O nascimento do narcopentecostalismo
Traficantes, paramilitares e igrejas se unificaram em uma "guerra santa" contra grupos rivais e religiões afro-brasileiras
Desde os anos 80, as igrejas evangélicas têm expandido suas atividades de missionários para prisões e outros estabelecimentos penitenciários. Atualmente, o número de reclusos convertidos ao neopentecostalismo nas prisões brasileiras é significativo.
As prisões sempre representaram um espaço chave para a formação de organizações criminosas. De fato, todas as grandes facções de narcotráfico, tais como o Comando Vermelho, Terceiro Comando e o Primeiro Comando da Capital, foram fundadas em prisões.
Ocasionalmente, a abundante presença evangélica em estabelecimentos penitenciários tem se traduzido na conversão de traficantes. Este foi especialmente o caso do Terceiro Comando Puro, o principal rival do Comando Vermelho. Enquanto cumpriam sentenças em prisões estaduais, vários líderes foram convertidos para a religião neopentecostal.
Pouco tempo depois, o primeiro grupo narcopentecostal conhecido foi fundado como uma subfacção do Terceiro Comando Puro: o Bonde de Jesus. Além de controlar o tráfico no bairro do Parque Paulista no Estado de Rio de Janeiro, os Soldados de Jesus atacaram e vandalizaram vários templos de Candomblé e de Umbanda, expulsando os sacerdotes dos seus territórios. Desde então, a perseguição não só das religiões afro-brasileiras, mas também de padres católicos, tem sido relatada em várias favelas dominadas pelo Terceiro Comando Puro.
A ascensão das milícias e novas alianças
Outra força importante no equilíbrio de poder no Rio de Janeiro são as chamadas "milícias". Desde a ditadura militar, os grupos de extermínio formados por forças paramilitares e parapoliciais assumiram o controle de bairros inteiros. Muitas vezes comparada à máfia italiana, a milícia obtém as suas principais receitas da “gestão da violência” nos territórios sob o seu controle, coagindo a população local ao pagamento de taxas de proteção para as suas residências ou empresas. Em alguns bairros, milicianos também controlam outros ramos de infraestrutura, tais como a distribuição de gás, TV por cabo e transporte alternativo.
No ano passado, ao menos 57% da área da cidade do Rio de Janeiro era dominada por grupos milicianos, colocando 5,7 milhões de habitantes da cidade sob a mercê de organizações paramilitares
Compreendendo a milícia como um aliado estratégico no combate ao narcotráfico, diversos representantes do Estado apoiaram abertamente esses grupos paramilitares. O atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, por exemplo, declarou no passado que as "forças de autodefesa" formadas por policiais e bombeiros coibiam os narcotraficantes e traziam paz para certos bairros. É comum também nas fileiras policiais a percepção da milícia como uma extensão das suas próprias corporações, uma vez que são formadas por uma grande parte de ex-policiais e soldados do exército.
Contrariando esta reputação, associações entre grupos de milicianos e traficantes ligados ao Terceiro Comando Puro foram expostas. Para fortalecer sua posição em relação ao seu inimigo comum, o Comando Vermelho, os grupos criminosos lançaram uma nova joint-venture: nos territórios recém-conquistados, o Terceiro Comando Puro é responsável pelo tráfico de drogas, enquanto a milícia continua administrando e cobrando pela TV a cabo e pelo gás. As igrejas evangélicas, por sua vez, não fornecem apenas a justificativa ideológica para a guerra contra o demoníaco Comando Vermelho, mas também têm sido utilizadas para a lavagem de dinheiro. Como as igrejas são isentas do pagamento de impostos, fundos ilegais são facilmente canalizados por meio delas, tornando impossível rastrear a origem desse dinheiro.
A narcomilícia neopentecostal
Apesar da abordagem perigosa, a tripla aliança entre os traficantes do Terceiro Comando Puro, a milícia e igrejas evangélicas parece funcionar bem. Em janeiro deste ano, o Complexo de Israel expandiu o seu territóriopara outros bairros do Rio de Janeiro, a convite dos próprios traficantes locais. A Polícia Civil do Rio também está investigando uma suposta aproximação com criminosos de outras regiões.
Também fora do Complexo de Israel, o poder desta joint-venture está aumentando: O Terceiro Comando Puro conseguiu expandir significativamente o seu território, conquistando importantes bastiões do Comando Vermelho na cidade.
O maior vencedor, talvez, desta nova aliança poderá ser a milícia: no ano passado, ao menos 57% da área da cidade do Rio de Janeiro era dominada por grupos milicianos, colocando 5,7 milhões de habitantes da cidade sob a mercê de organizações paramilitares. As autoridades não são inocentes neste desenvolvimento. Territórios controlados pela milícia raramente são alvo de operações policiais: desde 2018, apenas 3% das operações militares e policiais foram lançadas em territórios ocupados pela milícia.
Apesar de algumas detenções ocasionais, estas organizações criminosas altamente lucrativas e profissionais não podem ser seriamente confrontadas sem visar suas estruturas políticas e fontes de financiamento. Isto inclui rever a estrutura de transporte público e distribuição de gás e de TV a cabo - a principais fontes de rendimento das milícias - bem como a atual legislação sobre drogas e impostos para igrejas, muitas vezes utilizadas para lavagem de dinheiro.
Embora isto possa parecer uma discussão difícil, o preço atualmente pago pela população do Rio, tomada como refém pela narcomilícia neopentecostal é muito mais elevado: ao terror propagado pelos grupos armados acrescenta-se a perda da liberdade de fé e a perseguição das religiões afro-brasileiras e dos seus praticantes
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