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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Dez23

Pausas de calcificação

Talis Andrade
 
por Gustavo Krause
 

Não adianta resistir ao lugar comum: a semana de transição anual se impõe com a sensação de que o relógio/calendário para. De fato, “A vida necessita de pausas”, título do poema de Drummond, poeta apaixonado, para quem a pausa era “Dítono da vertente ...de toda minha loucura de amar/ Cada vez se torna mais difícil o pausar...na vida acelerada de minha saudade”.

Para nós, pessoas comuns, pausa é uma parada nas tarefas da sociedade do cansaço; um “fazer nada” ou um “ócio criativo” à Domenico de Masi; um intervalo para reflexão interior e, serenamente, encarar as dobras do tempo.

Desta forma, pouparei o leitor de uma espécie de contabilidade existencial que agrupa exaustivamente os fatos ocorridos em colunas de créditos e débitos; de valores e desvalores. A partir de uma escolha arbitrária e, confessadamente, limitada, me ocuparei de três registros.

O Primeiro trata do assustador 08/1 marcado, para sempre, pela violenta afronta à democracia com palavras envenenadas e gestos de efetiva agressão à Lei, às Instituições e aos símbolos nacionais. Prevaleceu a ordem democrática.

No entanto, a explosão do ódio não foi o começo e não será o fim das ameaças à democracia no Brasil e no mundo.

Seguem expostos “fios desencapados” às faíscas da intolerância, ao ambiente da antipolítica onde predomina a expansão dos extremos, alimentados pelo fenômeno persistente e crescente da polarização.

A rigor, a polarização não é intrinsecamente má desde que se manifeste no espectro do pluralismo o que move a sociedade democrática, respeitadas as divergências na busca da construção de consensos sociais.

E quando a polarização soa as trombetas do conflito e propõe o extermínio do outro divergente? Aí transmite a grave patologia da “calcificação” do tecido social, estrangulando o centro político e colocando em risco a estabilidade democrática.

Deve-se esta expressão – calcificação – aos autores do livro Biografia do Abismo: Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o Brasil (dezembro/2023), de autoria do cientista político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann.

A obra nasce histórica, não somente pela consistência do diagnóstico, fundamentado em dados de pesquisas, mas também, porque, propõe o remédio para “doença da democracia, mais democracia” numa sociedade de cidadãos. Devo acrescentar outro atributo de todo bom livro: inquieta o leitor, logo não é aconselhável para quem pretende desfrutar a leveza da pausa.

O segundo registro refere-se ao paroxismo da estupidez humana: a guerra no Oriente Médio e a continuidade de idêntico filme de terror que é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Em fevereiro completa dois anos.

No limite da minha ignorância diante da tragédia, faço apenas um comentário para revalorizar a democracia. Democracia e Paz caminham juntas e são valores convergentes. A História ensina: em todos os confrontos bélicos, uma das partes, ou as duas eram e são governadas por autocratas, ditadores, tiranos. Jamais ocorreu guerra entre estados democráticos. A Paz é o espaço da democracia.

Como terceiro registro, a realização da COP28 merece uma atenção especial.

No berço da civilização dos combustíveis fósseis, os Emirados Árabes, duas centenas de países concordaram, passados trinta e um anos da Eco-92 e oito do Acordo de Paris com o começo do fim da era do Petróleo.

A ministra Marina Silva fez um comentário certeiro e realista: “O mundo resolveu ouvir a ciência. Só que uma coisa é estabelecer este tipo de consenso e outra coisa é a gente viabilizar o consenso. O balanço geral da COP28 é que ainda estamos insuficientes”.

Na mesma linha, Al Gore, ex-vice-presidente do EUA menciona que o reconhecimento da crise climática “como uma crise dos combustíveis fósseis é um marco importante”.

Convém ressaltar que a humanidade se defronta com um desafio bem maior do que operar a complexa transição energética que é mudar radicalmente um padrão civilizatório com todas as implicações que uma transformação desta ordem envolve.

