A luta pela liberdade de imprensa nunca termina. E nossa trincheira agora é na justiça da Bahia.
O juiz George Alves de Assis impôs nova censura aoIntercept, em mais uma decisão que viola a Constituição vigente no país.
Neste texto, que você agora não pode ler, nós informamos a censura anterior imposta pelo mesmo juiz nos autos do processo 8120612-07.2023.8.05.0001, que corre na 7ª Vara Cível e Comercial de Salvador. É uma censura em dobro!
De acordo com a nova decisão de George Alves de Assis, não podemos falar nada a respeito do caso. Nem mesmo podemos nos referir ao autor da ação judicial.
Consideramos essa decisão absurda e ilegal. Nossos advogados estão recorrendo neste momento para que nosso direito de informar seja respeitado. E estamos lutando também pelo seu direito à informação. Essa é uma luta que envolve todos nós.
O Intercept foi criado para fiscalizar poderosos e responsabilizá-los por seus atos, e não cederemos em nossos princípios e em nossa missão.
Como somos uma redação sem fins lucrativos, financiada pelos leitores, nós precisamos que a nossa comunidade se una e nos ajude a derrotar mais esta tentativa de intimidação.
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Veja nas tags os nomes dos interessados em silenciar Mãe Bernadete Pacífico, líder religiosa e líder do quilombo dos Palmares, na Ilha de Boipeba, na Bahia de Todos os Santos e de Todos os Pecados. Em matar Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete Pacífico. Veja a manjada incompetência policial, e o mando dos capitães-do-mato, e barões do litoral, empresários costeiros das ilhas do Brasil
No dia 5 de junho deste ano, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal,manteve a ordem de uso de câmeras corporaispor policiais do Rio de Janeiro. Na ocasião, o magistrado lembrou que o prazo de 180 dias concedido pelo Plenário do STF ao governo fluminense, em fevereiro do ano passado, já havia se esgotado e questionou quanto tempo mais seria necessário para que fosse cumprida a determinação do Supremo, garantindo-se, assim, que todas as unidades de operações especiais estivessem usando as câmeras.
A ordem do ministro se deu na apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 — conhecida como ADPF das favelas —, que tramita no STF desde 2019. A ação foi ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e questiona decretos estaduais relacionados à segurança pública frente às recorrentes violações de direitos humanos pelas forças policiais nas favelas do Rio.
Uma das decisões provocadas pela ADPF ocorreu em 2020. Na ocasião, o Supremo impôs novas restrições à atuação dos agentes de segurança pública fluminenses, como veto ao uso de helicópteros blindados como plataforma de tiros e às operações em perímetros escolares e hospitalares.
Essa decisãotambém foi desrespeitada pelo governo do Rio. Em maio de 2021, uma operação policial deixou 28 mortos na Favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.
Na esteira das decisões que visavam a combater a letalidade policial no estado, Fachin determinou o uso de câmeras corporais (asbodycams) pelas forças de segurança fluminenses. Países como Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Chile e China utilizam o equipamento. No Brasil, o estado de São Paulo adotou a ferramenta e o resultado foi uma redução de 85% nas mortes em confrontos com policiais nas 18 unidades em que a novidade foi implantada, na comparação com o mesmo período de 2020.
Resistência Por meio de ofícios, representantes das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro se opuseram de forma clara ao uso de câmeras corporais. E, de 2019 para cá, a administração estadual do Rio têm adotado um comportamento, no mínimo, errático frente ao que foi determinado pelo ministro.
Em abril deste ano, o governador Cláudio Castro afirmou que não pretende obrigar forças especiais de segurança a utilizar o equipamento. Ele alegou que o uso do equipamento pode colocar em risco a segurança dos policiais.
"Sou contra nas questões específicas, de estratégia policial. Você mostra por onde anda, por onde entra. Enquanto eu não garantir essa segurança, e hoje não há como garantir, continuo sendo contra."
Operação no Jacarezinho, em 2021, já havia desrespeitado decisões do ministro Fachin Reprodução/TV Globo
Desde dezembro do ano passado — quando Fachin determinou pela primeira vez o uso das câmeras pelas forças policiais fluminenses —, houve muitos recursos do governo do estado contra a decisão e poucos atos administrativos para cumpri-la. Assim, a revista eletrônicaConsultor Jurídicoprocurou juristas e advogados para entender as possíveis consequências jurídicas da "rebeldia" do Rio.
O juristaLenio Streckexplica que, ao se negar a cumprir ordem do STF, o gestor público pode responder pelo crime de desobediência, descrito no artigo 330 do Código Penal.
"Em caso de reiteração de condutas, pode-se aplicar as regras de concurso de crimes, notadamente o concurso material (artigo 69, CP), quando há uma somatória das penas aplicadas; ou crime continuado (artigo 71, CP), que ocorre quando se aplica a pena e dela se aumenta até 2/3. Há de se pensar ainda acerca da possibilidade de responsabilizar o gestor público por omissão imprópria."
O advogadoGeraldo Barchi, do escritório MFBD Advogados, diz que, no caso em questão, o governador pode responder por improbidade administrativa, conforme indica a atual redação do artigo 11 da Lei 8.429/1992, que foi inserida no ordenamento jurídico por meio da Lei 14.230/2021.
Na mesma toada,Mozar Carvalho, sócio fundador do escritório Machado de Carvalho Advocacia, afirma que, além de responder por ato de improbidade, o governador pode cometer crime de responsabilidade ao descumprir determinação judicial.
"Em algumas situações, é possível que a recusa em cumprir uma ordem judicial seja caracterizada como crime de responsabilidade, previsto na Constituição Federal. Nesse caso, o governador poderia ser alvo de um processo de impeachment e até mesmo sofrer as consequências políticas e jurídicas decorrentes."
O advogadoCaio Almeida, do escritório Lopes & Almeida Sociedade de Advogados, também entende que a conduta do governador pode configurar crime de responsabilidade e que o caso deve ser apurado segundo o regramento legal estadual que estabelece o procedimento do impeachment.
Imagens apagadas No último dia 26 de agosto, o jornalista Guilherme Amado, do portalMetrópoles, informou que um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro apontou que a PM fluminense apagou e manipulou imagens das câmeras corporais.
Segundo a Defensoria, entre abril e julho deste ano, o órgão fez 90 pedidos de acesso a imagens de câmeras corporais e de viaturas. Desses, apenas oito foram atendidos. Mesmo assim, desses oito, três deram acesso a links sem imagens e quatro eram gravações manipuladas.
A revelação adicionou uma nova camada ao imbróglio, já que, além de não cumprir o determinado pelo STF em sua totalidade, as forças de segurança do Rio de Janeiro podem estar trabalhando contra a transparência nas ações policiais, objetivo da adoção das câmeras corporais.
ParaFernando Gardinalli, sócio do Kehdi Vieira Advogados, a prática — se comprovada — poderia ser enquadrada no crime de fraude processual, previsto no artigo 347 do Código Penal ("Inovar artificiosamente (...) o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito").
"Já se a manipulação da gravação tiver sido realizada com o objetivo de dificultar a investigação sobre um fato (isto é, não tiver havido alteração da cena do crime; a câmera, por exemplo, ficou dentro da viatura policial, sem filmar uma abordagem violenta ou mesmo ilegal), a hipótese seria de prevaricação, prevista no artigo 319 do Código Penal: 'Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal'", sustenta o advogado.
Lenio Streck entende que o caso pode ser enquadrado no crime de "supressão de documento" (artigo 305, CP), que, se público, pode chegar a uma pena de até seis anos de reclusão. "Porém, penso que somente poderia se falar na existência de tal delito em caso de destruição ou ocultação das imagens das câmeras. Isso por questão de taxatividade do tipo penal. Também entendo que, se a intenção do agente é apagar imagens de uma execução ou algo do gênero, também poderá se falar no crime de fraude processual (artigo 347, CP, com o aumento de pena previsto em seu parágrafo único)", explica ele.
No último dia 15 de agosto, o jornalO Globoinformou que, enquanto as ordens para redução da letalidade policial são discutidas no bojo da ADPF 635, ao menos dez crianças morreram no Rio de Janeiro vítimas da violência armada — três em operações policiais.
Em janeiro, já havia sido divulgado estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) que informou que as forças de segurança do Rio mataram 1.327 pessoas no ano passado. O número representa 29,7% de todas as mortes violentas no estado. Ainda assim, as imagens das ações da polícia fluminense continuam escassas.
