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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

27
Mai23

Altamiro Borges: PF vai investigar golpista da CPI do MST

Talis Andrade

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Gregório, líder dos camponeses, preso e torturado no primeiro de abril do golpe militar de 1964 contra a reforma agrária. O golpe de Bolsonaro de 8 de janeiro pretendia repetir o horror, prendendo e assassinando os sem terra. A CPI do MST fazia e faz parte do golpe: prender e matar lideranças campesinas

 

PF vai investigar golpista da CPI do MST

 
 
Foto: MST
 
Por Altamiro Borges

A chamada CPI do MST – que visa esconder os podres dos agrotrogloditas, criminalizar os movimentos sociais e desgastar o governo Lula – já nasceu sob fortes questionamentos. Nesta terça-feira (23), a imprensa noticiou que Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a Polícia Federal a dar continuidade às investigações sobre participação do deputado federal Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, nos atos terroristas do fatídico 8 de janeiro em Brasília. 

Segundo matéria do site UOL, “o caso envolve a suspeita de patrocínio e incentivo aos atos golpistas no Rio Grande do Sul e em Brasília, após as eleições que deram a vitória ao presidente Lula contra Jair Bolsonaro (PL). O caso foi para o STF porque o deputado tem foro privilegiado. Em despacho, Moraes afirma que a notícia do suposto crime foi levada ao Ministério Público Federal, que decidiu enviar ao Supremo”. “Encaminhem-se os autos à Polícia Federal, para continuidade das investigações”, despachou o ministro do STF. 


Ligações com os agrotrogloditas


O tenente-coronel Zucco foi apontado no ano passado pela polícia gaúcha como apoiador de acampamentos e outras manifestações antidemocráticas. Em uma postagem feita pelo então deputado estadual em frente ao Comando Militar do Sul, ele incentivava a ida dos golpistas ao local. O parlamentar é um reacionário convicto, com fortes ligações com os agrotrogloditas – inclusive com aqueles que foram denunciados por explorar trabalho análogo a escravidão no Estado. O fascistoide é um inimigo declarado do MST, a quem chama de “terrorista” e de “grupo criminoso travestido de movimento social”. 

“Ele tem como bandeira o conservadorismo e estreou na política em 2018, ao ser eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul. Conforme conta em seu próprio site, o convite veio de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Na ocasião, ele recebeu 166.747 votos. Zucco é amigo de Tarcísio de Freitas. E é próximo do atual governador de São Paulo há mais de 30 anos. Os dois se conheceram na Academia Militar das Agulhas Negras, a escola de ensino superior do Exército Brasileiro”, descreve a reportagem do site UOL. 

Trabalho escravo e trabalho infantil

Já o imperdível site “De olho nos ruralistas” descreve nesta quarta-feira (24) outros crimes do deputado, o que retira qualquer legitimidade da chamada CPI do MST. Entre outras denúncias, ele comprova que “o tenente-coronel Zucco recebeu doação do fazendeiro Bruno Pires Xavier, condenado por manter 23 trabalhadores em condições degradantes em Mato Grosso; ele é apoiado pela Farsul, que minimizou o trabalho escravo em vinícolas e quer punições mais brandas para o trabalho infantil”. Vale conferir outros trechos da excelente reportagem: 
 
 
 
Imagem
 

“Antes de ser escolhido para presidir a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o deputado Tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS) era uma figura desconhecida na política nacional. Eleito em 2022 com apoio do movimento armamentista Proarmas – na mesma chapa do ex-vice-presidente e atual senador Hamilton Mourão –, o militar gaúcho havia estreado na política quatro anos antes, ao conquistar uma vaga no legislativo estadual em 2018”. 

“Ex-chefe de segurança de Lula e Dilma, Luciano Zucco foi o deputado estadual mais votado no Rio Grande do Sul, em grande parte pelo engajamento direto de Mourão e de Jair Bolsonaro – com quem acompanhou a apuração de 2018, em sua casa no Rio de Janeiro. Mas sua ascensão política também contou com um personagem mais obscuro. Um dos principais financiadores de Zucco naquele ano foi Bruno Pires Xavier. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o fazendeiro doou R$ 10 mil para a campanha do militar. Dona do Frigorífico Quatro Marcos, a família Xavier é alvo de diversas denúncias de crimes ambientais e trabalhistas. Ao todo, 324 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em imóveis rurais do grupo, durante cinco operações do Ministério Público do Trabalho (MPT)”. 

“Na Câmara, Zucco tenta honrar os compromissos com seus fiadores políticos. Em março de 2023, em meio ao escândalo de trabalho escravo nas vinícolas gaúchas, Zucco votou a favor da tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa extinguir o MPT e a Justiça do Trabalho no Brasil. De autoria do ‘príncipe’ Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP), o projeto contava com 66 assinaturas. O projeto envolveu também a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), aliada de primeira hora do deputado bolsonarista”. 

“O financiamento de campanha não é a única ponta que liga Luciano Zucco ao universo agrário e a violações trabalhistas. Durante a campanha para a Câmara, em 2022, o representante da ‘bancada da bala’ se aproximou da ala ruralista através da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). A relação teve início ainda em 2019, graças à proximidade de Zucco com Jair Bolsonaro... Em 2020, quando Zucco ainda era deputado estadual, a Farsul emitiu uma nota conjunta com outras entidades patronais atacando um projeto da deputada Luciana Genro (PSOL-RS) que previa impedir as atividades de empresas flagradas com trabalho infantil. Segundo o empresariado gaúcho, a punição traria reflexos negativos para o ‘ambiente de negócios’”.

 

26
Fev23

Para uma menina do Recife

Talis Andrade

 

Recupero um texto que publiquei em 2012. Mas não é possível, há 11 anos? Uma explicação é que talvez o tempo tenha passado muito depressa

 

 

Penélope, a menina do Recife a quem me dirijo em 2012, não está só, ainda que fale em seu nome ao me procurar por e-mail. De modo bem didático, ela me conta que, num coletivo de alunos da 8ª série do Instituto Capibaribe, prepara um trabalho para ser exibido na feira de conhecimento da escola. E que esse trabalho foi solicitado pelos professores Mauro Santos, de Português, e Júlia Vergeti, de História. Eu deveria responder logo que ainda há educadores no Recife. Mas me calo para aqui terminar a didática da história.