Nada menos do que 2.456 lobistas defendiam os interesses econômicos dos produtores de petróleo que evitaram, na declaração final da COP, expressão equivalente a eliminação gradual (phase out, em inglês), substituída pelo compromisso de fazer “uma transição dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de forma justa, ordenada e equitativa, de modo a atingir emissões líquidas zero até 2050, de acordo com a ciência”.

Com razão, dirão os críticos dos acordos internacionais que há uma distância nem sempre percorrida entre falar, escrever e fazer, especialmente no cumprimento de obrigações financeiras. O remédio é manter a mobilização o trabalho contínuo e articulado com a COP29 no Azerbaijão e a COP30 no Pará.

Para o Brasil, soluções econômicas baseadas na natureza são uma oportunidade estratégica para o nosso protagonismo ambiental e desenvolvimento sustentável como nação benfeitora e beneficiária do patrimônio natural.

PS. Ao leitor(a), desejo, agora e sempre, Saúde e Paz. Pausa: até o primeiro domingo de fevereiro.

11
Dez23

A Guerra e a Terra

Talis Andrade

 Nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias

 

por Gustavo Krause

- - -

A guerra, retumbante fracasso da Política, é uma severa agressão ao Planeta em contraste com as sábias palavras de Francisco na Encíclica Laudato si, Louvado sejas, cujo subtítulo: sobre o Cuidado da Casa Comum (2015) exaltam os cuidados com a Terra.

O Professor Clovis Cavalcanti, economista ecológico avant la lettre, recomendou uma leitura reflexiva e me disse, feliz, que tínhamos um Papa que compreendera a dimensão do cântico de São Francisco de Assis ao pregar: “a nossa casa comum se pode comparar ora a uma Irmã, com que partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”.

Que me perdoem os cientistas, dedicados pesquisadores, notáveis filósofos, pensadores e os bem-intencionados líderes empresariais e políticos, mas o texto papal é insuperável. Revoluciona a base conceitual dos padrões civilizatórios contemporâneos e propõe uma relação fraterna entre o Homem e a Natureza de modo a assegurar equilíbrio e integridade planetária para as novas gerações.

O gatilho da releitura foi um cotidiano repleto de violências da guerra que nos chegam todos os dias, ao vivo e em cores, exemplos do extremo desamor humanitário. A destruição em larga escala do meio ambiente se soma também, às pequenas e grandiosas maldades, criminosas, que vão do corte da árvore, à poluição do ar, à contaminação da água e ao envenenamento da terra como se o papel da natureza se limitasse a alimentar um sistema de produção capaz de atender o consumo desenfreado e a ambição incontida.

Ao lado estrondoso da guerra, também, nos chegam eventos em proporções nunca vistas de enchentes, incêndios, vendavais, calor intenso e frio paralisante, ameaçando o ritmo da natureza e, por consequência, colocando em risco a biodiversidade, a cadeia produtiva e a segurança alimentar.

Ora, não foi por falta de aviso das instituições internacionais e de vozes esclarecidas que o abuso da natureza por uma equivocada dominação humana e o uso desenfreado dos recursos naturais, afetaria o clima, acelerando mudanças e provocando graves emergências climáticas. Tudo com base científica, ignorada pelo obscuro, delinquente negacionismo e desmedida ganância do enriquecimento.

É inegável que as inovações tecnológicas e os avanços da ciência ajudam, a mitigar os impactos, mas estão longe de ser um Deus ex-machina. O verdadeiro poder está na consciência das pessoas; é um impulso de dentro para fora que enxergue uma relação amorável com cada pedaço e cada ser do universo.

Neste desafio de profunda transformação cultural, há uma componente vital: a ética do bem comum. Inviável trilhar este caminho sem a companhia de um regime político que assegure a força da alteridade, da solidariedade, do diálogo e dos consensos. Este regime político é a democracia.

A guerra e a autocracia são inimigas do futuro da Terra.

