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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
O Livro das Suspeições: o que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e  Suspeito? | Amazon.com.br
 
 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

13
Jul22

Patricia Facchin entrevista Jair Krischke (vídeos)

Talis Andrade

Na charge do Amarildo: AI-5 | A Gazeta

 

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil.

 

IHU On-Line — Quais são suas lembranças do dia 13 de dezembro de 1968, quando Arthur da Costa e Silva emitiu o AI-5?

Jair Krischke — Tudo começou um pouco antes. Nós que participávamos daquilo que veio a ser depois o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, imaginamos que o AI-5 era um golpe a mais, que era mais uma das tantas quarteladas que aconteciam na América Latina. Porém fomos surpreendidos, pois se tratava de um golpe baseado em uma doutrina de segurança nacional, que viria para ficar por muito tempo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos já estávamos envolvidos em retirar brasileiros perseguidos do Brasil e em levá-los para o Uruguai e a Argentina, mas em 1968 já começávamos a sentir a falta de esperança em relação à redemocratização e então começamos as articulações para enfrentar a ditadura, especialmente no terreno político.

Antes do AI-5 foi criada a Frente Ampla, que reuniu três figuras políticas de grande importância no Brasil, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda; algo inimaginável. Essa Frente Ampla estava se articulando para politicamente fazer frente à ditadura, quando o grupo da chamada “linha dura”, pretendendo se eternizar no poder, lançou o AI-5. Nessa época eu estava em Porto Alegre, envolvido em retirar do Brasil companheiros sindicalistas, líderes estudantis e políticos e levá-los para o refúgio.

Meses antes da instituição do AI-5, o então deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso na Câmara dos Deputados, em setembro, recomendando às moças e às senhoras que se recusassem a sair com oficiais do Exército e que, inclusive, no baile de Sete de Setembro não dançassem com eles. Esse discurso foi tomado pelos militares, especialmente pelo então ministro do Exército, o General Costa e Silva, como uma ofensa aos militares, que solicitaram a cassação de Márcio Moreira Alves. No dia 12 de dezembro, o Congresso recusou a cassação, com uma diferença de 75 votos, e mesmo a Arena, partido da ditadura, votou contra a cassação dele. No dia seguinte, 13 de dezembro, fomos surpreendidos com o AI-5. Somente depois — a história não pode ser avaliada no tempo em que está ocorrendo — nos demos conta de que esse AI-5 era um golpe dentro do golpe, era um endurecimento daquilo tudo que a ditadura já havia feito.

 

Com a instituição do AI-5, o setor mais reacionário das Forças Armadas decidiu terminar com as mínimas garantias com as quais a cidadania ainda contava, e deu poderes extraordinários à ditadura. Isto é, o presidente da República passou a ter um poder que não requisitava apreciação judicial para fazer aquilo que bem entendesse em termos não só da União Federal, mas dos estados e municípios. Além disso, o presidente tinha poder para intervir no Congresso Nacional, e mais tarde o fechou, como fechou também as Assembleias Legislativas dos estados e as Câmaras de Vereadores. Além disso, o AI-5 estabeleceu a censura prévia a tudo que se possa imaginar: a censura foi estabelecida não só na comunicação social — jornais, rádios e TV —, mas também em todas as expressões artísticas. Isso deu vigência plena à doutrina de Segurança Nacional.

Depois daquele discurso de Márcio Moreira Alves, nós já estávamos esperando que alguma coisa iria acontecer, mas não imaginávamos que seria algo com a gravidade que aconteceu, de forma tão radical. Com o AI-5, a repressão voltou forte e com requintes de uma crueldade que antes não havia acontecido. Tivemos que tirar muitas pessoas do país, porque a perseguição começou a se dar de uma forma indiscriminada: se suspeitassem que alguém tivesse feito isso ou aquilo, já era razão suficiente para a perseguição. O AI-5 estabeleceu uma possibilidade de prisão sem fundamentação jurídica, sem direito a acesso a advogado ou aos familiares. Para temas de “crimes políticos” não havia possibilidade de habeas corpus, que também foi suspenso com o AI-5.

Foi difícil dar conta de proteger todos aqueles que novamente vieram a ser perseguidos. Lembro disso muito bem, porque isso foi gerando consequências. Como a repressão endureceu muito, começamos a perceber que os serviços de inteligência do exército, da marinha, da aviação, da polícia federal e militar, começaram a agir de forma desenfreada, nos dando um trabalho imenso.

 

IHU On-Line — Como o AI-5 interferiu na sua atividade de retirar pessoas do país naquele momento?

Jair Krischke — Passamos a viver com muita cautela e cuidado, porque sabíamos que a repressão estava aí, que éramos vigiados e que a qualquer momento um de nós poderia ser preso. Por exemplo, mesmo nas nossas reuniões, quando uma pessoa na qual não confiávamos muito estava presente, para não tocar em assuntos delicados sobre a segurança de outras pessoas, tínhamos uma norma: qualquer um de nós, ao perceber que a presença de alguém era problemática, perguntava “que horas são?”; esse era o nosso sinal de alerta.

 

IHU On-Line – Isso acontecia com muita frequência?

Jair Krischke — Não com muita frequência, mas acontecia. Assuntos sensíveis eram compartimentados e o próprio processo para retirar pessoas do Brasil passou a ser bastante compartimentado: quando alguém saía de São Paulo e ia até o Paraná, não sabia quem seria o responsável pelo trecho que o levaria do Paraná até Santa Catarina, que por sua vez não sabia quem seria o responsável pelo trecho de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul. Se informava apenas que uma pessoa estaria no tal local, com uma camisa branca e com um exemplar do jornal Correio do Povo embaixo do braço, ou que uma moça com um lenço branco amarrado na bolsa estaria em tal local. Não se informava quem eram essas pessoas, mas se davam sinais de como encontrá-las.

Eu tomei uma decisão nesse momento: todas as manhãs quando despertava, prometia a mim mesmo “hoje não vou ficar paranoico”. Isso valia por 24 horas. Quando você se envolve nesse tipo de atividade e sabe que há uma repressão muito forte, que qualquer descuido vai impactar a vida de alguém, a tendência à paranoia aumenta.

Nós passamos a ser seguidos e tivemos que aprender a evitar o seguimento. De repente estávamos circulando de automóvel e achávamos que o carro de trás estava nos seguindo. Nessa situação, tentávamos atrair o carro para uma sinaleira que estivesse fechando e tratávamos de cruzar no último momento. Se o carro que vinha atrás também cruzava, era porque estava nos seguindo. Então, várias vezes eu e meus companheiros fazíamos esse teste e muitas vezes o carro seguia mesmo e tínhamos que dar um jeito de mudar o trajeto ou mudar de carro, e fizemos isso muitas vezes.

 

IHU On-Line — Como o senhor e outros se articularam para fazer frente ao AI-5? Houve essa possibilidade?

Jair Krischke — Nós lutávamos contra um poder realmente imenso e não podíamos ser tolos a ponto de achar que poderíamos enfrentar as Forças Armadas no seu terreno; sabíamos que deveríamos enfrentá-la com inteligência. E isso nos levou a criar mecanismos de defesa, como aquele da pergunta “que horas são?” ou mesmo esses testes para ver se estávamos sendo seguidos, ou seja, desenvolvemos uma série de mecanismos de defesa porque começamos a entender como o aparelho repressivo passou a funcionar depois do AI-5.

Nós não tínhamos como reagir e não tínhamos como enfrentar os militares no campo da força. Tivemos que estudar o inimigo, ver suas fraquezas e explorá-las. Aqueles grupos que resolveram enfrentá-los, o fizeram com a maior generosidade que se pode imaginar, e aqueles jovens que ingressaram na luta armada para ir para o enfrentamento pagaram um preço altíssimo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos fizemos uma avaliação do que poderia ser feito. A nossa primeira avaliação foi a de que nenhum de nós iria sair do país. A segunda avaliação foi examinar quais eram as condições para operar salvando pessoas. Decidimos, então, estudar como os militares agiam, nos prevenir e fazer aquilo que achávamos que tínhamos que fazer. O nosso maior prejuízo foi em novembro de 1969, quando vários companheiros foram presos.

Nessa época, em novembro de 1969, o aparelho repressivo já estava bastante azeitado, funcionando a mil, e montou o assassinato de Carlos Marighella. Os militares dizem que foi um enfrentamento, mas foi uma execução. Nessa ocasião também foram presos os dominicanos, entre eles o Frei Betto. Em decorrência disso, muitos companheiros nossos foram presos.

 

IHU On-Line – Esse foi o período mais tenso de toda a ditadura para o senhor?

Jair Krischke — Sim, foi o mais tenso porque toda essa estrutura repressiva agia por sua própria conta, praticando barbaridades, sem freio ético e moral. O grande comandante desse período foi o famoso delegado Sérgio Paranhos Fleury, e se deve a ele todas as barbaridades que se possa imaginar, como o Esquadrão da Morte.

Em novembro de 1969 eu passei todo o mês esperando ser preso, porque tive que “colocar a cabeça para fora” para tirar os companheiros que estavam presos no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, mas não fui preso. Essa é uma outra história.