Penélope Andrade tem apenas 13 anos. Pois a menina mocinha me procura pra saber notícias da ditadura no Recife, e com uma maturidade que talvez eu não tivesse na sua idade. É preciso dizer que o mais ardente em curiosidade sou eu? O que viria das perguntas e entrevista da menina? Acompanhem por favor a história.

 

Quantos anos tinha nessa época? E o que fazia? – Penélope começa. 

Ao que respondo:

– Quando houve o golpe, no dia primeiro de abril e não em 31 de março como os militares golpistas dizem com medo, porque desejam afastar o ridículo que é um golpe no dia universal da mentira, em primeiro de abril de 1964 eu estava com 13 anos de idade.

Era estudante de escola pública, que na época era a melhor escola que havia, e de tal maneira que chamávamos as escolas privadas de PP (Pagou, Passou). Eu era um adolescente angustiado – e que adolescente não é? – carregado de traumas familiares (aqueles traumas que não confessamos a ninguém), que adorava ler, que sonhava em ser ator de teatro, poeta, desenhista, pintor e galã de cinema. Se possível, na ordem inversa. Mas o espelho e a realidade me livraram de ser Rodrigo Santoro. (Embora digam que depois de maduro eu melhorei muito…). As ideias da esquerda já me chegavam, mas eu era um reacionário leitor de Seleções Reader’s Digest, uma revista infame de propaganda norte-americana. Pra minha sorte, os amigos que mais me influenciaram eram de esquerda. De um deles ouvi pela primeira vez o nome Darwin, e a sua teoria da evolução, que batia de frente contra a criação do homem por Deus, como eu acreditava e discutia furioso. Em resumo: eu tive a sorte de as melhores pessoas que eu conheci, quando eu mais precisava, terem sido de esquerda. Isso foi, é uma riqueza sem tamanho.

 

– Considerando fatores econômicos e político, sabendo que nessa época estávamos sendo governados por João Goulart, como estava a situação do país? – Penélope continua.

Respondo:

– O Brasil era subdesenvolvido, o que quer dizer: atrasado, tanto do ponto de vista econômico quanto social. Pra você ter ideia, os trabalhadores da zona da mata de Pernambuco, os cortadores de cana, recebiam menos, muito menos que o salário-mínimo. Foi no primeiro governo de Arraes, a partir de 1962, que os trabalhadores da cana tiveram a conquista do salário-mínimo. Isso foi tão bom, que Paulo Cavalcanti (historiador e jornalista, comunista histórico do Recife) contou que os trabalhadores compravam 2 relógios, “um pro horário de verão, outro pro horário de mesmo”. As ligas camponesas nasciam e ameaçavam o domínio dos latifundiários, os grandes donos de terras. O Nordeste, Pernambuco em particular, fervia muito além do frevo. Estávamos com o MCP, Movimento de Cultura Popular, que reunia artistas de valor, engajados na luta pelas reformas (como chamavam as reivindicações para dar ao povo o direito de cidadão), um movimento em que Abelardo da Hora, o maior escultor do Brasil, vivo e trabalhando ainda hoje, criou tantas esculturas, lindas, como o Vendedor de Pirulito, que pode ser visto no Parque 13 de maio.

Abelardo da Hora 

 

Era o tempo em que no Recife estavam Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, intelectuais que foram reconhecidos em todo o mundo, mas perseguidos pelo regime militar que se instalou. Vale dizer, a repressão que se abateu veio com força absoluta sobre os pernambucanos, a ponto de cometerem barbaridades públicas, como o espancamento de Gregório Bezerra nas ruas, com golpes de ferro na cabeça. Queriam inclusive enforcá-lo na praça de Casa Forte. Esse era o tempo e o clima. Um país que exigia reformas urgentes, que os Estados Unidos interpretaram como um caminho aberto para o comunismo, e por isso apoiaram o golpe que os militares deram.

 

– Após o regime, como foi a redemocratização do país e a escolha do presidente? – A menina do Recife pergunta.

Respondo:

– Você pulou cedo demais. Antes de “após o regime”, houve o pior, o “durante o regime”. Isto é, o tempo da ditadura. Você não pode nem imaginar o filme de terror, pior que um filme de terror, porque era real, insuportavelmente real, os anos de ditadura. Artes, música, cinema, literatura censuradas. Jornais sob censura prévia. Prisões, mortes e assassinatos sob torturas. Deixo pra você alguns artigos que escrevi sobre aquele tempo em Ivanovitch, 1964  e Raquel, a viúva que amamos, mais suave, mas igualmente verdadeiro.

Deputados defendem frente democrática, como a das Diretas Já, que reuniu, entre outros, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães (Foto: Célio Azevedo)

 

A redemocratização do país não veio como sonhávamos. Ou seja, queríamos a realização, a continuação da história interrompida, com o aprofundamento da democracia pela qual o povo lutara antes do golpe. Queríamos trabalho para todos, as artes e a ciência para todo o mundo, o socialismo no poder, a punição severa dos crimes praticados pelos torturadores. Nada disso se cumpriu. Para nós, a redemocratização começou a dar uns lampejos no governo Lula e na continuação com a presidenta (atenção, a forma “presidenta” é legítima) Dilma. Começou, apenas.

 

– Que heranças econômicas foram deixadas após o regime? Você as considera boas ou ruins? – Penélope continua.

Respondo:

– É claro que a herança vinda do regime é a pior possível. Tanto do ponto de vista social, porque houve um desmantelamento da qualidade do ensino público no Brasil (e a direita, esperta, põe na conta do pós-ditadura), quanto do econômico, porque aumentou a centralização do desenvolvimento no Sudeste. Isso quer dizer, o Nordeste afundou sob os anos de ditadura. A cultura brasileira foi rompida, rasgada, e muitos de seus melhores artistas enlouqueceram (Glauber, Torquato Neto, Vandré…).