Neste sentido, o argumento democrático vem sofrendo ameaças em decorrência do avanço da polarização política, do discurso antistabilshment, apropriado pelo populismo extremista. É uma doença que tem sérios sintomas endêmicos. Os aliados da antidemocracia, revela recente e farta literatura política, promovem a erosão das instituições e destroem o regime com os próprios mecanismos que dão sustentação às democracias liberais. Sem tanques, a arma é a cooptação e desmoralização dos mecanismos da representação popular até o capítulo final da captura do poder. A Hungria é um caso exemplar.

A propósito, os autores, Levitsky e Ziblatt, de Como as democracias morrem, (Zahar, 2018) lançaram uma obra atualíssima Como salvar a democracia (publicada no Brasil no dia 17 do corrente mês pela Editora Zahar), com um prefácio comparativo das situações entre o Brasil e os EUA, enfatizando ao longo da obra o fenômeno trumpismo/republicanos e um olhar comparativo da ascensão dos extremismos mundo afora.

De outra parte examinam com acurácia algumas circunstâncias a serem enfrentadas: a banalização do autoritarismo, a semilealdade, atributo dos personagens aproveitadores de qualquer espaço de poder, a tirania das minorias (a reversão da “tirania da maioria”).

E ao constatar a perda de prestígio da democracia, os autores defendem estretégias capazes de lutar contra o perigo autoritário, entre elas, coalizões centristas, democracia militante e defensiva, reformismo institucional, reafirmando que “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”.

Sem meias palavras, os autores concluem com firmeza: nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias.

20
Nov23

Velho, meu querido velho

Talis Andrade

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Gustavo Krause

-

O Brasil tem envelhecimento recorde e pessoas de 65 anos ou mais chegam a 10,9% da população. São dados do Censo Demográfico/2022 do IBGE e divulgados no final de outubro: 22,2 milhões de pessoas o equivalente a um alta de 57,4% ante 2010. A mediana passou de 29 para 35 anos.

A realidade demográfica produz impactos que vão desde a saúde mental, aspectos relacionais, ao amplo espectro da formulação de políticas públicas que atenda novas demandas, em especial, no sistema de saúde e previdência.

Acende um sinal de advertência: envelhecer empobrecendo é o pior dos mundos. O obstáculo mais insidioso é o preconceito em relação aos idosos, o etarismo, ageísmo ou, mais realista, a “velhofobia”. Por sua natureza, o preconceito governa baixos instintos como o desamor, formas sutis e ostensivas de violência.

Paralelamente ao combate do sentimento odioso da discriminação e ao desafio concreto do aumento da produtividade real da economia, com a redução da população economicamente ativa, é fundamental encarar a longevidade como uma conquista a ser valorizada e utilizada diante da mudança de percepção do que é o envelhecimento.

Neste sentido, a mudança na construção de uma sociedade mais envelhecida aponta na direção de políticas inclusivas que ampliem a vida ativa, melhor qualificada, diante das transformações tecnológicas do mercado de trabalho. Mais uma vez a educação e os serviços de saúde preventiva são caminhos estratégicos. Pesquisas indicam que mais de um terço dos domicílios brasileiros dependem, em grande medida, da renda dos idosos.

O que vem a ser vida ativa? A ampliação da capacidade de trabalhar; a conquista de oportunidades adequadas; a disposição para o convívio, superando os riscos da epidemia da solidão, tendo-se como pressuposto que, em qualquer sociedade, mais jovem ou envelhecida, as necessidades básicas estejam devidamente atendidas. Afinal, não é crível pensar no futuro sem que os alicerces da sustentabilidade estejam atendidos.

Ao longo da vida, a natureza dota cada idade com qualidades próprias a exemplo do ímpeto na juventude e da maturidade na velhice. Embora incomum, nada é mais reconfortante do que descobrir o verdor no velho e sinais de velhice num jovem.

Neste percurso, emerge um grande paradoxo existencial: maldizer a velhice, mas não se chega a ela sem ter um encontro indesejável com a morte. Importante, pois, buscar dentro de si recursos que estão disponíveis em todas as idades para uma vida mais tranquila.