Alguns militares chamavam a ditadura de guerra psicológica, porque também era uma guerra psicológica. O Brasil, comparado com outros países da região, não teve tantos mortos e desaparecidos. Em termos proporcionais, a Argentina, que tinha à época 40 milhões de pessoas, teve 30 mil desaparecidos na sua ditadura, e o Brasil, que à época tinha 90 milhões de pessoas, não chegou a registrar 500 mortos e desaparecidos. Por quê? Por ser uma ditadura branda? Não, porque a ditadura foi uma repressão seletiva e feita com o objetivo de criar terror e pavor na sociedade brasileira. E ela criou um pavor tão grande, que nós ainda hoje não discutimos os assuntos relativos ao aparelho repressivo.

Há uma negativa porque à época as pessoas tinham medo de falar sobre isso. As pessoas viviam a sensação de terror de que a qualquer momento poderia acontecer alguma coisa com elas. Isso porque, quando se estabelece um regime de exceção, pode acontecer de tudo, como aconteceu. Pessoas que não tinham nada a ver com a contestação da ditadura foram presas. Aqueles que foram presos e que não tinham nada que ver foram os mais torturados, porque os repressores imaginavam que estavam diante de um durão que não queria contar o que sabia e o torturavam mais.

 

IHU On-Line — Qual foi a sua reação quando o AI-5 foi revogado?

Jair Krischke — Nós do grupo Movimento de Justiça e Direitos Humanos estávamos esperando que isso acontecesse. Então, quando começaram a anunciar que possivelmente o AI-5 deixaria de existir em 31 de dezembro de 1978, já começamos a projetar uma série de reuniões para tornar o Movimento de Justiça e Direitos Humanos oficial. Assim, em janeiro de 1979 conseguimos reunir, uma vez por semana, umas 30, 40 pessoas para tratar da organização do Seminário de Justiça e Direitos Humanos. Ao final do seminário foi proposta a criação do Movimento, oferecemos um estatuto que foi aprovado e elegemos a primeira diretoria. Desde outubro de 1978 já tínhamos claro que, ao cessar a vigência do AI-5, tínhamos que “pendurar o bilhete no pescoço do tigre”.

Cumprimos as exigências legais para oficializar o Movimento e fomos ao cartório para registrá-lo. Eu conhecia o oficial do cartório, mas ele não quis registrar o Movimento. Deixei o documento lá e voltei depois de uns dez dias, mas o oficial já estava com a negativa pronta e assinada. Como ele negou o registro por escrito, nós recorremos, entramos com uma ação na Justiça e, por sentença judicial, o Movimento foi registrado em agosto de 1980. Então, quem era o apavorado nessa história toda? Era alguém que tinha posse de direito. Resumindo, quando a imprensa noticiava que o Geisel iria anunciar o fim do AI-5, nós aproveitamos para estabelecer o Movimento.

 

IHU On-Line — Retrospectivamente, 50 anos depois, que avaliação faz da instituição do AI-5 no Brasil? Quais foram os impactos políticos do AI-5 para o país e como o senhor lembra desse momento da história brasileira, do qual participou?

Jair Krischke — O AI-5 produziu um retrocesso brutal na sociedade brasileira, porque se estabeleceu um autoritarismo muito maior do que o do golpe de 64. Esse é um militarismo que vigorou de 1968 a 1978, por dez anos, mas com tal violência que isso ficou inculcado nos brasileiros. Se observarmos, sociologicamente, não nos livramos ainda desse autoritarismo, pois ele conseguiu ingressar na epiderme do brasileiro.

 

IHU On-Line — Que comportamentos e ações indicam isso?

Jair Krischke — As violações aos direitos humanos. Quem viola os direitos humanos no Brasil? O Estado brasileiro, e isso tem a ver com esse autoritarismo: se “a autoridade decidiu, está decidido”, mesmo se for uma ilegalidade e mesmo que sejam atos nada republicanos. Lamentavelmente, muitas pessoas, por ignorância, entendem que é assim mesmo. Conversando com um rapaz de aproximadamente 23 anos que foi barbaramente agredido pela polícia, disse a ele que a agressão era um absurdo, e ele me perguntou se a polícia não poderia bater nele. Isso acontece porque o autoritarismo acabou indo para o DNA das pessoas e se acha que a tal autoridade “pode tudo”. Isso atingiu profundamente o povo brasileiro e ainda não conseguimos nos livrar dessa aceitação do autoritarismo.

 

IHU On-Line — Que questões centrais precisam ser tratadas no país para repensarmos o papel autoritário do Estado brasileiro, 50 anos depois do AI-5?

Jair Krischke — Em primeiríssimo lugar, a plenitude do exercício da cidadania. Isto é, o Estado brasileiro precisa entender que o cidadão tem direito a ter direitos e o Estado tem que ser o primeiro a garantir esse direito. O Estado tem que ser o garantidor de direitos e nós precisamos avançar quanto a isso; é um exercício da cidadania. Se formos ao Uruguai, veremos que o povo uruguaio tem uma consciência muitíssimo maior do que a nossa em termos de cidadania, em não admitir que seus direitos sejam desrespeitados. Isso é sensível a qualquer pessoa. Qualquer pessoa do povo tem muito claro que, como cidadão, tem direitos.

Isso é interessante porque, no Brasil, costuma-se dizer que os defensores dos direitos humanos “são só defensores de bandidos”; nos acusam de mil coisas. No Uruguai, na Argentina, no Chile ou no pequeno Paraguai, quem lida com direitos humanos é respeitado, até o Estado respeita. No Brasil isso não ocorre e é assim por consequência da ditadura, porque quem enfrentava os milicos como exercício da cidadania, quem cobrava do Estado, éramos nós. Por isso, passamos a ser os inconvenientes para a ditadura. E essa ditadura acabou criando uma guerra psicológica, induzindo as pessoas a fazerem a leitura de que quem os denunciava era amigo de bandido, porque quem lutou contra a ditadura era chamado de terrorista. Veja, chamar alguém de terrorista tem como implicação que a pessoa tenha praticado um ato terrorista, logo, não era verdade.

As pessoas que foram vítimas da ditadura nunca mais esquecem: o sono não é tranquilo, volta e meia todo aquele terror do qual você foi vítima te assalta de novo. As pessoas que foram vítimas dessa truculência nunca mais puderam dormir tranquilas, e nós vamos carregando essa cruz.

 

IHU On-Line — O senhor também tem esse tipo de sentimentos ao lembrar do passado?

Jair Krischke — Tenho companheiros que trabalham comigo, especialmente aqueles que foram presos mais jovens, que não se livram disso. Tenho colegas que até hoje fazem tratamento psiquiátrico por terem a síndrome do pânico e não conseguirem sair de casa. Por exemplo, tenho uma amiga que ainda está trabalhando, mas tem dias que seu marido vai levá-la para o trabalho e, quando vai se aproximando do local do trabalho, ela começa a tremer, suar e tem que voltar para casa. Isso fica!

Como todos os dias eu fazia o exercício de dizer para mim mesmo “hoje não vou ficar aloprado”, isso me defendeu, claro que me defendeu muito; eu procurei criar um antídoto. Mas, é evidente, há situações que lembram claramente, por exemplo, quando a sua vida era posta em risco. Essas coisas são muito gozadas porque, de repente, lá adiante, é que isso vai aparecer: andamos pela vida bastante tempo e de repente aquelas coisas do passado começam a te fustigar. Digo isso por companheiros meus que, 30 anos depois, começaram a sentir problemas. Isso o doutor Freud deve explicar.

 

13
Jul22

Cinquenta anos depois do AI-5, autoritarismo continua no DNA do brasileiro. Entrevista especial com Jair Krischke

Talis Andrade

Adnael - Chargista on Twitter: "#adnaelcharges #charges #charge #cartum  #cartoon #art #chargepolitica #chargedodia #chargedehoje #humorpolitico  #chargedoadnael #ai5 #bolsonaro #tortura #paulogeudes #ditadura  https://t.co/z0ZiDxVWPZ" / Twitter

por Patricia Facchin

“Eu tomei uma decisão nesse momento: todas as manhãs quando despertava, prometia a mim mesmo ‘hoje não vou ficar paranoico’. Isso valia por 24 horas”, relembra Jair Krischke, ao contar sua rotina no então Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul depois da instituição do Ato Institucional Número Cinco – AI-5 em 13 de dezembro de 1968. À época, Krischke atuava auxiliando perseguidos pelo regime a saírem do país, atividade que se intensificou durante a década de vigência do AI-5. “Tivemos que tirar muitas pessoas do país, porque a perseguição começou a se dar de uma forma indiscriminada: se suspeitassem que alguém tivesse feito isso ou aquilo, já era razão suficiente para a perseguição. O AI-5 estabeleceu uma possibilidade de prisão sem fundamentação jurídica, sem direito a acesso a advogado ou aos familiares. Para temas de ‘crimes políticos’ não havia possibilidade de habeas corpus, que também foi suspenso com o AI-5”, relata na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.