Em qualquer curso de Jornalismo, especialmente nos primeiros semestres da graduação, não é difícil ouvir dos alunos que a escolha pela profissão já chamada por Gabriel García Márquez de“a melhor do mundo”tenha sido motivada por uma vontade genuína de transformar a realidade. Num primeiro momento, isso pode parecer inocência de calouro, mas esse desejo costuma estar no cerne da atuação de alguns jornalistas mesmo tempos depois da formatura — o que, por sua vez, pode gerar um paradoxo entre a paixão pelo ofício e a precariedade profunda com que muitos se deparam na carreira, como já apontouMark Deuze. Fato é que essa motivação não se restringe a repórteres e editores, as figuras clássicas do imaginário sobre jornalistas. Quem vai para “o outro lado da bancada” e assume funções nas assessorias de imprensa ou comunicação, não necessariamente abandona os valores e o compromisso social da profissão.
E este é um raciocínio especialmente válido para a realidade no Brasil, marcado por uma migração expressiva de jornalistas para funções fora da mídia. Diante das demissões crescentes, das condições desanimadoras de trabalho e dos baixos salários ofertados nas empresas de notícia, mais de 1/3 dos jornalistas brasileiros (34,9%) trabalham em atividades correlatas ao jornalismo e o maior percentual desses trabalhadores está nas assessorias de imprensa (43,4%). Os dados estão no relatório doPerfil do Jornalista Brasileiro 2021, que mostra ainda uma preferência desses profissionais por empresas ou órgãos públicos (17,1%), seguidos de agências de comunicação (15,1%) e organizações do terceiro setor ou da sociedade civil (10%).
Em países como os Estados Unidos essa separação, ao contrário, é bem demarcada: uma vez fora das redações, a identidade de jornalista se perde. Por aqui, os assessores mantêm os registros profissionais e continuam sendo reconhecidos (e se afirmando) como jornalistas. O mais importante, porém, é que muitos aliam o trabalho da assessoria ao compromisso com o interesse público. Conseguem direcionar para a defesa de pautas sociais urgentes, como a violência contra populações periféricas, o conhecimento acumulado sobre as diversas áreas da comunicação; o acesso privilegiado a fontes e informações; e a relação construída com repórteres, editores e produtores de veículos de imprensa. Mais do que oferecer uma pauta, esses profissionais contribuem para qualificar o próprio jornalismo.
Em Fortaleza, a campanha #11doCurió – Memória e justiça pelas vítimas da chacina, criada por profissionais das assessorias de comunicação de quatro instituições públicas e de uma entidade da sociedade civil, foi pensada com o objetivo de amplificar a voz de mães, familiares e sobreviventes da Chacina do Curió. Maior chacina registrada no Ceará até então, o ataque matou 11 jovens do bairro localizado na região conhecida como Grande Messejana, na capital cearense, na noite de 11 de novembro e madrugada de 12 de novembro de 2015. De acordo com o Ministério Público do Ceará, os assassinatos foram cometidos em vingança motivada pela morte de um policial também assassinado horas antes num bairro próximo. Entre os mortos na chacina, quatro eram adolescentes menores de idade, três tinham entre 18 e 19 anos e, entre os demais, apenas um tinha passagem pela polícia, por acidente de trânsito.
A campanha
Passados oito anos desde a chacina, a primeira sessão do julgamento dos 44 réus (todos policiais militares) estava marcada para 21 de junho de 2023. Em meados de abril, as equipes de comunicação da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Ceará, do Comitê de Prevenção e Combate a Violência da Assembleia Legislativa e do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca/Ceará) se reuniram. “Era preciso unificar a comunicação e criar uma unidade visual que retratasse os crimes”, conforme texto disponível no site da Defensoria, a fim de mobilizar a sociedade para buscar a responsabilização dos crimes.
Além de umsiteque reconta os fatos daquela noite trágica e resgata as histórias de cada um dos 11, a campanha incluiu umperfil no Instagrame uma identidade visual que se estenderia em banners, adesivos, camisas e faixas usados por aqueles que se uniam às mães para pedir justiça para as vítimas do Curió. O bairro, curiosamente, leva o nome de um pássaro. “É um canto bonito este que se une em solidariedade e em rede por justiça. Embora cheias de dores e de ausências, essas Mães conseguiram selar na história – graças a sua mobilização – o nome dos 11 do Curió, em favor da justiça. Assim como elas se reuniram, as instituições também se unem para um somatório de forças”, continuam em nota os assessores que assinam as peças.
Além das inserções na mídia
Em 12 de maio, o perfil na rede social foi lançado e, de forma inteiramente orgânica, chegou a alcançar quase 60 mil contas em 30 dias. Entre os conteúdos, a história das vítimas, mobilização de parceiros, a cobrança por justiça, orientações para quem pretendia acompanhar presencialmente o julgamento e um balanço diário do júri. A iniciativa passou a concentrar as informações sobre o caso, unificando a comunicação e fortalecendo a mobilização social, sempre na perspectiva das mães das vítimas e não de uma ou outra instituição.
A imprensa, especialmente a local, que acompanhava o caso com grande atenção desde 2015, ganhou um novo fôlego para a cobertura. Mais do que revigorar a pauta, que com o início dos julgamentos seria naturalmente retomada, a campanha deu mais visibilidade ao caso — contabilizando mais de 60 reportagens em menos de 15 dias, incluindo reportagens noFantásticoe no Jornal Nacional — e ampliou o debate para além dos 11 do Curió, localizando a tragédia dentro de um contexto nacional vivido nas periferias do País. De acordo com oAnuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, entre as 47.508 mortes violentas ocorridas em 2022, 91,4% das vítimas eram do sexo masculino, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos. Somente no ano passado, 6.429 pessoas foram mortas em intervenções policiais, uma média de 17 por dia.
No último sábado (16), saiu a sentença do terceiro julgamento da Chacina do Curió. Até agora, seis policiais foram condenados à prisão e 14 foram absolvidos. No primeiro Tribunal do Júri, as penas de quatro réus somaram 1.103 anos e 8 meses de reclusão, com regime inicial de cumprimento fechado, e neste último julgamento as penas chegaram a 223 anos. Ainda restam cerca de 30 réus a serem julgados e não há novas datas para os julgamentos.
A campanha #11doCurió deve seguir acompanhando a luta de familiares, mães e sobreviventes da chacina, colocando na prática aquela ideia aparentemente ingênua de quem ainda acredita que é possível transformar a realidade, partindo dos instrumentos do ofício para dar protagonismo a quem e ao que de fato precisa ser colocado em evidência.
PMs ameaçaram matar crianças e obrigaram que elas se jogassem em esgoto em Guarujá, diz Defensoria Pública
247 -Policiais militares ameaçaram matar crianças durante as ações da Operação Escudo na Baixada Santista (Chacina noGuarujá), em São Paulo, apontam denúncias constantes em relatos colhidos pela Defensoria Pública de São Paulo, informa a jornalistaMônica Bergamo na Folha de S.Paulo.
Os depoimentos foram feitos por pessoas que testemunharam abusos praticados pelos policiais.
Um dos relatos aponta que policiais abordaram crianças para questioná-las sobre a localização de supostos traficantes da região no momento em que elas brincavam em um campinho de futebol.
"Como se recusaram a informar o solicitado, [os policiais] mandaram que se jogassem no canal caso não quisessem morrer. O canal recebe água de esgoto e mangue. Nenhuma criança se afogou porque logo em seguida foram socorridas por suas genitoras", aponta um relatório do depoimento, obtido pela jornalista.
Outro relato aponta que a população da Baixada Santista vive aterrorizada com as atrocidades da PM. Nas palavras de uma testemunha, é só a polícia subir no morro que "morre pessoas".
Ao longo da ação, que foi encerrada na quarta (6), ao menos 28 pessoas foram mortas, o que a tornou a mais letal da polícia paulista desde o Massacre do Carandiru, chacina em que 102 presos foram assassinados por PMs em 1992, informa a Folha de S.Paulo.