Vencer a força brutal do preconceito, as limitações do tempo, e criar uma sociedade acolhedora são “lições dos clássicos”, dentre eles, o romano Marco Tulio Cícero (106-43 a.C).

Tido como orador de insuperável força retórica (o que nos obrigou até os vestibulares de Direito do ano de 1962 estudar As Catilinárias – acusações ao adversário Lucio Sergio Catilina), Cícero aliou o talento político ao de gestor, e nos legou uma preciosa reflexão filosófica Saber envelhecer e A amizade – Porto Alegre: L&PM, 2011. V.63).

Na obra, contesta com simplicidade e sabedoria as “quatro razões possíveis da detestável velhice”; 1. Nos afastaria da vida ativa o que ele contesta com a ação moderada, mais lenta, porém mais sábia; 2. Enfraqueceria o nosso corpo o que seria compensado pela temperança na ocupação do espírito e pelo reconhecimento de dispor do que a natureza permite; 3. Privaria dos melhores prazeres que seriam desfrutáveis, desde que libertos da volúpia, da paixão, do extremo gozo que, uma vez triunfantes, aniquilariam as virtudes; 4. Aproximaria da morte, fato incontestável que deve ser desdramatizada diante da eternidade e a consciência serena de que a natureza nos ofereceu uma pousada provisória e não um domicílio.

O grande pensador elabora liames entre as gerações e, sobretudo, com a natureza. Passados milhares de anos, inspira, para além dos impactos socioeconômicos da longevidade, o culto de amor ao velho, saudação e saudade, quando Altemar Dutra canta: Velho, meu querido velho, que já caminha lento; e Sergio Bittencour que homenageia a ausência do pai, o gênio do “chorinho”, Jacob do Bandolim, na voz de Elizeth Cardoso ou Nelson Gonçalves: Naquela mesa tá faltando ele e saudade dele tá doendo em mim.

É uma benção ter um velho para chamar de seu.

09
Nov23

Sangue real

Talis Andrade

por Gustavo Krause

- - -

Independente da origem, se étnica ou patológica (cianose), a expressão "sangue azul" chegou aos nossos tempos como se fosse marca da origem nobre, aristocrática, uma distinção da realeza. Mas a cor é poeticamente "vinho tinto" e a semântica exprime vida que se esvai ou que se fortalece.

Asseguro que este tema não decorre do banho de sangue da tragédia do oriente médio, Rússia/Ucrância ou da violência cotidiana que, cruel, nos empurra para um abismo de dor.

Refiro-me a outro sangue que a gente pode doar, anonimamente, para tratar graves doenças, restaurando o que parecia perdido. Refiro-me ao sangue doado, uma espécie de remédio dos remédios que pode salvar a vida de um irmão desconhecido. Foi o gesto mais solidário que senti, quando vim a saber que a classificação do meu tipo sanguíneo O-, doador universal, acode, todo mundo, mas que somente pode ser acudido pelo mesmo tipo sanguíneo.

Virei um doador regular até que a idade acendeu o sinal vermelho. Devo essa compreensão doadora a alguns especialistas, amigos fraternais, e, sobretudo ao cientista e humanista, Doutor Luiz Gonzaga dos Santos que, menino do humilde Bairro de Agua Fria, integra, hoje, ao lado de profissionais abnegados, a grandeza do pioneirismo histórico da Fundação Hemope, que no dia 25/11/2023 (Dia Nacional do Doador de Sangue), completa 46 anos de tratamento, ensino e pesquisa de hematologia e hemoterapia.

Não foi fácil percorrer quase meio século de obstáculos. Cada passo foi dado com dedicação, empenho e nem sempre com a compreensão política que consolidasse definitivamente a implantação da Planta Industrial de Hemoderivados, em Pernambuco, cuja dimensão não se limita a uma fábrica de aproveitamento integral do plasma e seus derivados.

09
Nov23

Otimista ou pessimista?