Para sobreviver ao recrudescimento da repressão depois de decidir continuar vivendo no Brasil, Krischke conta que ele e os companheiros do Movimento criaram mecanismos de defesa. “Assuntos sensíveis eram compartimentados e o próprio processo para retirar pessoas do Brasil passou a ser bastante compartimentado: quando alguém saía de São Paulo e ia até o Paraná, não sabia quem seria o responsável pelo trecho que o levaria do Paraná até Santa Catarina, que por sua vez não sabia quem seria o responsável pelo trecho de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul. Se informava apenas que uma pessoa estaria no tal local, com uma camisa branca e com um exemplar do jornal Correio do Povo embaixo do braço, ou que uma moça com um lenço branco amarrado na bolsa estaria em tal local. Não se informava quem eram essas pessoas, mas se davam sinais de como encontrá-las”, narra.

Cinquenta anos depois da instituição do AI-5, Krischke avalia que o autoritarismo que vigorou no país por dez anos ficou “inculcado” nos brasileiros. “Se observarmos, sociologicamente, não nos livramos ainda desse autoritarismo, que conseguiu ingressar na epiderme do brasileiro”, afirma. Prova disso, exemplifica, são as violações aos direitos humanos no país. “Quem viola os direitos humanos no Brasil? O Estado brasileiro, e isso tem a ver com esse autoritarismo: se ‘a autoridade decidiu, está decidido’, mesmo se for uma ilegalidade e mesmo que sejam atos nada republicanos”, lamenta. Para mudar esse cenário, sugere, “o Estado brasileiro precisa entender que o cidadão tem direito a ter direitos e o Estado tem que ser o primeiro a garantir esse direito”.

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil. Publicado in 13 Dezembro 2018

 

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10
Jun22

Ditadura: 4 charges que te ajudam a entender a abertura política nos Governos Geisel e Figueiredo 4 charges para entender o fim da Ditadura Militar

Talis Andrade

 

por Descomplica

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Estamos chegando ao fim da ditadura militar no Brasil! Com a crise do petróleo e o fim do milagre econômico durante o governo Médici, o regime ditatorial começou a perder legitimidade. Foram necessárias mudanças, que viriam durante os governos Geisel e Figueiredo, os responsáveis por preparar o terreno para a redemocratização.

Não foi uma tarefa simples! Para te ajudar a entender como se deu o processo de abertura política, te mostraremos um pouquinho do que foi esse período e algumas das insatisfações que pairavam na sociedade.Créditos: Iotti

1. O início do governo Geisel (1974)

 

Em 1974, Geisel assumiu o poder após o governo Médici. Com o fim do milagre econômico houve uma consequente perda de legitimidade da ditadura. Nesse sentido, Geisel assumiu a presidência com a responsabilidade de iniciar a abertura política, que deveria ser lenta, gradual e segura.

2. Sístole e diástole

 

Durante o Governo Geisel, tivemos um movimento conhecido como “sístole e diástole”. Ao mesmo tempo em que este vai implementar algumas medidas de abertura, como a extinção do AI-5 e eleições livres para senador, deputado e vereador – representando a diástole –, também serão implementadas medidas repressivas como torturas, perseguições, cassações, mortes (como de Vladmir Herzog e de Manuel Fiel Filho) e o fechamento do congresso, nos momentos de sístole.

Créditos: Maurício de Souza

 

3. A anistia

 

No governo de Figueiredo, uma das principais medidas lançadas foi a anistia geral e irrestrita. João Batista Figueiredo acabou promulgando a lei de anistia em agosto de 1979. Com a lei, os brasileiros que estavam no exílio puderam voltar. No entanto, muito ainda se discute sobre essa lei, visto que anistiou torturadores da ditadura, que ficaram impedidos de serem punidos pelos seus crimes.

 

4. O atentado do Riocentro

 

Em homenagem ao dia do trabalhador, em 1981, uma apresentação ocorria no Riocentro. Enquanto isso, estourava uma das bombas implantadas por militares do lado de fora do show. Esse episódio ficou conhecido como o Atentado do Riocentro e marca a insatisfação de alguns militares em relação aos opositores do regime que haviam retornado do exílio. Felizmente, a bomba que tinha sido implantada atrás do palco não explodiu.

 

QUER SABER MAIS SOBRE DITADURA MILITAR? CLIQUE AQUI E CONFIRA O RESUMO COMPLETO!

15
Fev22

Com ministro Schietti e promotor Zílio, digo: Precisamos falar sobre o MP

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

 

1. Min. Schietti pede que MP pare de ser "despachante" e promotor Zílio denuncia punitivismo medieval que matou seu irmão

Falarei, hoje, de questões institucionais. Do MP. De Castor a Dallagnoll (e a famosa fundação abortada pelo STF), passando pela investigação do TCU sobre as diárias, até a procuradora-que-virou-comentarista política em rede de TV negacionista.

O que está acontecendo com o Ministério Público? Em São Paulo, o MP é condenado por ação temerária em improbidade (pior: parece que perdeu o prazo do recurso). Bom, cada advogado por certo tem história(s) para contar — por exemplo, sobre denúncias criminais irresponsáveis (lembremos do caso Michel Temer). E o caso Beto Richa e Ricardo Coutinho.

Mas alguém poderia objetar, dizendo: são casos isolados. OK, deixemos de lado, então, esses casos. Fiquemos no plano do simbólico.

Para tal, peguemos o recente julgamento relatado pelo Ministro Rogério Schietti, ex-integrante do MP. Em um Habeas Corpus, na corte, Schietti fez um apelo ao Ministério Público de São Paulo para que seus membros deixem de atuar como meros "despachantes criminais", ocupados em simplesmente pleitear o emprego do rigor penal. Grave, pois não?

E, em contundente e emocionante artigo, o promotor do Paraná, Jacson Zílio, denuncia a morte de seu irmão, em episódio parecido com o do reitor Cancellier. Zílio diz que "o poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis". O texto do promotor Zílio é autoexplicativo. Só isso já demandaria uma reunião nacional do MP.

Volto ao caso denunciado por Schietti, em que o órgão ministerial apelou de uma sentença que havia desclassificado a conduta de um homem flagrado com 1,54 grama de cocaína e R$ 64 no bolso. Nem ele e nem eu digo que não se deve punir. O furo é bem mais embaixo.

Há milhares desse tipo de caso. Em um deles, vindo de MG, houve recurso por causa de um projetil usado como pingente, questão que chegou ao STF. Na ocasião, escrevi "Na ânsia de condenar, MPF usa inversão do ônus da prova" (ver aqui). Veja-se também o HC 197.164 —STF. Sem esquecer do caso de Janaina, mulher pobre, em situação de rua, com filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada, em uma espécie de eugenia tupiniquim.

E o que dizer do assustador manifesto contra a bandidolatria (sic), não contestado pelas cúpulas da Instituição? E como esquecer que o MP embarcou — e protagonizou, escandalosamente — (n)o famoso pacote das dez medidas que propunha — pasmem — prova ilícita de boa fé e fragilizava o habeas corpus? E o que dizer de Janot-enquanto-houver-bambu-vai flecha?

Além disso, a PGR Raquel Dodge não defendeu o STF quando este sofreu ataques, fazendo com que a Corte lançasse mão do Regimento Interno. E, agora, o PGR Augusto Aras perde a oportunidade de defender a Instituição STF dos ataques do presidente da República. Atenção: além de tudo, o MP, pela Constituição, é o guardião do Estado Democrático de Direito.

Pequenas coisas...grandes consequências. Por exemplo, houve alguma reação institucional do MP nacional quando um procurador da república sustentou prisão preventiva com a pérola passarinho na gaiola canta melhor? Na verdade, o agente recebeu aplausos... Qual é o limite da independência funcional?

Como podem ver, sou testemunha da história. Escrevi sobre tudo isso ao longo dos últimos trinta anos.

 

2. E o ministro tocou na ferida...

Qual é, efetivamente, o papel do Ministério Público na nossa democracia? Essa é a ferida narcísica da Instituição. Mas parece que ninguém — ou muito poucos — querem falar disso.

Fui membro por quase três décadas. Tentei várias vezes discutir algumas questões: uma, o próprio papel da instituição, que, para mim, deveria agir como uma magistratura, de forma isenta, sem ser perseguidor implacável, ignorando nulidades e outras garantias a favor da defesa (fui candidato a PGJ — minha tese principal era essa!). Mais contemporaneamente, isso fez com que eu capitaneasse o projeto Anastasia-Streck, que pretende introduzir no CPP, mutatis mutandis, o artigo 54 do Estatuto de Roma (ou o artigo 160 do CPP alemão — ou a doutrina Brady, se quiserem). Gestão da prova — eis o ponto.

A segunda questão diz respeito ao MP de segundo grau. Nisso reside o apelo e a crítica do ministro Schietti, que bem conhece o assunto, bastando ler livros e artigos do ministro sobre isso (ler aqui). Para registro, já em 2003 Schietti, no seu livro Garantias processuais nos recursos criminais, abordava essa relevante questão, chamando-a de "objetividade da atuação do MP". Para tanto, cita o art. 358 do Código de Processo da Itália (1988), que impõe ao Ministério Público, na fase das investigações preliminares ao juízo, o dever de desenvolver também o esclarecimento de fatos e circunstâncias "a favore della persona sottoposta alle indagine". Vale dizer, atua, desde aquela fase, com o propósito de obter justiça e não apenas de recolher dados instrutórios contrários aos interesses do imputado. Isso se repete no art. 53º do Código de Processo Penal de Portugal (alterado pela lei 59/98).

