A Frente Parlamentar da Segurança Pública, mais conhecida como “Bancada da Bala”, cresceu na atual legislatura, chegando a uma centena de integrantes, surfando na onda armamentista promovida pelo governo passado. A maioria é de deputados egressos de carreiras policiais e militares, filiados a partidos de direita e extrema-direita, como o PL.
As principais linhas de atuação da bancada são: facilitar a posse, o porte e o comércio de armas, defender vantagens corporativas para policiais e militares, fragilizar a defesa dos direitos humanos e criminalizar usuários de drogas. Ela não aprofunda investigações e debates sobre o crime organizado, por exemplo. Parte dos seus eleitores é arregimentada por milícias e grupos radicais.
Em dezembro, às vésperas do recesso legislativo, a bancada conseguiu derrubar, na última rodada de votações da reforma tributária, um dispositivo que faria incidir o imposto seletivo sobre armas e munições. Para conseguir votos suficientes e beneficiar a indústria bélica, o grupo adotou demandas de outras frentes parlamentares, como o “marco temporal”, para limitar a demarcação de terras indígenas, e a isenção de imposto sobre rendas recebidas por pastores evangélicos.
A frente parlamentar finge que ignora que a facilitação da venda de armas fortalece os arsenais do crime organizado. Instituições policiais e militares existem para impor as leis e prover a segurança, sem que os cidadãos sejam levados a fazer justiça com as próprias mãos. É contraditório defender vantagens para policiais e militares expondo-os a criminosos melhor armados.
Candidatos e investigados
Apesar da retórica bélica contra a criminalidade comum, alguns dos membros da bancada estão atolados nela. O deputado federal Delegado da Cunha (PP-SP), por exemplo, está sendo investigado, em Santos (SP), por violência doméstica contra a própria esposa. Ele também responde a inquérito pelo uso político ilegal, por meio das suas redes sociais, de imagens produzidas pela Polícia Civil em operações oficiais.
Nem só de crimes comuns vive a bancada. O deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que é delegado da Polícia Federal e foi diretor da Abin (Agência Brasileira de Informações) no governo passado, foi alvo de uma operação de busca e apreensão realizada pela PF, sob a suspeita de ter sido um dos principais responsáveis pela atuação da “Abin paralela”, constituída no governo passado para investigar, nos moldes dos regimes ditatoriais, adversários e desafetos do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos seus familiares.
Jair Bolsonaro cumprimenta Alexandre Ramagem na sua posse na direção da Abin, em 2019 | Valter Campanato / Agência Brasil
Com a condenação do general Braga Neto à inelegibilidade, pelo TSE, Ramagem passou a ser a aposta do PL e de Bolsonaro para a disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de outubro. Ele tem o apoio do governador Cláudio Castro para impedir a reeleição de Eduardo Paes (PSD), que tem o apoio do presidente Lula.
É improvável que Ramagem seja impedido de se candidatar em decorrência das investigações, mas ele teme a divulgação dos nomes das pessoas ilegalmente monitoradas pelo esquema, e a inclusão, entre eles, de alguns dos seus principais apoiadores. Estamos falando de crime político.
Ramagem formará dupla com o deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ), que integra a bancada sem ser ex-policial ou ex-militar, é o atual líder da oposição na Câmara e será o candidato do PL à prefeitura de Niterói, também no Rio. Jordy também foi alvo de uma operação da PF, de busca e apreensão, sob a suspeita de ter sido sido um dos líderes ocultos da tentativa de golpe de Estado ocorrida em 8/1/23. Crime político.
Integrantes da frente parlamentar também pretendem disputar prefeituras em outras regiões. O deputado federal Capitão Alberto Neto (PL-AM) quer ser candidato a prefeito de Manaus (AM) e disputa a indicação pelo PL e a preferência de Bolsonaro com o Coronel Menezes, que só não integra a bancada porque não conseguiu se eleger senador nas últimas eleições. E a bancada tem outros pré-candidatos Brasil afora.
Insegurança
O coordenador do grupo, deputado Capitão Augusto (PL-SP), foi eleito vice-presidente nacional do PL e pretende ser candidato à presidência da Câmara na sucessão de Arthur Lira (PP-AL). Em campanha, ele tem distribuído anéis de prata para os colegas que apoiam a criação de uma nova frente parlamentar, em defesa dos colecionadores de armas. Augusto não quer saber dos inquéritos que envolvem integrantes da bancada e não vai tomar providências para evitar abalos nas respectivas reputações. Ele alega que, mesmo havendo inquéritos diferentes, trata-se, apenas, de perseguição política.
O deputado Carlos Jordy nega participação em tentativa de golpe | Bruno Spada / Câmara dos Deputados
Os integrantes da bancada têm o privilégio de andarem armados pelo Congresso, sem serem obrigados a se submeter aos detectores de metais, como ocorre com as demais pessoas. Flávio Dino, ex-ministro da Justiça e atual ministro do STF, recusou-se a atender uma convocação da Comissão de Segurança Pública da Câmara, alegando risco de vida. É uma galera da pesada!
Não cabe fazer, aqui, uma análise exaustiva das implicações criminais dos que integram a bancada. Assim como não cabe generalizar: deve haver parlamentares sérios, honestos, comprometidos com a segurança pública. Mas a sua postura coletiva diante dos envolvimentos criminais dos seus pares evidencia o seu desvio de função. A bancada tem muito de bala, e nada de Segurança Pública. O seu nome poderia ser: Frente Parlamentar da Bala e da Insegurança Pública.
Aflige aos cidadãos ver parcelas crescentes do território ‒ da Amazônia às metrópoles brasileiras ‒ sob o domínio de narcotraficantes, piratas e milicianos, enquanto a bancada, que deveria estar mobilizada para enfrentá-los, acovarda-se diante do que rola abaixo do seu nariz.
Os casos de desvios de conduta são cada vez mais frequentes, mas a bancada e suas igrejas não os condenam publicamente e, com frequência, os mantém como pastores
Suas prioridades se sobrepõem às dos demais setores da sociedade, seja restringindo direitos indígenas, afetando a saúde de vizinhos e de consumidores, ou ignorando as mudanças climáticas
Apartado de bajulações de outros militares, o ex-comandante do Exército, Edson Pujol, não acatou à politização bolsonarista – Foto: Marcos Corrêa/PR/Flickr
A única coisa positiva do governo Bolsonaro foi a política de que não existe a farsa das forças armadas constituírem um poder moderador da República, notadamente o Exército. O capitão Jair Bolsonaro dobrou os ímpetos de rebeldia, de insurreição, por acaso existentes dos generais, brigadeiros e ministros, e o natural comando do Presidente da República Federativa do Brasil ficou mais forte no dia 8 de janeiro de 2023 com a derrota do golpe intentado por Bolsonaro e militares corruptos e anarquistas e terroristas da extrema direita.
A jornalista Patricia Faermann narra o risco dos militares legalistas que resistiram aos intentos golpistas de Bolsonaro, duas vezes derrotado nas eleições de 2022.
