabíamos que ali seria o início da operação Lava Jato, importante operação que viria movimentar o país, com resultados surpreendentes até virar uma operação política, conduzida por um juiz determinado a ser presidente da República, instrumentalizando o Poder Judiciário e tendo como pupilo um grupo de procuradores da República que instrumentalizavam o Ministério Público. Tudo isso com apoio da grande mídia e um forte esquema de marketing coordenando as ações e divulgações. Começava ali a maior fraude ao sistema de Justiça do Brasil.
Dos 3 clientes que me procuraram, optei por advogar para Alberto Youssef. Já sabia quem ele era, bem como tinha conhecimento de quem eram Moro e seus pupilos procuradores, pois eu havia atuado na operação Sundown, impingindo ao grupo de Curitiba a maior derrota que eles até então haviam sofrido. Conhecia a indigência intelectual e moral do grupo, que fazia tudo pelo poder. Mas agora a briga seria muito maior. Os caipiras estavam com poder midiático de fogo e queriam ainda mais poder. A qualquer custo.
Não demorou para eu deixar a advocacia de Youssef pois, em setembro daquele ano, os procuradores, com medo de uma derrota, exigiram que Youssef desistisse de um habeas corpus que impetrei para tratar da liberdade. Atitude canalha e covarde dos procuradores que se aproveitaram do momento de fragilidade de um cidadão preso. Ali, comecei a ver e a sentir os abusos daquela República de Curitiba que, cega pela mídia, julgava-se salvadora da pátria. Escândalo anunciado e tragédia certa. Mas ainda não imaginávamos o estrago que seria causado à credibilidade da justiça brasileira. A grande Cecília Meirelles sempre nos salva:
“O rumor do mundo vai perdendo a força
E os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas de vidro, de seda de abraços difusos.”
Sentindo o cheiro dos abusos, vendo e ouvindo os personagens lúgubres que coordenavam o circo, criando fortes laços com a barbárie e com um golpe ao Estado democrático, resolvi resistir. Eram muitos os absurdos: excessos de prisão, estupro das delações premiadas, achaques, juiz com jurisdição nacional, juiz parcial, enfim, o caos.
Um grupo de advogados resolveu debater, questionar, enfrentar o que já se anunciava como um bando de delinquentes. Sem maiores acessos à grande mídia, que até assessorava a gangue, resolvi cair no mundo e, duas ou 3 vezes ao mês, ao longo dos últimos 5 anos, corri o Brasil de Norte a Sul para discutir o Direito, a Constituição, as garantias, sempre recitando poesia depois dos debates para ridicularizar os bárbaros. Eles têm medo da literatura. Tive plateias de 4.000 pessoas, outras de 200, pouco importava. Sem ser dono da verdade, seguia falando e desmontando esse grupo de golpistas, incultos, banais. Em cada cidade, após as palestras, sempre surgia um convite para entrevistas nos jornais locais, rádios, programas de TVs. Se era para apontar o esquema criminoso engendrado pela “gangue de Curitiba”, eu aceitava o convite.
E o bando se especializou em fraudar não só o sistema de Justiça, mas em vender uma imagem de salvadores da pátria. Em 9 de setembro de 2015, escrevi um artigo na Folha de S.Paulo, “QUE PAÍS QUEREMOS?”. Já em 2015, afirmei que não admitia que absolutamente ninguém, juiz, procurador ou policial, pudesse dizer que quer o combate à corrupção mais do que eu, mais do que qualquer cidadão sério. Mas, repetia eu um conceito que se transformaria num mantra: esse combate tem que ser dentro das garantias constitucionais, do devido processo legal e com a ampla defesa assegurada. A resposta a essa pergunta está no voto do ministro Gilmar Mendes, proferido no julgamento da última 3ª feira (9.mar.2021).
Muitas vezes, sentia o peso avassalador dos grandes interesses querendo nos esmagar. A verdadeira guerra travada na discussão que levou à vitória da presunção de inocência, no Supremo Tribunal Federal, mostrou que o Brasil não é um país para amadores.
A força econômica, a grande mídia, o punitivismo exacerbado, a criminalização da política, a substituição de parte da política por uma proposta de não políticos, o controle da narrativa por parte dos medíocres de Curitiba, a falsa crença de que nós éramos contra o combate à corrupção e a favor da impunidade fizeram com que andássemos pelo país em busca de um sonho que a realidade insistia em negar.
Mas o debate e a palavra têm uma força devastadora quando nós sentimos a Justiça do nosso lado, mesmo que grupelhos se apoderem inescrupulosamente da narrativa simbólica entre os “maus e os homens de bem”. Bando de medíocres que não se vexaram em brincar e zombar com a liberdade e as garantias constitucionais em nome de um projeto de poder. Lembro-me de Mário de Sá-Carneiro, no poema A Queda:
“E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
…
Peneiro-me nas sombras- em nada me condenso…
Agonias de luz eu vivo ainda entanto.
Não me pude vencer
mas posso me esmagar.
– Vencer as vezes é o mesmo que tombar-
…
Tombei…
E fico só esmagado sobre mim.”