Mais: e se houve algum avanço econômico, e depois de 21 anos algum deve ter havido, paga o preço de tantas pessoas cortadas, barbarizadas? Seria o mesmo que acreditar que a herança deixada por um homem morto é melhor que a sua vida.  

 

– Comparando o antes e depois do regime militar o que mudou na sua vida?

– Muito mudou. Fiquei menos feio e sou escritor. Mas as perdas pessoais foram imensas, e aqui faço uma homenagem a uma pessoa em particular, que vem a ser o seu tio-avô Luiz Paulo. Ele foi uma das melhores pessoas que conheci naquele maldito ano de 1973, quando foram assassinados seis militantes socialistas no Recife, e sobre os quais escrevi Os Corações Futuristas e Soledad no Recife. (Em 2023, acrescento: “A mais longa duração da juventude”)

Urariano Mota

 

Luiz Paulo era um intelectual, um escritor de grande senso de humor, que perdemos antes do seu fim, porque ele se autoexilou em São Paulo, por conta das burrices e divisões autofágicas na esquerda do Recife. Com ele fundamos o jornal A Xepa, o primeiro jornal alternativo no Recife sob a ditadura. E escrevo “com ele” pra não dizer: A Xepa foi Luiz Paulo e o resto. Para esse jornal, dele veio o maior estímulo e dedicação, porque acreditávamos, na época, que estávamos fundando um novo Pasquim no Recife. Sonhar era bom e Luiz Paulo esteve ao nosso lado nesse sonho.

E aqui terminei a entrevista.

Terminei, não, fiz uma pausa, fizemos uma pausa, eu e Penélope, eu e os alunos como ela. Essa continuação da história que passamos adiante, essa continuidade de gênese e recriação do mundo com que nos confraternizamos, esse despertar de educadores para a realidade política da ditadura é como descobrir um mundo melhor do que imaginávamos.

Calderón de La Barca dizia que a vida é sonho, ao que a realidade nos diz que o sonho é a vida, apesar de tantos pesadelos. O que afinal guarda uma coerência interna, pois o pesadelo é gêmeo univitelino do sonho. Esse pesadelo imenso e geral tem pausas e intervalos felizes, como o da curiosidade histórica dessa mocinha Penélope. Para mim, ela é A menina do Recife a quem mando um sorriso e um abraço.

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01
Set22

QUANTAS PESSOAS FORAM MORTAS E DESAPARECERAM DURANTE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA?

Talis Andrade

Dia Internacional de Desaparecidos

 

 

Por 21 anos, o regime foi responsável por práticas cruéis de tortura, assassinatos e desaparecimentos políticos

 

por Isabela Barreiros

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Até o final de 1968, ano do AI-5, a tortura ainda não tinha se tornado praxe nos cárceres brasileiros. "Ela já começava a ser praticada, mas não com a frequência do final dos anos 60 e começo dos 70", diz o historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense.

Entre 1964 e 1968, foram torturados e mortos 34 opositores do regime. Sabe-se até quem foi o primeiro torturado: o líder comunista pernambucano Gregório Bezerra, que no dia 2 de abril foi preso, arrastado pelas ruas de Recife, amarrado em um jipe e depois espancado por um oficial do Exército com uma barra de ferro.

Os militares governaram o Brasil por 21 anos, de 1964 a 1985. Durante esse período, muitas pessoas foram torturadas, assassinadas e também desapareceram. A Comissão Nacional da Verdade, fundada em 2011 pela ex-presidenta Dilma Rousseff, foi criada no objetivo de investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas na época.

Em 2014, um relatório final foi divulgado listando o nome de pessoas que foram mortas ou desaparecidas durante o regime. 191 assassinadas e 243 desaparecidas — ou seja, 434 pessoas no total. Segundo a organização internacional não governamental de direitos humanos, a Human Rights Watch, aproximadamente 20 mil pessoas foram torturadas no período brasileiro.

O documento consolidado pela Comissão da Verdade foi redigido por seis comissários que afirmaram que os crimes cometidos no período, como assassinatos, a prática da tortura, desaparecimentos políticos e ocultação de cadáveres foram "crimes contra a humanidade" e alegaram que os atos fizeram parte de uma “política sistemática” que durou todos os anos da ditadura. Os números, segundo o coordenador da Comissão, Pedro Dallari, ainda não são definitivos e podem aumentar.

Saiba mais sobre as torturas e assassinatos cometidos durante o período da ditadura militar no Brasil por meio dos livros a seguir:

A Casa da Vovó: Uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar, Marcelo Godoy (2015) - https://amzn.to/36RcrWL

Tortura e sintoma social, Maria Rita Kehl (2019) - https://amzn.to/2CpAFci

Dossiê Herzog: Prisão, tortura e morte no Brasil, Fernando Pacheco Jordão (2015) - https://amzn.to/2CwH5GB

Setenta, Henrique Schneider (2017) - https://amzn.to/36OM1EI

A ditadura envergonhada (Coleção Ditadura Livro 1), Elio Gaspari (2014) - https://amzn.to/2Q2xaAK

21
Jul22

Dulce Pandolfi: “Fui objeto de uma aula de tortura”

Talis Andrade

A ditadura militar e as Diretas Já - Jornal Plural

Mulheres perseguidas relembram as situações e os sentimentos ao longo da ditadura e comentam o momento negacionista vivido sob o governo Bolsonaro: "Nós temos uma dor que jamais será apagada"

 

“Este é um momento político muito oportuno para relembrar que existiu uma ditadura civil-militar no Brasil”, introduz a repórter Tatiana Merlino, sobrinha do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto e torturado pelos militares em 1971. A convite da Pública, Tatiana entrevistou ao vivo Victória Grabois, do Grupo Tortura Nunca Mais, e parente de desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, e Dulce Pandolfi, historiadora que foi torturada no DOI-Codi da Tijuca.