Historia Faermann que comandantes militares pagaram o preço, rebaixados de seus postos, preteridos à reserva. Outros mantiveram a discrição para não arriscar a carreira.
A reportagem de Faermann no jornal GGN
Os chamados legalistas são os militares que defendem o papel constitucional das Forças Armadas independente do poder e o dos mandatos. Intensificamente tentados a ocupar estes espaços com Jair Bolsonaro, em dimensão só vista no Brasil durante a ditadura do regime militar, alguns comandantes resistiram. Uma parcela pagou o preço, rebaixados de seus postos, preteridos à reserva e às suas vidas pessoais. Os que mantiveram cargos de alto escalão se viram obrigados a reservar, ao menos, a voz ou qualquer ato que pudesse torná-los manchetes e arriscar, definitivamente, suas carreiras.
Os Comandantes das Forças Armadas que pediram demissão
Em março de 2021, em meio à pandemia e na véspera dos 57 anos do golpe da ditadura militar, os três comandantes das Forças Armadas pediram a renúncia conjunta por discordar de Jair Bolsonaro, que cobrava deles manifestações políticas favoráveis e apoio para decretar “estado de Defesa” no país para impedir lockdowns.
À época, Bolsonaro falou que “meu Exército” não permitiria as restrições de circulação, determinadas pelos governadores com aval do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia permitido a autonomia para os entedes federativos determinarem medidas de segurança contra a disseminação do Covid-19.
A medida ocorreu, ainda, um dia após a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que era visto pelos comandantes das Forças Armadas como um bom interlocutor discreto dos militares com o governo.
Azevedo e Silva colocou o cargo à disposição de Bolsonaro, a pedido do próprio ex-presidente, anunciando em nota que havia “preservado” as Forças Armadas “como instituições de Estado”. Durante os dois anos em que esteve na pasta, tentava equilibrar e minimizar falas de Bolsonaro sobre rupturas institucionais e politização e radicalização das tropas.
No lugar de Fernando Azevedo e Silva, Bolsonaro escolheu o general Braga Netto para assumir a Defesa, um dos militares mais linhas-dura do governo Bolsonaro e seu principal aliado.
Foi a primeira vez desde a ditadura militar que os três comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica deixavam o cargo, ao mesmo tempo, sem ser em troca de governo.
Um dos que pediram demissão, o comandante do Exército, Edson Pujol, afirmou, em novembro de 2020, que os militares não queriam “fazer parte da política”, “muito menos deixar a política entrar nos quartéis”.
Dias antes, Bolsonaro afirmava em tom de ameaça e uso de força autoritária para aplicar medidas de seu interesse, que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, sobre “defender a Amazônia” de pressão internacional contra o desmatamento.
Dois dias depois, os comandantes Ilques Barbosa da Marinha e Antônio Carlos Moretti Bermudez da Aeronáutica também emitiam nota, juntamente com Pujol, afirmando a separação entre as Forças Armadas e a política.
“A característica fundamental das Forças Armadas como instituições de Estado, permanentes e necessariamente apartadas da política partidária, conforme ressaltado recentemente por chefes militares, durante seminários programados, é prevista em texto constitucional”, afirmava.
Onde estão
Fernando Azevedo e Silva (ex-ministro da Defesa):
Após deixar o Ministério da Defesa, Azevedo foi convidado por diversos ministros do STF e do TSE a assumir a Diretoria-Geral do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ao final de dezembro de 2021.
Ele chegou a participar de uma reunião de transição do Tribunal, com o então presidente da Corte, Luis Roberto Barroso, o futuro presidente do TSE, Edson Fachin, e o futuro presidente do STF, Alexandre de Moraes.
Já preparados para o flerte golpista e o questionamento incisivo de Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas, o objetivo dos ministros era neutralizar contestações aos resultados das urnas, ao ter como chefe do TSE um militar e ex-ministro da Defesa de Bolsonaro.
“Como ministro da Defesa, eu representava as três Forças, que são instituições de Estado. As eleições e a Justiça das eleições, o TSE, também representam o Estado brasileiro. Não tem partido político representando. Não tem uma maioria, uma minoria”, disse o próprio militar, durante um encontro com representantes do IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa).
Em dezembro, Azevedo falava ter aceitado o cargo, que assumiria em fevereiro de 2022. Naquele mês, contudo, disseminava-se publicamente o relatório das Forças Armadas questionando a segurança das urnas. Com receio, o militar recolheu-se, negou o convite alegando “questões pessoais de saúde e familiares” e decidiu manter discrição como militar da reserva, desde então.
Edson Pujol (ex-comandante do Exército):
General do Exército, Pujol manteve a discrição após deixar o comando da Força. Em novembro de 2022, a equipe de transição do governo Lula convidou o militar a integrar o grupo de trabalho da Defesa, em um aceno do presidente eleito a se aproximar e estabelecer pontes com as Forças Armadas. Pujol não integrou a transição do governo Lula.
Ilques Barbosa (ex-comandante da Marinha):
Sem nenhuma aparição pública desde a sua demissão, o Almirante de Esquadra é, desde agosto de 2023, coordenador de Relações Institucionais e de Desenvolvimento de Novos Negócios do Cluster Tecnológico Naval do Rio de Janeiro, uma associação sem fins lucrativos com atuação em tecnologia e engenharia naval.
Antônio Carlos Moretti Bermudez (ex-comandante da Aeronáutica):
Assim como Pujol, Bermudez manteve a discrição e o Tenente-Brigadeiro não teve aparições públicas após a sua demissão.
O general demitido do setor de controle de armas
Final de março de 2020, no segundo ano do governo de Jair Bolsonaro, o general responsável pelo controle de armas, diretor de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, Eugênio Pacelli Vieira Mota, foi demitido após publicar uma importante portaria que ajudava a rastrear munições.
Reportagem de O Globo, da época, mostrava uma carta em que Pacelli pedia “desculpas” se “por vezes não atendi interesses pontuais”. “Não podia e não podemos: nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social e capacidade de mobilização da indústria nacional”, escrevia o general.
As portarias de restrição de armas publicadas pelo militar foram revogadas por Jair Bolsonaro, ao mesmo tempo que o então presidente editava dezenas de outras flexibilizando a fiscalização e o porte de armas no país.
Onde está
À época, o Exército negava que a demissão tinha relação com a revogação da portaria. Em 2020, Pacelli estava no quarto ano como general da brigada, visando a promoção a general da divisão. Como foi demitido e não foi promovido, ele automaticamente entrou para a reserva do Exército.
Contra-almirante da reserva da Marinha, Antonio Barra Torres foi escolhido em 2020 por Jair Bolsonaro para assumir o comando da Anvisa porque ele já ocupava um cargo de diretor no órgão desde agosto de 2019, naquele ano já indicado pelo ex-presidente, e porque além de militar, é médico de perfil conservador.
Vestindo a camisa do órgão durante todo o ano, começou a confrontar o seu superior hierárquico, Jair Bolsonaro, por seus conhecimentos na área, com as disseminações anti-vacina e a favor de medicamentos contra a Covid-19 do mandatário.