NASSIF COMENTA A CHACINA NO GUARUJA: "QUANDO O GOVERNADOR LIDERA A VIOLÊNCIA, NINGUÉM SEGURA"
Os Cid: pai e filho protagonizam novela que envolve a alta cúpula do Exército e compromete a credibilidade das Forças Armadas sobre participação em ilicitudes políticas como poucas vezes na história (Crédito:Fátima Meira/Futura Press/Folhapress; Fernando Souza/AFP) Tal pai, tal filhote que chama Bolsonaro de tio
Marechal de contracheque embolsa salário de contrabandista de joia, de latifundiário grileiro de terras, de empresário minerador de ouro e pedras preciosas na Amazônia, de militar chefe de embaixada nos Estados Unidos e Europa, e de leiloeiro de empresas estatais do Brasil sem lei. Publica Istoé:
É até surpreendente a facilidade com que o capitãoJair Bolsonaroconseguiu cooptar setores militares para seu movimento golpista. Ele precisou demitir a cúpula das Forças Armadas em março de 2021 na maior crise na caserna desde a redemocratização, mas em seguida conseguiu um comando mais dócil noMinistério da Defesa, que inclusive o ajudou a questionar a integridade das urnas eletrônicas. O festival de acampamentos golpistas em frente aos quartéis até janeiro mostrou que a adesão não era limitada e nem silenciosa.
Os ataques de 8 de janeiro colocaram em xeque a adesão dos fardados ao golpe. Oito meses depois, porém, a despolitização da caserna ainda é um sonho distante e asrevelações da PF comprometem cada vez mais militares na miríade de ilicitudes do ex-presidente.
O mais recente constrangimentocaiu como uma bomba no Alto-Comando do Exército:a revelação de que o general reformado Mauro Lourena Cid participou da venda nos EUA de joias recebidas por Bolsonaro.
Antigo colega de Bolsonaro naAcademia Militar das Agulhas Negras, Lourena Cid foi escolhido pelo então presidente para chefiar o escritório daApexem Miami. Seu filho, o tenente-coronel Mauro Cid, é o notório ex-ajudante de ordens do capitão.
Essa família castrense mergulhou a instituição numa crise que parece não ter fim.
Lourena Cid não era um general qualquer. Quatro estrelas, integrou o Alto-Comando do Exército. Nos últimos meses, vinha exercendo sua influência em uma peregrinação junto a integrantes da cúpula do Exército para interceder pelo filho preso.
O fato de ele próprio ter sido enredado no escândalo (com foto e tudo dele segurando um kit de joias para ser negociado) escandalizou os colegas e trouxe inquietação.
Um militar ligado ao Alto-Comando diz que o sentimento é detraição.
“Ele era recebido e ouvido sempre que nos procurava. Mas o fato de ter omitido que tinha emprestado a conta bancária lhe fechou as portas. O sentimento é de quebra de confiança. Pior: já não sabemos mais o que esperar. Pode ser que ele esteja ainda mais envolvido do que sabemos até o momento”, afirmou.
E acrescentou: “Estamos com opé atrás. Seguimos respeitando o posto do general Lourena Cid. Isso não dá para deixar de ter.Mas ele está sozinho”.
Esse oficial defende o “expurgo” para quem fere a “honra militar” e diz queé dado como certo que Mauro Cid deve perder a patente após a condenação na Justiça. “A probabilidade é gigantesca”, afirma.
Mesmo encarcerado, o tenente-coronel mantém corrida e exercícios diários, sempre sob vigilância de policial do Exército (Crédito:Cristiano Mariz)
Encarcerados civis amontoados sem banho de sol e sem banho de lua e sem banho de chuva e chuveiro
Mauro Cidestá preso no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília desde o dia 3 de maio, onde segue uma rotina de exercícios físicos diários e leituras, inclusive dosseis inquéritos em que é investigado.
A primeira dor de cabeça do tenente-coronel veio com sua participação na divulgação ilegal de uma investigação sigilosa da PF sobre um ataque hacker ao TSE.Bolsonarousou os documentos em uma live para tentar desacreditar as urnas.
O inquérito vazado havia sido divulgado em um site bolsonarista por outro membro do clã, o irmão de Mauro,Daniel Cid. Daniel atua na área de segurança digital na Califórnia, onde comprou uma mansão avaliada em mais de R$ 8,5 milhões.
A família tem uma empresa registrada no país, aCid Family Trust. ACPMI dos Atos Golpistas já aprovou requerimentos para investigar quais empresas o pai e os dois filhos têm no exterior.
Mas essa pista ainda está travada. O presidente da comissão,Arthur Maia, não permitiu a votação do requerimento que estenderia essa apuração àmulher de Mauro Cid,Gabriela Santiago Ribeiro Cid, além de outros membros da família.
Sobre as volumosas movimentações bancárias de Mauro Cid depois de sua prisão, elas teriam sido realizadas por Gabriela, pois trata-se decontas conjuntas.
Walter Delgatti teve o sigilo quebrado a pedido da CPI dos Atos Golpistas, que em ato contínuo reconvocou Mauro Cid (Crédito:Mateus Bonomi )
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O dia a dia de Mauro Cid no Batalhão não é exatamente espartano. Tem um quarto com TV e frigobar. Chegou a receber 73 visitas até junho, boa parte de apoiadores do ex-presidente, como os generaisEduardo PazuelloeHamilton Mourão.
Mas os negócios com joias e Rolex complicaram tudo. Ele agora só pode receber parentes.O pai, general Mauro Lourena Cid, perdeu o direito de visitar o filho.
Esse último desdobramento também fez Mauro Cid trocar o defensor. Seu novo advogado,Cezar Bitencourt, chegou a sugerir que o cliente iria fazer uma confissão e apontar Bolsonaro como mandante do esquema de venda de joias. Depois, se desdisse e passou a dar versões contraditórias.
Agora, planeja uma audiência com o ministroAlexandre de Moraes, relator dos inquéritos no STF, para tentar melhorar a situação do cliente.
À ISTOÉ, ele disse que só tinha tido duas conversas com o cliente até a última segunda-feira, em que sequer o tema da confissão foi tratado.
Também afirmou que fará a defesa do pai de Mauro Cid, caso seja aberto alguma ação contra ele.
Militares apontam que o general Lourena Cid pode até mesmo ter sua aposentadoria cassada pelo Superior Tribunal Militar (STM). E a mesma corte pode cassar o posto e a patente de Mauro Cid.
Mas, para os militares, essapenalização na esfera militardepende primeiro da condenação naJustiça criminal.
O generalCarlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, diz que nunca trabalhou diretamente com Lourena Cid, mas elogia o companheiro de farda. “Sempre foi um militar com boa performance profissional. Em processos de merecimento e escolha percorreu todos os postos da carreira.”
Já o filho, para ele, “é um rapaz de conduta profissional de destaque. Como Ajudante de Ordens, sempre se mostrou um rapaz educado, atencioso.”
Sobre o argumento de que Mauro Cid teria apenas cumprido ordens, Santos Cruz, um dos fardados que romperam com Bolsonaro, é bastante crítico.“Acho os fatos lamentáveis. Se o presidente sabia ou não das iniciativas dos seus subordinados diretos, é necessário uma conclusão das investigações. Mesmo que se considere difícil ou improvável um subordinado tomar certas iniciativas sem o conhecimento do seu chefe, isso precisa ser esclarecido e comprovado”, afirma.
Como os colegas, ele tentaseparar a instituição dos elementos que mancharam a Força. “É importante separar as coisas. Os fatos são de responsabilidade individual e não de responsabilidade institucional.”
Outro oficial que atua com o Alto-Comando cerra fileiras com o mesmo argumento:“Ordem ilegal ou absurda não se cumpre”.
Para esse militar, “a forma como Mauro Cid agiu na Ajudância de Ordens não é adequada,aquela subserviência toda não é papel de militar, não nos serve.” (continua)
O tempo presente vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos
por Alexandre Aragão de Albuquerque
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Braço forte, mão leve, cara lisa. Em 11 de julho o tenente-coronel do Exército brasileiro, Mauro Cesar Barbosa Cid (Mauro Cid), ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro e filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, preso desde maio por ser objeto de oito investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou-se fardado para prestar depoimento na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que apura o atentado golpista de Estado perpetrado no dia 08 de janeiro contra a democracia brasileira.
Esse evento, denominado pelos arruaceiros criminosos de “Festa da Selma”, ocupando e depredando os prédios dos Três Poderes, uma turba coordenada e alimentada ao redor dos quartéis em diversas partes do Brasil, desde o final do pleito de outubro de 2022, demonstrava publicamente o grau de comprometimento daquela força militar com a quadra tenebrosa vigente com a chegada do bolsofascismo ao poder executivo central. Fardado naquela sessão da CPMI, o tenente-coronel Mauro Cid apresentava-se não como uma pessoa individual, mas como uma pessoa coletiva, um representante da instituição.