Na sina, na busca incessante por um mundo mais livre, mais justo e igual, começamos a ver cair os pilares de um projeto hipócrita, com viés fascista e demolidor, de um direito que representa a dominação e o obscurantismo. No julgamento da parcialidade do juiz e da força-tarefa de Curitiba, parecia que passava um filme dos melhores momentos dos últimos anos. Algumas frases dos votos nos remetiam a plateias espalhadas, ao longo de 5 anos, pelo imenso Brasil. Eu me reconheci ali naquelas frases, naqueles votos.
Agora, o projeto de poder desse grupo que procurou deslegitimar a política, que criminalizou os políticos e a advocacia, que corrompeu o sistema de Justiça e abalou a crença em um Poder Judiciário justo, começa a ser realmente desnudado. O juiz e seus asseclas, os procuradores, delegados e advogados de araque que lhe eram submissos, devem também ser responsabilizados.
Não é hora de comemorar, pois estamos no pior momento deste horror da crise sanitária. O grupo fascista e orientado pela necropolítica, que cultua a morte, foi eleito e é filho legítimo da gangue de Curitiba, responsável pela dimensão da catástrofe. A visão covarde, canalha e negacionista levou o país a inacreditáveis 2.349 mortos em um só dia. Números oficiais, pois a subnotificação é brutal. Mais de 270 mil mortos. A banalização da morte, a ridicularização da dor da perda dos que sofrem, o sadismo e falta de empatia são a marca desses desalmados. Uma enorme e densa nuvem cegou a todos os que queriam ver. Uma nuvem que nos abraça, não o abraço da solidariedade, mas o que nos imobiliza e nos sufoca. Que tira nosso ar. Que, de tão densa, esmaga-nos e não permite que a esperança saia e respire.
Mas, o enfrentamento dos abusos dessa operação fajuta e criminosa, que é o que se tornou a Lava Jato, há de ser um alento para o cidadão que viu a liberdade ser manietada, a dignidade ser usurpada e sentiu que um Judiciário corrompido politicamente consegue uma morte da cidadania tão angustiante como a morte física pela falta de ar. A irresponsabilidade que fez faltar o ar nos hospitais e nos pulmões é irmã siamesa da irresponsabilidade que sufocou o sistema de Justiça. Escondo-me em T.S. Eliot:
Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem.
Nesta semana, li que em São Paulo existe o projeto Fotografia Paulistana, que reúne registros históricos da cidade a partir de 1920. No momento, já dispõem de mais de 400 fotos.
Li, parei, e fiquei a me perguntar: quantas imagens históricas existiriam do Recife? E nessa pergunta, quantitativa, notei logo que seria o mesmo que penetrar numa nuvem pensando que nuvem é algodão e se pega. É impossível determinar um número de fotos históricas da “noiva da revolução”, como a chamava o poeta Carlos Pena Filho. Depois, mais sério que a quantidade, me perguntei: o que seriam mesmo as tais imagens históricas? O critério de antiguidade seria a qualidade histórica?
Então, primeiro acordei para o fato de que a história não é um resumo do que ficou no passado. Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Isso é histórico, isso tem valor para cravar num álbum da história do Recife? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem.
Então penso em sair da dificuldade elegendo o que vem antes, depois o recente, mas que nos remeta a uma meditação sobre as nossas vidas no Recife. E que a foto mais nova, agora tão frágil e fugaz, ganhará o seu valor se não lhe escrevemos uma legenda, uma breve moldura da sua importância social? E nesse caso, a pesquisa histórica é uma pesquisa de sensibilidade, daquilo que está além do filme mais sensível, ou da última foto saída de um celular. É uma pesquisa que vai aos lugares e pessoas mais comuns, tidas como desimportantes. Sabem aquela prática de colecionar fichinha, tampa de garrafa, ou juntar flâmulas, guia de exposição, convites de casamento, para um dia quem sabe talvez por hipótese ter alguma utilidade? É parecido, ainda que esse termine por ser um caminho meio às cegas, à beira da mania.
Então eu penso que as fotos históricas do Recife vêm de tudo que toque o nosso coração. Do antes, depois, agora e adiante. Quero dizer, para ser mais claro, além da foto do zepelin sobre a cidade em 1930
era bom agregar os versos à beira do cômico de Ascenso Ferreira:
“– Parece uma baleia se movendo no mar! – Parece um navio avoando nos ares! – Credo, isso é invento do cão! – Ó coisa bonita danada! – Viva seu Zé Pelin! – Vivôôô! Deutschland über alles! Chopp! Chopp! Chopp! – Atracou!”