O confronto do chefe da Anvisa veio, de maneira mais explícita, com uma nota, em tom pessoal, divulgada em janeiro de 2022, cobrando a retratação do então presidente por insinuações contra a Agência em liberar a vacinação infantil contra a Covid.
À época, Bolsonaro questionou “qual interesse da Anvisa por trás” da liberação da vacina. “Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, senho presidente. Determine a imediata investigação policial sobre a minha pessoa. Agora, se o senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate. Estamos combatendo o mesmo inimigo e ainda há muita guerra pela frente”, escrevia Torres.
Onde está
Por ser umcargo de agência nacional, sabatinado pelo Congresso Nacional, o mandato de presidente da Anvisa dura 4 anos, iniciando-se ao final do governo anterior e terminando na metade do mandato do sucessor. Assim, a Presidência na Anvisa termina em dezembro deste ano e Torres ainda permanece no cargo.
Militares fora dos holofotes
Mais distantes dos holofotes por não protagonizarem embates maiores de manchetes de jornal, outros militares foram considerados decisivos por adotarem posturas legalistas durante os intentos de Jair Bolsonaro de politizar as Forças Armadas.
Durante a demissão dos comandantes gerais das Forças Armadas e do ex-ministro da Defesa, em 2021, não somente Pujol, mas uma parte do Alto Comando do Exército, formado por 16 generais de 4 estrelas que comandam diferentes frentes do Exército, não ficaram satisfeitos com a demissão do então ministro da Defesa e concordaram, junto aos comandantes das Forças Armadas, que a demissão deles seria a resposta dos militares de que não iriam aderir à politização ou a ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) à época.
É o caso de alguns dos 15 generais do Alto Comando do Exército de 2020, como o Chefe do Estado-Maior do Exército,Fernando José Sant’Ana Soares e Silva, o Secretário de Economia e Finanças (SEF),Sérgio Da Costa Negraes, ambos queainda se mantêm nos mesmos postos, e o então Comandante de Operações Terrestres (COTer),José Luiz Dias Freitas, assim como o então comandante da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN),Paulo Roberto Rodrigues Pimentel.
O general Negraes foi Secretário de Segurança Presidencial da ex-presidente Dilma Rousseff e comandou diversas operações, como a Samaúma, de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia, na atuação junto às forças de seguranças para a greve dos caminhoneiros em 2018, e nas ações do Exército para o enfrentamento da Covid-19. Manteve-se distante de posturas políticas e não cedeu a gestos de apoio golpista.
Também ainda no cargo, após a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, o Chefe do Estado-Maior do Exército, general Fernando José Sant’Ana Soares e Silva,narrou em entrevistaque “não houve uma única unidade [do Exército] sublevada” a cometer golpe de Estado e afastou a acusação de que a Força teve essa intenção. Admitindo que os militares foram “totalmente capturados pelos assuntos políticos” e “tragados pela percepção do golpismo”, rechaçou possibilidades de envolvimento político.
Chefe do COTer, o general Freitas era reconhecido por ser ativo em suas redes sociais, já no governo de Jair Bolsonaro, sem nunca publicar manifestações políticas ou partidárias, apenas de assuntos relacionados ao Exército e ao Comando. De acordo com ocolunista Marcelo Godoy, ele recebeu o convite direto do general Braga Netto, que assumiu a Defesa após a caída de Azevedo, para o cargo máximo de comando do Exército.
Ele negou, alegando que não se sujeitaria a caprichos de Bolsonaro. Um mês depois, Freitas foi afastado da atuação militar, passou para a reserva e foi viver no interior do Paraná com serviço voluntário.
Já Pimentel, o comandante das Agulhas Negras, em determinado episódio de motociata de Bolsonaro no Rio de Janeiro, em agosto de 2021, negou a entrada do ato do presidente na Academia. Outros militares sugeriram que a moticiata do mandatário fosse concentrada fora dos muros da Aman, o que foi aceito. A solução à negativa teria salvado a carreira de Pimentel, que foi promovido em 2022 a 3ª Divisão do Exército, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante ordens de Bolsonaro, delatou que o ex-ministro e candidato a vice na chapa do ex-presidente, o general da reserva Walter Braga Netto, atuou como a ligação entre o capitão e os golpistas que estavam acampados em frente ao Quartel General (QG), em Brasília.
Cid, que assinou um acordo de delação homologado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse que o ex-ministro da Defesa “costumava atualizar Bolsonaro sobre o andamento das manifestações golpistas e fazia um elo entre o ex-presidente e integrantes dos acampamentos antidemocráticos”.
Com base nessa delação, a Polícia Federal (PF) está levantando todas as reuniões realizadas entre Bolsonaro, Braga Netto e integrantes das Forças Armadas no fim de 2022.
“Uma das informações analisadas são os registros confidenciais da agenda do ex-presidente, administrados pela Ajudância de Ordens da Presidência. A maioria desses encontros ocorreu no Palácio da Alvorada, onde o ex-chefe do Poder Executivo ficou recluso depois da derrota para Lula nas urnas”, diz o jornal O Globo, que revelou a delação.
O depoimento do general era um dos mais aguardados na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga os atos golpistas do 8 de janeiro, a CPMI do Golpe, por ele ser considerado um dos principais arquitetos da tentativa de golpe que resultou na invasão e depredação dos prédios da Praça dos Três Poderes.
Contudo, não haverá mais depoimento na CPMI que só se reúne no próximo dia 17 quando será apresentado e votado o relatório final.
O vice-líder do governo no Congresso, deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA), defendeu a punição dos responsáveis pelos atos.
“SOB SUSPEITA! A Polícia Federal está investigando se o general Braga Netto teria envolvimento e atuação nos atos golpistas do 08 de Janeiro, após delação de Mauro Cid. Seguimos acompanhando e exigindo as devidas punições aos envolvidos nos atos antidemocráticos”, escreveu o deputado na rede social X [antigo Twitter].
O deputado Ivan Valente (PSOL-SP), diz que as digitais bolsonarista nos atos golpistas vão aparecendo.
“Delação de Mauro Cid descreve papel de Braga Netto na trama golpista. Vale lembrar que ele pediu que acampados não perdessem a fé na posse de Bolsonaro. A cúpula bolsonarista envolvida no golpe até o pescoço. Não tem como negar”, disse o parlamentar.
Durante evento do PL em Minas Gerais no dia 28 de agosto último, general Braga Netto afirmou que a direita brasileira está 'forte, unida e sabe para onde vai'.
No seu esforço para desidratar o bolsonarismo e, desta forma, viabilizar uma alternativa de “centro” na política, a TV Globo tem exibido algumas matérias impactantes. Neste domingo (17), o programa Fantástico trouxe duas reportagens que desmascaram o terrorismo da extrema-direita: uma traça o perfil do primeiro “patriotário” condenado no Supremo Tribunal Federal pelos atos golpistas do 8 de janeiro; a outra escancara a violência do jagunço Roberto Jefferson, o ex-presidente do PTB que segue na cadeia.
