por Paulo Brack e Eduardo Luís Ruppenthal
O cenário preliminar
O cenário de destruição ocasionada pelas chuvas extraordinárias e enchentes do rio Taquari-Antas, ao que tudo indica, não tem precedentes nem mesmo nos registros históricos de chuvas, se tornando uma calamidade de grandes proporções ainda a serem calculadas. A enchente catastrófica, em suas dimensões social, ambiental, econômica e histórica, não pode ser expressa somente em números, apesar de serem impressionantes como umas das maiores já vividas no Rio Grande do Sul. Pelo menos 47 mortos, além de desaparecidos, milhares de desalojados, destruição total ou parcial de milhares de casas e prédios urbanos, comunidades inteiras e municípios devastados, danos psicológicos, perdas de animais de criação e de plantios de subsistência, prejuízos econômicos e perdas ambientais significativas. A retomada da vida de milhares de famílias será muito difícil, após a perda de parentes, de lares e de bens materiais e imateriais.
Levará ainda muito tempo para se conhecer, em maior profundidade, as causas, as consequências e o cenário futuro de aumento da frequência de eventos extremos verificados e previstos para se agravar no mundo inteiro. Os comunicados da Organização Meteorológica Mundial (OMM) já apontavam que 2023 seria o ano com maior temperatura já registrada na atmosfera do planeta, o que se comprovou a partir de junho deste ano.
Do ponto de vista climático, as previsões já traziam potenciais chuvas históricas, ressaltando-se os alertas da plataforma Metsul Meteorologia, em 31 de agosto e 1o de setembro de 2023, com os títulos respectivos: “Setembro começa com chuva extrema, onda de tempestades e enchentes” e “ALERTA: Chuva virá com volumes excepcionais de até 300 mm a 500 mm. Volumes excepcionalmente altos são previstos pela MetSul Meteorologia para o Sul do Brasil nestes primeiros dez dias do mês [de setembro]”
Também cabe lembrar que em meados de junho de 2023 ocorreu outro ciclone extratropical e uma chuva excepcional devastadora no vale do rio Maquiné e no rio dos Sinos, no município de Caraá, tendo chovido no Litoral Norte do Rio Grande do Sul quase 300 mm em 48 horas. Houve a morte de 16 pessoas, somando-se o Litoral Norte e o Vale do Rio dos Sinos.
Infelizmente, o comunicado prévio da plataforma de divulgação meteorológica MetSul foi desconsiderado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite, em entrevista a um programa da TV GloboNews, em 6 de setembro, alegou que os modelos matemáticos de previsão do tempo não indicavam o elevado volume de chuva que atingiu o estado no evento daquela semana. Como resposta, a MetSul divulgou uma nota pública contestando a declaração do governador, demonstrando que o alerta realmente tinha sido dado.
Quanto à atuação do governo do Estado do Rio Grande do Sul, à semelhança de outros governos estaduais diante de eventos climáticos extremos, o que geralmente se nota, de um lado, é “surpresa” e uma certa dose de cinismo e, não raro, oportunismo em uma narrativa de retirar sua responsabilidade e ao mesmo tempo imputar a culpa em fenômenos naturais. A grande imprensa também reverbera tratar-se de um fenômeno “natural“, desconsiderando que o agravamento de tais eventos está associado também às alterações ambientais provocadas por atividades humanas. O atual excesso de chuvas, temporais, ciclones, secas e ondas de calor são ainda considerados, por governos, como fenômenos “inesperados”, pois, pelo menos na prática, impera o negacionismo da emergência climática-ambiental.
Além do negacionismo por parte de agentes públicos, vários setores econômicos rezam pela mesma cartilha a fim de afastar parte de sua responsabilidade ou inação diante das mudanças climáticas e à destruição ambiental decorrentes de atividades de origem antrópica que agravam essas calamidades. Do outro lado, quem mais paga o custo da tragédia é a população mais vulnerável do ponto de vista social, tanto na perda de dezenas de vidas, de quem mora mais precariamente na beira dos rios, mas também nas perdas materiais e nas condições de sua sobrevivência, na agricultura familiar ou nos pequenos e médios comércios. Qual é o custo de uma vida? Como restabelecer as condições mínimas dignas de vida aos atingidos que sobreviveram a estas calamidades?