Para ajudar na compreensão da enorme assimilação de Jair Bolsonaro no Exército, é preciso olhar para a Academia Militar Agulhas Negras (Aman), principalmente para a turma de 1977. Se sua reabilitação naquela força terrestre já havia ocorrido exemplarmente na formatura dos cadetes em 2014, ou seja, bem antes das eleições de 2018, esse processo foi coroado com a chegada, ao topo do poder militar, de seus contemporâneos da Aman. Quando assumiu a presidência do Brasil, quatro dos seus colegas de turma exerciam o posto máximo da carreira: os generais Mauro Cesar Lourena Cid (pai do tenente-coronel Mauro Cid), Carlos Alberto Neiva Barcellos, Paulo Humberto Cesar de Oliveira e Edson Leal Pujol haviam sido promovidos a generais de exército (quatro estrelas).
Edson Leal Pujol, como se sabe, foi nomeado comandante do Exército. Lourena Cid foi nomeado Chefe do Escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), em Miami – EUA. Paulo Humberto virou presidente da Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios. E Neiva Barcellos assumiu, em Genebra – Suíça, o posto de conselheiro militar junto à representação do Brasil na Conferência do Desarmamento na ONU.
Mas, além disso, as boas relações dos integrantes da turma da Aman 1977 com o Executivo Federal (Jair Bolsonaro) se estenderam para além do seleto grupo de generais quatro estrelas. Para ficar num único exemplo, o general de brigada (duas estrelas) da reserva Cláudio Barroso Magno Filho atuou como lobista ativo de mineradoras brasileiras e canadenses com interesses em exploração em áreas indígenas, tendo sido recebido pelo menos dezoito vezes no Planalto. (Cf. VICTOR, Fábio.Poder camuflado, Companhia das Letras).
Visando mensurar a dimensão do fenômeno de cessão de integrantes das Forças Armadas para exercer funções de natureza civil no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022 foram produzidos inúmeros levantamentos. Coube ao Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do ministro Bruno Dantas, uma dessas investigações, identificando a presença de 6.157 (seis mil, cento e cinquenta) militares exercendo funções civis na administração pública federal em 2020.
Como atesta o pesquisador Fábio Victor, os benefícios, privilégios e agrados dos mais variados a integrantes das Forças Armadas foram um dos fortes sintomas da militarização da gestão pública federal sob o bastão de Bolsonaro, mostrando abertamente que não se tratava apenas de um governo de militares, mas também para militares. Um dos fortes sinais desta situação pode ser facilmente constatado pela manobra autorizada pelo ministério da Economia de Paulo Guedes, garantindo supersalários para vários militares em altos postos na Esplanada. Generais palacianos como Augusto Heleno (o pequeno), Braga Netto e Luís Eduardo Ramos começaram a ganhar R$60 mil por mês, acima do teto máximo constitucionalmente permitido equivalente ao vencimento dos ministros do STF (op. cit.).
Voltando um pouco na história, importante relembrar que, na véspera do julgamento doHabeas corpusem 04 de abril de 2018, para garantir liberdade ao então ex-presidente Lula, autorizando-o a concorrer à eleição presidencial daquele ano, o general quatro estrelas, da reserva, Luís Gonzaga Schroeder Lessa, que fora comandante militar do Leste e da Amazônia, rosnou numa entrevista concedida ao jornal golpista O Estado de São Paulo: “Se acontecer [o habeas corpus], aí eu não tenho dúvida de que só resta o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem” (Supremo pode ser indutor da violência.O Estado de S. Paulo,03 de abril de 2018).
Às 20h39, do mesmo dia 03 de abril, o general três estrelas Otávio Rego Barros (que viria a ser porta-voz da presidência na gestão Bolsonaro), auxiliar direto de Eduardo Villas Bôas, disparou o tuíte, na página oficial do seu superior, a ameaça do então comandante do exército ao Supremo Tribunal Federal: “Asseguro à Nação que o exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social, à Democracia,bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Resultado já sabido, no dia seguinte, o STF negou oHabeas corpusao então ex-presidente Lula. Jair Bolsonaro chegou ao poder executivo central com sua companhia de militares, a partir do histórico emparedamento do Supremo por generais do exército. O autoritarismo seria o traço desta gestão presidencial.
No dia 02 de janeiro de 2019, na cerimônia de posse de cargo do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, o já presidente Bolsonaro discursou:“General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.Em resposta a Jair Bolsonaro, no dia 11 de janeiro, na transmissão do comando do exército para Pujol, Villas Bôas disse:“A nação brasileira festeja os sentimentos coletivos que se desencadearam a partir da eleição de Bolsonaro”.
Pergunta-se: que sentimentos seriam? A exacerbação da violência social e estatal, da discriminação, da elevação do autoritarismo, da subserviência ao poder estadunidense, da perda da credibilidade internacional do Brasil, do desmonte e entrega do patrimônio público ao capital privado, da propagação indiscriminada defake news, do ataque sistemáticos às urnas eletrônicas e aos Tribunais Superiores, do descaso pelas pautas populares, da insensibilidade diante da miséria a que o povo brasileiro esteve submetido durante os quatro anos do governo passado? Este foi o projeto militar bolsonarista?
O tempo presente, depois do retorno à democracia com a reeleição do Presidente Lula em 2022, vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos, cínicos, como ocorreu em 2016 e aprofundou-se em 2019, com o objetivo de manter a concentração de renda e poder nas mãos de pouquíssimos privilegiados, avessa a qualquer horizonte democrático alicerçado na liberdade e na igualdade substantivas, bem como na justa distribuição dos bens produzidos socialmente.
Mas agora o ditador está nu e precisa ser combatido tenazmente por toda a sociedade democrática. A nudez do ditador faz lembrar aquele conhecido poema colegial: “Um coleguinha me deu a cola / Eu a distribuí com a tropa / Dos mais argutos aos mais carolas / Todos chafurdaram gatunamente nas pedrarias / A farsa repetindo-se pela histórica e reincidente malandragem da companhia”.
Mães e mulheres negras da Baixada Santista assumem a posição de porta-vozes das denúncias em ato realizado nesta quarta (3/8) no Guarujá | Foto: Ailton Martins
À frente da manifestação ou subindo o morro junto de filhos e maridos, elas garantem a vida diante do massacre promovido pela PM. Ouvidoria escuta famílias das 16 vítimas fatais, que denunciam invasão de casas, tortura e tiros à queima-roupa
Evandro Belém tinha 34 anos, era ajudante de obras, mas, nas palavras de um familiar, era o parente mais bondoso entre os seus, o cara que vivia convicto de que não precisava desejar mal para ninguém. “E sabe, eu acho que é por isso que ele morreu: afinal ele não correu e ficou no lugar quando a polícia apareceu, porque, na cabeça dele, não tinha motivo para ter medo, já que ele não tinha machucado policial nenhum e, se soubesse da morte de algum, ele ia era rezar por ele”, conta o familiar, que preferiu não se identificar, mas compareceu ao ato “Ser Pobre Não É Crime”, organizado por movimentos sociais da região da Baixada Santista, litoral do estado de São Paulo, na tarde desta quarta-feira (2/8) na praça 14 Bis, em Vicente de Carvalho, distrito do Guarujá.
Os movimentos da região promoveram um encontro entre moradores da Baixada com uma comitiva formada pela equipe da Ouvidoria das Polícias, Defensoria Pública e parlamentares da Câmara Municipal de São Paulo e da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), além de pesquisadores e organizações diversas da capital, preocupados com a situação vivida pelos caiçaras.
Orientados por movimentos sociais da região, o ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, também percorreu as comunidades para começar a escutar as famílias das 16 vítimas fatais da Operação Escudo, ação policial deflagrada após a morte do PM Patrick Bastos de Oliveira, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), na quinta-feira passada (27/7). A operação,que deve durar 30dias segundo o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), foiconsiderada “vingança”por especialistas ouvidos pela Ponte.
“Ser pobre não é crime”, o tema da manifestação, combate o que a advogada Dina Alves aponta como o alvo da Operação Escudo: o extermínio de negros e periféricos | Foto: Ailton Martins
Claudinho conta que deve publicar um relatório completo nas próximas semanas, para apontar irregularidades cometidas pela polícia durante as mortes – que, frisa o ouvidor, certamente ocorreram – e indicar até que ponto as versões oficiais de confronto entre vítimas e agentes do Estado foram reais ou estão muito distantes das versões dos sobreviventes – invasões à residências, relatos de tortura e tiros à queima roupa.
“As pessoas que estamos escutando não estão pedindo nada demais, elas querem paz. Nós vamos produzir um relatório com conteúdos probatórios de irregularidades que estão sendo feitas, e o Estado não tem o direito de cometê-las contra pessoas comuns que ele deveria estar acolhendo”, comenta o ouvidor.