Aécio Lúcio Costa Pereira, que foi condenado a 17 anos de prisão pelo STF, é o típico fanático bolsonarista. O criminoso reúne ao menos dez boletins de ocorrência contra ele, registrados por vizinhos. Segundo a matéria, ele é acusado de agressão verbal e física, homofobia, intolerância religiosa e até furtos. “Ele passava e falava: ‘Eu vou acabar com você’, relatou uma professora, que registrou boletins de ocorrência contra o machista por injúria, calúnia, difamação e perturbação da tranquilidade.
Agressão, homofobia, intolerância religiosa e furto
Outra mulher declarou ao Fantástico que registrou, em 2018, uma queixa na polícia acusando o então síndico do seu prédio em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, de furtar um celular. Outro BO mostra o maluco ameaçando um ex-amigo. “Quando ele percebeu que eu sou de esquerda, aí ele ficou irritado com isso, e a gente travou muitas discussões por questões ideológicas. Ele me chamava de bichona. Ele ofendeu todas as mulheres que moram nesse condomínio. Xingava de bruxa velha, de laranja podre”, descreve Vando Estrela.
O violento e desiquilibrado Aécio Lúcio, acusado de invadir e depredar prédios públicos em Brasília, foi punido pelos crimes de associação criminosa armada, tentativa de golpe, tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio público. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso no STF, apresentou vários documentos comprovando sua ação terrorista no 8 de janeiro. A reportagem do Fantástico só reforçou os traços negativos do desajustado bolsonarista. "Fui salva pelo cano da minha arma"
Já a outra matéria trouxe detalhes sobre a ação assassina do ex-deputado federal Bob Jefferson contra agentes da Polícia Federal em outubro do ano passado, na cidade de Comendador Levy Gasparian (RJ). A policial Karina Lino Miranda, atingida por dois tiros, descreveu que ao tentar se abrigar em meio a tiros e granadas lançadas pelo bolsonarista, sentiu forte impacto e caiu no chão:
“Logo depois começou uma ardência muito grande na região do quadril. Até imaginaram que tinha um projétil alojado, tinha um buraco aberto. Depois, vendo meu coldre, minha calça, vendo o estado que ficou minha arma, porque o cano dela foi destruído, é que a gente chega à conclusão que, na verdade, foi um tiro que atingiu a região. Milagrosamente eu fui salva pelo cano da minha arma, que serviu como escudo para mim”.
A reportagem confirma que Bob Jefferson colou pregos em duas das três granadas utilizadas na ação. Segundo os peritos, o fragmento de um dos pregos atingiu a velocidade de mais de 280 quilômetros por hora. “Lançar um prego nessa velocidade, dependendo da área do corpo que ele atingir, pode causar até a morte”, enfatizou Michele Avila dos Santos, perita criminal federal, à Globo. Os peritos ainda encontraram 42 perfurações de bala na viatura. Muitos tiros atingiram o banco do carona, até o encosto de cabeça.
Entrevistado, o perito Bruno Costa rebateu a mentira do jagunço bolsonarista de que não disparou para atingir os policiais. “Primeiro que ele deu muito tiro num veículo que tinha um policial atrás, abrigado, e segundo que dois policiais foram atingidos por tiro”. Já a advogada da policial atingida, Estela Nunes, disse que a agente sofreu “danos físicos e psicológicos”. “Ela tem o dano psicológico, que acho que é o maior dos danos. Na região do quadril e no rosto, ela teve perda de sensibilidade a toque, ao calor e ao frio. Além disso, a marca no rosto a faz lembrar diariamente da violência que sofreu”.
O tenente-coronel Pelucio e a mulher: ele sócio, ela a administradora do negócio.
Indicado para monitorar contratos e ordenar despesas da intervenção chefiada por Braga Netto é sócio da esposa em empresa que fornece medicamentos ao governo.
Após mais de quatro anosde sua desativação, oGabinete de Intervenção Federalno Rio de Janeirocontinua a drenar os cofres públicos e a acumular indícios decorrupção. Criada durante o governo deMichel Temer,a estrutura foi oficialmente extinta em 31 de dezembro de 2018. Deste então, no entanto, com a justificativa de que ainda existem contratos em andamento, o gabinete segue ativo, atualmente empregando cinco militares. Um deles, o tenente-coronel Juliano Pelucio, é sócio de uma empresa que recebeu mais de R$ 400 mil do governo federal nos últimos nove anos.
Pelucio iniciou sua atividade empresarial em abril de 2011, quando já integrava os quadros das Forças Armadas. Com a esposa Andrea Martineli Pelucio, fundou a Bella Pharma Martinelli & Pelucio, uma revendedora de medicamentos com sede em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e capital social de R$ 30 mil. No quadro societário, ela aparece como sócia-administradora. Ele, apenas como sócio.
De acordo cominformaçõesconsultadas peloInterceptno Portal da Transparência, a empresa do tenente-coronel e de sua esposa têm negócios com o governo desde 2014. No total, a firma já recebeu R$ 404.892,53 em pagamentos feitos pelo Executivo na compra de medicamentos e participou de seis licitações – duas delas feitas pelos Comandos da Marinha e da Aeronáutica. Os principais clientes de Pelucio no governo são o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que gere os hospitais universitários.
Os militares, em especial os oficiais da ativa, sejam dasForças Armadasou das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, são impedidos de exercer atividade empresarial. Segundo oCódigo Penal Militar, é proibido “comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada”. A pena para a infração é a suspensão do exercício do posto, de seis meses a dois anos, ou reforma.
A burla, no entanto, é comum. De acordo com um levantamento do site Metrópoles, publicado em 2020, 8.432 militaresapareciam em dados da Receita Federal como sócios de empresas. No entanto, apenas 14 militares da ativa conseguirama proeza de Pelucio: ter a empresa contratada pelo próprio Poder Executivo.
Um atenuante, no caso do tenente-coronel, seria que formalmente ele configura apenas como sócio da Bella Pharma, não como sócio-administrador, posto ocupado pela esposa. Isso porque a lei do funcionalismo público federaladmite que servidores ocupem quadros societários, desde que não tenham funções administrativas. No caso dos militares, porém, a permissão não existe.
Pelucio foiindicadoao Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro pelo então comandante do Exército, Edson Leal Pujol, em agosto de 2019. À época, ele já tinha quase uma década de experiência com compras públicas – não nas Forças Armadas, mas em sua empresa. Como chefe de gabinete e ordenador de despesas da intervenção, Pelucio desempenha atividades que incluem o controle e acompanhamento de entregas remanescentes dos contratos públicos, operações administrativas e a instauração e acompanhamento de processos administrativos.
A história do Gabinete de Intervenção Federal é marcada por sucessivas datas de encerramento adiadas. Inicialmente, por decisão tomada ainda durante o governo Temer, a previsão era de que o grupo de servidores responsável pela operação fosse extinto em junho de 2019. A data mudou depois para 31 de março de 2020 e, em seguida, para 1º de dezembro de 2020. Naquele mês, uma nova portaria determinou a continuidade das atividades por mais um ano. Essa prorrogação foi estendida novamente até dezembro de 2022 e, nos últimos dias do governo Bolsonaro, foi definida para junho de 2023.
