Print de imagem da reportagem do programa Fantástico, com imagens de drone de suposto treinamento de traficantes.
por Matheus de Moura in GENI
“Eles estão ali para matar ou morrer e essas imagens mostram que são treinados para isso. Criminosos aprendem táticas de guerrilha onde vive gente que é de paz, as maiores vítimas dessa guerra”, assim começa a narração de uma reportagem doFantásticoque tinha potencial para ser um relevante mergulho na gestão que o Estado faz sobre os ilegalismos que ele mesmo se dispõe a combater e criminalizar, mas que, apesar de tudo, acabou recorrente ao sensacionalismo barato digno da Record às 18h, na hora do café da tarde.
A matéria em questão tem 11 minutos e é trabalhada em cima de filmagens do complexo de 16 favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, captadas pelos drones da Polícia Civil do Rio de Janeiro ao longo de dois anos. As imagens mostram jovens criminosos sendo treinados mal e porcamente por alguém, que pressupõe-se serem agentes de Estado (mais sobre isso depois), para melhorar o desempenho em conflitos armados contra policiais e membros de outros grupos; além disso, fica registrado também o dia a dia das bocas de fumo e o relaxamento de membros das facções em piscinas e quadras esportivas. Ao todo, após dois anos filmando-os, a polícia decidiu indiciar 1.100 pessoas. O que a Globo fez com esse material sintetizado acima?
Um show de pânico moral
Nos primeiros minutos, eles fabricam a ilusão de que o treinamento que aqueles relés traficantes de boca de fumo estão recebendo os deixa par-a-par com as forças armadas. Afirmação não só desproporcional, como absurdamente perigosa, uma vez que passa a legitimar midiaticamente uma atuação mais violenta da Polícia. Pois veja: se todo mundo achar que o tráfico é altamente capacitado para aniquilar as forças policiais, ficará mais fácil justificar um aumento no uso de força quando houver incursões às comunidades, as ditas operações.
Desde os tempos narrados por Caco Barcellos e Misha Glenny que os traficantes do Rio recebem treinos de militares e ex-militares. Conheci até, certa vez, um rapaz que, após terminar seu período como fuzileiro naval, repassou todo conhecimento que tinha para os jovens das bocas da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio. Um homem treinando aqui e acolá uma meia centena de rapazes que, em sua maioria, mal entraram na vida adulta versus o treinamento intenso, diário e que perdura por anos de um matador do Estado. É disso que estamos falando. Você pode por quantos treinadores for, mas um traficante nunca terá as condições de enfrentamento que as polícias têm. E isso tanto é prova que, apesar dos relatos decanos da prática de treinos de guerrilha aos criminosos, vê-se que o número de pessoas mortas pela polícia segue sendo de 6 mil em 2022 enquanto o de policiais mortos no mesmo ano foi de 171, sendo que mais da metade sequer estava em serviço. Ou seja, acontece o que acontecer, o Estado é mais bem equipado e treinado para aniquilar o outro, posto que exatamente por isso detém o monopólio da violência. Não é à toa que os entes do próprio Estado são os responsáveis por essa versão vagabunda de treinamento militar. Algo tão visivelmente vagabundo que na própria reportagem da Globo fica visível como os rapazes não conseguem fazer polichinelos ou flexões direito. Não têm pique, força ou técnica.
Outra ponto é que na irresponsabilidade de legitimar o discurso de medo e preparação para guerra que as polícias gostam de propagar aos quatro cantos, a Globo está também legitimando as chacinas e toda a longa jornada de operações que produzem o genocídio negro no Brasil. Basta ver que o Complexo da Maré foi vítima, segundo um relatório doGENI/UFF, de 23 chacinas, com 107 mortos ao todo, isso entre 2007 e 2022, configurando assim o segundo bairro da capital a mais ser afetado por chacinas policiais no Rio de Janeiro, com 107 mortos. Vítimas da violência estatal expressa nas mãos de Polícias que mais nada são do que facções legalizadas.
Ainda assim, independente das mortes e do fato de que os treinadores de traficantes pareçam ser pessoas oriundas do próprio Estado, a reportagem preferiu focar nos anseios e receios que os próprios policiais têm em relação ao panorama atual da criminalidade urbana. Tão afetados pelo discurso policialesco que estão que até a fonte especialista convidada a opinar sobre o fenômeno é o pesquisador Robson Rodrigues, um cientista social da UERJ conhecido por, outrora, ter pertencido às forças de matar do Estado. Este último, ao analisar as imagens dos criminosos em treinamento, não consegue pensar em resposta melhor para o problema do que a famosa ladainha do “investir em inteligência para fazermos operações mais precisas”, como se o problema não fosse a própria criminalização tácita da juventude negra periférica somado às necessidades do próprio Estado em gerar gestões eficientes para as ilegalidades que abarca sob uma tutela nunca assumida.
Jornalismo e ideologia
Por cegueira ideológica e contratos não escritos com as forças policiais — que só concordam em ceder imagens impactantes como essas contanto que não haja questionamentos à sua atuação —, a Globo vende a ilusão de um Estado, que deveria ser um agente de justiça, de um crime que é combatível sem que se modifique as estruturas sociais mais básicas, de uma política de segurança pública baseada na disseminação do medo para justificar o uso de força para algo que as próprias forças do Estado geram.
Afinal: a duas principais facções do país (PCC e CV) surgiram em reação às sistemáticas violações de direitos de presos; as milícias surgem e ainda se sustentam a partir de relações ilegais entre policiais e agentes de segurança do Estado num todo que tinham por intenção o lucro maximizado ao dominar territórios marginais da Zona Oeste; o jogo do bicho só se torna um fenômeno empresarial insuperável a partir da ditadura, quando o regime passa a ajudá-los por baixo dos panos; todos os grupos armados do Rio e do Brasil constroem relações econômicas com agentes de Polícias, seja por suborno, contrato ou sociedade em negócios comuns. Poderia citar aqui as inúmeras formas como aqueles mesmos indivíduos que alertam para o medo de um tráfico mais especializado são, na verdade, os gestores de toda a “brincadeira” que decorre no nosso território. Das fronteiras ao tráfico de armas internas, só não enxerga essa complexa teia de relações quem prefere cair no maniqueísmo de nós (bons cidadãos protegidos pela lei) versus eles (os bandidos que merecem ser mortos).
A Globo, com todas as contradições e disputas internas que ocorrem quando repórteres com diferentes visões brigam pela narrativa oficial de uma pauta, acaba por, na maior parte do tempo, produzir reiterações do mesmo discurso punitivo que só serve para derramar o sangue dos meus.
Se tivessem a boa vontade de ir além do que os policiais querem que saia, a produção do Fantástico poderia ter feito uma investigação mais relevante sobre como funciona esse mercado de treinos de táticas de guerras para criminosos, pondo de forma clara o foco de luz sobre a própria produção estatal desses “treinadores do crime”. Se mais responsáveis, poderiam ter avaliado que estão falando de um território sensível ao se falar da Maré, que é dividida entre áreas de domínio armado de milícias e das facções Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro, o Complexo é um raro exemplo de convívio tão próximo de três grupos armados inimigos em um território tão pequeno. Talvez, justamente ao olhar para isso, conseguiriam reportar a verdadeira complexidade das relações entre facções. Certa vez, para uma reportagem que acabou saindo na Ponte Jornalismo, uma moradora da Maré me relatou que, para escapar do ex-abusivo, recorreu ao chefe do tráfico na favela em que morava para que ele mandasse um recado para o chefe da facção inimiga, que dominava o território em que morava o ex. Dito e feito, com o recado dado, o homem nunca mais a perturbou. Esse tipo de história explica muito mais do mundo do que a mesmice Global.
Mas o que esperar de uma equipe que numa reportagem de 11 minutos não soube diferenciar CV, TCP e milícias e não tratou de forma crítica o indiciamento de 1.100 pessoas, das quais, com certeza, a grande maioria ou não é diretamente envolvida com o crime ou pertence à ralé da ralé da hierarquia de suas redes criminais.