As mudanças climáticas negligenciadas
No atual contexto de crise climática, além dos alertas da OMM, os seis relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) vêm trazendo um conjunto de informações incontestáveis. Principalmente, a partir do 4º relatório, consagra-se cientificamente que os eventos climáticos extremos são predominantemente antropogênicos e cada vez mais intensos e frequentes. No caso da Região Sul do Brasil, em especial o Rio Grande do Sul, além das secas severas dos últimos verões, associadas ao fenômeno La Niña, agora ganha destaque o fenômeno inverso, o El Niño.
O El Niño, previsto para 2023 e que representa a maior quantidade de chuvas no sul do Brasil, está ligado ao aquecimento, em temperaturas maiores do que a média na superfície do Oceano Pacífico, em decorrência do aumento de gases de efeito estufa, influenciando a formação de nuvens e outros processos climáticos. É importante lembrar que no caso do gás carbônico (CO2) seus valores subiram, desde meados do século XVIII, de 270 ppm (partes por milhão) para 421 ppm, na atualidade.
Vale destacar que as enchentes fazem parte da dinâmica de um rio. Entretanto, o uso mais intenso ou a alteração do solo da bacia, como um todo, especialmente suas margens, várzeas inundáveis e as matas ciliares, a intensidade e as consequências desses eventos se torna de maiores dimensões. A intensidade das cheias, em várias partes do mundo, está ultrapassando os registros históricos. O ciclo da água na natureza está sendo rompido por atividades humanas, o que também é comprovado cientificamente. Ademais, a vegetação das bacias tem papel neste ciclo e atua no amortecimento parcial dos picos de cheias. No Brasil, esta proteção está amparada pela Lei n. 12.651/2012 (Código da Vegetação Nativa, ou “Código Florestal” Brasileiro ), em especial no que toca às Áreas de Preservação Permanente (APP) que, se não preservadas, além de ambientes de beira de rios ficarem mais vulneráveis a impactos socioambientais, se tornam áreas de risco quando ocupadas pela construção de moradias, prédios, etc.
A vegetação e seu efeito de maior amortecimento às chuvas e às cheias
A vegetação natural (campos, banhados, florestas, etc.) tem papel fundamental na maior função regulatória sobre o ciclo da água, exercendo maior capacidade de estabilização ou efeito tampão em relação às chuvas volumosas e às cheias. Quando as chuvas caem sobre a estrutura da vegetação (folhas, caules, raízes), a água infiltra no solo, facilitada pela matéria orgânica de sua superfície e a trama de raízes que atuam, em seu conjunto, quase como um efeito esponja em épocas de maiores quantidades de água pluvial. Solos cobertos por vegetação, portanto, permitem que a água da chuva penetre no solo, infiltre e alimente nascentes e lençóis freáticos e não escoe superficialmente de forma rápida para os arroios e rios (Figura 2).
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A vegetação conserva a maior umidade no solo, evitando a erosão, auxiliando a manutenção da permeabilidade e a fertilidade do solo, suavizando o escoamento superficial rápido da água, em solos mais secos e compactados pela agricultura. A vegetação contribui, assim, para a maior regulação do ciclo hidrológico, além de dar abrigo à fauna, mantendo o patrimônio da biodiversidade e suas funções ecológicas e econômicas, proporcionando paisagens diversas que valorizam inclusive o turismo ligado à natureza.
Nas cabeceiras da bacia que inicia-se nos Campos de Cima da Serra, a partir de pelo menos 1000 m de altitude, a maioria dos cursos d’água é drenada ao rio Tainhas e, na sequência, ao rio das Antas com confluência do rio Carreiro que formam rio Taquari. Este é afluente do rio Jacuí, que escoa no rio-lago Guaíba. Seus principais afluentes pela margem esquerda são os rios Camisas, Tainhas e Lajeado Grande e São Marcos, e, pela margem direita, os rios Quebra-Dentes, da Prata, Carreiro, Guaporé, Forqueta e Taquari-Mirim. Nos altos do Planalto das Araucárias, tanto em relevos suaves como nas encostas mais íngremes, a vegetação, que era predominantemente composta por campos, turfeiras, banhados e florestas, com importante proteção e garantia de recarga de nascentes, está se transformando em lavouras, gerando erosão do solo.
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Se essa vegetação da região (figuras 4 e 5) seguir sendo retirada, progressivamente, o escoamento das águas da chuva continuará com riscos de picos bruscos, como foi na primeira semana de setembro deste ano, no vale do rio Taquari-Antas, aumentando as chances de cheias mais violentas decorrentes das chuvas torrenciais. O uso cada vez maior de máquinas pesadas de plantios de monoculturas, em especial de soja em campos até então virgens. Grandes superfícies impermeáveis ou sem vegetação podem incrementar a erosão do solo e das margens dos rios, levando ao maior assoreamento e a possibilidade de enchentes de maiores proporções.