A conversa foi em meio aos recentes fatos que envolvem o governo Jair Bolsonaro, que, três meses após tomar posse, determinou que fossem comemorados os 55 anos da ditadura militar no Brasil.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade estipulou pelo menos 434 mortos e desaparecidos no período de exceção. Segundo o Human Rights Watch, mais de 20 mil pessoas foram torturadas pelos militares brasileiros.

As mulheres, embora em menor número, tiveram papel essencial nos movimentos pela liberdade e democracia e não passaram impunes pelo regime. A seguir, publicamos alguns trechos da conversa no Rio de Janeiro, no dia 27 de abril de 2019. Veja a íntegra aqui:

 

 

Tatiana Merlino — Para vocês, que viveram, combateram e passaram todos esses anos do período da redemocratização denunciando o que foi a ditadura, como é que viver esse momento político no Brasil?

Victória Grabois — Vivi durante 16 anos da ditadura civil-militar do Brasil na clandestinidade. A tortura física é algo imensurável. Já conversei isso com muitas mulheres, que viveram tanto a clandestinidade, como viveram e foram torturadas e sobreviveram e viveram na cadeia, e elas diziam que a pior coisa da vida é a clandestinidade porque você tem que ser outra pessoa.

Entrei na clandestinidade com 21 anos e sai aos 36. Casei durante a clandestinidade, tive um filho na clandestinidade, tive documentos falsos. E viver na clandestinidade é algo que não dá para dizer a vocês. Eu não cheguei a ser guerrilheira no Araguaia, porque dentro do partido comunista tinham uma mentalidade de que mulher não ia ficar na guerrilha, e voltei para São Paulo. Voltei para São Paulo, fiquei grávida e tive um filho. Sempre digo: meu filho salvou minha vida. Se eu não tivesse meu filho, hoje eu não estaria aqui conversando com vocês. Alguém sobrou da família? As mulheres e as crianças sobraram para contar essa história. Então eu vivi épocas muito difíceis, e agora, depois de velha, com filhos criados, com netos, estou vivendo algo que eu jamais imaginaria que voltasse, e para mim voltou de uma forma muito dura. E o que mais me chama atenção é o desmonte da educação neste país. Por enquanto esse governo não me atingiu fisicamente, mas acho que vou ser atingida. Sou do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, eles não chegaram no grupo, mas vão chegar. Tenho quase certeza de que eles vão em cima da gente.

Victória Grabois – Resistência, Substantivo Feminino

Victória Grabois

Tatiana Merlino — Você acha que estamos vivendo um negacionismo, um revisionismo histórico?

Dulce Pandolfi — Para mim, é muito emocionante falar sobre essas coisas. Para nós, que passamos as agruras do regime militar, é muito duro estar vivendo isso no Brasil. Costumo dizer que é como se fosse um governo de ocupação. Existe um projeto, e eles estão implantando um projeto, que é de destruição e que atinge diversas áreas: a questão ambiental, a questão indígena, as universidades, a educação, a nossa área de direitos humanos. Então é muito cruel. A gente está vivendo agora uma situação de barbárie.

No meu entender, não se trata mais de uma linha divisória. Não se trata mais de democracias, nem ditaduras. A história não é um processo linear. Os direitos são mutáveis, surgem novos direitos. Cada batalha da gente tem objetivos, e a gente tem ganhos, tem algumas perdas e depois novas batalhas, com novos ganhos e novas perdas. O que a gente está vivendo hoje, também, não é um revisionismo. O que a gente está vivendo é outra coisa, é o que a gente chama de negacionismo, uma coisa completamente absurda. É quando, por exemplo, esses homens dizem que o partido do Hitler era de esquerda e nega todas as fontes que dizem o contrário.

Lembrando, também, que, no Brasil, a gente tem uma elite muito complicada, e que todos os momentos onde a gente teve governos que tentaram fazer transformações, até pequenas, mas projetos mais vinculados aos pobres, propostas mais inclusivas, esses governos foram rechaçados por essa elite. Foi assim em 64, foi assim com Vargas e foi assim agora, nesses governos de Lula e Dilma.Dulce Pandolfi conversa sobre ditadura

Dulce Pandolfi

Tatiana Merlino — Dulce, voltando à questão do negacionismo, por que você acha que a gente chegou até aqui? A justiça de transição do Brasil foi muito tardia, ineficiente? Qual sua avaliação?

Dulce Pandolfi — Acho que tem uma relação, sim. A história é feita de rupturas e continuidades. Nenhum processo se rompe totalmente, sempre tem coisas que continuam e coisas que você rompe. Mas no Brasil, por exemplo, as continuidades, as permanências são mais fortes do que as rupturas. De um modo geral, tem sido assim a nossa história. E assim foi com a passagem, também, do regime ditatorial para o regime democrático. E a lei da anistia, que este ano está comemorando 50 anos em agosto, também complicou muitas coisas. Mas por quê?

Os que estavam fora do país voltaram e a volta foi muito comemorada. Imagine, pessoas que estavam fora do Brasil desde 64, que nem conheciam suas famílias. Conheço muita gente que não conhecia nenhum parente, porque tinha saído daqui em 64, deixando filho, mulher, e não conheceu mais ninguém. Mas a lei tem um problema muito sério: os torturadores não foram julgados no Brasil. O que quero é o reconhecimento público da tortura no Brasil. Quero é que um torturador seja reconhecido publicamente, e que a tortura seja condenada como tal, como um crime de lesa-humanidade, portanto inadmissível de ser feita contra mim, contra você e contra qualquer um de vocês, contra qualquer pessoa da sociedade brasileira.

Dulce Pandolfi: "Fui objeto de uma aula de tortura" - Agência Pública

A jornalista Tatiana Merlino entrevistou Dulce Pandolfi e Victória Grabois

 

Tatiana Merlino — Victória, por que você acha que o Brasil não conseguiu, ainda, punir os torturadores, apesar das muitas ações que foram movidas pelo MPF contra agentes da ditadura?