Deputado Pastor Sargento Isidório resolve rivalizar com Eliot sobre 'o que é um clássico'
por Reinaldo Azevedo
- - -
Esta é minha última coluna na Folha. Volto ao ponto no último parágrafo, como sempre. O país primeiro.
O Congresso tem aprovado pautas econômicas importantes. Tais matérias, com frequência, dizem respeito também a interesses dos patronos dos votantes. É do jogo. Exceção feita ao bolsonarismo fanático e a alguns vaidosos, chateados porque suas previsões estão sistematicamente erradas, ninguém torce para que o país desande. O Parlamento que aí está é, sim, o mais atrasado desde a redemocratização — quiçá o pior da história. Um novo surto de estupidificação, também a sincera, está em curso e tem como alvo o Supremo, justamente o ente que decide o destino dos golpistas. É retaliação. Infelizmente, até uma figura sempre ponderada, como Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, houve por bem disputar o coração dos dinossauros.
Evitei acima uma palavra, recusando o clichê "corações e mentes". Como ensina Francisco Torrinha, no "Dicionário Latino Português", "mens, mentis" designa "o princípio pensante", o "espírito", "a inteligência". E não reconheço tais manifestações na "devastidão" — termo que se esqueceu de acontecer — bolsonariana. "Devastação" não expressa a razia havida. O senador resolveu dar pipoca à ignorância. Patrocina uma PEC que criminaliza o porte de qualquer quantidade de droga. Quer, assim, fazer frente a um STF que estaria a legislar no caso da maconha. A iniciativa ficaria bem num Tiranossauro Rex a se fingir de herbívoro boa-praça. Advogado, ele sabe que os presídios estão abarrotados de jovens, pretos e pobres em razão da aplicação porca de uma lei ruim. Se sua PEC prospera, tudo piora. Quem dá bola, senhor, para "a lágrima clara sobre a pele escura"?
Quer o quê? Sei lá. Ocorre-me, por exemplo, que Davi Alcolumbre (União-AP), seu antecessor no cargo e aliado, já é pré-candidato de novo à presidência da Casa. Estarão de olho nos votos dos "conservadores"? "Conservadorismo" é o vocábulo mais malbaratado da política nativa. Quem quer manter inalteradas as iniquidades ou extremá-las não "conserva" coisa nenhuma. Ao contrário: faz degenerar o tecido social, as leis e a Justiça. É um anticonservador. É um reacionário.
Há outra ação que mira o tribunal: o projeto de lei que define a Constituição de 1988 como o ano de referência para a demarcação de terras indígenas. O texto já foi aprovado pelos deputados. É grande o risco de ser piorado pelos senadores. Leiam o conjunto dos direitos assegurados àquela população e constatarão que a limitação temporal é inconstitucional. Uma lei não se sobrepõe à Carta.
Na Câmara, ensaia-se a tentativa de tornar ilegais futuras uniões homoafetivas, matéria já julgada pela corte. Não vai prosperar, eles sabem. O "Deputado Pastor Sargento" Isidório (Avante-BA) acredita ter a síntese definitiva sobre o caso: "Todo mundo sabe da minha fala clássica de que, é uma fala, inclusive, universal: o homem nasce como homem, com binga, portanto, com pinto, com pênis. Mulher nasce com sua cocota, sua ‘tcheca’, com sua vagina, mesmo com o direito à fantasia. Homem, mesmo cortando a binga, não vai ser mulher. Mulher, tapando a cocota, se for possível, não será homem, todo mundo sabe". O "Peçanha da genitália alheia" resolveu fazer sombra ao poeta Eliot na definição do que é um clássico...
Segue a sanha dos reaças contra o tribunal. O ódio aos ministros aumentou com a volta, vitoriosa, de Lula ao jogo eleitoral, com a resistência oferecida às sandices do biltre durante a pandemia e com a disposição de punir o golpismo. Nove meses depois daquele 8 de janeiro, dar corda e cartaz ao primitivismo mais abjeto sob o pretexto de enfrentar o ativismo dos magistrados é apostar na "devastidão" em que o "Deputado Pastor Sargento Isidório" nos revela o seu pensamento "clássico" e "universal" sobre binga e pepeca. É esse o caminho, Pacheco?
E agora o fim. Esta era a minha terceira jornada nesta Folha. Chega ao fim. Por quê? Não é por falta de leitores, sabemos todos. Recomendo que ouçam "Quereres", de Caetano. Eu e o jornal nos olhamos e nos dissemos: "Eu te quero (e não queres) como sou/ Não te quero (e não queres) como és". Vêm novidades por aí. Beijos.
A luta pela liberdade de imprensa nunca termina. E nossa trincheira agora é na justiça da Bahia.
O juiz George Alves de Assis impôs nova censura aoIntercept, em mais uma decisão que viola a Constituição vigente no país.
Neste texto, que você agora não pode ler, nós informamos a censura anterior imposta pelo mesmo juiz nos autos do processo 8120612-07.2023.8.05.0001, que corre na 7ª Vara Cível e Comercial de Salvador. É uma censura em dobro!
De acordo com a nova decisão de George Alves de Assis, não podemos falar nada a respeito do caso. Nem mesmo podemos nos referir ao autor da ação judicial.
Consideramos essa decisão absurda e ilegal. Nossos advogados estão recorrendo neste momento para que nosso direito de informar seja respeitado. E estamos lutando também pelo seu direito à informação. Essa é uma luta que envolve todos nós.
O Intercept foi criado para fiscalizar poderosos e responsabilizá-los por seus atos, e não cederemos em nossos princípios e em nossa missão.
Como somos uma redação sem fins lucrativos, financiada pelos leitores, nós precisamos que a nossa comunidade se una e nos ajude a derrotar mais esta tentativa de intimidação.
- - -
Veja nas tags os nomes dos interessados em silenciar Mãe Bernadete Pacífico, líder religiosa e líder do quilombo dos Palmares, na Ilha de Boipeba, na Bahia de Todos os Santos e de Todos os Pecados. Em matar Binho do Quilombo, filho de Mãe Bernadete Pacífico. Veja a manjada incompetência policial, e o mando dos capitães-do-mato, e barões do litoral, empresários costeiros das ilhas do Brasil
No dia 5 de junho deste ano, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal,manteve a ordem de uso de câmeras corporaispor policiais do Rio de Janeiro. Na ocasião, o magistrado lembrou que o prazo de 180 dias concedido pelo Plenário do STF ao governo fluminense, em fevereiro do ano passado, já havia se esgotado e questionou quanto tempo mais seria necessário para que fosse cumprida a determinação do Supremo, garantindo-se, assim, que todas as unidades de operações especiais estivessem usando as câmeras.
A ordem do ministro se deu na apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 — conhecida como ADPF das favelas —, que tramita no STF desde 2019. A ação foi ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e questiona decretos estaduais relacionados à segurança pública frente às recorrentes violações de direitos humanos pelas forças policiais nas favelas do Rio.
Uma das decisões provocadas pela ADPF ocorreu em 2020. Na ocasião, o Supremo impôs novas restrições à atuação dos agentes de segurança pública fluminenses, como veto ao uso de helicópteros blindados como plataforma de tiros e às operações em perímetros escolares e hospitalares.
Essa decisãotambém foi desrespeitada pelo governo do Rio. Em maio de 2021, uma operação policial deixou 28 mortos na Favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.
Na esteira das decisões que visavam a combater a letalidade policial no estado, Fachin determinou o uso de câmeras corporais (asbodycams) pelas forças de segurança fluminenses. Países como Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Chile e China utilizam o equipamento. No Brasil, o estado de São Paulo adotou a ferramenta e o resultado foi uma redução de 85% nas mortes em confrontos com policiais nas 18 unidades em que a novidade foi implantada, na comparação com o mesmo período de 2020.