Além disso, sem vegetação, que atuaria como filtro para reter parte da lama e resíduos das cheias, as águas dos rios ficam mais barrentas após sua elevação, situação verificada nesta grande enchente do rio Taquari-Antas. A maior perda de vegetação nativa pela agricultura (Figuras 6,7,8 e 9) está conduzindo a maior instabilidade hídrica, menor qualidade das águas e maior vulnerabilidade ambiental. Ou seja, centenas de milhares de hectares de campos nativos de pastagem, com vocação para a pecuária, transformados em agricultura e silvicultura nas cabeceiras do maior rio da região, com mais erosão, assoreamento e escoamento de água que antes infiltrava no solo e alimentava as nascentes.
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Destruição das matas ciliares e avanço urbano em APPs e a consequente impermeabilização do solo
Segundo a Lei 12.651/2012, em seu Art. 6º, consideram-se como Áreas de Preservação Permanente (APPs), entre outras, aquelas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a (Inciso I) “conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha”. Entretanto, o que se constata é, em grande parte, o contrário, onde as matas ciliares estão sendo destruídas, e não recuperadas como a lei prevê e obriga,
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Hidrelétricas
Na bacia se destacam três Usinas Hidrelétricas (UHE) e dezenas de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH, com até 30MW). As Hidrelétricas são UHE Castro Alves (130MW), UHE Monte Claro (130 MW), UHE 14 de Julho (100MW). É importante destacar que a FEPAM já realizou, há cerca de 20 anos, uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da bacia do rio Taquari-Antas, recomendando que ⅓ de um conjunto de mais de 50 hidrelétricas não fosse construído e que outro tanto passasse por rígidos estudos de impacto ambiental.
No caso atual da tragédia do rio Taquari-Antas, o Ministério Público Federal solicitou informações de providências à Defesa Civil e também cópias de todas as comunicações eventualmente recebidas de parte da Companhia Energética Rio das Antas (Ceran), responsável por hidrelétricas no rio, sobre o monitoramento do aumento do nível das águas do rio em decorrência das chuvas e, eventualmente, abertura de comportas, situação que vem sendo imputada à empresa por parte de moradores atingidos à jusante dos empreendimentos hidrelétricos. A empresa negou apresentar comportas com abertura em fluxos mais elevados dos rios.
Por outro lado, um documento da CERAN, no caso da UHE Castro Alves, denominado “PACUERA – Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno a Das Águas” (ABG, 2013) admite a presença de comportas e modificação eventual de vazão da mesma para facilitar esportes, em especial rafting (página 43): “ ‘comporta do rafting’ pela qual é possível regular o fluxo de água e liberar mais volume de água para a prática do esporte”. Ou seja, não se pode afirmar que as hidrelétricas ou pequenas centrais hidrelétricas da bacia tenham alguma influência no problema das cheias. É um assunto delicado, ainda mais em um momento desses. Mas, evidentemente, as hidrelétricas, em outras regiões, influenciam desde a retirada da mata ciliar até algumas mudanças na vazão dos rios, principalmente pela abertura de comportas, alteração na sedimentação do rio, etc.,criando, pelo menos em outros rios, picos abruptos de elevação dos rios à jusante das barragens após a abertura das comportas. De qualquer maneira, é papel do órgão ambiental, em especial a FEPAM, monitorar a gestão do fluxo da água dos rios por parte de UHEs e PCHs.
Em trabalho coordenado pela ONG WWF (2012) foram identificados treze fatores de risco na bacia do rio Paraguai, entre eles, os três primeiros, nesta ordem, são: centrais hidroeléctricas, urbanização e agricultura.
Na Amazônia, o ecólogo Philip Fearnside (2015), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, afirma que na Hidrelétrica de Balbina (PA), na estação de chuvas, a grande quantidade de chuvas que pudesse passar por cima do limite do barramento, causaria danos, o que “obrigou a ELETRONORTE a abrir as comportas completamente. Em consequência disto, o nível do rio entre Balbina e Cachoeira Morena subiu vários metros acima do seu máximo normal, assim inundando as casas e muitas das roças dos residentes ao longo do rio, assim como os poços que a ELETRONORTE tinha cavado para eles”. Há informações desencontradas quanto à abertura de comportas durante as cheias do rio Taquari por parte de hidrelétricas, o que deve ser esclarecido pelos órgãos responsáveis. (continua)