Victória Grabois — Acho que não teve vontade política de nenhum presidente que sucedeu o regime militar. Eu sinto muito de ter que falar isso. Por que Lula, no primeiro governo dele, que tinha 80% da aprovação do povo brasileiro, não teve a coragem política de abrir os arquivos da ditadura? Ele podia ter feito isso, mas não teve, em nome da governabilidade. Quer dizer, é uma questão seríssima. Nós somos uma sociedade atrasada, somos uma sociedade conservadora, e nós sentamos em cima da chamada redemocratização.

Tatiana Merlino — Dulce, você poderia contar um pouco da sua história, da sua militância e da sua tortura.

Tatiana Merlino

Tatiana Merlino

Dulce Pandolfi — Eu sou pernambucana e me engajo na luta ainda bastante jovem, quando o estado era governado por Miguel Arraes. Era um governo bastante avançado. Pernambuco foi um centro importantíssimo no período. É de lá que surgiu o Paulo Freire, Francisco Brennand, as ligas camponesas, o Julião, Gregório Bezerra, que também era líder dos trabalhadores rurais, Pelópidas Silveira… Enfim, toda uma liderança que fez do governo Arraes um governo muito particular. Então, no dia do golpe, eu tinha 13 para 14 anos, e aquilo foi uma marca muito forte na minha vida. Meu pai era um liberal de esquerda, professor da universidade, e lembro lá os amigos reunidos, queimando livro, escondendo livro, enfim, as pessoas em pânico.

Entro na universidade em 67, ou seja, sou dessa geração de 68, que é uma geração muito especial. Entrei para fazer ciências sociais, que o Bolsonaro odeia, e fui fazer sociologia. Esse curso considerado, hoje, menor. Fui uma jovem do movimento estudantil, do diretório estudantil, depois do diretório central dos estudantes e depois ingresso na ALN – Aliança Libertadora Nacional. Eu sou presa em 1970, aqui no Rio de Janeiro, e fui barbaramente torturada.

A repressão também tinha sua escala, né? A ALN era uma organização dirigida por Carlos Marighella, que era considerado o inimigo mortal da ditadura. Fui de fato supertorturada, um período muito duro, difícil.

Eu passei três meses no DOI-Codi, totalmente ilegal, uma prisão que não tinha rastros, vamos dizer assim, que podiam ter desaparecido comigo… Fui para o Dops, depois para Bangu, depois vou para Recife, porque também tinha processo lá…

Mas enfim, depois desse período, depois da legalidade, a gente frequentava as auditorias militares, onde os processos rolavam. E lá a gente era interrogada sobre os nossos processos e, no final, os militares, aquela coisa bem solene, perguntavam se você tinha alguma coisa a acrescentar. E várias pessoas, entre elas eu, mas vários outros companheiros, a gente fazia denúncia das torturas. Enfim, contava os detalhes da tortura, e aquilo era assinado por nós e pelos militares, pelos auditores. Aquilo tudo ficou selado, é um negócio realmente impressionante. Não é à toa que, quando começa a se discutir a anistia, os advogados vão lá, pegam aquela documentação, e isso redundou numa coisa preciosíssima, que são os arquivos do Brasil: Nunca Mais.

Então, meu caso é um caso, digamos assim, bastante badalado, porque eu também fui objeto de uma aula de tortura. Eu, depois como professora, quando penso nisso, é uma coisa, assim, que me dói da cabeça até o dedo do pé. Você saber que você está sendo uma cobaia onde as coisas eram explicadas para os alunos. Qual tortura mais eficiente, fazendo assim, fazendo assado. Eu já estava presa há um tempo, quase dois meses. Foi uma barra super pesada.

Acho que o caso da Victória também é um caso muito emblemático, muito duro, mas eu queria marcar uma pequena diferença, porque eu acho, Victória, que tudo isso, que os avanços que a gente conseguiu, foram em função de uma luta, de uma disputa. Não foi o presidente da república A, B, C ou D. A gente não teve condições. A sociedade brasileira não abraçou a nossa causa como a gente queria.

Então, por exemplo, acho que a Comissão da Verdade foi um grande ganho. Claro que se avançou pouco do ponto de vista dos mortos e desaparecidos, entendo sua dor. Porque nós temos uma dor que jamais será apagada. Até digo: a tortura, como o desaparecimento, é uma tatuagem, que eu levo comigo até a morte.

As pessoas não falavam de tortura e foi a partir da Comissão da Verdade que a gente conseguiu socializar essa discussão. Acho que o grupo dos familiares dos mortos e desaparecidos e o grupo Tortura Nunca Mais são heroicos, tiveram papel fundamental. Lutaram com unhas e dentes o tempo inteiro. É uma luta incansável. Mas eu acho que a gente tem que reconhecer também os avanços, e se a gente não avançou mais é porque a sociedade brasileira, exatamente por nossa história, pela escravidão, pelo tipo de colonização que a gente teve, pelo tipo de transição que a gente teve, pelo tipo de direitos humanos que tem no Brasil, não conseguiu avançar mais.

Victória Grabois — Primeira coisa: não sou vítima, sou sobrevivente. Eu nunca fui vítima. Eu até brinco com as minhas amigas que eu devo ser um ser à parte, porque o que vejo do sofrimento das pessoas…

No grupo Tortura Nunca Mais, nós tivemos uns 15 anos com um projeto clínico-psicológico em que nós atendemos os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os companheiros que foram torturados. Você ir no grupo Tortura Nunca Mais é um choque quando você entra. E consegui sobreviver a isso, de viver na clandestinidade, de criar meu filho, de reconstruir a minha vida, de ser militante. Eu sou uma sobrevivente da ditadura militar. Eu não quero que ninguém ache que eu sou uma vítima.