Encruzilhada pela memória dos mortos
O ajudante de obras morreu na tarde da última sexta-feira, 28 de julho, enquanto recolhia entulhos para ajudar na reforma da casa de uma moradora da comunidade da Aldeia, no município do Guarujá. Ele foi abordado por policiais que, segundo testemunhas, já chegaram atirando. Evandro morreu no local.
A família de Evandro compareceu no ato da praça 14 Bis após ter enterrado o caiçara horas antes. Até o momento da despedida, familiares contam que enfrentaram uma longa jornada a partir do instante em que receberam o primeiro aviso da sua morte: precisaram contar com a ajuda de amigos para comprar a passagem até a delegacia, só para ouvir que não teriam acesso a informações corretas; depois precisaram de ajuda para viajar por mais de duas horas de balsa e de ônibus até o Instituto Médico Legal, na cidade de Praia Grande, para ouvirem, lá, que precisariam pagar caso quisessem o acesso completo ao laudo que indica como Evandro morreu:
“A mulher para quem ele estava catando entulho foi nos avisar que ele não tinha voltado, aí a gente foi procurando e começamos achar que ele era a pessoa que a polícia tinha matado ali naquela tarde. A gente teve que escutar no IML da Praia Grande que, para saber como ele morreu, teríamos que pagar R$ 75 e só mostraram uma foto dele no computador”, denuncia um dos familiares. A pessoa também conta que a comunidade local teria visto o momento em que uma segunda vítima foi colocada no camburão da polícia e levado para a comunidade da Conceiçãozinha, onde teria sido morto.
Mulheres à frente
Por não serem o principal alvo, são as mulheres que também aceitaram falar com a imprensa presente no local. Única moradora da região que escolheu sair do anonimato, Edna Santos compartilhou o que soube da morte de Cleyton, um dos assassinatos que mais revoltou os moradores do Guarujá.
“A mídia fica passando que teve troca de tiros com a polícia, que ele estava com droga, mas era tudo mentira. Tem inocente morrendo também, até quem não tem passagem pela polícia”, contou.
A sensação de que as mulheres precisam ser a principal fonte de denúncia das mortes faz parte de uma estratégia de sobrevivência. Nas comunidades em que a polícia aparece invadindo casas, são as chefes de família que lembram que é proibido entrar em residência sem mandado judicial. Para subir o morro, os homens estão pedindo para que suas mães, companheiras e filhas estejam do seu lado.
“Eu preciso falar isso sempre, porque é impressionante que meu filho adolescente não pode sair para ir na esquina que já leva enquadro. Na minha casa ninguém entrou não, mas é difícil segurar e acabei vindo aqui falar porque sou mãe de seis e também não quero que outras mães continuem aceitando isso que estamos passando”, falou uma moradora da favela da Prainha, que pediu para não ser identificada. Ela conta que mora há 37 anos na comunidade e que nunca viu ações parecidas como as que estão sendo realizadas pela Rota nos últimos dias.
Movimentos de mães de vítimas de outros massacres, como as Mães de Paraisópolis, vieram de São Paulo apoiar as famílias do Guarujá | Foto: Ailton Martins
As mulheres também lideram as ações de solidariedade entre mães e esposas enlutadas. Mãe de Luis Fernando, assassinado em fevereiro de 2023, Sandra veio para o Guarujá com as Mães de Maio porque queria, segundo ela, demonstrar o apoio de uma dor que ainda está construindo a partir do seu luto recente:
“Todas nós que estamos aqui não dormimos direito, não comemos, porque a gente sabe o que essas famílias estão passando e isso precisa mesmo acabar”, conta.
Para Luana de Oliveira, integrante da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, é importante que os movimentos sociais que compuseram o ato reforcem o compromisso de permanecer lado a lado com os movimentos da Baixada Santista. Ela assegura que as manifestações só começaram e que devem haver mais atos.
“Temos que fazer outros atos, já que o governador disse que está satisfeito e que as operações não vão parar”, pontua.
Na manifestação, ela também trouxe a necessidade de enxergar as mortes a partir da disputa pela narrativa: não deixar que as histórias das vítimas sejam esquecidas e trocadas por versões convenientes pela polícia:
“As mães que já são vítimas do genocídio também lutam para que não sejam vítimas do genocídio da memória, em que querem que a gente aceite a versão que eles [autoridades] querem contar sobre as mortes, mas não podemos esquecer do que aconteceu de verdade”, alerta.
Nas redes sociais, as mães não estão sozinhas. Segundo o relatório da consultoria de pesquisa Quaelst, a repercussão dos internautas sobre a Operação Escudo tem sido muito negativa: as declarações do governador Tarcisio de Freitas geraram mais de 227 mil menções nas diversas plataformas digitais (Youtube, Twitter, Facebook, Google, Instagram) até a última terça-feira (01/08), a maioria críticas à atuação da polícia na Baixada Santista.
Um método para matar
Os relatos sobre a morte da vítima que estava com Evandro Belém seguem um padrão identificado em versões dadas sobre moradores em relação a outras pessoas: policiais estariam sequestrando e levando vítimas para serem mortas fora do seu território, buscando atrapalhar investigações e o reconhecimento das pessoas mortas. Moradores de situação de rua também estariam entre os alvos, já que muitas vezes as pessoas não conhecem suas histórias, tampouco seus nomes.
“Fazem isso pra gente não saber quem está morrendo, já que a gente só pode falar de quem morreu aqui. O Cleyton a gente sabe como morreu porque ele era da nossa comunidade, todo mundo aqui convivia com ele e sabe que [a versão policial] foi tudo encenação. Tiraram o filho dele do colo, ele foi colocado num canto e atiraram sem que ele estivesse armado”, contou uma moradora de Conceiçãozinha, que preferiu não se identificar. A morte de Clayton repercutiu entre os moradores do Guarujá pela presença dos filhos dele no momento de seu assassinato.
Moradores presentes na manifestação, de diferentes bairros do município, comentam que boa parte das mortes teriam acontecido a partir do mesmo procedimento da PM: invasão de domicílio, homens tatuados e com antecedentes criminais como alvo – mesmo quando estão seguindo suas vidas fora do crime – e encenação de um local da morte, com arma e drogas que teriam sido “plantadas” pelos policiais.
Essemodus operandijá teria chegado a Santos, maior cidade da região. Matheus Café, líder do Centro dos Estudantes de Santos e Região, falou ao microfone durante o protesto, denunciando que, na favela do Alemôa, a arbitrariedade da polícia começou bem antes dos ataques no Guarujá: no início da semana passada, ele conta que os moradores receberam os primeiros avisos de que haveria o fechamento do comércio da região por causa de uma operação da polícia contra o tráfico na Baixada. Apesar das ações não terem mortes, Matheus relata ameaças e agressões a moradores do local.
“A gente não aguenta mais projeto de genocídio da juventude. Eu não aguento mais sair da minha casa e sentir medo de ir para a universidade”, desabafou.
Advogada e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, Dina Alves morou durante dezessete anos no bairro do Morrinhos, no Guarujá, um dos locais em que há relatos de mortes. Para ela, o ato, mais do que um momento de visibilidade sobre a violência na Baixada Santista, também é uma oportunidade para reforçar a importância de lembrar o racismo presente nas mortes – tipo de genocídio que, para ela, é um projeto de governo.
“Essa Operação Escudo diz ser um combate à criminalidade, morreu um policial e o discurso é que é preciso combater a criminalidade, mas ela esconde um projeto de exterminio da população negra, já que o perfil do suspeito padrão e da morte no Brasil é o jovem negro periférico. Não é sobre o combate às drogas, não é porque morreu um policial no Guarujá, é porque é preciso que esse projeto de extermínio esteja em curso”, ressalta a pesquisadora, lembrando que na Bahia ações policiais também estão deixando um rastro de mortes: foram 19 vítimas apenas nesta semana.
A paz que morre na praia
O sentimento de apoio generalizado flertou, muitas vezes, com a esperança de que estivéssemos diante do início do fim da matança. Mas entre caiçaras periféricos, aquele velho medo que existe no ditado de “tentar não morrer na praia” voltou nos minutos finais da manifestação, em que todos estavam dispostos a gritar juntos por esperança e registrar uma foto coletiva: chegou aos grupos de moradores e movimentos sociais da região a informação de uma nova morte no Morro do Engenho, também no Guarujá.