Resistência Por meio de ofícios, representantes das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro se opuseram de forma clara ao uso de câmeras corporais. E, de 2019 para cá, a administração estadual do Rio têm adotado um comportamento, no mínimo, errático frente ao que foi determinado pelo ministro.
Em abril deste ano, o governador Cláudio Castro afirmou que não pretende obrigar forças especiais de segurança a utilizar o equipamento. Ele alegou que o uso do equipamento pode colocar em risco a segurança dos policiais.
"Sou contra nas questões específicas, de estratégia policial. Você mostra por onde anda, por onde entra. Enquanto eu não garantir essa segurança, e hoje não há como garantir, continuo sendo contra."
Operação no Jacarezinho, em 2021, já havia desrespeitado decisões do ministro Fachin Reprodução/TV Globo
Desde dezembro do ano passado — quando Fachin determinou pela primeira vez o uso das câmeras pelas forças policiais fluminenses —, houve muitos recursos do governo do estado contra a decisão e poucos atos administrativos para cumpri-la. Assim, a revista eletrônicaConsultor Jurídicoprocurou juristas e advogados para entender as possíveis consequências jurídicas da "rebeldia" do Rio.
O juristaLenio Streckexplica que, ao se negar a cumprir ordem do STF, o gestor público pode responder pelo crime de desobediência, descrito no artigo 330 do Código Penal.
"Em caso de reiteração de condutas, pode-se aplicar as regras de concurso de crimes, notadamente o concurso material (artigo 69, CP), quando há uma somatória das penas aplicadas; ou crime continuado (artigo 71, CP), que ocorre quando se aplica a pena e dela se aumenta até 2/3. Há de se pensar ainda acerca da possibilidade de responsabilizar o gestor público por omissão imprópria."
O advogadoGeraldo Barchi, do escritório MFBD Advogados, diz que, no caso em questão, o governador pode responder por improbidade administrativa, conforme indica a atual redação do artigo 11 da Lei 8.429/1992, que foi inserida no ordenamento jurídico por meio da Lei 14.230/2021.
Na mesma toada,Mozar Carvalho, sócio fundador do escritório Machado de Carvalho Advocacia, afirma que, além de responder por ato de improbidade, o governador pode cometer crime de responsabilidade ao descumprir determinação judicial.
"Em algumas situações, é possível que a recusa em cumprir uma ordem judicial seja caracterizada como crime de responsabilidade, previsto na Constituição Federal. Nesse caso, o governador poderia ser alvo de um processo de impeachment e até mesmo sofrer as consequências políticas e jurídicas decorrentes."
O advogadoCaio Almeida, do escritório Lopes & Almeida Sociedade de Advogados, também entende que a conduta do governador pode configurar crime de responsabilidade e que o caso deve ser apurado segundo o regramento legal estadual que estabelece o procedimento do impeachment.
Imagens apagadas No último dia 26 de agosto, o jornalista Guilherme Amado, do portalMetrópoles, informou que um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro apontou que a PM fluminense apagou e manipulou imagens das câmeras corporais.
Segundo a Defensoria, entre abril e julho deste ano, o órgão fez 90 pedidos de acesso a imagens de câmeras corporais e de viaturas. Desses, apenas oito foram atendidos. Mesmo assim, desses oito, três deram acesso a links sem imagens e quatro eram gravações manipuladas.
A revelação adicionou uma nova camada ao imbróglio, já que, além de não cumprir o determinado pelo STF em sua totalidade, as forças de segurança do Rio de Janeiro podem estar trabalhando contra a transparência nas ações policiais, objetivo da adoção das câmeras corporais.
ParaFernando Gardinalli, sócio do Kehdi Vieira Advogados, a prática — se comprovada — poderia ser enquadrada no crime de fraude processual, previsto no artigo 347 do Código Penal ("Inovar artificiosamente (...) o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito").
"Já se a manipulação da gravação tiver sido realizada com o objetivo de dificultar a investigação sobre um fato (isto é, não tiver havido alteração da cena do crime; a câmera, por exemplo, ficou dentro da viatura policial, sem filmar uma abordagem violenta ou mesmo ilegal), a hipótese seria de prevaricação, prevista no artigo 319 do Código Penal: 'Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal'", sustenta o advogado.
Lenio Streck entende que o caso pode ser enquadrado no crime de "supressão de documento" (artigo 305, CP), que, se público, pode chegar a uma pena de até seis anos de reclusão. "Porém, penso que somente poderia se falar na existência de tal delito em caso de destruição ou ocultação das imagens das câmeras. Isso por questão de taxatividade do tipo penal. Também entendo que, se a intenção do agente é apagar imagens de uma execução ou algo do gênero, também poderá se falar no crime de fraude processual (artigo 347, CP, com o aumento de pena previsto em seu parágrafo único)", explica ele.
No último dia 15 de agosto, o jornalO Globoinformou que, enquanto as ordens para redução da letalidade policial são discutidas no bojo da ADPF 635, ao menos dez crianças morreram no Rio de Janeiro vítimas da violência armada — três em operações policiais.
Em janeiro, já havia sido divulgado estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) que informou que as forças de segurança do Rio mataram 1.327 pessoas no ano passado. O número representa 29,7% de todas as mortes violentas no estado. Ainda assim, as imagens das ações da polícia fluminense continuam escassas.
Em qualquer curso de Jornalismo, especialmente nos primeiros semestres da graduação, não é difícil ouvir dos alunos que a escolha pela profissão já chamada por Gabriel García Márquez de“a melhor do mundo”tenha sido motivada por uma vontade genuína de transformar a realidade. Num primeiro momento, isso pode parecer inocência de calouro, mas esse desejo costuma estar no cerne da atuação de alguns jornalistas mesmo tempos depois da formatura — o que, por sua vez, pode gerar um paradoxo entre a paixão pelo ofício e a precariedade profunda com que muitos se deparam na carreira, como já apontouMark Deuze. Fato é que essa motivação não se restringe a repórteres e editores, as figuras clássicas do imaginário sobre jornalistas. Quem vai para “o outro lado da bancada” e assume funções nas assessorias de imprensa ou comunicação, não necessariamente abandona os valores e o compromisso social da profissão.
E este é um raciocínio especialmente válido para a realidade no Brasil, marcado por uma migração expressiva de jornalistas para funções fora da mídia. Diante das demissões crescentes, das condições desanimadoras de trabalho e dos baixos salários ofertados nas empresas de notícia, mais de 1/3 dos jornalistas brasileiros (34,9%) trabalham em atividades correlatas ao jornalismo e o maior percentual desses trabalhadores está nas assessorias de imprensa (43,4%). Os dados estão no relatório doPerfil do Jornalista Brasileiro 2021, que mostra ainda uma preferência desses profissionais por empresas ou órgãos públicos (17,1%), seguidos de agências de comunicação (15,1%) e organizações do terceiro setor ou da sociedade civil (10%).
Em países como os Estados Unidos essa separação, ao contrário, é bem demarcada: uma vez fora das redações, a identidade de jornalista se perde. Por aqui, os assessores mantêm os registros profissionais e continuam sendo reconhecidos (e se afirmando) como jornalistas. O mais importante, porém, é que muitos aliam o trabalho da assessoria ao compromisso com o interesse público. Conseguem direcionar para a defesa de pautas sociais urgentes, como a violência contra populações periféricas, o conhecimento acumulado sobre as diversas áreas da comunicação; o acesso privilegiado a fontes e informações; e a relação construída com repórteres, editores e produtores de veículos de imprensa. Mais do que oferecer uma pauta, esses profissionais contribuem para qualificar o próprio jornalismo.