E Schietti é definitivo ao lembrar o art. 7º do Estatuto Orgánico del Ministero Fiscal de Espanha, que reza que "por el principio de imparcialidad el Ministerio Fiscal actuará con plena objectividad e independencia en defesa de los intereses que le estén encomendados".

Poderia parar por aqui. O "precisamos falar sobre o MP" já teria material suficiente. Mas seguirei, por zelo republicano.

Uma rápida busca nos acórdãos dos tribunais da República mostra que o parecer do MP de segundo grau é referido, via de regra, brevemente como "o MP opinou pelo provimento do apelo do MP" ou "Opinou desfavoravelmente ao apelo da defesa". Sequer, na grande maioria, fica-se sabendo o nome do procurador. Mais: o que disse, afinal, o membro do MP de segundo grau no seu parecer? O acórdão — documento oficial que retrata a história do julgamento — não menciona. Rarissimamente menciona (há uma pesquisa em andamento; os dados estão sendo compilados — meu registro, aqui, é decorrente de amostragem; interessante é que, em dois estados, na amostragem, viu-se 100% de pareceres contra o apelo do réu; evidentemente que os dados devem ser checados e analisados).

Ora, um agente do MP tem as mesmas garantias da magistratura. É uma espécie de magistrado. Mas indago: Seu papel é — e aí entra a crítica de Schietti — o de ser despachante (sic) do que disse o MP de primeiro grau? Ou de fazer recursos para o STJ e STF como se fosse um "promotor público"?

Meu levantamento mostra que urge que o MP converse, institucionalmente, com o PJ para que as manifestações de segundo grau sejam melhor explicitados nos acórdãos — até para que se tenha uma accountabillity.

Abrindo acórdãos do TJ-MG, por exemplo, o que mais se vê é "Instada a se manifestar, a douta Procuradoria de Justiça opinou pela denegação da ordem". Na Justiça Militar de MG: "O e. Procurador de Justiça ofertou o seu parecer às fls. 64/64v, pugnando pelo não provimento do presente recurso". Quem ler o acordão, perguntará: "E...?"

Veja-se que até nos concursos públicos para o MP se constata aquilo que Schietti critica, valendo lembrar o caso de Minas Gerais em que o concurso claramente incentivava a desobediência à jurisprudência garantista do STF e STJ (ver aqui).1

Vejam: estou falando do Ministério Púbico, instituição que detém parcela da soberania do Estado; seus membros possuem as mesmíssimas garantias da magistratura. Isso consta na CF por alguma razão, pois não?

Observe-se: os PGJs e o PGR têm a palavra final sobre ações penais. Parcela de soberania estatal! Por isso, o MP deveria agir como uma magistratura, sem fazer agir estratégico e agindo com imparcialidade. O ministro Schietti, que já esteve lá, sabe que o MP não vem agindo como uma magistratura. Já mostrei isso acima. O promotor Zílio Jacson vai na mesma linha.

Portanto, imitando aqui Lionel Schriver em seu best seller (Precisamos Falar sobre Kevin), precisamos falar sobre o Ministério Público. Como Procurador de Justiça que fui por décadas, os processos recebiam, de mim, um minucioso exame — chamava a isso de "espiolhamento processual" — buscando fazer com que a verdade processual viesse à tona, seja de que lado fosse. Esse é o ponto: seja de que lado fosse.

O que desejo registrar é que dificilmente um parecer de minha lavra não trazia questões preliminares — grande parte deles, por necessidade do due process of law, favoráveis à defesa, composta de réus pobres e muitas vezes defendidos precariamente nos confins do Direito. Vejam que, no primeiro grau, nem havia defensor público quando fui promotor. Eram professores estaduais, com formação jurídica, que faziam esse papel dativo. E, como procurador, a Defensoria, nos primeiros anos, ainda engatinhava. Imaginem como chegavam os processos no segundo grau...

Sem querer fazer autobiografia, lembro que, agindo como um magistrado, dificilmente algum processo escapava ileso do meu espiolhamento processual. Estatísticas internas de meu gabinete davam conta de que entre 70 e 80% dos processos sofriam alteração no órgão fracionário do Tribunal, exatamente na linha sustentada por mim. Das mínimas questões como ilicitude da prova até o esgrimir de novas teses constitucionais, fazendo o que denominei, desde os primórdios da Constituição, de "superação da baixa constitucionalidade imperante na dogmática penal e processual penal".

Para além disso, em termos de inovações, fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos para casos de furto sem prejuízo (já tratei disso em coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato (íntegra aqui). Também fui o primeiro a defender a tese da aplicação da reincidência em sua relação com o princípio da secularização, a partir de Ferrajoli.

Nulidades arguidas a favor da defesa podem ser vistas, entre centenas de processos, como o de n. apelacao-crime-acr-70045600350 (ver aqui). Ou aqui. Ou a tese sobre o concurso do roubo aplicado ao furto (ler aqui). Fomos derrotados, depois, no STJ, face a recursos manejados pelo Ministério Público.

Aliás, essa é outra questão sobre a qual deveríamos falar: se um Procurador sustenta a absolvição de um réu no segundo grau e obtém êxito, pode o MP recorrer dele mesmo?

Há casos emblemáticos em que antecipei uma discussão que somente foi enfrentada pelo legislador anos depois. Explico. Antes mesmo de ser aprovada a Lei 10.792!03, que tornou obrigatória a presença de advogado no interrogatório, levantei, com o apoio da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS, a tese da aplicação constitucional do princípio acusatório pela qual eram nulos os interrogatórios sem a presença de advogado. Fiz, no mínimo, mais de 150 pareceres (ver nesse sentido, meu Verdade e Consenso, 6ª ed).

De novo, não se trata de autobiografia, mas, sim, de trazer elementos objetivos para demonstrar qual, na minha concepção — e com certeza, de muitos membros do MP e, como se sabe, do ministro Schietti — deve(ria) ser o papel do Ministério Público. Isso sem contar as teses hermenêuticas stricto sensu, registradas em dezenas de livros e textos que escrevi nestas décadas.

A questão do reconhecimento de pessoas e as exigências formais para a elaboração de laudos era outro ponto da filtragem processual que eu fazia. De mais a mais, quantos processos "salvei" mostrando que o in dubio pro societate é(ra) uma falácia? E quantas vítimas consegui resgatar face ao uso de um adágio igualmente falacioso, o famoso pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo)?

 

3. As seis hipóteses e o cumprimento da Constituição

Não fazia atuação ignorando o papel da lei. Habeas corpus concedidos de forma inadequada ou irresponsável recebiam a agudeza de minha pena. Saídas temporárias automatizadas, contra legem, entravam no meu radar de espiolhamento. Para qualquer lado, portanto. Porque a lei não tem lado! Fazia uma cruzada contra o solipsismo judicial. Sou insuspeito nisso, bastando ver os critérios que defendo para não se deixe de cumprir a lei, havendo apenas seis hipóteses excludentes (ver Dicionário de Hermenêutica, Verdade e Consenso, entre outros).

É claro que cometi equívocos, mormente nas vezes em que fiz uma espécie de ultra constitucionalismo, com o uso da proibição de proteção deficiente. Mas, no fundo, era uma reação a algumas posturas ultraliberais. Mas o equilíbrio foi se forjando nesses anos todos. A dor ensina a gemer.

Eram as demandas de um sistema jurídico por vezes perverso que me obrigavam a criar e a pleitear teses garantidoras como a nulidade pela não aplicação do artigo 212 do CPP. Teses como essas partiram da procuradoria de justiça de segundo grau de minha titularidade (como foi o caso, também, do então procurador Juarez Tavares, por exemplo) — hoje, depois de mais de uma década, parece que finalmente a dicção do artigo vai vingar, segundo se vê no STF.

 

4. Numa palavra e como retranca: "não se quer, assim, que não se puna"

Invocando outra vez o Ministro Schietti: não se quer, assim, que não se puna. Porém, deve haver provas concretas e lesividade em uma conduta. E deve ser seguido o devido processo legal. A presunção é de inocência e não de culpa. Lembremos a denúncia de Zílio Jacson. E o caso Cancellier.

Assim, apenas mostrei pequenos detalhes de minha atuação como procurador de justiça tendo como norte aquilo que recitei na minha prova de tribuna, em 1985, no concurso para ingresso no MP, usando as palavras do príncipe do MP, Alfredo Valadão: "O MP é fiscal da lei, vindas as ilegalidades de onde vierem, inclusive de si próprio".

É isso: vindas as ilegalidades de onde vierem. Este texto vai em homenagem ao ministro Schietti e aos membros do Ministério Público que escapam desse modelo punitivista do velho promotor público denunciado pelo ministro do STJ. O MPD — Ministério Público Democrático tem feito manifestações de resistência — o que é louvável. Vai em homenagem ao Jacson Zílio e o Coletivo Transforma MP. Também aos componentes da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS (por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif e Luis Gonzaga).

 

5. O que é independência funcional?

Despiciendo dizer que a presente abordagem não generaliza a atuação de membros — stricto sensu — do MP. Falo, sim, da questão maior: institucional.