A vítima teria levado nove tiros à tarde. A equipe da ouvidoria encaminhou-se imediatamente ao local, enquanto Dina Alves pegava o microfone para relatar a angústia compartilhada no momento pelos presentes:
“A gente pede, pelo amor de Deus, que retirem essa operação! Essa operação que ninguém sabe quais os objetivos e quais as finalidades”, criticou. Ela também contou que a trégua continua muito longe de terminar, graças ao aval do governo estadual e da ausência do governo federal que ainda não desceu a Serra do Mar.
“Profissionais da segurança pública não podem usar o discurso da vingança para fazer segurança policial”, ressaltou.
Mais tarde, soube-se que não houve morte no local, mas que os tiros foram disparados no Morro pela Romu(Rota Ostensiva Municipal) da Guarda Municipal do Guarujá. Dois jovens foram abordados, mas imediatamente soltos, em movimento lido como uma forma de intimidar os moradores e lembrar que está longe de acabar o fim da contagem dos atos de violência cometidos pelo Estado na Baixada.
“Qual a razão da ROMU estar estimulando o pânico num contexto já tão difícil”, questionou Dimitri Sales, advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa os Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (Condepe), no Twitter:
Defensoria Pública oferece ajuda gratuita
Os defensores públicos do Guarujá, presentes no local, compartilharam um sentimento de alívio por encontrarem um momento para conhecer alguns dos familiares das vítimas. Eles contam que, apesar de a Defensoria Pública ser muito procurada pela população para diversos casos, as pessoas ainda têm dificuldade para procurar os profissionais em busca de assistência para histórias de violência policial.
Preferindo não se identificar, eles compartilham que escutam, de defensores mais velhos, que o massacre dos últimos dias só se aproxima dos Crimes de Maio – uma sensação também já mencionada por locais em diversos pontos da Baixada Santista. Mas por ora, eles preferem se amparar na impressão de que a visibilidade nacional e internacional dos casos vai ajudá-los a ter uma atuação mais efetiva para as famílias.
“É importante que a comitiva que veio de São Paulo tenha esse momento de troca com as famílias aqui, porque é importante vivenciar de fato o que estamos vivendo na Baixada. E isso nos dá mais confiança para contar aos moradores que eles não estão sozinhos, que estamos levando isso para o governo, pessoas que não são daqui e estão nos fortalecendo”, refletiu um dos defensores.
No Guarujá, a Defensoria Pública pode contribuir para ajudar famílias a ter informações sobre violências cometidas contra moradores, encontrar orientações para buscar por reparação do Estado e por proteção diante de ameaças. A Defensoria funciona de segunda à sexta, das 10h às 17h, com atendimento imediato e garantia de sigilo das vítimas. O prédio fica na Av. Ademar de Barros, 1327 – Jardim Helena Maria, Guarujá.
Escuta sem protocolo de segurança
Diante de ummodus operandide chacina que se repete de comunidade para comunidade, como garantir um registro que possa ser uma prova incontestável deabuso policial já que, aparentemente, a Operação Escudo – e, consequentemente a matança – segue nos próximos 30 dias.
Horas antes da manifestação, durante a manhã desta quarta-feira (2), um morador do bairro Conceiçãozinha se dispôs a falar, contando em detalhes a invasão da polícia a residências da região na noite anterior. Rodeado por câmeras em uma coletiva de imprensa improvisada em um beco das primeiras entradas do Conceiçãozinha, o senhor não queria aparentar medo, mas era lembrado pelo ouvidor a todo momento que falar era necessário, mas se proteger muito mais.
Mas a convicção da coragem aparece apenas em quem acredita que não tem mais nada a perder. Porque, para boa parte dos moradores, a necessidade de falar esbarra, quase sempre, nas dúvidas sobre em quem confiar. Por outro lado, quem busca documentar as histórias e os dados também não encontra asfalto confiável por onde andar nos morros em que aconteceram as mortes que já se têm notícia.
Não existe um manual para se sentir mais seguro enquanto oferece a escuta, e evitar mais espaço para a represália da polícia. Na corrida corrida contra o tempo para trazer mais relatos que possam chocar a ponto de frear a matança, os moradores mostram áudios e prints de possíveis cenas de tortura ou de assassinatos, e na rua é difícil buscar fontes que confirmem a veracidade do que chega, já que de um lado há um boletim de ocorrência tratando todos como suspeitos, e de outro há uma desinformação muitas vezes alimentada pelo medo.
Mas nem todos estavam dispostos a receber a comitiva. Apesar da presença de órgãos importantes para a proteção das denúncias das arbitrariedades cometidas pelo Estado, a atenção da imprensa local e de veículos televisionados que, em muitos momentos, registraram fotos e vídeos dos moradores, deixaram no local um sentimento conflituoso de alívio pela escuta, e medo de uma exposição que não foi consentida. Afinal, apesar do pacto coletivo de poupar a identificação das fontes, tantos flashes inesperados espantaram alguns moradores pela perda do controle de saber o destino final de tantos registros.
“Tio, aqui não tem só polícia não, o PCC também está por aqui e é difícil falar depois pra eles que a gente não está falando com policial e sim com quem quer ajudar”, reclamou um jovem que conversou com o ouvidor.
Questionados pela reportagem no momento da caminhada, assessoras de movimentos sociais e de deputadas da região conseguiram sensibilizar a equipe da Ouvidoria e dos parlamentares da capital para que tivessem mais zelo sobre o compartilhamento da escuta com os veículos, e a imprensa acabou vetada das visitas seguintes.
Mais tarde, o ouvidor das polícias defendeu a presença midiática para escutar as famílias, diante do apagão de dados da Secretaria da Segurança Pública e das intimidações quase diárias para que as comunidades não ajudem a aumentar os registros oficiais das mortes:
“Acho que muitos moradores querem falar, e a imprensa de fato está expondo essas pessoas, mas isso é relevante expor. A opinião pública, o mundo, o planeta, precisa saber o que está acontecendo na Baixada Santista, e é expondo que conseguimos mobilizar nossos sentimentos e acredito que a comunidade está precisando que a gente entregue nosso apoio”, defende.
Ativistas que pediram para não se identificar questionam se os políticos presente nas comunidades e no ato desta quarta (2) vão continuar acompanhando as famílias sobreviventes até 2024, ano das eleições municipais. E se haverá um esforço maior, da imprensa, após as histórias visibilizadas agora, em trazer nomes das vítimas e contexto real das suas mortes, ao invés de só justificá-las como “suspeitos” ou com passagem pela polícia.
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Desarquivar o processo que investiga omissão de Bolsonaro na pandemia abre caminho para responsabilizá-lo pelas 700 mil mortes no período
por Luiz Marques
Su 21
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Uma ampliação conceitual, a segregação explícita defendida na insígnia de um ente federativo, a mortandade premeditada por um governante em meio à proliferação do vírus e o menoscabo pelas culturas nativas são evocações de um fenômeno histórico. Perante a quarta vitória presidencial consecutiva do PT, as classes dominantes geraram a herança que responde por duas pragas letais: Bolsonaro e o bolsonarismo. Essas pragas agravaram a maldição de várias faces, o “genocídio”.
Ampliação do conceito
O crime de genocídio consta na Resolução 96, de 1946, da Organização das Nações Unidas (ONU). Vinculava uma intencionalidade subjetiva a um ato objetivo. A iniciativa fazia eco do Holocausto judaico nas câmaras de gás nazistas, na II Guerra Mundial. No Brasil, dez anos depois, o delito foi tipificado na lei pela “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Ilustrava: “I) matar membros do grupo; II) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; III) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Reafirmou-se o nexo de causalidade.
Em 1977, porém, o prócer do movimento negro Abdias Nascimento envia um manifesto, intitulado Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, ao Festival Mundial de Artes e Culturas Negras Africanas (Festac 77), na cidade de Lagos/Nigéria, informa o Dicionário dos negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako e José Luiz Ratton. Ampliava-se o conceito.
No libelo, o intelectual orgânico acusa o Estado de apagar a formidável contribuição negra à nação em todas as dimensões e, em simultâneo, problematiza a intencionalidade expressa como critério para uma conceituação. Os atos falam, per se, sem a obrigatoriedade de uma finalidade estipulada pela vontade dos sujeitos. À violência, sentido amplo, agregou-se o genocídio de afrodescendentes.
Os humanos são seres linguísticos. As palavras emitidas impulsionam ações com potencial para agredir, ferir e matar, analisa Judith Butler, em Discurso de ódio: uma política do performativo. O feminicídio, a homofobia e o bullying dão provas cabais. O sistema inocula o racismo institucional (estrutural) na vida social e na linguagem. Justifica-se a contraofensiva da narrativa “politicamente correta” para expulsar do espaço público as expressões discriminatórias. Os cínicos debocham.