Sob a gestão do presidente Lula, a equipe foi reduzida, passando de 13 militares para cinco. O prazo para o seu término, porém, foi novamenteprorrogado: agora, até 20 de dezembro de 2023. Em junho, o General Tomás Paiva, comandante do Exército nomeado no atual governo, designou os cinco militares que vão prosseguir ocupando os cargos do Gabinete de Intervenção até sua extinção – um deles, o sócio da Bella Pharma Martinelli & Pelucio.
Entre os temas monitorados pela equipe de Pelucio, está o contrato de mais de R$ 40 milhões, atualmente sobinvestigaçãopela Polícia Federal, que envolve a empresa estadunidense CTU Security. O acordo, firmado sem licitação em 2018, previa a entrega de 9.360 coletes à prova de bala para a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a um custo médio de R$ 4,3 mil por colete. No primeiro mês do governo Bolsonaro, o Executivo chegou a pagar R$ 35.944.456,10 à empresa. No entanto, três meses depois, o pagamento foi cancelado e o contrato suspenso.
Tenente-coronel foi designado para atuar como ordenador de despesas, responsável por autorizar os gastos de dinheiro público.
Nesta terça, militares que integraram o Gabinete de Intervenção e empresários foramalvoda Operação Perfídia – não é possível saber se Pelucio é um dos funcionários contra os quais foram expedidos mandados de busca e apreensão. Com a investigação, a PF apura crimes de contratação indevida, dispensa ilegal de licitação, corrupção e organização criminosa na contratação da CTU Security LLC. O general Walter Souza Braga Netto, nomeado interventor pelo então presidente Michel Temer, é investigado e teve o sigilo telefônico quebradopela justiça.
O que a investigação da PF já demonstrou é que Braga Netto continuou mantendocontato com lobistas e intermediáriosde empresas suspeitas de corrupção na compra dos coletes à prova de balas após se tornar ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, em 2020. À época, Pelucio já integrava o quadro de funcionários do Gabinete de Intervenção – inclusive, foi designado para atuar como ordenador de despesas, sendo responsável por autorizar ou não os gastos de dinheiro público.
As investigações que levaram à Operação Perfídia incluíram um relatório do Tribunal de Contas da União que aponta “desvios de finalidade” nos gastos do gabinete. Por exemplo, compras de camarão e de tortas holandesas com o dinheiro que deveria ir para a segurança pública fluminense. “Ao administrador público é imposto o poder-dever de fiscalizar e de revisar os atos de seus subordinados”, afirmou o TCU – nesse caso, sugerindo uma carapuça que serve a Pelucio, mas também a Braga Netto, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
O Intercept procurou o Gabinete da Intervenção, mas não houve resposta. Não foi possível localizar os responsáveis pela Bella Pharma Martinelli & Pelucio em seus contatos informados no cadastro da Receita Federal.
Ao menos 23 parlamentares do Centrão indicaram o destino de recursos do programa Calha Norte, que financiava obras de infraestrutura no Norte, Nordeste e Centro-Oeste
O governo Bolsonaro desviou R$ 1 bilhão do Ministério da Defesa, em 2021 e 2022, para criar um segundo orçamento secreto e atender a pedidos de sua base. A manobra – que burlou uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) – foi liderada pelo general Walter Braga Netto (PL), então ministro da Defesa.
Conforme reportagem doUOL, divulgada nesta segunda-feira (18), ao menos 23 parlamentares do Centrão foram beneficiados. Identificados apenas via LAI (Lei de Acesso à Informação), eles indicaram o destino de recursos do programa Calha Norte, que estava sob responsabilidade da Defesa e financiava obras de infraestrutura no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Tudo começou em novembro de 2021, quando uma liminar da ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu o orçamento secreto. Para manter pagamentos que já estavam previstos, Braga Netto pediu suplementação orçamentária ao Ministério da Economia, sob a justificativa de turbinar o Calha Norte.
O primeiro lote que chegou à Defesa foi da ordem de R$ 328 milhões, e o segundo, de R$ 703 milhões – os dois aportes foram encaminhados em dezembro.
Em março de 2022, Braga Netto deixou o ministério para concorrer a vice-presidente na chapa de Bolsonaro. Ele foi substituído pelo general Paulo Sérgio Nogueira, que manteve o mecanismo.
Parte do destino da verba não é identificada, aparecendo como uma espécie de emenda do relator. Só o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ) recebeu ao menos R$ 39 milhões, pelo fato de ser o relator-geral do orçamento de 2022. Ele não precisava indicar quem indicou as obras executadas com esses recursos.
Escândalos de corrupção. Gestão nebulosa. Ameaças ao Congresso e STF. CPMI dos atos terroristas de 8 de janeiro. Jandira Feghali aponta nomes de generais golpistas. Aos poucos, a sociedade tem um conhecimento menos idealizado e mais real dos militares. Momento deve ser aproveitado para reafirmar o controle civil e garantir transparência
Ainda não se sabe qual o teor da delação do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, otentente-coronel Mauro Cid, e o grau de comprometimento que seu depoimento pode trazer para alguns generais e oficiais das Forças Armadas tanto no caso das joias como também na preparação para a tentativa de golpe após os resultados das eleições presidenciais de 2022. A Operação Perfídia trouxe ainda um outro dano à imagem de um dos principais nomes do governo anterior, o general Walter Braga Netto, que teve o sigilo telefônico quebrado pela Justiça por conta de uma investigação a respeito de possíveis fraudes no processo de contratação de coletes balísticos.
Os dois casos abalam uma imagem que os militares sempre tentaram cultivar no imaginário popular, a de que, diferentemente dos políticos e civis de uma forma geral, a instituição estaria livre da corrupção, uma praga nacional, zelando sempre pelo interesse público. E podem ainda escancarar a falta de compromisso de parte do generalato com princípios básicos de qualquer regime democrático, como o simples respeito ao resultado eleitoral.
A maior parte dos golpes de Estado no mundo costuma contar com um sentimento antipolítica muito forte em meio à sociedade. Afinal, é necessário ter apoio de segmentos sociais não só para apear quem pode ser tido como adversário do poder, mas também para permanecer nele. E, em geral, desmoralizar o oponente por meio do exaurido lema da luta contra corrupção é uma das principais armas de quem quer usurpar o poder de modo ilegal.
No Brasil, foi assim que o udenismo combateu o segundo governo de Vargas, sem conseguir êxito por conta do suicídio do presidente. Mais adiante, o mesmo segmento se aliou aos integrantes das Forças Armadas – que já ensaiavam o golpe contra o governo getulista – para derrubar João Goulart em 1964, agora investindo pesadamente também em um anticomunismo radical, o que o unia mais ao ideário da caserna. Uma vez no governo, os militares buscaram passar durante boa parte do tempo uma imagem de busca pelo conhecimento técnico para governar, como se fossem quase apolíticos, apoiados em gestores tecnocratas civis para gerir a área econômica.