Explico: há que se saber o que significa "independência funcional". Não de um membro e, sim, da Instituição. Querem ver? Qual foi (ou é) o papel INSTITUCIONAL do MP na pandemia? No início tínhamos agentes propondo ações para que municípios adotassem — pasmem — o tratamento precoce e fazendo TAC’s sobre isso. E outros agentes propondo ações de improbidade porque os prefeitos adotaram tratamento precoce. Agora vemos "recomendação" do MP-DF (18/1/2022) chamando a vacina para crianças de "vacina experimental" (sic). Afinal, o que é isto a independência funcional? Qual é o MP? O que recomenda vacinar? O que recomenda fazer tratamento experimental? Cada membro pode escolher?Humor Político on Twitter: "Governo genocida https://t.co/5eqvP80ZVd  https://t.co/WnUkRmCOG5" / Twitter

 

E o CNMP? Bom, o caso Dallagnol é simbólico. Precisamos falar também sobre o CNMP.

Numa palavra final, nada fiz de extraordinário nesses anos de membro do Ministério Público. Porém, lutei o bom combate para que os ditames constitucionais que regem a Instituição fossem cumpridos. Como continuo fazendo. Não é aceitável que o TRF4 diga, em um julgamento recente, que "não se deve exigir isenção do MP". Inaceitável! Quem quer ser processado por um órgão parcial? Não isento?

Esse pequeno testemunho não tem maiores pretensões. Pretende apenas provocar algumas reflexões. Não quis tratar de outros ramos (meio ambiente, MP do Trabalho, por exemplo, em que tais questões não se apresentam). Há avanços institucionais evidentes.

Mas na área criminal ainda precisamos falar sobre o Ministério Público. Muito.

 

1 E o que dizer do recurso do MPF de um caso de absolvição de réus que pescaram um dourado de 7 quilos? E o que dizer de um recurso em um caso em que o sujeito tentou suicídio e foi denunciado por porte ilegal de arma? Alguém dirá: e da defesa, não vai falar? Ora, a defesa privada é autoexplicativa e se for defeituosa, ou se anula o processo (e o MP tem o dever de pleitear isso) ou o próprio MP, como fiscal da lei, levanta as questões processuais favoráveis ao réu. E se for defesa feita pela Defensoria, existem as corregedorias. (Continua)

 

17
Dez21

Peça 3 – as portas abertas para o autoritarismo

Talis Andrade

 

 

XADREZ DO CASO CANCELLIER E DA MARCHA NÃO INTERROMPIDA PARA A DITADURA

por Luis Nassif

Nos anos 30, os ventos totalitários chegaram ao Brasil, resultando no Estado Novo, com a  adesão da então Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil. Aboliu o habeas corpus, aceitou as prisões arbitrárias e, finalmente, autorizou a expulsão de Olga Benário, companheira do líder comunista Luiz Carlos Prestres, entregue à morte, com aval do Supremo e da mídia, no apogeu da violência policial comandada por Felinto Muller, o Sérgio Moro da época,

Manchete de O Globo saudou sua expulsão, tratando ela e outras prisioneiras políticas como “Evas indesejáveis”

No trabalho O caso Olga Benario Prestes: um estudo crítico sobre o habeas corpus nº 26.155/1936, Veyzon Campos Muniz estuda o caso à luz dos avanços no direito após a Constituição de Weimar.

(…) Em  uma  simples  análise  cronológica,  um  século antes de a França revolucionária proclamar sua Declaração  dos  Direitos  do  Homem  e  do  Cidadão,  a Inglaterra, em 1689, pôs fim ao regime monárquico absolutista, com sua Bill of Rights. Dessa sorte, a Lei de Habeas Corpus, de dez anos antes, foi um precedente da necessidade social de libertação do indivíduo frente ao Estado, bem como foi a partir dela que o direito ao habeas  corpus passou  a  ser  utilizado  não  apenas  nas situações  de  prisões  eivadas  de  vícios,  mas  também a  todas  as  ameaças  de  constrangimentos  à  liberdade individual de ir, vir e ficar.

(…) Outrossim,  como  outro  marco  jurídico  relevante, temos  a  Constituição  de  Weimar.  Se,  de  um  lado,  o Habeas Corpus Act é, inequivocamente, um exemplo de  diploma  que  consagra  as  liberdades  públicas,  de outro,  a  Carta  alemã  de  1919  demonstra  a  evolução das  instituições  políticas  no  sentido  da  concreção  de um  estado  de  democracia  social. 

No entanto, a própria Constituição de Weimar tinha um artigo que foi essencial para a ascensão do nazismo, mostrando como o autoritarismo pode se infiltrar nas brechas abertas pelas leis e pela jurisprudência firmada pelo Supremo.

O dispositivo estabelecia que, caso a ordem pública estivesse em risco, o presidente do Reich poderia, sem necessidade de aval do Legislativo, tomar as medidas necessárias para restituir a lei e a ordem.

Para isso, poderia suspender direitos civis como Habeas Corpus, inviolabilidade de domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de expressão, direito de reunião e associação e autorizar expropriações”

O artigo 47 foi outro dispositivo relevante para a tomada do Estado alemão por Hitler. Segundo ele, o presidente era o supremo-comandante das Forças Armadas, poderia nomear os seus oficiais e tinha competência para tomar as “medidas apropriadas” – incluindo usar militares — para combater distúrbios na ordem ou segurança públicas”.

Em cima do flanco aberto pelo Supremo, após o impeachment o estado de exceção ganhou força no Brasil. Temer passou a estender as Operações de Garantia da Lei e Ordem por todo o país, inspirado pelo Ministro da Justiça Alexandre Moraes. Uma das operações atropelou a Constituição, ao entregar a um militar – general Braga Neto – o controle da intervenção no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, levou a linha dura para dentro do Palácio, nomeando um militar para chefiar a Agência Brasileira de Inteligência. Quebrou o pacto tácito da Constituimte e foi o primeiro presidente a colocar um militar no comando do Ministério da Defesa. E passou-se a recorrer, cada vez mais, a ainda não extinta Lei de Segurança Nacional.

Em trabalho excepcional sobre o caso Olga Benário, o procurador Vladimir Aras dissecou a posição do Supremo, a adesão ou omissão de Ministros ante um clima explícito, liderado por um Ministro da Justiça, Vicente Rao, que entraria para a história como um exterminador de direitos.

E constata como a história, no Supremo, é repleta de versões:

“Foi há 77 anos. Hoje, no site do STF, consta que o ministro Edmundo Lins fora homem de notável saber e grande cultura, honrou a magistratura e, nos cargos que exerceu, legou às futuras gerações os exemplos mais dignificantes de civismo, patriotismo e grandeza moral (sic). Quanto ao relator Bento de Faria, que sucedeu Lins na presidência da Corte, diz o site do Supremo: As notáveis obras, repletas de ensinamentos, que publicou denotam sua alta cultura jurídica e são consideradas por todos os jurisconsultos fontes primorosas da ciência do Direito (sic). Quão generoso é o biógrafo desses homens”.

Ambos foram peças centrais na deportação de Olga Benário, grávida.

No Brasil do Estado Novo, a democracia foi estuprada por uma corte composta por Bruno de Farias, Carlos Maximiliano, Spindola e Edmundo Pereira Lins, sob inspiração de Vicente Rao, os personagens principais na deportação de Olga Benário. 

No Brasil do fim do século, a democracia foi violentada pela ação continuada de Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, instrumentalizando o Supremo para a disputa política, e atropelando qualquer forma de garantia aos direitos. Não se tenha dúvida que se as circunstâncias jogassem o destino de Olga Benário nas suas mãos, o resultado teria sido o mesmo. (Continua)

01
Nov21

Autoritarismo lavajatista

Talis Andrade

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por Alexandre Aragão de Albuquerque

No início era a Lava Jato. E todas as estratégias da direita brasileira foram operadas criminosamente pelo seu braço jurídico, sob as rédeas de Deltan Dallagnol e do ex-juiz declarado, pelo STF, por suspeição e incompetência Sérgio Moro. Sem ela, nada do que foi feito pelo autoritarismo recente teria alcançado sua realização: o Golpe, a implantação do programa “Ponte para o futuro” de desmonte e entrega do patrimônio público brasileiro, a prisão ilegal e despudorada do Presidente Lula, a entrada ostensiva do Partido Militar no Poder Executivo federal, a eleição do capitão de extrema-direita a presidência da República. 

Ela deu carne à conspiração consolidada em abril de 2016, com o aceite do impeachment da presidente Dilma Rousseff, sob o comando do dono de offshore Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados. Donos de offshore são também o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, denunciados pela “Operação Pandora Pappers”.

A Lava Jato notabilizou-se por ser um sistema articulado, que no âmbito do judiciário brasileiro e do Ministério Público voltou-se a incriminar, sem provas, sujeitos minuciosamente por ela escolhidos, apenas pelas conveniências subjetivas dos seus operadores, como etapa do plano de condenação da Política e de seus agentes, visando à demonização de partidos e lideranças de esquerda, mais especificamente o Partido dos Trabalhadores e o Presidente Lula.