Queria dizer, também, que 68 foi marcante, porque a gente teve um movimento na França, um movimento que eclodiu no mundo e veio refletir no Brasil. E eu sou da geração de 64, eu sou mais velha que você. Eu era estudante da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje é o IFCS, e tinha um diretor que chamava Eremildo Viana. Quem lê o Elio Gaspari, vê lá: Eremildo, o idiota. É o próprio. E na época, nós fizemos um movimento para que o novo diretor da Faculdade Nacional de Filosofia fosse eleito, e nisso 15 alunos foram suspensos por tempo indeterminado. Eu sou uma dos 15 alunos e, quando veio o golpe em abril, eles expulsaram os 15 e mais quatro, então são 19. E um dos expulsos é o Elio Gaspari. Dulce, toda vez que mudava um governo, vinha um ministro da Justiça novo, nós íamos para Brasília conversar com os ministros e escutamos sempre: em nome da governabilidade, nada pode ser feito. O pior ministro que recebeu os familiares de mortos e desaparecidos políticos, em cinco minutos, foi o ministro Márcio Thomaz Bastos. Me desculpem falar isso, não é mágoa que eu tenho, não. Mas é um mínimo de respeito por aquelas senhoras que perderam seus filhos. Vocês não podem imaginar o que é a perda de um filho. A gente sabe perder pai e mãe, mas perder filho? E tem mães dos desaparecidos que perderam três filhos. A família Petit perdeu três na guerrilha. Então, é o mínimo que esses governos que se diziam democratas, que se diziam do nosso lado, teriam que nos receber com dignidade. Esses casos precisavam ser esclarecidos, e no Brasil não foi. O Lula só mandou projeto da Comissão da Verdade porque nós estávamos na Costa Rica, porque os ministros, os juízes da CIDH [Comissão Interamericana de Direitos Humanos] iam falar que era o país mais atrasado que tem no mundo. Quantos desaparecidos no Brasil? 136? Total 434? Não é verdade. E a matança dos indígenas? Cadê os indígenas na Comissão da Verdade? Sempre dissemos que a tortura no Brasil era uma política de Estado… A Comissão da Verdade é um ganho? É. Porque eles disseram: era uma política de Estado, dito pelo próprio Estado brasileiro. Mas isso é muito pouco. Você vai no Araguaia e vê índio louro de olho verde. Os militares brasileiros estupravam as índias durante a guerrilha. As coisas que eles faziam lá… A Comissão da Verdade não colocou isso. Mal e porcamente colocou lá a questão dos camponeses que foram torturados, que até iam receber uma indenização pecuniária que o Bolsonaro mandou cortar, entendeu? Esse papo não é de mágoa, não, é questão política. Vou dizer uma coisa: a esquerda só se une na cadeia. A união da esquerda é na cadeia porque você vê o Bolsonaro, tem o grupo dos militares, o grupo do Paulo Guedes, o grupo dos filhos, o grupo do Moro… Eles estão se engalfinhando, mas eles estão lutando, e nós não. [Este texto foi publicado há mais de 3 anos. As previsões de Dulce Pandolfi e Victória já ocorreram ou estão, infelizmemte, acontecendo. Que o povo mude a História do Brasil neste 2 de outubro próximo]

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21
Jul22

Como era a censura na ditadura militar

Talis Andrade

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Nestes tempos em que se discute o futuro da democracia no Brasil, nunca é demais lembrar como era o país na ditadura militar. Em entrevista a MONEY REPORT, o jornalista e escritor Sérgio Augusto lembra situações vividas nos anos de chumbo e explica como funcionava a censura no período.

O presidente do STF, Dias Toffoli, se referiu ao golpe militar de 1964 como um “movimento”. Como você avalia essa declaração?

Isso é um insulto pessoal. Negar que houve ditadura ou qualificá-la eufemisticamente de “movimento” é de pasmar. Não creio tratar-se de ignorância histórica, mas de má-fé e desonestidade intelectual.

Por quê?

O ministro nem era nascido quando houve o golpe. Ok. Eu também não era nascido quando Hitler invadiu a Polônia. Nem por isso digo por aí que as tropas de Hitler foram a Varsóvia a passeio.

Qual a sua lembrança da ditadura no Brasil?

Recordo das redações pelas quais passei. Dos amigos presos, sumidos, torturados e mortos. E também do cerceamento que a imprensa sofria. Cheguei a ser censurado ao mesmo tempo nos três veículos com os quais colaborava (Veja, Pasquim e Opinião).

Como funcionava a censura nos veículos de comunicação no período?

Os censores iam para a redação e ficavam olhando texto por texto, avaliando o que poderia ser publicado. Outra forma era quando os próprios militares ligavam para o jornal proibindo determinados assuntos. Coisas que nem mesmo a gente estava apurando.

Quem eram os censores?

A princípio eram burocratas, gente do governo que era deslocada de outras áreas. Mas, com o recrudescimento da ditadura, o cerceamento ficou pior. Brasília precisava aprovar todo o material. Algumas vezes mal tínhamos conteúdo para fechar uma edição.

Que tipo de assunto era proibido de ser publicado?

Tudo praticamente. A censura atingiu níveis paranoicos porque os militares imaginavam que tudo era conteúdo subversivo. Até uma coluna sobre xadrez chegou a ser proibida. Eles achavam que era alguma linguagem cifrada.

Você acredita que corremos o risco de ver a história se repetir?

O país caminha para um arremedo do que foi o regime militar. Mas não acredito que a censura, nos moldes do que era, possa atingir os veículos de comunicação. Temo mesmo é que os jornalistas virem alvos de agressão.

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A Censura na Ditadura Militar

 

No documento A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCOMUNICABILIDADE DO CONSELHO DE SENTENÇA NO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO (páginas 46-49)

A CENSURA COMO LIMITAÇÃO DOS SENTIDOS

A Censura na Ditadura Militar

O período democrático, instalado em 1946, teve vida efêmera (apenas 18 anos). E o país viveu uma certa turbulência política que foi desde o suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954, passando pela crise financeira do governo JK, pela eleição direta, em outubro de 1960, de Jânio Quadros e sua renúncia em 25 de agosto de 1961 e pelo conturbado governo de João Goulart, até chegar ao dia 31 de março de 1964, quando os militares assumiram o poder com a perspectiva de nele permanecer, e a isso chamaram de Revolução, mas foi um Golpe de Estado, uma subversão da ordem constitucional. Era o silêncio se aproximando, agora, com a ditadura militar.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução de: Ismênia Tunes Dantas.