Massacre de Porongos
Recentemente, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para dificultar a alteração no hino sul-riograndense de um trecho racista: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Como se escravizados fossem pessoas sem qualidades morais e, portanto, merecessem vegetar no cativeiro. Em última instância, a culpa pela escravidão seria da vítima, não do algoz. O raciocínio é perverso; a decisão dos deputados, idem. Maneira nada sutil de bloquear o debate sobre um genocídio que teima em persistir, na contemporaneidade.
O argumento favorável à permanência da frase mistificadora do supremacismo branco recupera o pensamento sociológico autoritário, do início do século XX, o qual incubou a noção totalitária de “Estado integral” da Ação Integralista Brasileira (1932). “A tradição mostra que somos um só povo”, alegou o porta-voz da extrema direita. O raciocínio é tosco: o povo é uno, a nação é una, o Estado é uno. Partidos políticos, sindicatos, etnias por representarem apenas partes são descartáveis. “Nosso partido é o Brasil”. Não haveria motivo para mexer na lírica tradicionalista. Reatualizou-se o covarde massacre de Porongos, local onde os lanceiros negros foram dizimados na Revolução Farroupilha (1835-45), pelo acordo traiçoeiro feito entre a elite provincial e o governo central.
A incapacidade de defender a diversidade na unidade é inerente a regimes fechados. Representantes do PT, PSOL e PCdoB votaram contra a PEC que ergueu barreiras, para impedir a história de mudar a letra hínica. Puxados pelos novos fascistas, outros fizeram coro com a discriminação selvagem. A racialização infame foi endossada pelo Parlamento. Após o flagrante de trabalho análogo a escravo em grandes viniculturas, coube aos neocolonialistas enterrarem a memória dos ideais igualitários de Giba Giba e Sirmar Antunes. Abdias Nascimento, que dá nome a um viaduto na Capital gaúcha, recusaria a homenagem oficial confrontado com o punhal no coração do apelo por reconhecimento.
Não espanta que o governador Eduardo Leite, do PSDB, apoie o retrocesso avalizado pela sua base parlamentar que, hélas!, encampa o PDT e o PSB. Corrobora também o cabide de emprego dos quadros reservistas das Forças Armadas, os colégios militares, cuja doutrinação para a disciplina e a obediência domestica a mão de obra com vistas à ocupação de postos de baixa qualificação, no mercado de trabalho; ao revés de investir em uma pedagogia da liberdade, criatividade e liderança dos jovens com a expectativa de alavancar melhores oportunidades laborais, no futuro. O tucano adula o neofascismo, na ilusão perigosa de pescar votos centristas no pântano da Casa Grande.
Dívida do negacionismo
A decisão do ministro da Suprema Corte, Gilmar Mendes, para desarquivar o processo que investiga a omissão ou incúria do ex-presidente na pandemia abre caminho a uma responsabilização penal pelas 700 mil vítimas, no período. O negacionismo tem uma conta amarga a pagar para as famílias enlutadas. Com efeito, metade dos óbitos eram evitáveis. Toca à Procuradoria-Geral da República (PGR) posicionar-se sobre a retomada, ou não, da questão. Antes, arquivada a pedido da mesma.
O anátema de genocida, o inelegível já possui. Na categoria, inclui-se o deputado general Eduardo Pazuello (PL/RJ), o ex-ministro da Saúde que banalizou o mal (“um manda, outro obedece”). Só uma rigorosa punição à hierarquia na cadeia de comando trará paz para a alma dos sobreviventes.
Responsáveis, de direito, adotaram a estratégia da imunidade de rebanho em vez dos imunizantes. Boicotaram o isolamento social em prol da economia. Atrasaram a compra das vacinas ao custo de milhares de vidas. Propagaram remédios não recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevaricaram ao ser informados das negociações de autoridades oficiais na compra de doses vacinais fora dos meios legais, com propinas bilionárias. Não bastasse, escarneceram em lives a dor e o sofrimento de pacientes com falta de ar para respirar. “Gripezinha”, “Chega de mimimi”, “País de maricas”, “Quer virar jacaré?”, “É o destino”, “Todos vão morrer”, “Não sou coveiro, taoquei?”
“Bolsonaro nunca foi democrata e o bolsonarismo, embora vago e difuso, caracteriza-se por uma doutrina racista, autoritária, excludente e pelo cultivo do ódio e da mentira como uma forma de mobilizar seus militantes”, escreve Francisco Carlos Teixeira da Silva, no artigo “Bolsonaro: três golpes de Estado e um genocídio”, em Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país. Não é a ausência de empatia que está em foco, senão a responsabilidade pelo extermínio dos que foram privados na doença pandêmica do tratamento adequado, e factível.
Julgar, condenar, punir
Teixeira da Silva acrescenta outra bestialidade ao currículo do falso messias: “Soma-se a urgente necessidade de intervenção em situações emergenciais, como o caso do genocídio da comunidade Yanomami”. O caso envolve o diretor da Funai, pastor pentecostal fundamentalista, e a ex-ministra da Mulher, da Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que não subiu na goiabeira para ajudar os guardiões da floresta. Suspeita-se de desvio de recursos financeiros e medicamentos para ONGs, ligadas às igrejas evangélicas. As cifras estão sendo apuradas, têm o tamanho exato do pecado.
O ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e o ex-vice presidente general ora senador, Hamilton Mourão (Republicanos/RS), são suspeitos de facilitar a invasão de garimpeiros em terras indígenas. Procedimentos de aniquilação dos ancestrais tiveram o beneplácito do tenente, et pour cause da aposentadoria compulsória aos 33 anos, capitão, graças à promoção não merecida. O terrorista planejou explodir bombas-relógio para pressionar o aumento de salários da corporação. O ditador Ernesto Geisel cogitou a sua expulsão. Ao fim, premiou-o.
O genocídio (físico e simbólico) protagonizado pelo complô civil-militar viabilizou o horror contra a população étnica. Bolsonaro merece ser julgado, condenado e punido pelas perversões cometidas nos quatro anos de desgoverno a serviço da nobreza rastaquera, que não gosta do país nem do povo. A reconstrução das instituições sob viés da democracia exige que crimes de lesa-humanidade saiam do anonimato e sejam expostos junto aos canalhas, pegos com a boca na botija. Anistia zero, a eles.
Não obstante, a justiça situa-se dentro da cosmovisão liberal, focada em indivíduos atomizados ou em uma formação de quadrilha. Para elevar a percepção plebeia ao nível da crítica dialética há que se apontar o papel, na necropolítica, das classes dirigentes ainda incógnitas na opinião pública.
O povo versus as elites
A passagem da consciência real à consciência possível não é mecânica, livresca, diletante. Implica em uma participação ativa nos movimentos sociais e nas disputas ideológicas com o valor-guia da solidariedade, em alternativa à competição que converte o homem lobo do homem (homo homini lupus), na selva do capitalismo. Mais: convoca para um engajamento nas “guerras de posição” que forjam o consenso até a saída do labirinto do genocídio. O fio de Ariadne é a práxis política.
Dos partidos e entidades progressistas (centrais sindicais, comunitárias, estudantis) esperam-se manifestações, de rua, que interpelem a informalidade, motoristas e entregadores de aplicativos, operadores de telemarketing, vendedores de cosméticos, etc. É nas camadas atingidas e humilhadas pela superexploração capitalista, que se desenvolve a utopia ou a distopia. Hoje, a luta de classes estabelece um divisor entre o “povo” e as “elites”. Os fatos respaldam o maniqueísmo populista.
A extrema direita simplificou a luta de classes. “A reação conservadora busca uma transformação profunda dos termos do discurso político e a criação de uma nova ‘definição de realidade’ que, sob a capa da ‘liberdade individual’, legitimaria desigualdades e restauraria as relações hierárquicas que lutas (emancipadoras) de décadas anteriores tinham destruído”, conforme Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em Hegemonia e estratégia socialista: por uma política radical. Os atores coletivos, agora, constituem-se pelo antagonismo. Embora questionável, é vero que o “centro político” evaporou. De resto, não foi um fator civilizacional, exceto no mito da modernização neoliberal que alargou a distância do topo à base da pirâmide social. Ver entrevista de Paulo Arantes, n’A Terra é Redonda.