Dois anos atrás, mais precisamente no dia 14 de outubro de 2019, o ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal (STF), em entrevista ao jornalista Pedro Bial, das Organizações Globo, denunciava publicamente que a COALIZÃO, entre a Mídia Corporativa Hegemônica e os Procuradores de Curitiba com Sérgio Moro, criou um “lavajatismo militante” por meio de ostensivo incentivo dos meios de comunicação a partir da Rede Globo. Mendes declarou haver reclamado a questão aos seus responsáveis, Ali Kamel e os irmãos Marinho: com o apoio tático da Globo, os procuradores e procuradoras demonstraram ser infinitamente melhores publicitários e operadores políticos, e muito menos juristas.

Esse embate entre Globo (Lavajatismo) e Mendes ficou claro a partir da apresentação do ministro feita por Bial no início do seu programa, buscando desqualificá-lo. Apresentou-o como um juiz destemperado, que bate de frente “com a voz das ruas” (como se juiz tivesse de seguir a voz das ruas em vez da Constituição), que não gosta de perder e é cognominado de o Soltador Geral da República por usar como escudo nobre o instituto do Habeas Corpus.

Mas lentamente o Ministro foi assumindo o domínio da entrevista, a começar pelo esclarecimento do que seja um Habeas Corpus. Lembrou o fato de um juiz lavajatista do Rio de Janeiro quase pedir desculpas a alguém que ficou preso por sua ordem durante 09 meses sem ter nada a ver com aquele assunto. E perguntou: quem irá reparar esses 09 meses de prisão a este inocente? Aquele juiz? O Habeas Corpus é a garantia do Estado de Direito Democrático para salvaguardar a liberdade de qualquer pessoa presa indevidamente.

Na esteira do pensamento do ministro Gilmar Mendes, indaga-se: quem irá reparar os 580 dias detido ilegalmente, nas instalações da Polícia Federal de Curitiba, sofridos pelo Presidente Lula? Além das mais de 200 horas de propaganda difamatória publicada pelas Organizações Globo? Essa difamação sistemática e estratégica, perpetrada pelo maior veículo de comunicação do país, pode ser considerada “liberdade de expressão”? Trata-se, no mínimo, de um amplo e forte sistema de “fake news”. Quem serão os indiciados e condenados por esse crime?

Gilmar Mendes também registrou que quando a Lava-Jato começou a se institucionalizar, como uma verdadeira igreja, uma de suas ações militantes foi justamente a de demonizar a garantia constitucional do Habeas Corpus. “Mas isto é muito perigoso para as sociedades democráticasporque se abre uma estrada para o totalitarismo”, disse Gilmar. Além disso, a Lava Jato lançou uma campanha popular de coleta de assinaturas para as chamadas “10 Medidas”. Diversas pessoas inclusive de CEB’s e ONG’s progressistas assinaram esta lista sem se darem conta da gravidade do referido documento. Entre as propostas fascistas de Moro e de Dallagnol nessas “10 Medidas”, constavam, por exemplo, a cassação do Habeas Corpusalém da introdução de Provas Ilícitas poderem ser usadas para motivo de condenação penal. Naquele mesmo período a Rede Globo abriu seus holofotes e microfones para uma das procuradoras militantes da “igreja Lava Jato” para ela fazer sua profissão de fé midiática. A procuradora propagandeou seu sofisma em uma entrevista reproduzida em quase todos os programas jornalísticos da Globo: “se os congressistas não aprovarem integralmente as 10 Medidas, é a prova de que são todos corruptos”. Segundo o professor de Direito Constitucional, Pedro Serrano, em lapidar palestra proferida na TVT na noite de 03 de fevereiro de 2021, “o processo do Mensalão foi o laboratório para o desenvolvimento da técnica de medidas autoritárias de exceção do processo penal – redução do standard probatório, hipernomia, cultura punitivista, papel figurativo da defesa etc. – antes impostas aos jovens negros da periferia, por meio da legislação antidrogas”. A partir do Mensalão esta técnica de medidas de exceção foi testada em julgamentos políticos – claramente no julgamento de José Genoíno, por exemplo – demarcando a ação nefasta do movimento autoritário populista de direita pela busca da substituição do Estado de Direito Democrático por um Estado securitário, garantidor do bem-viver dos ricos, por meio da ordem e da segurança, uniformizando a narrativa da vida nacional ao criminalizar a diversidade política e social implícita e intrínseca a qualquer regime democrático.

A Lava Jato desempenhou um papel relevantíssimo neste processo porque introduziu o clima, que já estava criado na sociedade, por meio do Mensalão e das manifestações de rua de 2013 (técnicas das guerras híbridas do século XXI), para dentro da política e da justiça. Algumas tarefas ela cumpriu exemplarmente. Por exemplo, ao elevar o grau da comoção afetiva da sociedade, criando uma espécie de descontentamento nacional contra os alvos – Dilma e Lula – definidos pelos seus operadores. Na prática, o Golpe de 2016 foi muito mais judicial do que parlamentar. O Parlamento não teria condições de consolidar formalmente o golpe do impeachment, sem crime de responsabilidade comprovado, se o clima de comoção social não houvesse sido construído pela mídia e pelo judiciário.Em seguida, mantendo seu roteiro, a Lava Jato produziu um processo de exceção, dentro da aparência democrática, com dois acusadores bem definidos – Moro atuando como “juiz” acusador (basta pensar na capa da revista Isto é, de maio de 2017, onde Moro aparece como um lutador de boxe contra o ex-presidente Lula), e Dallagnol  chefiando o grupo de Curitiba – no processo persecutório de condenação do ex-presidente Lula. Desde sempre ficou explícito que o ex-presidente Lula foi tratado como um ser “aquém do humano” (homo sacer), sem proteção política e jurídica mínima de direitos. Foi reduzido o “standard probatório” com total desconsideração dos argumentos da sua defesa. Ou seja, montou-se uma aparência de processo penal, uma mera maquiagem, uma roupagem minimamente jurídica, mas com um conteúdo material de uma ação política tirânica de combate e condenação da pessoa do presidente Lula.No dia 28 de outubro passado, quinta-feira, houve a decisão do TSE absolvendo a chapa Bolsonaro-Mourão, desta vez não por ausência de provas, mas por falta de convicções. Seria um tipo de lavajatismo reverso? Segundo o ministro Alexandre de Moraes, “se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado¸ e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentarem contra as eleições e a democracia  no Brasil. Não vamos admitir que essas milícias digitais façam novamente, tentando desestabilizar as eleições, as instituições democráticas a partir de financiamentos espúrios não declarados, a partir de interesses econômicos também não declarados”.Ou seja, o Tribunal, apesar de haver reconhecido amplamente a existência dos crimes(impulsionamentos indevidos + financiamento oculto), colocou nas costas da parte impetrante o ônus de não haver comprovado a gravidade dos fatos. Ocorre, como afirmado pelo ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, que o seu escritório de advocacia solicitou ao Tribunal “o compartilhamento das informações da CPI das Fake News”, sendo indeferida tal solicitação pelo ministro corregedor. Portanto, o Tribunal negou a petição para em seguida afirmar que a parte não realizou a comprovação. Além disso, conforme Aragão, foram solicitadas 25 (vinte e cinco) testemunhas além de quebra de sigilo bancário e telemático para demonstrar a configuração do esquema, e tudo foi negado. Procedimento muito diferente do tratamento dispensado ao processo contra a chapa Dilma-Temer.

Diante de tudo isto, fica a forte impressão de que Bolsonaro continua a ser “o malvado favorito” dessa Articulação. O que esperar da eleição de 2022, com Lula liderando, como em 2018, as pesquisas de voto? Haverá um novo estelionato eleitoral? Lançarão mão de mais uma etapa do golpe híbrido?

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19
Jun21

O desprezo do lavajatismo pelo processo penal na democracia

Talis Andrade

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por Danilo Pereira Lima /ConJur

O processo penal é uma boa chave de análise da qualidade de uma democracia. Por meio dele podemos avaliar de que forma o Estado se relaciona com a liberdade de seus cidadãos, qual é a eficácia dos direitos e garantias fundamentais e se a persecução penal é feita na perspectiva do Estado de Direito.

Diante disso, se encontramos nos órgãos jurisdicionais uma forte cultura inquisitória, podemos constatar que o Estado mantém uma relação autoritária com os indivíduos, no sentido de vê-los muito mais como inimigos do que como cidadãos.

Por outro lado, se os órgãos jurisdicionais veem o processo penal como uma garantia do acusado e exercem sua função institucional dentro dos limites do sistema acusatório, podemos concluir que a interdição penal — necessária para o processo civilizatório — acontece dentro dos parâmetros do Estado de Direito.

Com base nesse critério, podemos observar que infelizmente a situação não é muito boa para o Brasil. Em tempos de lavajatismo, e após a divulgação das conversas entre o juiz Sergio Moro e "seus" procuradores da República, o lado mais sombrio do Estado brasileiro tornou-se ainda mais explícito: muitos juízes e membros do Ministério Público persistem numa posição de desprezo pelo Estado de Direito.

Apesar da promulgação de uma Constituição que rompeu com 21 anos de ditadura militar, ainda permanece a noção de que o acusado deve ser tratado não a partir dos limites estabelecidos por seus direitos e garantias fundamentais, mas sim como inimigo do Estado. Uma noção sempre utilizada por regimes de exceção e que, antes do paradigma constitucional instaurado em 1988, se fez presente por meio da doutrina de segurança nacional. Por sinal, foi com base nessa doutrina que a ditadura militar suspendeu a garantia do Habeas Corpus para pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional.