"Em 1964, o Brasil passa por uma ruptura de seu processo político-institucional. Tendo início em 31 de março, com a articulação do general Olímpio Mourão Filho, a partir de Juiz de Fora (MG) e, configurando-se claramente, em 1.o de abril, com o avanço de outras tropas, ocorre um golpe civil-militar que derrubaria o presidente constitucional e legitimamente empossado, João Goulart."

(AQUINO, Maria Aparecida de. Estado autoritário brasileiro pós 64: conceituação, abordagem historiográfica, ambigüidades, especificidades. In: Fico, Carlos et al. 1964-2004 - Anos do golpe: Ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p.55).

A década de 1960, no Continente Latino-Americano, foi palco de outros golpes de Estado, além do que ocorreu no Brasil. A Argentina em 1966 e, depois, em 1976 vivencia outros golpes de Estado semelhantes. No Chile, em 11 de setembro 1973, há a derrubada e morte do Presidente socialista Salvador Allende com a ajuda dos EUA, que colocam no poder o brutal sanguinário General Augusto Pinochet. O Uruguai não fica de fora desse processo autoritário e vê os militares assumirem o poder em 1973.

No caso brasileiro democracia foi exercida por pouco tempo, e a linguagem sofre outro ataque com o novo regime instalado, pois a censura é imposta e os sentidos diversos do que o regime quer, são cassados.

O regime militar impõe uma forte censura à sociedade com o advento do AI 5, sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. A garantia constitucional do habeas corpus para os acusados contra a ordem econômica e social, economia popular e contra a segurança nacional foi suspensa, além de ter aposentado, forçosamente, três notáveis Ministros do STF, defensores da liberdade: Evandro Cavalcanti Lins e Silva; Hermes Lima e Victor Nunes Leal.

O rigor imposto pelo AI 5 protagonizou uma das maiores disputas no Superior Tribunal Militar, ocorrida entre dois generais: Geisel e Pery Bevilaqua.

Geisel, durante o julgamento de um habeas corpus de um livreiro, advertiu Pery de que não admitia ser interrompido durante sua fala. Pery o chamou de mal-educado.

Posteriormente, Pery Bevilaqua foi malvadamente posto para fora do STM com base no AI5, poucos meses antes de completar 70 anos, quando seria aposentado pelo calendário. A ditadura acreditou que se livrara dele, mas na verdade foi Pery quem se livrou dela. Anos depois, tornou-se um dos lideres da campanha pela anistia. Graças a ele, o Exército brasileiro pode dizer que um de seus generais teve a coragem de falar em anistia na época em que a palavra parecia ser um estigma.

Estima-se que 5 milhões de chilenos foram mortos durante a ditadura de Pinochet (Tiros em Columbine, Michael Moore). GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.105.

O regime militar faz com que surjam resistências à censura, pois a palavra foi cassada, mas não calaram os sentidos que são expressos com significados distintos dos que estão proibidos. Pode-se falar, mas não se pode significar aquilo que está proibido de se dizer, mas, mesmo assim, surgem resistências de diversas formas.

A censura estabelece um jogo de relações de força pelo qual ela configura, de forma localizada, o que, do dizível, não deve (não pode) ser dito quando o sujeito fala. Não se pode dizer o que foi proibido (o dizer devido), ou seja: não se pode dizer o que se pode dizer.

O regime militar procura impor um sentido só para toda a sociedade. Trata-se da retórica da opressão fazendo surgir a retórica da resistência em que se procura, de uma forma permitida, resistir ao que é proibido. Ou seja, na relação censura/resistência, o movimento que interessa é aquele que faz dizer o mesmo para significar outra coisa e dizer outra coisa para significar o mesmo. Usa-se a palavra com diversos significados.

O importante nessa relação era o significado, o sentido, não tanto as palavras porque estas foram cassadas, e o que se proibiu, inicialmente, foi a palavra com sentido diferente do que se autorizava.

Uma das formas de resistência em que se disse o que estava proibido dizer significando o que se queria significar, e não o que se estava dizendo, foi na música popular brasileira, com canções clássicas do tipo: MEU CARO AMIGO, de Francis Hime e Chico Buarque; AQUELE ABRAÇO, de Gilberto Gil; PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES, de Geraldo Vandré.

Estupros e répteis: 5 fatos sobre a tortura durante a ditadura militar  brasileira

Gregório Bezerra deputado federal preso, torturado e humilhado pela ditadura militar no Recife do general Hélio Ibiapina torturador  

 

A luta armada foi uma das formas de se resistir contra a censura e o regime propriamente dito. Carlos Lamarca, capitão do exército, carioca do morro de São Carlos, no Estácio, zona norte do Rio de Janeiro, foi um dos principais protagonistas dessa resistência, mediante a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), juntamente com Carlos Marighela, líder da Aliança de Libertação Nacional. O QG do II Exército; o Palácio Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, e a Academia de Polícia seriam alvos de suas ações.

Quando na música Chico Buarque diz que “vai passar”, o povo “sabe” que ele não fala de uma doença ou de uma dor de amor, mas de uma dor, um mal político: a ditadura e o sofrimento social.

No documento A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCOMUNICABILIDADE DOCONSELHO DE SENTENÇA NO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO (páginas 46-49)

 

 

 

30
Jan21

As imagens históricas do Recife

Talis Andrade

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por Urariano Mota

Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem.

Nesta semana, li que em São Paulo existe o projeto Fotografia Paulistana, que reúne registros históricos da cidade a partir de 1920. No momento, já dispõem de mais de 400 fotos.