Nas condições atuais, a revolução democrática não se projeta no consenso dialógico intersubjetivo. Lênio Streck acerta: “CPMI trata a tentativa de golpe de Estado como furto de supermercado”. É um erro naturalizar a gravidade do emaranhado que culminou no putsch fracassado. As próximas eleições nos Estados Unidos e no Brasil incidirão no desfecho da trama, que assombra o porvir com a crise climática, a crise democrática e a crise geopolítica. As mudanças ao alcance do governo Lula 3.0 servem de dique a uma dinâmica com empuxe internacional. Em nossa época, decide-se a sorte do mundo pela barbárie ou pelo socialismo. Como adverte o poema, de Thiago de Mello: “O tempo é de cuidados, companheiro. / É tempo sobretudo de vigília. / O inimigo está solto e se disfarça.”
Em encontro remoto na tarde desta terça-feira (6), o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, participou de coletiva com mídias independentes na qual tratou dos desafios da pasta - em especial, a luta de ideias para que a sociedade entenda a sua importância.
No encontro promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, 10 jornalistas tiveram a oportunidade de dirigir perguntas ao ministro, que transitaram entre temas como a atenção às comunidades indígenas e populações periféricas; os esforços por memória, verdade e justiça em relação à ditadura; a punição aos responsáveis pela tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023; dentre outros.
Segundo o ministro, advogado, filósofo e professor acadêmico, há uma disputa ideológica em torno do tema. "Parcela expressiva da população sente ódio dos Direitos Humanos, com uma noção equivocada do que significam". "Há uma manipulação do discurso sobre o tema sobre como se fosse uma licença para retirar das pessoas a sua segurança", complementa Almeida, "confundindo a defesa dos Direitos Humanos como se fosse a defesa do crime".
Autor de "Racismo estrutural", uma das obras que balizam o debate antirracista no país hoje, o ministro avalia que os direitos humanos devem perpassar todas as políticas públicas, inclusive a economia. "É preciso transformar o tema em debate sobre economia política. Precisamos conquistar corações e mentes, estabelecendo os Direitos Humanos como parte fundamental da nossa experiência vital, do nosso modo de vida no Brasil". Assista na íntegra ao papo e inscreva-se no #canaldobarão!
SOBRE O ENTREVISTADO
Silvio Almeida é advogado, professor e escritor, e atualmente ocupa o cargo de Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. É doutor em direito pelo departamento de filosofia e teoria geral do direito da Universidade de São Paulo, com pesquisas de pós-doutoramento em direito e em economia. É professor da faculdade de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tanto na graduação como no programa de pós-graduação Stricto Sensu. Também é professor das escolas de administração e de direito da Fundação Getúlio Vargas. Em 2020, foi professor visitante no Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Duke (EUA), e em 2022 foi professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia na Cidade de Nova York (EUA). Silvio destacou-se por sua atuação à frente do Instituto Luiz Gama, organização da sociedade civil que visa à inclusão de minorias e à promoção de uma educação antirracista. Nos últimos anos proferiu palestras e nacionais e internacionais sobre temas relacionados ao direito, à filosofia, à economia política, aos direitos humanos e às relações raciais.
SOBRE O BARÃO DE ITARARÉ
Fundado em maio de 2010, O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé consolidou-se como um dos espaços mais vibrantes da luta pela democratização da comunicação no país. Em seus 13 anos de atuação, o Barão apostou na promoção de atividades que investem na formação de comunicadores - debates, seminários, cursos e palestra sobre mídia, democracia, liberdade de expressão, políticas públicas de comunicação e temas correlatos - e também na criação e fortalecimento de fóruns de debate e ação sobre a agenda em torno desses temas.
A organização também funciona como um selo editorial através do qual publica livros, como "Direitos negados – Um retrato da luta pela democratização da comunicação" (2015), "A mídia descontrolada - episódios da luta contra o pensamento único" (2019) e "Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas" (2022). Além de sua coordenação executiva, que reúne nomes bastante representativos de entidades do movimento social brasileiro, a entidade conta com um extenso conselho consultivo, no qual figuram importantes nomes da academia, do jornalismo, da comunicação, da cultura e dos movimentos populares do país.
Organização suprapartidária, o Barão notabilizou-se como a casa das mídias alternativas, independentes e populares, transcendendo matizes partidárias e abraçando todo o campo progressista na missão de tratar a comunicação como campo estratégico e decisivo para garantir um Brasil mais justo, democrático e plural. Até por isso, a entidade é conhecida pelo seu espírito de “unidade na diversidade”. O nome “Barão de Itararé” é uma homenagem ao jornalista Aparício Torelli (1895-1971), considerado um dos fundadores da imprensa alternativa no país e o pai do humorismo político no Brasil.
Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento
Passadas as celebrações do novembro negro e do mês que, em nome de Zumbi e Dandara dos Palmares, rememora, denuncia e exige reparações históricas à população negra brasileira, parece vigorar certo silêncio após a efeméride, no que diz respeito à (in)consciência negra nacional. Reinam, todavia, as imagens associadas à violência, ao genocídio, ao caos e aos casos nunca isolados de racismo que, de norte a sul, cortam o território amefricano. Casos que dilaceram famílias e comunidades, aniquilam sujeitos e arrasam possibilidades de vida plena e digna, tal como garantido na Carta Constitucional brasileira.
Imagens de controle, como enunciadas por Patricia Hill Collins, que reforçam práticas de dominação, criminalização e violência, física e simbólica, voltadas à estigmatização e à legitimação de suas próprias operações de morte. Se a morte ocupa um lugar fundamental nessa produção imagética é na medida em que se constitui como ponto de partida, sob a perspectiva do supremacismo branco, do que seja o destino natural e original do corpo negro, que da morte-em-vida à morte factual passaria de um estado de não-ser ao desaparecer, como o desvanecer da imagem de um fantasma – entre mundos, medos e modos de ser pautados pelo negativo.
Em vida, porém, a consciência retinta de ser, de viver e a teimosia tomam forma, rosto, nome e figura do que, sendo, insiste em desarticular os mundos de morte da branquitude e seus mecanismos de sufocamento, acionados por vias diversas. Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento; em vias privadas, pelas mãos de algozes e feitores que chamam de amor (?) a doença que extirpa, subjuga e liquida as vidas de mulheres, sobretudo negras, encontradas em sacos pretos, rios, azulejos frios, imobilizadas em fotos que estampam, cotidianamente, pequenos retângulos de jornais sanguinolentos (até quando?).
Ceifadas, entre promessas de amor eterno e o eterno pedido de desculpas das forças policiais e chefes de Estado, desaparecem, em preto e branco, histórias, narrativas e memórias daquelas que, chacinadas, são condenadas sem inquérito, enquantoco-mandantes são condecorados em cerimônias oficias e oficiosas.
Penso nesses rostos enquanto escrevo e vejo o sorriso, os sulcos da pele, as marcas e linhas longas da vida – interrompidas. Penso nas vidas negras que importam, dizem, e, todavia, seguem conscientemente exterminadas por mãos apocalípticas enquanto, nas escolas, tentamos fazer valer a lei da vida, a lei da justiça e do ensino de história e cultura daquelas que, antes de nós, em diáspora, fizeram valer com seu suor a contra-lei do mundo dos homens injustos.
Passados 20 anos de promulgação da Lei 10.639/03, silentes ou complacentes, a conveniência segue esbranquiçando itinerários formativos. Mas o poder do brado negro desafia o silêncio reinante. Peleja, retumba, sacoleja e desarranja os ritos (fúnebres) de histórias lineares, pomposas e heroicas que não mencionam Dandara, Aqualtune, Marielle, Lélia e Sueli, porque, ali, o pacto sa(n)grado é branco, no masculino.
A consciência nossa é ciência, suor e roda. É repente, desafio e capoeira, ginga com os arranjos, institucionais ou não, há séculos organizados para transportar os corpos em tumbeiros, caveirões e rabecões, para quem a morte passa a ser pena capital e não parte da existência e do mundo compartilhado com a ancestralidade. Até a morte foi saqueada. E soterrada em covas rasas, sem nome, placa ou documento de identificação, para que a indigência devorasse, com o bico afiado, a carne putrefata de quem sonhava com casa própria, formatura e família grande, como Kethlen Romeu e seu filho, assassinado no ventre.
Vingar ainda é desafio na diáspora. Vingar até a última gota de vida, o desafio nas 52 semanas e 1 dia de consciência negra, que perfazem um ano. Nele, todos os dias são voltados ao desfazimento do pacto funesto. Todos os dias são voltados à lembrança do que, recalcado, não pode contentar-se com um único dia ou mês do ano. Emerge, dia a dia, porque nascido em zona de emergência. Contra a virulência, insurgente, gesta resistência na negra consciência da luta pelo que é, foi e será. Todos os dias do ano.