Passaram-se muitos anos desde a aprovação do Ato Institucional nº 5 e o país se redemocratizou. O ministério Público deixou de ser um mero auxiliar do Poder Executivo e tornou-se fiscal da lei. O Poder Judiciário reconquistou sua autonomia funcional. Mas o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais não passam de meros detalhes permaneceu entre alguns agentes públicos. Foi o que os procuradores federais da lava jato manifestaram em diálogos pelo Telegram logo após a divulgação ilegal da interceptação telefônica das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff.

Diante do vazamento, o procurador Januario Paludo sustentou que a ilegalidade da divulgação não passava de filigrana jurídica. Opinião seguida por Deltan Dallagol ao defender que, "a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político". Ou seja, no tratamento oferecido ao inimigo, ilegalidades podem ser praticadas.

Em regimes democráticos, o sistema acusatório determina que a acusação e o órgão jurisdicional atuem de forma separada, de maneira a garantir a imparcialidade do juiz no julgamento do processo penal. Nos tempos da "Santa" Inquisição, a mesma pessoa encarregava-se do julgamento, da investigação e da acusação. Sem esquecer, é claro, do uso da tortura como um meio para obter a confissão do acusado. O tempo da fogueira inquisitorial passou, mas a operação lava jato não abriu mão do sistema inquisitório nas suas intenções quase "messiânicas" de guerra "santa" contra a corrupção.

Em vez do Ministério Público Federal atuar com independência ao longo das investigações, o que se viu foi a total subserviência dos procuradores em relação ao verdadeiro chefe da operação, o juiz Sergio Moro. Em muitas mensagens os procuradores afirmavam que, antes de tomarem alguma posição, o juiz Moro precisava ser consultado.

Foi o caso da mensagem do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que em conversa com seus colegas confidenciou a preocupação de manter "o russo [Sergio Moro] informado, bem como [permanecer] atento aos humores dele". Nesse sentido, o órgão jurisdicional e o ministério público deixaram de ser instituições separadas, com autonomia funcional, para atuarem como se fossem um mesmo órgão sob a chefia do juiz Moro.

Para que o juiz permaneça na posição de expectador durante todo o processo, também é importante garantir que a gestão das provas permaneça sob a responsabilidade exclusiva das partes. Sempre levando em consideração a presunção de inocência, que no caso transfere para o acusador toda a responsabilidade pelo ônus da prova. Se no decorrer do processo penal as provas para a condenação são insuficientes, prevalece o princípio do in dubio pro reo.

Não cabe ao juiz produzir provas ou orientar como as partes devem usá-la. No entanto, apesar das limitações impostas pela Constituição, o juiz Moro mais uma vez abandonou a imparcialidade para determinar que o ministério público devia incluir uma prova contra um réu da lava jato. De acordo com as conversas do Telegram, Deltan comunicou a procuradora Laura Tessler que o juiz Moro havia chamado a atenção para a ausência de uma prova na denúncia contra Zwi Skornicki.

"Laura no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa [da Petrobras] e se for por lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar ele", diz Deltan.

"Ih, vou ver", responde a procuradora. 

No dia seguinte a esse diálogo, a procuradoria incluiu um comprovante de depósito e o juiz Moro aceitou a denúncia.

A operação "lava jato" não foi um ponto fora da curva. O juiz Sergio Moro e "seus" procuradores seguiram a tendência dominante dentro do processo penal brasileiro, baseada na cultura inquisitória. Mas, além do comportamento Torquemada de muitos juízes e promotores, o que também é possível atestar por meio da permanência da cultura inquisitória é a resistência de muitos agentes públicos contra qualquer controle constitucional de suas funções. Sendo assim, em vez do processo penal ser compreendido como uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo da parte do órgão jurisdicional do Estado; o que se percebe é que, nas mãos de quem vê os direitos e garantias fundamentais como meras filigranas jurídicas, o processo penal é apenas um instrumento de poder e repressão, numa noção típica de agentes públicos que resistem ao Estado de Direito por meio do mandonismo.

Desse modo, ao medir a qualidade da democracia brasileira por meio do processo penal, podemos concluir que o entulho autoritário de outras épocas ainda insiste em deixar a Constituição cidadã de lado para manter de pé o paradigma amigo/inimigo.

22
Abr21

O dever que a Constituição impõe: reação defensiva ao fascismo processual penal

Talis Andrade

 

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Nos últimos sete anos, a Justiça criminal brasileira sofreu profundas, complexas e decisivas transformações.

A Constituição de 1988 inseriu-se em um movimento internacional de consagração do catálogo de direitos fundamentais assegurados aos cidadãos, a partir do reconhecimento da necessidade da criação de obstáculos claros, precisos e rigorosos ao exercício do poder, sob o primado do respeito à dignidade da pessoa humana.

Trata-se de uma conquista civilizatória inestimável de nossos antepassados, como principal legado dos horrores da Segunda Guerra e dos crimes cometidos pelos regimes de força espalhados pelo mundo ao longo do último século.

Esse movimento internacional, com origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ganha força com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e projeta-se especificamente para a América Latina com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Em 1966, o italiano Giuseppe Bettiol afirmou: “O nazismo menosprezou o interesse do acusado e eliminou toda uma série de disposições que serviam a sua tutela. Ampliou os casos de prisão preventiva e repudiou a concepção do processo como litígio entre duas partes em situação de paridade, para conceder todo o favor à acusação pública. Os modos e os termos de defesa foram atenuados; limitadas as possibilidades de recurso; admitida a executoriedade das decisões do magistrado, mesmo antes do caso julgado”. Bettiol, na mesma obra, esperava que no futuro o processo penal tivesse as seguintes características: “Plena publicidade de todo o processo; liberdade pessoal do acusado até a condenação definitiva; paridade absoluta dos direitos e poderes da acusação e defesa; passividade do juiz na recolha das provas tanto da condenação como de absolvição”.

E esse foi o modelo escolhido pelo Constituinte de 1988, prestigiando, no campo processual penal, as garantias individuais como limitadoras da atividade investigativa e persecutória do Estado.

Mas nosso Código de Processo Penal, em vigor até hoje, de raízes inquisitoriais, pois inspirado no Código Rocco, do fascismo de Mussolini, seguia a ideologia da Constituição de 1937, desidratando garantias, ampliando desigualdades, subjugando o indivíduo perante a força do arbítrio oficial.

Com a redemocratização do país, o processo penal passou a respirar os novos ares de liberdade, colhendo na promessa do constituinte de 1988 a esperança de que a Justiça criminal adotasse postura diametralmente oposta às práticas ditatoriais, com o reposicionamento do cidadão como sujeito de direitos fundamentais, e não mais como mero objeto de prova, por vezes de investigações clandestinas com métodos violentos.

E, assim, andamos por algum tempo, com a ilusão de que a Constituição seria suficiente para mudar a essência profundamente autoritária da legislação processual, com o esforço doutrinário e profissional de advogados e defensores para convencer nossos tribunais de que era não apenas possível, mas obrigatório, reler o Código de Processo Penal a partir da Constituição Federal, com o novo sentido que o conjunto de suas garantias imprimia às antigas regras, evidentemente incompatíveis com o novo modelo acusatório.

Mas a mentalidade inquisitória, vitaminada pelas crises econômicas e sociais, moldada a melhor potencializar a tendência natural do ser humano ao abuso de poder, voltou a predominar em nosso conturbado ambiente jurídico e político. Trata-se de fenômeno conhecido ao longo da história, e que muitos denominam de eterno retorno do fascismo.

No Brasil, esse renascimento do espírito de intolerância e de erosão das garantias fundamentais atendeu pelo nome de operação “lava jato” (particularmente o lavajatismo), expressão que hoje sintetiza uma série de esforços para a desconstitucionalização da Justiça criminal, em um percurso marcado por sucessivas tentativas de ataque aos princípios essenciais de estruturação de um processo penal de respeito aos direitos humanos e à dignidade do cidadão.

Esse caminho se iniciou com o projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção, em que o juiz Sergio Moro e membros da força-tarefa “lava jato” defendiam, entre outras inomináveis violações à Constituição e a tratados internacionais, a restrição ao Habeas Corpus, a utilização de prova ilícita, a supressão de recursos, a execução das penas antes do trânsito em julgado.

Já se desenhava nesse momento a tentativa de criminalização da política e a politização da Justiça criminal, instrumentalizadas mediante uma agressiva campanha de marketing e trabalho massivo de grupos obscuros nas redes sociais, cujo apogeu ocorreu tempos depois com a eleição de Jair Bolsonaro e a nomeação de Sergio Moro ao Ministério da Justiça.

Foram derrotados no projeto das Dez Medidas, especialmente porque os abusos foram corretamente denunciados pela comunidade acadêmica e porque o Congresso Nacional já percebia que, sob o timbre do combate à corrupção, escondiam-se nefastos interesses pessoais, político-partidários e econômicos, posteriormente iluminados pelas mensagens da “vaza jato”.

