‘Israel conclamou os líderes do mundo a criticarem as falas de Lula. Não aconteceu nada.’
A declaração do presidente Lula, ao comparar o genocídio em Gaza ao Holocausto contra judeus, abalou as relações diplomáticas entre Brasil e Israel e rendeu uma longa – senão histérica – a cobertura da imprensa nacional. A fala foi feita durante um encontro da União Africana, na Etiópia, após Israel prometer novos ataques em Rafah, local onde os palestinos tentam fugir dos inúmeros bombardeiros.
Desde então, o governo israelense considerou Lula “persona non grata” no país. O presidente brasileiro, por sua vez, convocou de volta o embaixador que estava em Tel Aviv. Israel seguiu com provocações nas redes sociais, usando contas oficiais de governos e autoridades.
Ainda que a grande mídia brasileira tenha gastado quase dois dias inteiros criticando Lula e o estremecimento das relações entre os países, Dawisson Lopes, cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, não vê preocupação – tampouco novidade – nesse impasse diplomático.
“Essa é uma não crise. Quando se liga a televisão no Brasil, você é bombardeado por vários aspectos – pouca factualidade, mas muita análise moral e histórica. Mas esse não é um tema internacional de grande relevância”, argumentou.
Em entrevista ao Intercept Brasil, Lopes relembrou outros momentos de tensão entre os dois países, desde 1975. E avaliou positivamente o discurso de Lula. “A fala dele, da forma estridente como foi, chegou a muitos lugares, isso é inegável. Não tenho dúvida de que o Lula levou em conta esse alcance da sua voz, e essa possibilidade de se tornar um guardião dos interesses do sul do planeta, quando comparou o que acontece agora em Gaza com o Holocausto na II Guerra Mundial”.
Carol Castro entrevista Dawisson Lopes
Intercept – Qual o impacto da fala de Lula sobre o Holocausto internacionalmente? De fato, existe uma pressão da comunidade internacional sobre isso?
Dawisson Lopes – A crise que envolve Brasil e Israel deslanchou no último domingo, mas já vinha, de certa maneira, crescendo. Já havia um tensionamento prévio entre as partes há algum tempo e envolve apenas Brasil e Israel. Não é uma crise internacional, não tem escalabilidade, não tem razão para enredar outros atores. E, de resto, não há nenhum sinal, nenhum vestígio de que a comunidade internacional possa abraçar as reivindicações de Israel.
Isaac Herzog, presidente de Israel, conclamou os líderes do mundo a criticarem as falas de Lula e não aconteceu rigorosamente nada. Essa é uma não crise. Embora se tenha essa impressão quando se liga a televisão no Brasil e você é bombardeado por vários aspectos – pouca factualidade, mas muita análise moral e histórica. Mas esse não é um tema internacional de qualquer relevância e o que está acontecendo com essa chamada dos diplomatas, isso é o beabá da diplomacia. Acontece o tempo todo em todos os lugares.
Não há nada de extraordinário nessa troca verbal. E acho que em algum momento futuro, não agora, mas em algum momento futuro os países retomam relações em níveis mais altos, os governos mudam. O governo de Israel na atualidade é muito contestado. Não tem muita popularidade internamente. Então, talvez esse seja um horizonte possível, havendo mudanças, sobretudo em Israel, da coalizão que governa, que é de ultradireita, acho que as relações tendem a ser retomadas num patamar mais elevado. Óbvio, fica condicionado ao fim da guerra em Gaza, de um equacionamento minimamente justo do que está acontecendo hoje naquela parte do mundo.
Por que a mídia brasileira tem explorado isso tão exageradamente?
De uns tempos para cá, e acho que essa é uma tendência das últimas duas décadas, temas de política exterior ganharam saliência. As partes – os partidos políticos, os atores da sociedade civil, começaram a explorar mais a política exterior no valor político eleitoral que essa agenda pode ter.
A literatura de relações internacionais e a ciência política vão sugerir que essa não é uma relação tão objetiva e imediata. As pessoas não votam, não formam suas preferências políticas a partir de posições do governo de políticas exteriores. Ainda assim ganhou saliência.Isaac Herzog, presidente de Israel, conclamou os líderes do mundo a criticarem as falas de Lula e não aconteceu rigorosamente nada. Essa é uma não crise.
A grande imprensa brasileira, a imprensa liberal e hegemônica, acaba tendo uma postura hoje muito de oposição política muito entrincheirada e que utiliza essa política exterior, temas internacionais para questionar o governo e contestar as orientações desse governo. Acho que essa é uma razão importante.
A outra razão importante é que estamos falando de um grupo de interesse, a comunidade judaica organizada no Brasil, os judeus no Brasil são cerca de 150 mil, mas que conseguem se organizar e fazer pressão, tem um lobby muito bem organizado por meio de organizações ostensivamente voltadas para busca dos interesses de Israel. Estou falando de Instituto Brasil Israel, Conib, StandWithUs. Existe uma organização da busca por interesses desses grupos por pressão que ajuda a explicar porque foi feito tanto barulho. São atores poderosos com boas alavancas de poder que conseguiram pautar e imprimir um viés muito claro nessa discussão.
A fala de Lula pressiona Israel a rever o posicionamento em relação à guerra? Estimula outros líderes mundiais a subirem o tom?
Israel parece blindado nesse momento. Aconteça o que acontecer, Tel Aviv não está muito sensível às reivindicações, tem dito o tempo todo que o processo que se desenrola na Corte Internacional de Justiça não será observado, não balizará a tomada de decisão.
Então, não vejo a fala de Lula como algo que irá mudar o jogo. Mas o Lula conseguirá se projetar a partir desse momento como talvez a principal liderança do sul global. Ao lado de Narendra Modi, primeiro-ministro indiano, o Lula é quem tem as melhores condições de vocalizar as pautas desse grande consórcio de países, uns 130 ou 140 países no mundo, a que se convencionou chamar de sul global. Estou falando de América Latina e Caribe, África, Ásia, Oceania e Pacífico Sul.
Esses países encontram numa personalidade como o Lula uma representação forte. E a fala dele, da forma estridente como foi, chegou a muitos lugares, isso é inegável. O que vem na sequência é uma incógnita, mas não tenho dúvida de que o Lula levou em conta esse alcance da sua voz, e essa possibilidade de se tornar um guardião dos interesses do sul do planeta quando construiu de forma retórica a comparação do que acontece agora em Gaza com o Holocausto na Segunda Guerra Mundial. [continua]