Li, parei, e fiquei a me perguntar: quantas imagens históricas existiriam do Recife? E nessa pergunta, quantitativa, notei logo que seria o mesmo que penetrar numa nuvem pensando que nuvem é algodão e se pega. É impossível determinar um número de fotos históricas da “noiva da revolução”, como a chamava o poeta Carlos Pena Filho. Depois, mais sério que a quantidade, me perguntei: o que seriam mesmo as tais imagens históricas? O critério de antiguidade seria a qualidade histórica? 

Então, primeiro acordei para o fato de que a história não é um resumo do que ficou no passado. Histórico é tudo que tenha valor político, humano, artístico, literário, ainda que tenha acontecido hoje. Mas o que é que vai determinar a qualidade, a importância social para o Recife, da senhora que passa a caminhar na rua? Isso é histórico, isso tem valor para cravar num álbum da história do Recife? Então vocês já veem que desejando simplificar, meti-me de novo em uma nuvem. 

Então penso em sair da dificuldade elegendo o que vem antes, depois o recente, mas que nos remeta a uma meditação sobre as nossas vidas no Recife. E que a foto mais nova, agora tão frágil e fugaz, ganhará o seu valor se não lhe escrevemos uma legenda, uma breve moldura da sua importância social? E nesse caso, a pesquisa histórica é uma pesquisa de sensibilidade, daquilo que está além do filme mais sensível, ou da última foto saída de um celular. É uma pesquisa que vai aos lugares e pessoas mais comuns, tidas como desimportantes. Sabem aquela prática de colecionar fichinha, tampa de garrafa, ou juntar flâmulas, guia de exposição, convites de casamento, para um dia quem sabe talvez por hipótese ter alguma utilidade? É parecido, ainda que esse termine por ser um caminho meio às cegas, à beira da mania. 

Então eu penso que as fotos históricas do Recife vêm de tudo que toque o nosso coração. Do antes, depois, agora e adiante. Quero dizer, para ser mais claro, além da foto do zepelin sobre a cidade em 1930

foto

era bom agregar os versos à beira do cômico de Ascenso Ferreira: 

“– Parece uma baleia se movendo no mar!
– Parece um navio avoando nos ares!
– Credo, isso é invento do cão!
– Ó coisa bonita danada!
– Viva seu Zé Pelin!
– Vivôôô!
Deutschland über alles!
Chopp!
Chopp!
Chopp!
– Atracou!”  

Ou da Ponte Duarte Coelho em 1950

foto1

E mais Gregório Bezerra ferido, preso e altivo no quartel do exército em 1964 

foto 3

Ou a volta de Miguel Arraes no grande comício com a anistia em 1979 

foto 4

Afeto e memória do frevo histórico

foto 5

Até chegar mais perto da cidadania com o cinema Império em Água Fria, nos anos 50, 1958 

foto 6

Mas quero e devo dizer, sem interrupção: as fotos, por mais sentimentais, amadas e queridas, não revelam o raio X da alma. Elas são momentos objetivos, físicos de um instante, ainda que nelas a pessoa faça uma pose. Quero dizer, elas não trazem gravadas, impressas o coração do fotografado ou de quem vê a fotografia. Nas fotos chamadas por convenção de históricas, pela distância do tempo o seu valor é político ou documental. Mas nós, como ficamos? Onde estamos perdidos nesse mar de datas e rostos antigos? Em que lugar da foto está o momento de carinho ou tremor da nossa voz? 

Então o que é objetivo vira subjetivo, como na foto do cinema Império em Água Fria. Nela vejo a imagem de costas da minha mãe, falecida naquele ano de 1958. E para cada um de nós a foto objetiva recebe uma certa subjetividade, uma tradução da sua imagem. No zepelim no alto, podemos ser um dos meninos parados, em pleno encanto do objeto pesado cruzando o céu. E nos perguntamos, “por que não lembro desse dia do zepelim?” , e para nosso espanto somos informados de que a sua aparição no Recife foi antes do nosso nascimento. Já na fotografia da Ponte Duarte Coelho retomamos o Recife da infância, quando em pé no banco do ônibus víamos o rio Capibaribe. Hoje aberto, ao sol da manhã, ele é um rio que nos dá bom dia. Da ponte Duarte Coelho à Princesa Isabel, e desta a se estender até a ponte do Limoeiro, há uma vista de esperança. 

Já na imagem do frevo da mulher, é tudo revelação da primeira vez do desejo na multidão. É mais que uma foto, é um flagrante da carne sob o frevo. Então vem a foto de Gregório Bezerra, os anos de terror da ditadura, um Recife rebelde no momento do golpe militar. Ele, na imagem, é o comunista que gostaríamos de ser, se a felicidade e a sorte fossem nossas companheiras. E na volta de Arraes, no comício do bairro de Santo Amaro, eu estou na multidão, como um dos rostos contentes que no anonimato é protagonista. Todos ali somos protonotários, diria Manuel Bandeira. Mas assim é para todos? Não e sim. Não, porque as histórias pessoais e sentimentos não são idênticos - podemos até dizer, ninguém atravessa o mesmo rio Capibaribe. Sim, porque todos refletimos o que vemos, como indivíduos que somos da humanidade. Cada um na sua tradução faz o subjetivo da objetividade.

Então eu penso que as fotos históricas ideais deveriam ser um grande álbum onde as legendas fossem os comentários dos moradores da cidade. Elas se tornariam então fotos traduzidas em palavras para o sentimento. E não só, as falas das pessoas seriam informação histórica que daria movimento e corpo à imagem. As fotos históricas seriam mais que um cinema falado. Uma democracia plena do coração de toda a gente. Nesse grande álbum caberia a foto de um princesinha do carnaval 

com este comentário de um recifense:

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“Uma negra princesinha ficou na memória porque não era uma imagem. É uma pessoa. Uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha na memória era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer”. 

Entre as fotos históricas, enfim, caberia com louvor esta de José Marques de Santana, em 27 de janeiro de 2021. Aos 86 anos de idade, ele assim  expressou a emoção por receber a vacina: 

foto 8

Das mais antigas à mais recente, imagens para as fotos históricas do Recife. 

 

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