Em Fortaleza, a campanha #11doCurió – Memória e justiça pelas vítimas da chacina, criada por profissionais das assessorias de comunicação de quatro instituições públicas e de uma entidade da sociedade civil, foi pensada com o objetivo de amplificar a voz de mães, familiares e sobreviventes da Chacina do Curió. Maior chacina registrada no Ceará até então, o ataque matou 11 jovens do bairro localizado na região conhecida como Grande Messejana, na capital cearense, na noite de 11 de novembro e madrugada de 12 de novembro de 2015. De acordo com o Ministério Público do Ceará, os assassinatos foram cometidos em vingança motivada pela morte de um policial também assassinado horas antes num bairro próximo. Entre os mortos na chacina, quatro eram adolescentes menores de idade, três tinham entre 18 e 19 anos e, entre os demais, apenas um tinha passagem pela polícia, por acidente de trânsito.
A campanha
Passados oito anos desde a chacina, a primeira sessão do julgamento dos 44 réus (todos policiais militares) estava marcada para 21 de junho de 2023. Em meados de abril, as equipes de comunicação da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Ceará, do Comitê de Prevenção e Combate a Violência da Assembleia Legislativa e do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca/Ceará) se reuniram. “Era preciso unificar a comunicação e criar uma unidade visual que retratasse os crimes”, conforme texto disponível no site da Defensoria, a fim de mobilizar a sociedade para buscar a responsabilização dos crimes.
Além de umsiteque reconta os fatos daquela noite trágica e resgata as histórias de cada um dos 11, a campanha incluiu umperfil no Instagrame uma identidade visual que se estenderia em banners, adesivos, camisas e faixas usados por aqueles que se uniam às mães para pedir justiça para as vítimas do Curió. O bairro, curiosamente, leva o nome de um pássaro. “É um canto bonito este que se une em solidariedade e em rede por justiça. Embora cheias de dores e de ausências, essas Mães conseguiram selar na história – graças a sua mobilização – o nome dos 11 do Curió, em favor da justiça. Assim como elas se reuniram, as instituições também se unem para um somatório de forças”, continuam em nota os assessores que assinam as peças.
Além das inserções na mídia
Em 12 de maio, o perfil na rede social foi lançado e, de forma inteiramente orgânica, chegou a alcançar quase 60 mil contas em 30 dias. Entre os conteúdos, a história das vítimas, mobilização de parceiros, a cobrança por justiça, orientações para quem pretendia acompanhar presencialmente o julgamento e um balanço diário do júri. A iniciativa passou a concentrar as informações sobre o caso, unificando a comunicação e fortalecendo a mobilização social, sempre na perspectiva das mães das vítimas e não de uma ou outra instituição.
A imprensa, especialmente a local, que acompanhava o caso com grande atenção desde 2015, ganhou um novo fôlego para a cobertura. Mais do que revigorar a pauta, que com o início dos julgamentos seria naturalmente retomada, a campanha deu mais visibilidade ao caso — contabilizando mais de 60 reportagens em menos de 15 dias, incluindo reportagens noFantásticoe no Jornal Nacional — e ampliou o debate para além dos 11 do Curió, localizando a tragédia dentro de um contexto nacional vivido nas periferias do País. De acordo com oAnuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, entre as 47.508 mortes violentas ocorridas em 2022, 91,4% das vítimas eram do sexo masculino, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos. Somente no ano passado, 6.429 pessoas foram mortas em intervenções policiais, uma média de 17 por dia.
No último sábado (16), saiu a sentença do terceiro julgamento da Chacina do Curió. Até agora, seis policiais foram condenados à prisão e 14 foram absolvidos. No primeiro Tribunal do Júri, as penas de quatro réus somaram 1.103 anos e 8 meses de reclusão, com regime inicial de cumprimento fechado, e neste último julgamento as penas chegaram a 223 anos. Ainda restam cerca de 30 réus a serem julgados e não há novas datas para os julgamentos.
A campanha #11doCurió deve seguir acompanhando a luta de familiares, mães e sobreviventes da chacina, colocando na prática aquela ideia aparentemente ingênua de quem ainda acredita que é possível transformar a realidade, partindo dos instrumentos do ofício para dar protagonismo a quem e ao que de fato precisa ser colocado em evidência.
PMs ameaçaram matar crianças e obrigaram que elas se jogassem em esgoto em Guarujá, diz Defensoria Pública
247 -Policiais militares ameaçaram matar crianças durante as ações da Operação Escudo na Baixada Santista (Chacina noGuarujá), em São Paulo, apontam denúncias constantes em relatos colhidos pela Defensoria Pública de São Paulo, informa a jornalistaMônica Bergamo na Folha de S.Paulo.
Os depoimentos foram feitos por pessoas que testemunharam abusos praticados pelos policiais.
Um dos relatos aponta que policiais abordaram crianças para questioná-las sobre a localização de supostos traficantes da região no momento em que elas brincavam em um campinho de futebol.
"Como se recusaram a informar o solicitado, [os policiais] mandaram que se jogassem no canal caso não quisessem morrer. O canal recebe água de esgoto e mangue. Nenhuma criança se afogou porque logo em seguida foram socorridas por suas genitoras", aponta um relatório do depoimento, obtido pela jornalista.
Outro relato aponta que a população da Baixada Santista vive aterrorizada com as atrocidades da PM. Nas palavras de uma testemunha, é só a polícia subir no morro que "morre pessoas".
Ao longo da ação, que foi encerrada na quarta (6), ao menos 28 pessoas foram mortas, o que a tornou a mais letal da polícia paulista desde o Massacre do Carandiru, chacina em que 102 presos foram assassinados por PMs em 1992, informa a Folha de S.Paulo.
NASSIF COMENTA A CHACINA NO GUARUJA: "QUANDO O GOVERNADOR LIDERA A VIOLÊNCIA, NINGUÉM SEGURA"
Os Cid: pai e filho protagonizam novela que envolve a alta cúpula do Exército e compromete a credibilidade das Forças Armadas sobre participação em ilicitudes políticas como poucas vezes na história (Crédito:Fátima Meira/Futura Press/Folhapress; Fernando Souza/AFP) Tal pai, tal filhote que chama Bolsonaro de tio
Marechal de contracheque embolsa salário de contrabandista de joia, de latifundiário grileiro de terras, de empresário minerador de ouro e pedras preciosas na Amazônia, de militar chefe de embaixada nos Estados Unidos e Europa, e de leiloeiro de empresas estatais do Brasil sem lei. Publica Istoé:
É até surpreendente a facilidade com que o capitãoJair Bolsonaroconseguiu cooptar setores militares para seu movimento golpista. Ele precisou demitir a cúpula das Forças Armadas em março de 2021 na maior crise na caserna desde a redemocratização, mas em seguida conseguiu um comando mais dócil noMinistério da Defesa, que inclusive o ajudou a questionar a integridade das urnas eletrônicas. O festival de acampamentos golpistas em frente aos quartéis até janeiro mostrou que a adesão não era limitada e nem silenciosa.
Os ataques de 8 de janeiro colocaram em xeque a adesão dos fardados ao golpe. Oito meses depois, porém, a despolitização da caserna ainda é um sonho distante e asrevelações da PF comprometem cada vez mais militares na miríade de ilicitudes do ex-presidente.
O mais recente constrangimentocaiu como uma bomba no Alto-Comando do Exército:a revelação de que o general reformado Mauro Lourena Cid participou da venda nos EUA de joias recebidas por Bolsonaro.
Antigo colega de Bolsonaro naAcademia Militar das Agulhas Negras, Lourena Cid foi escolhido pelo então presidente para chefiar o escritório daApexem Miami. Seu filho, o tenente-coronel Mauro Cid, é o notório ex-ajudante de ordens do capitão.
Essa família castrense mergulhou a instituição numa crise que parece não ter fim.
Lourena Cid não era um general qualquer. Quatro estrelas, integrou o Alto-Comando do Exército. Nos últimos meses, vinha exercendo sua influência em uma peregrinação junto a integrantes da cúpula do Exército para interceder pelo filho preso.
O fato de ele próprio ter sido enredado no escândalo (com foto e tudo dele segurando um kit de joias para ser negociado) escandalizou os colegas e trouxe inquietação.