Talis Andrade
09
Nov23

O governo de saias

Talis Andrade

 

por Gustavo Krause

O título original do artigo seria "Da escravidão ao Nobel de Economia", em homenagem a norte-americana Claudia Goldin, a primeira mulher a ganhar a láurea isoladamente (Elinor Ostrom, norte-americana - 2009 e Esther Duflo - 2019 franco-estadunidens compartilharam o Prêmio).

Todavia, identifiquei artigo de minha autoria, publicado na Folha de São Paulo e no Jornal do Commércio/Pe (Edição de 08/06/93) sobre a questão de gênero com o título mencionado. Peço permissão ao leitor para reproduzi-lo, sem alteração, contando com a compreensão em relação às peculiaridades marcadas pela passagem de 33 anos.

15
Out23

Uma academia cada vez mais brasileira

Talis Andrade

por Gustavo Krause

“É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. A frase é atribuída a Einstein”. Apócrifa ou não, a verdade é que o gênio, judeu asquenaze (não praticante e ativo pacifista) foi salvo do genocídio nazista graças à mudança da família para Itália, com formação acadêmica em Zurique, docência em Praga, Berlin, de onde emigrou em 1933 para os EUA, naturalizado norte-americano em 1940. Sabia um “pouquinho” de Física, Matemática e muito do preconceito assassino em massa.

O preconceito é um poderoso malefício que invade a alma humana com peso histórico-cultural e produz, incessantemente, o veneno da discórdia, da intolerância anulando qualquer virtude que sirva como antídoto. Mais que divide, aniquila qualquer possibilidade de aceitar a diversidade pessoal e social. Nega e extingue o outro.

02
Out23

O humor e a política

Talis Andrade

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Nos dias atuais, relacionar humor à política é uma heresia enorme. A experiência demonstra que, somente a mordacidade, a sátira, daria alguma graça ao espetáculo circense da antipolítica. Os sentimentos que prevalecem em relação aos “atores” são de rejeição, ressentimento, raiva, no mínimo indiferença ou, nos extremos ideológicos, o fanatismo com o forte tempero da bajulação.

As circunstâncias históricas deram um tom raivoso, odiento sobre, pasmem, os escolhidos como nossos representantes. Porém, o ambiente, ainda que com certa hostilidade, nunca chegou, como agora, ao “horror político”, alimentado pelo humor cáustico, em pílulas digitais, tendo como fonte inesgotável a natureza humana e sua capacidade de ser razão do ridículo e da satisfação do riso.

Nos círculos do poder, o humor se manifesta ora como virtude, senso de humor, ora como um risco permanente de produzir cenas patéticas que, somente, os poderosos são capazes ser, ao mesmo tempo, autor e vítima do bizarro.

“Não se leve muito a sério”. Mais do que um conselho esta advertência é uma lição de sabedoria. Soma leveza, uma das “Seis propostas para o próximo milênio” (Companhia das Letras, 1990 – O autor faleceu antes de pronunciar as palestras) à seriedade. E inspira a definição de senso de humor.

Na vida pública, em especial, o senso de humor é a virtude-chave para enfrentar crises recorrentes. Elas entram no gabinete da Excelência com um tamanho gigantesco e saem reduzidas e, muitas vezes, resolvidas.

No primeiro impacto, é fundamental não entrar no clima. Arrodeia. Puxa por um assunto capaz de baixar o ímpeto da adrenalina. Em seguida, deixa que o suplicante esvazie a cabeça cheia de problemas para dividir com ele as alternativas de soluções, se houver.

Assim se tratam assuntos com seriedade o que não se confunde com sisudez, a máscara da hipocrisia. O sisudo tem por hábito esconder por traz da cara fechada de brabo, muita sacanagem. E se acha o cara mais honesto do mundo; declama loas à moralidade e, na verdade, é um grande sacana. O rigor da sisudez é um mecanismo de defesa que alimenta mitos e encobre grandes mentiras interiores

De um deles, ouvi uma sincera confissão em virtude da Lei 6091 de 15 agosto de 1974 – Lei Etelvino Lins que adotava providências moralizadoras sobre a oferta de transporte e alimentação aos eleitores. “E agora, Deputado, está mais difícil “comprar” voto no “curral”! Ele, calmamente, respondeu: “Tô tranquilo. Não compro, vendo”. Naquele tempo, não se comprava por atacado. Era um modesto varejo.