Ao contrário do que se costuma alegar, a contundente resistência ao projeto não veio da elite econômica, mas daqueles que melhor conhecem as injustiças, preconceitos e desigualdades do sistema penal, bastando mencionar que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro foi quem lançou a primeira campanha pública e institucional contrária à aprovação (Dez Medidas em Xeque).

Paralelamente, centenas de milhares de empregos eram dizimados, enquanto a sociedade, a imprensa e os tribunais eram cegados pela cortina de fumaça de operações espetaculares, entrevistas coletivas cuja única finalidade era estigmatizar, prejulgar e constranger.

Sim, é inegável que a operação revelou casos gravíssimos de corrupção, que não podem ser relativizados. Mas, como lembra Rui Cunha Martins, é falsa a ideia de que o Estado de Direito seja salvo cada vez que o sistema penal pune um poderoso ou um convicto corrupto; por mais que custe à chamada “opinião”, o Estado de Direito só é salvo se um poderoso ou um convicto corrupto é punido no decurso de um devido processo legal; o contrário disso é populismo puro.

Nesse período, ganha corpo uma importante reação jurídica de advogados, defensores, instituições e associações acadêmicas que buscam no Supremo Tribunal Federal a reafirmação da força normativa da Constituição, com o reconhecimento da inconstitucionalidade das conduções coercitivas, ícone de deterioração do direito de defesa, e da execução da pena a partir da decisão de segunda instância.

O Direito, sequestrado pelo falso moralismo, é resgatado nos julgamentos das ADPFs 395 e 444 e das ADCs 43, 44 e 54.

Mas a luta segue, ainda mais dura, com a vitória do programa fascista de Jair Bolsonaro e a ascensão de Sergio Moro ao poder.

Como havia escrito no início da “lava jato”, em artigo na imprensa, para Moro “o problema é o processo”, ou seja, suas garantias, formas e ritos, construídos ao longo de décadas de avanço civilizatório.

E, para concretizar o projeto autoritário, o ministro apresenta ao Congresso Nacional o chamado pacote “anticrime”, que, para além de não oferecer qualquer ação estruturada de enfrentamento das causas reais da criminalidade, estimulava a opressão contra os mais pobres, prevendo a ignominiosa licença para matar, a gravação de conversas entre cliente e advogado, o fim da audiência de custódia pessoal pelo magistrado.

A proposta de criação da “barganha penal” (uma tradução equivocada do plea bargain americano) era o xeque-mate inquisitorial, pois a pena passaria a ser executada sem direito de defesa, contraditório, instrução penal e revisão pelos tribunais. O processo seria extinto e, então, acabaria o “problema” anunciado pelo ex-juiz.

Já com o caos instalado no país, o Congresso percebe os riscos antidemocráticos da dupla Moro-Bolsonaro e, sensibilizado, instaura importante diálogo com a sociedade civil, com a criação pelo presidente Rodrigo Maia de uma comissão especial para a discussão das propostas, presidida pela deputada Margarete Coelho.

Ouvindo nossos principais juristas, OAB, Defensorias, IBCCrim, IDDD, IAB, Abracrim, Aasp, Iasp, IGP, Conectas, institutos e associações da advocacia criminal e de direitos humanos, que denunciaram o grave retrocesso patrocinado pela irresponsabilidade jurídica do governo federal, o Congresso reage.

Formou-se, a partir de então, um bloco parlamentar informal de distintas orientações ideológicas, mas com idêntico compromisso social com o interesse público, erigindo-se ali um pacto de preservação mínima das garantias fundamentais.

Dessa comunhão democrática, formada por vários deputados (Margarete Coelho, Marcelo Freixo, Orlando Silva, Paulo Teixeira, Paulo Abi-Ackel, Lafayette Andrada, entre outros), resultou a obtenção das mais importantes conquistas pós-Constituição no Direito Processual Penal brasileiro, como a vedação da prisão preventiva de ofício e a contemporaneidade da medida, a revisão da necessidade da prisão, a exigência da cadeia de custódia da prova, a regulamentação da delação premiada, mitigando seu valor probatório. A aprovação da Lei de Abuso de Autoridade integra esse pacote democrático-civilizatório.

O autoritarismo presenciado no processo penal brasileiro nos últimos sete anos foi o gatilho para a inversão do pêndulo legislativo em direção à conformação de uma Justiça criminal de tutela do status libertatis do cidadão, e não mais um altar de degradação humana.

Nesta semana, a derrubada do veto do presidente Bolsonaro à obrigatoriedade de audiência de custódia presencial, melhor e mais efetivo instrumento de combate à tortura, foi nova demonstração do quadro virtuoso do Congresso Nacional no campo da proteção dos direitos individuais.

A Constituição persevera e vence, a cada dia, a arrogância e o arbítrio, derrotando projetos autoritários, mas ainda devemos a ela os dois passos finais dessa jornada.

A aprovação do novo Código de Processo Penal pelo Congresso Nacional e a derrubada da liminar que impede a entrada em vigor do instituto do juiz de garantias, a mais importante mudança recentemente aprovada pelo Parlamento, é pressuposto essencial e inegociável de uma Justiça criminal leal, justa e imparcial.

Em “Recordações da Casa dos Mortos”, que retrata a vida dos condenados em uma prisão na Sibéria, Dostoievski ensina que a tortura mais grave aplicada aos presos era a submissão a trabalhos inúteis. A humilhação de construir um muro de pedras que nada separava ou protegia e que, quando pronto, era imediatamente destruído pelos guardas, feria mais que os castigos físicos.

Na advocacia criminal, e em especial na defensoria pública, nos últimos anos, perante alguns juízes, muitas vezes achamos que a defesa era um trabalho inútil, como o muro de Dostoievski. Entretanto, acordávamos todas as manhãs sabendo que nossa função é construir eternamente esse muro que protege a liberdade do indivíduo contra o arbítrio do Estado.

Cada vez que o Estado consegue derrubá-lo, recomeçamos o trabalho com mais vigor e tentamos construí-lo com mais força e mais resistência. Essa é a vida que escolhemos. O dever que a Constituição nos impõe.

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05
Abr21

O gosto amargo do próprio veneno

Talis Andrade

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Deltan e sua turma buscam a cura no mesmo remédio que queriam exterminar

 

  • POR HUGO LEONARDODANIELLA MEGGIOLARO AND MARINA DIAS WERNECK DE SOUZA /Folha de S. Paulo.
     
     
     
     

    O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da parcialidade do então juiz Sergio Moro tornou histórico o último dia 23 de março. Na data, muitos se valeram desse adjetivo tendo em mente os envolvidos —um ex-presidente e um magistrado nacionalmente identificado com o combate à corrupção. Para nós, advogados e advogadas, a decisão entra para a história por sua importância ao direito brasileiro, já que nela foram restabelecidas algumas de suas principais balizas.

    O resultado restaura a confiança no devido processo legal, que só subsiste quando um acusado é julgado por um magistrado imparcial. Naquele julgamento também alguns ministros sinalizaram o entendimento de que provas obtidas ilegalmente somente se aproveitam em favor do réu, sendo imprestáveis, contudo, em seu prejuízo. Em síntese, a mais alta corte do país sepultou de vez a máxima de que “os fins justificam os meios”, e a Lava Jato vai se tornando um caso paradigmático de como ilegalidades cometidas por agentes públicos contaminam e inutilizam a matéria-prima da qual se poderia extrair a Justiça.

    Mas o início de 2021 reservava a integrantes da célebre operação uma sequência curiosa de ironias. Os mesmos procuradores que tanto desprezaram garantias dos investigados, chegando a apresentar projeto de lei em que se propunha, dentre outras medidas, flexibilizar a utilização de provas ilícitas e restringir o uso do habeas corpus, tornaram-se objeto de uma questionável investigação. Baseado apenas em mensagens de aplicativos obtidas ilegalmente por hackers, o Superior Tribunal de Justiça instaurou de ofício um inquérito que visa a apurar a conduta dos integrantes da força-tarefa, flagrados em conversas nada ortodoxas apreendidas no bojo de outra operação, a Spoofing.

    É interessante, mas, após provarem de seu próprio veneno, Deltan Dallagnol e sua turma agora buscam a cura justamente no mesmo remédio que um dia pretenderam exterminar: o habeas corpus. Nele, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) pede ao STF o trancamento do inquérito, relembrando teses de diversos réus na Lava Jato.

    Os argumentos têm forte sabor de garantismo, como a ilicitude das provas obtidas clandestinamente contra os procuradores e a violação do sistema acusatório, já que somente o procurador-geral da República poderia pedir para investigá-los. Diante de boatos de que seriam alvo de busca e apreensão —medida reiteradamente utilizada contra seus investigados—, os procuradores obtiveram liminar concedida pela ministra Rosa Weber para suspender as investigações. Mais uma zombaria do destino!

    A Lava Jato é a crônica de uma tragédia anunciada. Não para seus réus, tampouco para a corrupção no Brasil, mas para a possibilidade de se fazer justiça. Inquéritos eivados de ilegalidades, como é este instaurado pelo STJ, sempre ameaçam a confiabilidade na Justiça e em suas instituições. É o que temos afirmado desde o início. Os procuradores da força-tarefa de Curitiba agora o sabem por experiência própria.

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