Um militar ligado ao Alto-Comando diz que o sentimento é detraição.
“Ele era recebido e ouvido sempre que nos procurava. Mas o fato de ter omitido que tinha emprestado a conta bancária lhe fechou as portas. O sentimento é de quebra de confiança. Pior: já não sabemos mais o que esperar. Pode ser que ele esteja ainda mais envolvido do que sabemos até o momento”, afirmou.
E acrescentou: “Estamos com opé atrás. Seguimos respeitando o posto do general Lourena Cid. Isso não dá para deixar de ter.Mas ele está sozinho”.
Esse oficial defende o “expurgo” para quem fere a “honra militar” e diz queé dado como certo que Mauro Cid deve perder a patente após a condenação na Justiça. “A probabilidade é gigantesca”, afirma.
Mesmo encarcerado, o tenente-coronel mantém corrida e exercícios diários, sempre sob vigilância de policial do Exército (Crédito:Cristiano Mariz)
Encarcerados civis amontoados sem banho de sol e sem banho de lua e sem banho de chuva e chuveiro
Mauro Cidestá preso no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília desde o dia 3 de maio, onde segue uma rotina de exercícios físicos diários e leituras, inclusive dosseis inquéritos em que é investigado.
A primeira dor de cabeça do tenente-coronel veio com sua participação na divulgação ilegal de uma investigação sigilosa da PF sobre um ataque hacker ao TSE.Bolsonarousou os documentos em uma live para tentar desacreditar as urnas.
O inquérito vazado havia sido divulgado em um site bolsonarista por outro membro do clã, o irmão de Mauro,Daniel Cid. Daniel atua na área de segurança digital na Califórnia, onde comprou uma mansão avaliada em mais de R$ 8,5 milhões.
A família tem uma empresa registrada no país, aCid Family Trust. ACPMI dos Atos Golpistas já aprovou requerimentos para investigar quais empresas o pai e os dois filhos têm no exterior.
Mas essa pista ainda está travada. O presidente da comissão,Arthur Maia, não permitiu a votação do requerimento que estenderia essa apuração àmulher de Mauro Cid,Gabriela Santiago Ribeiro Cid, além de outros membros da família.
Sobre as volumosas movimentações bancárias de Mauro Cid depois de sua prisão, elas teriam sido realizadas por Gabriela, pois trata-se decontas conjuntas.
Walter Delgatti teve o sigilo quebrado a pedido da CPI dos Atos Golpistas, que em ato contínuo reconvocou Mauro Cid (Crédito:Mateus Bonomi )
Visitas
O dia a dia de Mauro Cid no Batalhão não é exatamente espartano. Tem um quarto com TV e frigobar. Chegou a receber 73 visitas até junho, boa parte de apoiadores do ex-presidente, como os generaisEduardo PazuelloeHamilton Mourão.
Mas os negócios com joias e Rolex complicaram tudo. Ele agora só pode receber parentes.O pai, general Mauro Lourena Cid, perdeu o direito de visitar o filho.
Esse último desdobramento também fez Mauro Cid trocar o defensor. Seu novo advogado,Cezar Bitencourt, chegou a sugerir que o cliente iria fazer uma confissão e apontar Bolsonaro como mandante do esquema de venda de joias. Depois, se desdisse e passou a dar versões contraditórias.
Agora, planeja uma audiência com o ministroAlexandre de Moraes, relator dos inquéritos no STF, para tentar melhorar a situação do cliente.
À ISTOÉ, ele disse que só tinha tido duas conversas com o cliente até a última segunda-feira, em que sequer o tema da confissão foi tratado.
Também afirmou que fará a defesa do pai de Mauro Cid, caso seja aberto alguma ação contra ele.
Militares apontam que o general Lourena Cid pode até mesmo ter sua aposentadoria cassada pelo Superior Tribunal Militar (STM). E a mesma corte pode cassar o posto e a patente de Mauro Cid.
Mas, para os militares, essapenalização na esfera militardepende primeiro da condenação naJustiça criminal.
O generalCarlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, diz que nunca trabalhou diretamente com Lourena Cid, mas elogia o companheiro de farda. “Sempre foi um militar com boa performance profissional. Em processos de merecimento e escolha percorreu todos os postos da carreira.”
Já o filho, para ele, “é um rapaz de conduta profissional de destaque. Como Ajudante de Ordens, sempre se mostrou um rapaz educado, atencioso.”
Sobre o argumento de que Mauro Cid teria apenas cumprido ordens, Santos Cruz, um dos fardados que romperam com Bolsonaro, é bastante crítico.“Acho os fatos lamentáveis. Se o presidente sabia ou não das iniciativas dos seus subordinados diretos, é necessário uma conclusão das investigações. Mesmo que se considere difícil ou improvável um subordinado tomar certas iniciativas sem o conhecimento do seu chefe, isso precisa ser esclarecido e comprovado”, afirma.
Como os colegas, ele tentaseparar a instituição dos elementos que mancharam a Força. “É importante separar as coisas. Os fatos são de responsabilidade individual e não de responsabilidade institucional.”
Outro oficial que atua com o Alto-Comando cerra fileiras com o mesmo argumento:“Ordem ilegal ou absurda não se cumpre”.
Para esse militar, “a forma como Mauro Cid agiu na Ajudância de Ordens não é adequada,aquela subserviência toda não é papel de militar, não nos serve.” (continua)
O tempo presente vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos
por Alexandre Aragão de Albuquerque
- - -
Braço forte, mão leve, cara lisa. Em 11 de julho o tenente-coronel do Exército brasileiro, Mauro Cesar Barbosa Cid (Mauro Cid), ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro e filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, preso desde maio por ser objeto de oito investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou-se fardado para prestar depoimento na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que apura o atentado golpista de Estado perpetrado no dia 08 de janeiro contra a democracia brasileira.
Esse evento, denominado pelos arruaceiros criminosos de “Festa da Selma”, ocupando e depredando os prédios dos Três Poderes, uma turba coordenada e alimentada ao redor dos quartéis em diversas partes do Brasil, desde o final do pleito de outubro de 2022, demonstrava publicamente o grau de comprometimento daquela força militar com a quadra tenebrosa vigente com a chegada do bolsofascismo ao poder executivo central. Fardado naquela sessão da CPMI, o tenente-coronel Mauro Cid apresentava-se não como uma pessoa individual, mas como uma pessoa coletiva, um representante da instituição.
Para ajudar na compreensão da enorme assimilação de Jair Bolsonaro no Exército, é preciso olhar para a Academia Militar Agulhas Negras (Aman), principalmente para a turma de 1977. Se sua reabilitação naquela força terrestre já havia ocorrido exemplarmente na formatura dos cadetes em 2014, ou seja, bem antes das eleições de 2018, esse processo foi coroado com a chegada, ao topo do poder militar, de seus contemporâneos da Aman. Quando assumiu a presidência do Brasil, quatro dos seus colegas de turma exerciam o posto máximo da carreira: os generais Mauro Cesar Lourena Cid (pai do tenente-coronel Mauro Cid), Carlos Alberto Neiva Barcellos, Paulo Humberto Cesar de Oliveira e Edson Leal Pujol haviam sido promovidos a generais de exército (quatro estrelas).
Edson Leal Pujol, como se sabe, foi nomeado comandante do Exército. Lourena Cid foi nomeado Chefe do Escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), em Miami – EUA. Paulo Humberto virou presidente da Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios. E Neiva Barcellos assumiu, em Genebra – Suíça, o posto de conselheiro militar junto à representação do Brasil na Conferência do Desarmamento na ONU.
Mas, além disso, as boas relações dos integrantes da turma da Aman 1977 com o Executivo Federal (Jair Bolsonaro) se estenderam para além do seleto grupo de generais quatro estrelas. Para ficar num único exemplo, o general de brigada (duas estrelas) da reserva Cláudio Barroso Magno Filho atuou como lobista ativo de mineradoras brasileiras e canadenses com interesses em exploração em áreas indígenas, tendo sido recebido pelo menos dezoito vezes no Planalto. (Cf. VICTOR, Fábio.Poder camuflado, Companhia das Letras).