11
Set23

O homem que compreendeu a democracia

Talis Andrade

 

 

por Gustavo Krause

Em 1835, o aristocrata francês Alexis de Tocqueville publicou o Livro I de A Democracia na América, subdividido em duas partes. O livro II somente apareceu em 1840. Quase dois séculos depois, de "ondas" democráticas e "ondas" de regressão, o regime permanece sob graves ameaças autoritárias.

No entanto, a obra é atualíssima. Nasce de um improvável autor, o nobre que rejeitou o título nobiliárquico de Visconde. Parte expressiva da família foi dizimada pela afiada guilhotina do terror jacobino. Sofreu na pele e no coração as dores do despotismo monárquico e dos descaminhos do ideal revolucionário de julho de 1789.

Tocqueville tinha suficientes razões para ser um radical e vingativo conservador. Porém, o jovem membro da magistratura francesa, aos 25 anos, de mente privilegiada, atendeu sua vocação política e exerceu um profícuo ativismo como Deputado (de 1839 até 1850). Ao mesmo tempo, tornou-se um fecundo pensador que legou à posteridade duas obras-primas: O Antigo Regime e a Revolução e A Democracia na América.

A decisão de viajar aos Estados Unidos, de maio de 1831 a fevereiro de 1832, para estudar o sistema prisional, o levou a observar com aguda percepção, a realidade de uma democracia que passou a ser um elemento fundamental para seu pensamento e ação ao longo da vida. Impressionante a profundidade com que tratou o tema. Tão profundamente que não faltaram cientistas sociais, a exemplo de Raymond Aron, que o considerassem o grande sociólogo da democracia.

Na excelente biografia O Homem que compreendeu a Democracia: Alexis de Tocqueville (Rio de Janeiro: Record, 2023), o autor, Olivier Zunz dá sugestivo título ao primeiro capítulo "Aprendendo a Duvidar", um ponto de partida do método epistemológico de Tocqueville que abraçou e sentiu o peso das contradições do novo regime, mantendo, porém, uma fidelidade inabalável a convicções básicas e inamovíveis.

De fato, ele chegava às conclusões pela persistência das dúvidas. Nada mais democrático do que duvidar; amar a incerteza; superar dogmas; assumir contradições. Ele mesmo não fazia ideia de como sua obra seria recebida, afinal de contas, o autor carregava uma pesada herança aristocrática. Era dono de um talento especial: capaz de pensar antes de saber o que quer que fosse.

O que dava e dá vitalidade às ideias de Tocqueville: a aguçada observação que o levou a identificar nas democracias a permanente contradição, mais precisamente, a tensão entre liberdade e igualdade. Encarava a igualdade como instrumento da liberdade e, reconhecendo a necessidade de reparar as injustiças sociais, enxergava a igualdade, não como um meio de nivelar, mas de elevar.

De outra parte, confessou "um sentimento profundamente enraizado no coração: o amor pela liberdade". Conciliar estes valores representava uma tarefa vital para a estabilidade da democracia. Assim como, colocar limites e freios sobre o poder da maioria.

De todas as ameaças, a tirania da maioria, nova espécie de despotismo, mereceu especial atenção de Tocqueville. Não admitia o dogma político de que a maioria tem sempre razão. A vontade da maioria é origem do poder, mas não legitima tudo fazer: acima da onipotência da maioria existe o recurso da soberania do gênero humano. Cabe, afirmou James Madison, "numa República não apenas defender a sociedade contra opressão dos seus governantes, mas guardar uma parte da sociedade contra a injustiça da outra".