Em 2018, todos estes elementos que forjaram parte da história do autoritarismo e do golpismo no Brasil estavam presentes nas eleições presidenciais: o anticomunismo, o “técnico” que cuidaria da economia (sempre bem apoiado por parte da mídia tradicional e pelo chamado mercado) e também pelo discurso anticorrupção. Tudo embalado num discurso contrário à política e aos políticos, ainda que capitaneado por alguém que viveu quase três décadas praticamente inerte na Câmara dos Deputados.
Se os nomes dos partidos e das figuras que os representavam mudou nesta linha do tempo, parte dos protagonistas continuou vestindo farda. A falta de uma Justiça de Transição e a estrutura autoritária da sociedade brasileira fez com que durante muito tempo este militares saíssem incólumes, sem responder pelas suas ações como aconteceu nos países vizinhos. Isso os protegeu também de arcarem com os custos simbólicos, já que, para boa parte da população, os integrantes das Forças, uma vez no poder, não teriam praticado atos de corrupção como os presidentes civis.
Nada mais falso. É evidente que qualquer ditadura que se preze não só não tem transparência nos atos administrativos como pratica a censura e controla, por diversos meios, a possível eclosão de escândalos e divulgação de malfeitos.
Como lembrou o professor de História Pedro Henrique Pedreira de Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Pedro Campos,nesta entrevista, “a ditadura militar foi um celeiro de corrupção”. Também autor do livroEstranhas Catedrais(Eduff), lançado em 2014, houve então “um ambiente extremamente propício de escalada dos interesses empresariais e privados sobre o Estado brasileiro, tendo em vista o cerceamento dos mecanismos de fiscalização e o aparelhamento do Estado por agentes do setor empresarial privado”.
“Os militares se locupletaram nesse processo. Eles se favoreceram muito na atuação empresarial naqueles anos. Era uma ditadura empresarial-militar e eles ganharam postos nas empresas e há várias denúncias de que eles recebiam propinas”, pontua.
Longe e perto dos holofotes
Após o fim da ditadura, os militares continuaram atuando no cenário político, mas de forma muito mais discreta, em especial para defender a história da própria instituição e, principalmente, seus generais. Nem mesmo os ex-políticos que haviam feito parte do regime defendiam publicamente as supostas virtudes do regime que se encerrava. A ausência na transição do trabalho de memória e justiça fez com que, décadas depois, o panorama mudasse e o regime autoritário passou a ser exaltado por parte da classe política e, obviamente, pelos integrantes das Forças Armadas abertamente. Mesmo a tortura, antes negada ou tratada dentro da seara de fatos isolados, agora era assumida orgulhosamente por muitos, com torturadores sendo elogiados inclusive por aquele que viria a se eleger presidente em 2018.
Mas é a eleição de 2018 que traz a farda de novo ao centro do palco.Relatório elaborado em 2021pelo Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que na gestão Bolsonaro o governo federal mais que dobrou o número de militares em cargos antes ocupados por civis. No último ano do governo Temer, 2.765 militares ocupavam cargos do governo federal e, em 2021, chegavam a 6.175.
Se havia ocupação na máquina do Estado, isto era ainda mais pronunciado em postos-chave da administração do Executivo. Em fevereiro de 2020, os militares controlavam oito dos 22 ministérios, proporção maior que a de alguns presidentes da ditadura.
No Planalto, o círculo de confiança do presidente era verde-oliva. Um levantamento feito pelo The Intercept e divulgado em agosto mostra ainda que Bolsonaro trouxe nada menos que 79 alunos da sua turma, graduados no mesmo ano ou que conviveram com ele nos quatro anos de curso na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), para seu governo. No rol, nomes como o do próprio Braga Neto, e o de Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro da Casa Civil, das Secretarias Geral e de Governo, um dos articuladores da criação domalfadado orçamento secreto, talvez o mais emblemático retrocesso institucional ocorrido durante aquela gestão.
Com tal exposição e graças a mecanismos de transparência, fiscalização e controle que foram construídos e consolidados após o fim da ditadura, os militares passaram a se ver envolvidos de forma direta ou indireta em diversos casos de denúncias de corrupção ou similares, que envolviam desde episódios de negociações de compra de vacina com preços1.000% maioresdo que os anunciados pelo fabricante,uso irregular de recursos voltados ao combate da pandemiaecompra superfaturada de Viagra. Agora, sem possibilidade de o Executivo barrar investigações e com atentativa de golpe do 8 de janeiro sendo apurada, mais nomes vêm à tona.
Transparência e isonomia
Se o envolvimento de militares no governo Bolsonaro traz para a sociedade uma imagem menos idealizada e mais real de que disciplina, hierarquia e uma dita tradição não impedem corrupção, o verdadeiro remédio que a combate precisa ser também aplicado à caserna. E aqui não se trata especificamente de punição, também necessária quando prevista em lei, e sim de prevenção.
Relatório produzido pelogrupo de transição do atual governoresponsabilizou as Forças Armadas pelo que considerou um verdadeiro apagão da transparência no governo federal durante a gestão Bolsonaro, com casos reiterados de descumprimento da Lei de Acesso à Informação. De acordo com o documento, houve uma “forte tendência de sempre ou quase sempre se considerar ‘pessoais’ informações sobre integrantes do Exército que não seriam informações pessoais para servidores civis”. Isso envolve o impedimento de se acessar, por exemplo, notas fiscais de compras públicas, documentos de pregões eletrônicos, empresas que firmaram contratos com a Força, e negativa de acesso à lista de passageiros e a custo de voos oficiais feitos pela Aeronáutica.
Por isso, mas não só, o controle civil sobre as Forças Armadas, como preconiza a Constituição, é essencial. Para garantir tratamento isonômico em relação ao resto da estrutura do Estado e garantir transparência nos atos. E, ainda mais fundamental, para não ter a democracia formal sob ameaça constante de um poder armado.
Ainda hoje existe uma tolerância muito grande à intromissão fardada em assuntos que não seriam do seu escopo. A interferência na vida pública talvez tenha tido uma de suas ilustrações mais vivas em um episódio de julho de 2021, da CPI da Covid, quando o então presidente do colegiado, senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que “os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
Em seguida, o Ministério da Defesa chefiado por Braga Netto e os comandantes das Forças Armadas divulgaram nota oficial apontando que Aziz teria dado declarações “desrespeitando as Forcas Amadas e generalizando esquemas de corrupção”. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, dizia ainda o documento.
Mesmo com Aziz destacando que havia “bons” e separando uma “banda podre”, a reação institucional foi desproporcional e em tom intimidatório. O presidente da CPI cobrou uma posição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que no mesmo dia da nota prestou homenagem às Forças Armadas, sem citar o episódio. Aziz reagiu: “Pode fazer 50 notas contra mim, só não me intimidem. Porque quando estão me intimidando, Vossa Excelência não falou isso, estão intimidando essa Casa aqui também. Vossa Excelência não se referiu à intimidação que foi feita pela nota das Forças Armadas.”
Generais também ameaçaram outras instituições, como à época em que o general Villas-Bôas, então comandante do Exército mandou recado ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento da prisão após condenação em segunda instância. O fato de, em ambos os casos, a resposta ter sido tímida ou nula do ponto de vista institucional, evidencia o tamanho da ingerência militar e a dimensão do problema que o Brasil ainda não resolveu.