Visando mensurar a dimensão do fenômeno de cessão de integrantes das Forças Armadas para exercer funções de natureza civil no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022 foram produzidos inúmeros levantamentos. Coube ao Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do ministro Bruno Dantas, uma dessas investigações, identificando a presença de 6.157 (seis mil, cento e cinquenta) militares exercendo funções civis na administração pública federal em 2020.
Como atesta o pesquisador Fábio Victor, os benefícios, privilégios e agrados dos mais variados a integrantes das Forças Armadas foram um dos fortes sintomas da militarização da gestão pública federal sob o bastão de Bolsonaro, mostrando abertamente que não se tratava apenas de um governo de militares, mas também para militares. Um dos fortes sinais desta situação pode ser facilmente constatado pela manobra autorizada pelo ministério da Economia de Paulo Guedes, garantindo supersalários para vários militares em altos postos na Esplanada. Generais palacianos como Augusto Heleno (o pequeno), Braga Netto e Luís Eduardo Ramos começaram a ganhar R$60 mil por mês, acima do teto máximo constitucionalmente permitido equivalente ao vencimento dos ministros do STF (op. cit.).
Voltando um pouco na história, importante relembrar que, na véspera do julgamento doHabeas corpusem 04 de abril de 2018, para garantir liberdade ao então ex-presidente Lula, autorizando-o a concorrer à eleição presidencial daquele ano, o general quatro estrelas, da reserva, Luís Gonzaga Schroeder Lessa, que fora comandante militar do Leste e da Amazônia, rosnou numa entrevista concedida ao jornal golpista O Estado de São Paulo: “Se acontecer [o habeas corpus], aí eu não tenho dúvida de que só resta o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem” (Supremo pode ser indutor da violência.O Estado de S. Paulo,03 de abril de 2018).
Às 20h39, do mesmo dia 03 de abril, o general três estrelas Otávio Rego Barros (que viria a ser porta-voz da presidência na gestão Bolsonaro), auxiliar direto de Eduardo Villas Bôas, disparou o tuíte, na página oficial do seu superior, a ameaça do então comandante do exército ao Supremo Tribunal Federal: “Asseguro à Nação que o exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social, à Democracia,bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Resultado já sabido, no dia seguinte, o STF negou oHabeas corpusao então ex-presidente Lula. Jair Bolsonaro chegou ao poder executivo central com sua companhia de militares, a partir do histórico emparedamento do Supremo por generais do exército. O autoritarismo seria o traço desta gestão presidencial.
No dia 02 de janeiro de 2019, na cerimônia de posse de cargo do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, o já presidente Bolsonaro discursou:“General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.Em resposta a Jair Bolsonaro, no dia 11 de janeiro, na transmissão do comando do exército para Pujol, Villas Bôas disse:“A nação brasileira festeja os sentimentos coletivos que se desencadearam a partir da eleição de Bolsonaro”.
Pergunta-se: que sentimentos seriam? A exacerbação da violência social e estatal, da discriminação, da elevação do autoritarismo, da subserviência ao poder estadunidense, da perda da credibilidade internacional do Brasil, do desmonte e entrega do patrimônio público ao capital privado, da propagação indiscriminada defake news, do ataque sistemáticos às urnas eletrônicas e aos Tribunais Superiores, do descaso pelas pautas populares, da insensibilidade diante da miséria a que o povo brasileiro esteve submetido durante os quatro anos do governo passado? Este foi o projeto militar bolsonarista?
O tempo presente, depois do retorno à democracia com a reeleição do Presidente Lula em 2022, vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos, cínicos, como ocorreu em 2016 e aprofundou-se em 2019, com o objetivo de manter a concentração de renda e poder nas mãos de pouquíssimos privilegiados, avessa a qualquer horizonte democrático alicerçado na liberdade e na igualdade substantivas, bem como na justa distribuição dos bens produzidos socialmente.
Mas agora o ditador está nu e precisa ser combatido tenazmente por toda a sociedade democrática. A nudez do ditador faz lembrar aquele conhecido poema colegial: “Um coleguinha me deu a cola / Eu a distribuí com a tropa / Dos mais argutos aos mais carolas / Todos chafurdaram gatunamente nas pedrarias / A farsa repetindo-se pela histórica e reincidente malandragem da companhia”.
Mães e mulheres negras da Baixada Santista assumem a posição de porta-vozes das denúncias em ato realizado nesta quarta (3/8) no Guarujá | Foto: Ailton Martins
À frente da manifestação ou subindo o morro junto de filhos e maridos, elas garantem a vida diante do massacre promovido pela PM. Ouvidoria escuta famílias das 16 vítimas fatais, que denunciam invasão de casas, tortura e tiros à queima-roupa
Evandro Belém tinha 34 anos, era ajudante de obras, mas, nas palavras de um familiar, era o parente mais bondoso entre os seus, o cara que vivia convicto de que não precisava desejar mal para ninguém. “E sabe, eu acho que é por isso que ele morreu: afinal ele não correu e ficou no lugar quando a polícia apareceu, porque, na cabeça dele, não tinha motivo para ter medo, já que ele não tinha machucado policial nenhum e, se soubesse da morte de algum, ele ia era rezar por ele”, conta o familiar, que preferiu não se identificar, mas compareceu ao ato “Ser Pobre Não É Crime”, organizado por movimentos sociais da região da Baixada Santista, litoral do estado de São Paulo, na tarde desta quarta-feira (2/8) na praça 14 Bis, em Vicente de Carvalho, distrito do Guarujá.
Os movimentos da região promoveram um encontro entre moradores da Baixada com uma comitiva formada pela equipe da Ouvidoria das Polícias, Defensoria Pública e parlamentares da Câmara Municipal de São Paulo e da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), além de pesquisadores e organizações diversas da capital, preocupados com a situação vivida pelos caiçaras.
Orientados por movimentos sociais da região, o ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, também percorreu as comunidades para começar a escutar as famílias das 16 vítimas fatais da Operação Escudo, ação policial deflagrada após a morte do PM Patrick Bastos de Oliveira, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), na quinta-feira passada (27/7). A operação,que deve durar 30dias segundo o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), foiconsiderada “vingança”por especialistas ouvidos pela Ponte.
“Ser pobre não é crime”, o tema da manifestação, combate o que a advogada Dina Alves aponta como o alvo da Operação Escudo: o extermínio de negros e periféricos | Foto: Ailton Martins
Claudinho conta que deve publicar um relatório completo nas próximas semanas, para apontar irregularidades cometidas pela polícia durante as mortes – que, frisa o ouvidor, certamente ocorreram – e indicar até que ponto as versões oficiais de confronto entre vítimas e agentes do Estado foram reais ou estão muito distantes das versões dos sobreviventes – invasões à residências, relatos de tortura e tiros à queima roupa.
“As pessoas que estamos escutando não estão pedindo nada demais, elas querem paz. Nós vamos produzir um relatório com conteúdos probatórios de irregularidades que estão sendo feitas, e o Estado não tem o direito de cometê-las contra pessoas comuns que ele deveria estar acolhendo”, comenta o ouvidor.
Encruzilhada pela memória dos mortos
O ajudante de obras morreu na tarde da última sexta-feira, 28 de julho, enquanto recolhia entulhos para ajudar na reforma da casa de uma moradora da comunidade da Aldeia, no município do Guarujá. Ele foi abordado por policiais que, segundo testemunhas, já chegaram atirando. Evandro morreu no local.