Com o olhar penetrante no tecido social da democracia americana, Tocqueville alcança a raiz e o suporte do sistema político: o poder e o espírito comunal. Com admirável lucidez, argumenta: "É na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições comunais são para a liberdade aquilo que as escolas primárias são para a ciência; pois a colocam ao alcance do povo, fazendo-o gozar do seu uso pacífico e habituar-se a servir-se delas. Sem instituições comunais, pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade".

Assim, o poder descentralizado emerge de baixo para cima: primeiro a comuna, despois o município (ou condado), em seguida, o estado e, por fim, a argamassa de um pacto político que dá vida à União.

Por fim, a obra de Tocqueville não só revela o confessado amor à liberdade, como também, disse ele: "Exprimi uma ideia obsessiva que se apodera da minha mente: a irresistível marcha da democracia".

Certamente, se vivo estivesse e assistisse aos episódios do Capitólio e de 08 de janeiro, certamente concluiria: nenhuma democracia no mundo está segura.

08
Set23

Vicente de todas as cores

Talis Andrade

por Gustavo Krause

 

Vicente Moreno, Moreno? Vicente de todas as cores. Nem apenas sobrenome, nem cor de pele acastanhada. Ele carregava e transmitia o simbolismo de todas as cores. Uma nuvem branca fazendo chover a paz entre as pessoas. Concórdia, união, afeto, solidariedade.


Pintava de azul por onde passava. Alma serena, repartia com todos a tranquilidade do sorriso leve e franco. Com as mãos, oferecia o pão-verde da esperança às vítimas do infortúnio. Nele, não havia lugar para o sorriso amarelo, desolador. Da cor, encarnava a luminosidade solar que inspirava, aonde chegava, leveza, otimismo, alegria.


Do vermelho, tão elevado espírito, extraia a força do bem, do calor amigo e do amor ao próximo.
Vicente nos deixou no dia 30/08, mergulhados no sentimento e carências da orfandade. Tristeza profunda, sofrimento intenso, imenso, para os amigos e, sobretudo para Douglas, Dimitri, Ana Karenina, o netinho Vicenzo e sua companheira de mais de 50 anos de amor: Nicinha, tão meiga e doce quanto o carinhoso diminutivo que a distinguia. 


Meu vizinho. Subia um lance de escada do quinto para o sexto andar e lá estava eu (na última vez com o querido Zelito Nunes, compadre dele, e o grande amigo Mauro Ramos) recebendo o afago da hospitalidade e desfrutando da farta e saborosa da mesa do sertanejo de Várzea Alegre, município Cariri cearense, repleta de guloseimas, muitas delas importadas, da cidade onde nasceu. 


O destacado advogado, respeitado pela comunidade judiciária, clientes, amigos e até pelas partes contrárias nos litígios processuais, Vicente Moreno cultivava com admirável apego suas raízes de Várzea Alegre, tratada com refinado senso de humor como Happy Valley.


Me contava com indisfarçável emoção, muitas vezes poeticamente (declamava bem os “repentes”), as viagens à terra de origem quando dirigia milhares de quilômetros, sob meus amistosos protestos. E no espaço das recordações, relatava a chegada ao Recife e o esforço paterno para educar uma prole numerosa.


Preocupado com meus achaques, cuidava de mim, fraternalmente. Lembro das compressas com ervas que me deu para curar as dores da idade. Tinha por hábito agraciar os amigos com mimos portadores do selo de qualidade e originalidade do Happy Valley. Rapadura, compotas variadas e os pernis de bode assado adoçavam nossas bocas e amainavam o pecado da gula.


Querido amigo Vicente, me esforço para compreender a morte. E de que adianta compreender, aceitar ou negar? Ela é inevitável. Implacável. O que fazer com o luto e com a dor pela perda dos entes queridos já que não posso abraçá-los? Usar a memória como a arte de esculpir na alma o ente querido que se perdeu. Assim, a gente vê, toca para seguir juntos no agora e no sempre da Eternidade.

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