A desconstrução da imagem de um poder infalível que a participação da caserna no governo Bolsonaro trouxe para muitos é positiva, apontando que militares, em especial os de alta patente, não podem estar acima da lei. A mudança de parte da opinião pública pode ser uma oportunidade para iniciar, ao menos, um outro tipo de cenário em que cumpra simplesmente o que se prevê na Constituição, onde o papel das Forças é desenhado. Sem isso, a tutela que nasceu já na construção da própria República seguirá como fardo que impede a construção de uma real democracia.
GENERAIS GOLPISTAS ENVERGONHAM AS FORÇAS ARMADAS General Dutra era o comandante militar do Distrito Federal. Permitiu o acampamento golpista em frente ao QG do Exército em Brasília. Não adianta agora negar. O que não falta são provas. Está claro que houve cumplicidade de parte do Exército com os terroristas que vandalizaram o Planalto, o Congresso e o STF no 8 de Janeiro. Esse desvio de conduta é o que investigamos na CPMI. Tenho total repulsa e indignação por todas as vezes que as Forças Armadas se desviaram de sua função. No governo Bolsonaro, isso aconteceu aos montes. Havia militares como Heleno, Braga Netto e tantos outros generais que ajudaram a construir, insuflar e, alguns, até a participar da tentativa de golpe. Este, definitivamente, não é o papel das Forças Armadas.
O GOLPISMO VEM DE LONGE Quando foi interventor militar no Rio de Janeiro, em 2018, o general Braga Netto - ex-chefe da Casa Civil, ex-ministro da Defesa e ex-candidato a vice na chapa do Inelegível - fechou 22 contratos sem licitação, cinco deles milionários! Braga Netto teve o sigilo telefônico quebrado e está também na mira de outra investigação, a dos atos golpistas: ele deve ser um dos generais que entrarão na aguardada delação de Mauro Cid. Não perde por esperar.
Pesquisas recentes indicam que a imagem das Forças Armadas está em queda vertiginosa. E não é para menos. A cada dia surge uma nova denúncia contra os comandantes militares, que bancaram o “capetão” na presidência, lotearam o governo com mais de 6 mil cargos civis, transformaram quartéis em “incubadoras de terroristas”, incentivaram golpes e afundaram na corrupção. Agora, o Tribunal de Contas da União (TCU) informa que identificou “indícios contundentes” de nepotismo e ausência de licitação na Fundação Habitacional do Exército (FHE).
Segundo reportagem da Folha, “a análise do TCU cruzou os CPFs de contratados pela associação com os de integrantes das três Forças Armadas, do Comando do Exército e do Ministério da Defesa. Foram encontrados 221 casos de relação de parentesco entre as instituições. O tribunal identificou nove casos de parentesco entre a cúpula da fundação do Exército e funcionários da associação subordinada a ela. As informações constam em um acórdão do TCU de maio deste ano, no processo de análise das contas de 2017 da fundação”.
Saldo de R$ 6 bilhões na poupança
A FHE administra a Poupex, a poupança imobiliária dos militares. Segundo nota do próprio órgão, “ela conta, atualmente, com R$ 6 bilhões de saldo em poupança, distribuídos em 1,6 milhão de contas”. Ela foi criada no início dos anos 1980. Enquanto a FHE é uma instituição pública, que presta contas aos órgãos públicos – como o TCU –, a Poupex é uma empresa privada, que foi criada exclusivamente para atender a fundação e é gerida por ela. Em função disso, ela alega que não precisa cumprir as regras do poder público – o que facilita as mutretas.
Em seu voto sobre as contas, o relator do TCU, ministro Marcos Bemquerer Costa, questionou exatamente essa separação, uma vez que o quadro de servidores da FHE é composto apenas por sua direção e seu conselho administrativo, e toda a operação é feita pela Poupex. Ele avaliou que a empresa privada presta um serviço público. “A Poupex é o corpo que personifica a existência da FHE, e que não existe de fato a distinção da personalidade jurídica das duas entidades, inviabilizando a supervisão que a segunda deveria exercer sobre a primeira”, alegou.
“A simbiose entre as duas entidades vem sendo praticada ao longo de décadas com base em argumentos de conveniência e oportunidade, sem que a lei tenha conferido tal poder discricionário àquela entidade, que se esquiva dos deveres legais de seleção de pessoal, mediante concurso público, e de aquisição, mediante processo licitatório [...] e infringe os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa", completou o ministro.
Nepotismo com militares de alta patente
“O levantamento do TCU mostrou que 50% das 221 relações de parentesco entre funcionários da Poupex e membros das Forças Armadas é com militares de alta patente – de coronel para cima. Também aponta quase 100 casos de pessoas contratadas pela Poupex e que constavam nas folhas de pagamento das Forças Armadas ou da Defesa – considerando a relação de pessoal de 2020. Calcula o tribunal que 316, ‘ou 24,2% dos 1.306 funcionários da Poupex, possuem vínculo direto ou indireto com as Forças Armadas’. O TCU ainda aponta que o parentesco mais comum é o de pai, que corresponde a 28% dos casos, seguido pelo de tio, 22%”, descreve a Folha.
O relatório também indica que os mesmos nomes ocupam a direção tanto da Poupex quanto da fundação. Na FHE o salário é de cerca de R$ 17 mil; já na associação privada, em 2019, ele era de mais de R$ 9 mil, além de quase R$ 1.500 em auxílios. “Em 2017, foram pagos pela FHE à associação de poupança quase R$ 210 milhões para emprego de pessoal e quase R$ 35 milhões em gastos com informática, em valores da época”.
“O tribunal questiona que, ‘embora [a FHE] não seja mantida com recursos financeiros do Orçamento Geral da União’, ela recebeu o equivalente a R$ 37 milhões em permutas com o Comando do Exército e ‘desfruta, no seu relacionamento com a União, de privilégios não disponíveis a entidades privadas que exercem atividades de mesma natureza’”. Apesar disso, o relator do TCU recomenda apenas alguns ajustes nos estatutos da Fundação Habitacional do Exército para evitar “conflito de interesses”. Haja bondade com os milicos!
O tempo presente vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos
por Alexandre Aragão de Albuquerque
- - -
Braço forte, mão leve, cara lisa. Em 11 de julho o tenente-coronel do Exército brasileiro, Mauro Cesar Barbosa Cid (Mauro Cid), ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro e filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, preso desde maio por ser objeto de oito investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou-se fardado para prestar depoimento na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que apura o atentado golpista de Estado perpetrado no dia 08 de janeiro contra a democracia brasileira.
Esse evento, denominado pelos arruaceiros criminosos de “Festa da Selma”, ocupando e depredando os prédios dos Três Poderes, uma turba coordenada e alimentada ao redor dos quartéis em diversas partes do Brasil, desde o final do pleito de outubro de 2022, demonstrava publicamente o grau de comprometimento daquela força militar com a quadra tenebrosa vigente com a chegada do bolsofascismo ao poder executivo central. Fardado naquela sessão da CPMI, o tenente-coronel Mauro Cid apresentava-se não como uma pessoa individual, mas como uma pessoa coletiva, um representante da instituição.