A família de Evandro compareceu no ato da praça 14 Bis após ter enterrado o caiçara horas antes. Até o momento da despedida, familiares contam que enfrentaram uma longa jornada a partir do instante em que receberam o primeiro aviso da sua morte: precisaram contar com a ajuda de amigos para comprar a passagem até a delegacia, só para ouvir que não teriam acesso a informações corretas; depois precisaram de ajuda para viajar por mais de duas horas de balsa e de ônibus até o Instituto Médico Legal, na cidade de Praia Grande, para ouvirem, lá, que precisariam pagar caso quisessem o acesso completo ao laudo que indica como Evandro morreu:
“A mulher para quem ele estava catando entulho foi nos avisar que ele não tinha voltado, aí a gente foi procurando e começamos achar que ele era a pessoa que a polícia tinha matado ali naquela tarde. A gente teve que escutar no IML da Praia Grande que, para saber como ele morreu, teríamos que pagar R$ 75 e só mostraram uma foto dele no computador”, denuncia um dos familiares. A pessoa também conta que a comunidade local teria visto o momento em que uma segunda vítima foi colocada no camburão da polícia e levado para a comunidade da Conceiçãozinha, onde teria sido morto.
Mulheres à frente
Por não serem o principal alvo, são as mulheres que também aceitaram falar com a imprensa presente no local. Única moradora da região que escolheu sair do anonimato, Edna Santos compartilhou o que soube da morte de Cleyton, um dos assassinatos que mais revoltou os moradores do Guarujá.
“A mídia fica passando que teve troca de tiros com a polícia, que ele estava com droga, mas era tudo mentira. Tem inocente morrendo também, até quem não tem passagem pela polícia”, contou.
A sensação de que as mulheres precisam ser a principal fonte de denúncia das mortes faz parte de uma estratégia de sobrevivência. Nas comunidades em que a polícia aparece invadindo casas, são as chefes de família que lembram que é proibido entrar em residência sem mandado judicial. Para subir o morro, os homens estão pedindo para que suas mães, companheiras e filhas estejam do seu lado.
“Eu preciso falar isso sempre, porque é impressionante que meu filho adolescente não pode sair para ir na esquina que já leva enquadro. Na minha casa ninguém entrou não, mas é difícil segurar e acabei vindo aqui falar porque sou mãe de seis e também não quero que outras mães continuem aceitando isso que estamos passando”, falou uma moradora da favela da Prainha, que pediu para não ser identificada. Ela conta que mora há 37 anos na comunidade e que nunca viu ações parecidas como as que estão sendo realizadas pela Rota nos últimos dias.
Movimentos de mães de vítimas de outros massacres, como as Mães de Paraisópolis, vieram de São Paulo apoiar as famílias do Guarujá | Foto: Ailton Martins
As mulheres também lideram as ações de solidariedade entre mães e esposas enlutadas. Mãe de Luis Fernando, assassinado em fevereiro de 2023, Sandra veio para o Guarujá com as Mães de Maio porque queria, segundo ela, demonstrar o apoio de uma dor que ainda está construindo a partir do seu luto recente:
“Todas nós que estamos aqui não dormimos direito, não comemos, porque a gente sabe o que essas famílias estão passando e isso precisa mesmo acabar”, conta.
Para Luana de Oliveira, integrante da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, é importante que os movimentos sociais que compuseram o ato reforcem o compromisso de permanecer lado a lado com os movimentos da Baixada Santista. Ela assegura que as manifestações só começaram e que devem haver mais atos.
“Temos que fazer outros atos, já que o governador disse que está satisfeito e que as operações não vão parar”, pontua.
Na manifestação, ela também trouxe a necessidade de enxergar as mortes a partir da disputa pela narrativa: não deixar que as histórias das vítimas sejam esquecidas e trocadas por versões convenientes pela polícia:
“As mães que já são vítimas do genocídio também lutam para que não sejam vítimas do genocídio da memória, em que querem que a gente aceite a versão que eles [autoridades] querem contar sobre as mortes, mas não podemos esquecer do que aconteceu de verdade”, alerta.
Nas redes sociais, as mães não estão sozinhas. Segundo o relatório da consultoria de pesquisa Quaelst, a repercussão dos internautas sobre a Operação Escudo tem sido muito negativa: as declarações do governador Tarcisio de Freitas geraram mais de 227 mil menções nas diversas plataformas digitais (Youtube, Twitter, Facebook, Google, Instagram) até a última terça-feira (01/08), a maioria críticas à atuação da polícia na Baixada Santista.
Um método para matar
Os relatos sobre a morte da vítima que estava com Evandro Belém seguem um padrão identificado em versões dadas sobre moradores em relação a outras pessoas: policiais estariam sequestrando e levando vítimas para serem mortas fora do seu território, buscando atrapalhar investigações e o reconhecimento das pessoas mortas. Moradores de situação de rua também estariam entre os alvos, já que muitas vezes as pessoas não conhecem suas histórias, tampouco seus nomes.
“Fazem isso pra gente não saber quem está morrendo, já que a gente só pode falar de quem morreu aqui. O Cleyton a gente sabe como morreu porque ele era da nossa comunidade, todo mundo aqui convivia com ele e sabe que [a versão policial] foi tudo encenação. Tiraram o filho dele do colo, ele foi colocado num canto e atiraram sem que ele estivesse armado”, contou uma moradora de Conceiçãozinha, que preferiu não se identificar. A morte de Clayton repercutiu entre os moradores do Guarujá pela presença dos filhos dele no momento de seu assassinato.
Moradores presentes na manifestação, de diferentes bairros do município, comentam que boa parte das mortes teriam acontecido a partir do mesmo procedimento da PM: invasão de domicílio, homens tatuados e com antecedentes criminais como alvo – mesmo quando estão seguindo suas vidas fora do crime – e encenação de um local da morte, com arma e drogas que teriam sido “plantadas” pelos policiais.
Essemodus operandijá teria chegado a Santos, maior cidade da região. Matheus Café, líder do Centro dos Estudantes de Santos e Região, falou ao microfone durante o protesto, denunciando que, na favela do Alemôa, a arbitrariedade da polícia começou bem antes dos ataques no Guarujá: no início da semana passada, ele conta que os moradores receberam os primeiros avisos de que haveria o fechamento do comércio da região por causa de uma operação da polícia contra o tráfico na Baixada. Apesar das ações não terem mortes, Matheus relata ameaças e agressões a moradores do local.
“A gente não aguenta mais projeto de genocídio da juventude. Eu não aguento mais sair da minha casa e sentir medo de ir para a universidade”, desabafou.
Advogada e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, Dina Alves morou durante dezessete anos no bairro do Morrinhos, no Guarujá, um dos locais em que há relatos de mortes. Para ela, o ato, mais do que um momento de visibilidade sobre a violência na Baixada Santista, também é uma oportunidade para reforçar a importância de lembrar o racismo presente nas mortes – tipo de genocídio que, para ela, é um projeto de governo.
“Essa Operação Escudo diz ser um combate à criminalidade, morreu um policial e o discurso é que é preciso combater a criminalidade, mas ela esconde um projeto de exterminio da população negra, já que o perfil do suspeito padrão e da morte no Brasil é o jovem negro periférico. Não é sobre o combate às drogas, não é porque morreu um policial no Guarujá, é porque é preciso que esse projeto de extermínio esteja em curso”, ressalta a pesquisadora, lembrando que na Bahia ações policiais também estão deixando um rastro de mortes: foram 19 vítimas apenas nesta semana.
A paz que morre na praia
O sentimento de apoio generalizado flertou, muitas vezes, com a esperança de que estivéssemos diante do início do fim da matança. Mas entre caiçaras periféricos, aquele velho medo que existe no ditado de “tentar não morrer na praia” voltou nos minutos finais da manifestação, em que todos estavam dispostos a gritar juntos por esperança e registrar uma foto coletiva: chegou aos grupos de moradores e movimentos sociais da região a informação de uma nova morte no Morro do Engenho, também no Guarujá.