Ou da Ponte Duarte Coelho em 1950
E mais Gregório Bezerra ferido, preso e altivo no quartel do exército em 1964
Ou a volta de Miguel Arraes no grande comício com a anistia em 1979
Afeto e memória do frevo histórico
Até chegar mais perto da cidadania com o cinema Império em Água Fria, nos anos 50, 1958
Mas quero e devo dizer, sem interrupção: as fotos, por mais sentimentais, amadas e queridas, não revelam o raio X da alma. Elas são momentos objetivos, físicos de um instante, ainda que nelas a pessoa faça uma pose. Quero dizer, elas não trazem gravadas, impressas o coração do fotografado ou de quem vê a fotografia. Nas fotos chamadas por convenção de históricas, pela distância do tempo o seu valor é político ou documental. Mas nós, como ficamos? Onde estamos perdidos nesse mar de datas e rostos antigos? Em que lugar da foto está o momento de carinho ou tremor da nossa voz?
Então o que é objetivo vira subjetivo, como na foto do cinema Império em Água Fria. Nela vejo a imagem de costas da minha mãe, falecida naquele ano de 1958. E para cada um de nós a foto objetiva recebe uma certa subjetividade, uma tradução da sua imagem. No zepelim no alto, podemos ser um dos meninos parados, em pleno encanto do objeto pesado cruzando o céu. E nos perguntamos, “por que não lembro desse dia do zepelim?” , e para nosso espanto somos informados de que a sua aparição no Recife foi antes do nosso nascimento. Já na fotografia da Ponte Duarte Coelho retomamos o Recife da infância, quando em pé no banco do ônibus víamos o rio Capibaribe. Hoje aberto, ao sol da manhã, ele é um rio que nos dá bom dia. Da ponte Duarte Coelho à Princesa Isabel, e desta a se estender até a ponte do Limoeiro, há uma vista de esperança.
Já na imagem do frevo da mulher, é tudo revelação da primeira vez do desejo na multidão. É mais que uma foto, é um flagrante da carne sob o frevo. Então vem a foto de Gregório Bezerra, os anos de terror da ditadura, um Recife rebelde no momento do golpe militar. Ele, na imagem, é o comunista que gostaríamos de ser, se a felicidade e a sorte fossem nossas companheiras. E na volta de Arraes, no comício do bairro de Santo Amaro, eu estou na multidão, como um dos rostos contentes que no anonimato é protagonista. Todos ali somos protonotários, diria Manuel Bandeira. Mas assim é para todos? Não e sim. Não, porque as histórias pessoais e sentimentos não são idênticos - podemos até dizer, ninguém atravessa o mesmo rio Capibaribe. Sim, porque todos refletimos o que vemos, como indivíduos que somos da humanidade. Cada um na sua tradução faz o subjetivo da objetividade.
Então eu penso que as fotos históricas ideais deveriam ser um grande álbum onde as legendas fossem os comentários dos moradores da cidade. Elas se tornariam então fotos traduzidas em palavras para o sentimento. E não só, as falas das pessoas seriam informação histórica que daria movimento e corpo à imagem. As fotos históricas seriam mais que um cinema falado. Uma democracia plena do coração de toda a gente. Nesse grande álbum caberia a foto de um princesinha do carnaval
com este comentário de um recifense:
“Uma negra princesinha ficou na memória porque não era uma imagem. É uma pessoa. Uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha na memória era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer”.
Entre as fotos históricas, enfim, caberia com louvor esta de José Marques de Santana, em 27 de janeiro de 2021. Aos 86 anos de idade, ele assim expressou a emoção por receber a vacina:
Das mais antigas à mais recente, imagens para as fotos históricas do Recife.
Lá pelos séculos IV e V, aconteceram mudanças na história cultural e intelectual do Ocidente que podem ser descritas, simplificando um pouco, como substituições no futebol: saem paganismo e racionalismo gregos, entram empiricismo romano e cristianismo. O apóstolo Paulo já fizera pouco nas suas pregações da “sapiência dos sábios” gregos e da “lógica vazia dos seus filósofos” em contraste com a sabedoria do Cristo, iniciando a conquista do pensamento ocidental pelo cristianismo que avançaria no começo do século IV com o imperador Constantino abrindo caminho para a cristã ser a única religião do império.
Para garantir o apoio dos teólogos e praticantes da nova e triunfante religião, Constantino iniciou outra tradição da Igreja além do anti-intelectualismo de Paulo e dos conflitos reincidentes entre doutrina cristã e ciência: estabeleceu que nem o clero nem as autoridades mais altas da Igreja precisavam pagar impostos. Assim, além do prestígio e do poder na Terra e da certeza de um lugar no céu pela eternidade, os bispos tinham acesso a prazeres mundanos e riquezas não tributáveis. Bispos disputavam entre si os favores de patronos ricos e do próprio imperador do momento.
Pelo que se sabe dele, Constantino foi um bom imperador, bom na guerra, bom e generoso na vitória e competente como administrador do seu império, que manteve unido por mais tempo do que qualquer outro “césar” depois de Augusto. Não se sabe se foi um cristão convicto ou se usou a Igreja para fins políticos e práticos, mas o fato é que a grande migração da História, do racionalismo grego para o irracionalismo romano, para o que um estudioso da época chamou de “mistério, mágica e autoridade” da Igreja de Roma, não teria acontecido sem ele. E olha aí, Paulo Guedes: taxar igrejas em vez de livros. Não é uma boa ideia?