A vítima teria levado nove tiros à tarde. A equipe da ouvidoria encaminhou-se imediatamente ao local, enquanto Dina Alves pegava o microfone para relatar a angústia compartilhada no momento pelos presentes:
“A gente pede, pelo amor de Deus, que retirem essa operação! Essa operação que ninguém sabe quais os objetivos e quais as finalidades”, criticou. Ela também contou que a trégua continua muito longe de terminar, graças ao aval do governo estadual e da ausência do governo federal que ainda não desceu a Serra do Mar.
“Profissionais da segurança pública não podem usar o discurso da vingança para fazer segurança policial”, ressaltou.
Mais tarde, soube-se que não houve morte no local, mas que os tiros foram disparados no Morro pela Romu(Rota Ostensiva Municipal) da Guarda Municipal do Guarujá. Dois jovens foram abordados, mas imediatamente soltos, em movimento lido como uma forma de intimidar os moradores e lembrar que está longe de acabar o fim da contagem dos atos de violência cometidos pelo Estado na Baixada.
“Qual a razão da ROMU estar estimulando o pânico num contexto já tão difícil”, questionou Dimitri Sales, advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa os Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo (Condepe), no Twitter:
Defensoria Pública oferece ajuda gratuita
Os defensores públicos do Guarujá, presentes no local, compartilharam um sentimento de alívio por encontrarem um momento para conhecer alguns dos familiares das vítimas. Eles contam que, apesar de a Defensoria Pública ser muito procurada pela população para diversos casos, as pessoas ainda têm dificuldade para procurar os profissionais em busca de assistência para histórias de violência policial.
Preferindo não se identificar, eles compartilham que escutam, de defensores mais velhos, que o massacre dos últimos dias só se aproxima dos Crimes de Maio – uma sensação também já mencionada por locais em diversos pontos da Baixada Santista. Mas por ora, eles preferem se amparar na impressão de que a visibilidade nacional e internacional dos casos vai ajudá-los a ter uma atuação mais efetiva para as famílias.
“É importante que a comitiva que veio de São Paulo tenha esse momento de troca com as famílias aqui, porque é importante vivenciar de fato o que estamos vivendo na Baixada. E isso nos dá mais confiança para contar aos moradores que eles não estão sozinhos, que estamos levando isso para o governo, pessoas que não são daqui e estão nos fortalecendo”, refletiu um dos defensores.
No Guarujá, a Defensoria Pública pode contribuir para ajudar famílias a ter informações sobre violências cometidas contra moradores, encontrar orientações para buscar por reparação do Estado e por proteção diante de ameaças. A Defensoria funciona de segunda à sexta, das 10h às 17h, com atendimento imediato e garantia de sigilo das vítimas. O prédio fica na Av. Ademar de Barros, 1327 – Jardim Helena Maria, Guarujá.
Escuta sem protocolo de segurança
Diante de ummodus operandide chacina que se repete de comunidade para comunidade, como garantir um registro que possa ser uma prova incontestável deabuso policial já que, aparentemente, a Operação Escudo – e, consequentemente a matança – segue nos próximos 30 dias.
Horas antes da manifestação, durante a manhã desta quarta-feira (2), um morador do bairro Conceiçãozinha se dispôs a falar, contando em detalhes a invasão da polícia a residências da região na noite anterior. Rodeado por câmeras em uma coletiva de imprensa improvisada em um beco das primeiras entradas do Conceiçãozinha, o senhor não queria aparentar medo, mas era lembrado pelo ouvidor a todo momento que falar era necessário, mas se proteger muito mais.
Mas a convicção da coragem aparece apenas em quem acredita que não tem mais nada a perder. Porque, para boa parte dos moradores, a necessidade de falar esbarra, quase sempre, nas dúvidas sobre em quem confiar. Por outro lado, quem busca documentar as histórias e os dados também não encontra asfalto confiável por onde andar nos morros em que aconteceram as mortes que já se têm notícia.
Não existe um manual para se sentir mais seguro enquanto oferece a escuta, e evitar mais espaço para a represália da polícia. Na corrida corrida contra o tempo para trazer mais relatos que possam chocar a ponto de frear a matança, os moradores mostram áudios e prints de possíveis cenas de tortura ou de assassinatos, e na rua é difícil buscar fontes que confirmem a veracidade do que chega, já que de um lado há um boletim de ocorrência tratando todos como suspeitos, e de outro há uma desinformação muitas vezes alimentada pelo medo.
Mas nem todos estavam dispostos a receber a comitiva. Apesar da presença de órgãos importantes para a proteção das denúncias das arbitrariedades cometidas pelo Estado, a atenção da imprensa local e de veículos televisionados que, em muitos momentos, registraram fotos e vídeos dos moradores, deixaram no local um sentimento conflituoso de alívio pela escuta, e medo de uma exposição que não foi consentida. Afinal, apesar do pacto coletivo de poupar a identificação das fontes, tantos flashes inesperados espantaram alguns moradores pela perda do controle de saber o destino final de tantos registros.
“Tio, aqui não tem só polícia não, o PCC também está por aqui e é difícil falar depois pra eles que a gente não está falando com policial e sim com quem quer ajudar”, reclamou um jovem que conversou com o ouvidor.
Questionados pela reportagem no momento da caminhada, assessoras de movimentos sociais e de deputadas da região conseguiram sensibilizar a equipe da Ouvidoria e dos parlamentares da capital para que tivessem mais zelo sobre o compartilhamento da escuta com os veículos, e a imprensa acabou vetada das visitas seguintes.
Mais tarde, o ouvidor das polícias defendeu a presença midiática para escutar as famílias, diante do apagão de dados da Secretaria da Segurança Pública e das intimidações quase diárias para que as comunidades não ajudem a aumentar os registros oficiais das mortes:
“Acho que muitos moradores querem falar, e a imprensa de fato está expondo essas pessoas, mas isso é relevante expor. A opinião pública, o mundo, o planeta, precisa saber o que está acontecendo na Baixada Santista, e é expondo que conseguimos mobilizar nossos sentimentos e acredito que a comunidade está precisando que a gente entregue nosso apoio”, defende.
Ativistas que pediram para não se identificar questionam se os políticos presente nas comunidades e no ato desta quarta (2) vão continuar acompanhando as famílias sobreviventes até 2024, ano das eleições municipais. E se haverá um esforço maior, da imprensa, após as histórias visibilizadas agora, em trazer nomes das vítimas e contexto real das suas mortes, ao invés de só justificá-las como “suspeitos” ou com passagem pela polícia.
Carta aberta ao ministro Flávio Dino
Diante das novas brutalidades da polícia contra negros e pobres, em três estados, tomo a liberdade de compartilhar algumas observações e propostas. Ao longo de décadas, acumulei mais derrotas que vitórias. Por isso mesmo, me permito algumas ponderações
Política agrícola: Assim o agro vampiriza o Estado
Subsídios bilionários. Isenção de imposto sobre exportação. Perdão de dívidas. Setor, que surfa no financismo, poderia viver de recursos privados – mas suga o Estado. Enquanto isso, a agricultura camponesa disputa a menor fatia de crédito
Fala xenofóbica de Romeu Zema faz lembrar observações de Dardot e Laval sobre o que torna próximas as duas correntes. Mas, se aderirem ao governador mineiro, partidos da direita “normal” correm de novo o risco de desaparecer fagocitados
Lei, que permite enquadrar movimentos sociais como “força oponente” e autoriza munições letais, quase foi a base para um golpe de direita. Poucas vozes a contestaram em 2014, quando governo Dilma a propôs. É hora de revogá-la
Quando se reúnem 600 homens armados para supostamente encontrar o assassino de um policial, não há como esperar inteligência ou eficácia. Chacina era o que se esperava da operação – planejada por um ex-PM afastado por excesso de homicídios
Os massacres simultâneos praticados pela PM em São Paulo, Rio e Bahia não são frutos do acaso. A fascistização das forças policiais, cada vez mais autônomas, é uma ameaça real. Ao cruzar os braços, o MP atira gasolina à fogueira