Para ajudar na compreensão da enorme assimilação de Jair Bolsonaro no Exército, é preciso olhar para a Academia Militar Agulhas Negras (Aman), principalmente para a turma de 1977. Se sua reabilitação naquela força terrestre já havia ocorrido exemplarmente na formatura dos cadetes em 2014, ou seja, bem antes das eleições de 2018, esse processo foi coroado com a chegada, ao topo do poder militar, de seus contemporâneos da Aman. Quando assumiu a presidência do Brasil, quatro dos seus colegas de turma exerciam o posto máximo da carreira: os generais Mauro Cesar Lourena Cid (pai do tenente-coronel Mauro Cid), Carlos Alberto Neiva Barcellos, Paulo Humberto Cesar de Oliveira e Edson Leal Pujol haviam sido promovidos a generais de exército (quatro estrelas).
Edson Leal Pujol, como se sabe, foi nomeado comandante do Exército. Lourena Cid foi nomeado Chefe do Escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), em Miami – EUA. Paulo Humberto virou presidente da Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios. E Neiva Barcellos assumiu, em Genebra – Suíça, o posto de conselheiro militar junto à representação do Brasil na Conferência do Desarmamento na ONU.
Mas, além disso, as boas relações dos integrantes da turma da Aman 1977 com o Executivo Federal (Jair Bolsonaro) se estenderam para além do seleto grupo de generais quatro estrelas. Para ficar num único exemplo, o general de brigada (duas estrelas) da reserva Cláudio Barroso Magno Filho atuou como lobista ativo de mineradoras brasileiras e canadenses com interesses em exploração em áreas indígenas, tendo sido recebido pelo menos dezoito vezes no Planalto. (Cf. VICTOR, Fábio.Poder camuflado, Companhia das Letras).
Visando mensurar a dimensão do fenômeno de cessão de integrantes das Forças Armadas para exercer funções de natureza civil no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022 foram produzidos inúmeros levantamentos. Coube ao Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do ministro Bruno Dantas, uma dessas investigações, identificando a presença de 6.157 (seis mil, cento e cinquenta) militares exercendo funções civis na administração pública federal em 2020.
Como atesta o pesquisador Fábio Victor, os benefícios, privilégios e agrados dos mais variados a integrantes das Forças Armadas foram um dos fortes sintomas da militarização da gestão pública federal sob o bastão de Bolsonaro, mostrando abertamente que não se tratava apenas de um governo de militares, mas também para militares. Um dos fortes sinais desta situação pode ser facilmente constatado pela manobra autorizada pelo ministério da Economia de Paulo Guedes, garantindo supersalários para vários militares em altos postos na Esplanada. Generais palacianos como Augusto Heleno (o pequeno), Braga Netto e Luís Eduardo Ramos começaram a ganhar R$60 mil por mês, acima do teto máximo constitucionalmente permitido equivalente ao vencimento dos ministros do STF (op. cit.).
Voltando um pouco na história, importante relembrar que, na véspera do julgamento doHabeas corpusem 04 de abril de 2018, para garantir liberdade ao então ex-presidente Lula, autorizando-o a concorrer à eleição presidencial daquele ano, o general quatro estrelas, da reserva, Luís Gonzaga Schroeder Lessa, que fora comandante militar do Leste e da Amazônia, rosnou numa entrevista concedida ao jornal golpista O Estado de São Paulo: “Se acontecer [o habeas corpus], aí eu não tenho dúvida de que só resta o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem” (Supremo pode ser indutor da violência.O Estado de S. Paulo,03 de abril de 2018).
Às 20h39, do mesmo dia 03 de abril, o general três estrelas Otávio Rego Barros (que viria a ser porta-voz da presidência na gestão Bolsonaro), auxiliar direto de Eduardo Villas Bôas, disparou o tuíte, na página oficial do seu superior, a ameaça do então comandante do exército ao Supremo Tribunal Federal: “Asseguro à Nação que o exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social, à Democracia,bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Resultado já sabido, no dia seguinte, o STF negou oHabeas corpusao então ex-presidente Lula. Jair Bolsonaro chegou ao poder executivo central com sua companhia de militares, a partir do histórico emparedamento do Supremo por generais do exército. O autoritarismo seria o traço desta gestão presidencial.
No dia 02 de janeiro de 2019, na cerimônia de posse de cargo do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, o já presidente Bolsonaro discursou:“General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.Em resposta a Jair Bolsonaro, no dia 11 de janeiro, na transmissão do comando do exército para Pujol, Villas Bôas disse:“A nação brasileira festeja os sentimentos coletivos que se desencadearam a partir da eleição de Bolsonaro”.
Pergunta-se: que sentimentos seriam? A exacerbação da violência social e estatal, da discriminação, da elevação do autoritarismo, da subserviência ao poder estadunidense, da perda da credibilidade internacional do Brasil, do desmonte e entrega do patrimônio público ao capital privado, da propagação indiscriminada defake news, do ataque sistemáticos às urnas eletrônicas e aos Tribunais Superiores, do descaso pelas pautas populares, da insensibilidade diante da miséria a que o povo brasileiro esteve submetido durante os quatro anos do governo passado? Este foi o projeto militar bolsonarista?
O tempo presente, depois do retorno à democracia com a reeleição do Presidente Lula em 2022, vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos, cínicos, como ocorreu em 2016 e aprofundou-se em 2019, com o objetivo de manter a concentração de renda e poder nas mãos de pouquíssimos privilegiados, avessa a qualquer horizonte democrático alicerçado na liberdade e na igualdade substantivas, bem como na justa distribuição dos bens produzidos socialmente.
Mas agora o ditador está nu e precisa ser combatido tenazmente por toda a sociedade democrática. A nudez do ditador faz lembrar aquele conhecido poema colegial: “Um coleguinha me deu a cola / Eu a distribuí com a tropa / Dos mais argutos aos mais carolas / Todos chafurdaram gatunamente nas pedrarias / A farsa repetindo-se pela histórica e reincidente malandragem da companhia”.
O esforço de isolar o Bolsonaro dos generais que estiveram por trás de sua aventura golpista não condiz com os fatos. Desde Temer, eles atuaram para que o ex-capitão fosse a face do projeto de poder dos militares. Agora que gorou, querem descartá-lo
“Bolsonaro arranhou a imagem das Forças Armadas.” A frase foi dita recentemente por uma jornalista em um canal de televisão, mas já foi repetida, de uma forma ou de outra, por outros colegas de profissão e figuras de outros espectros da sociedade. Como lugar-comum que se repete sem reflexão, está longe de ser verdade.
Desde o governo Bolsonaro que parte da cúpula militar, especialmente a do Exército, tenta isolar seu líder quando convém. Declarações e atitudes nocivas e/ou estapafúrdias seriam, segundo versões passadas por jornalistas, rechaçadas ou vistas com preocupação por membros das Forças, embora nunca houvesse uma declaração pública, muito pelo contrário. O discurso (sempre em off, obviamente) e a prática não combinavam.
Agora, com o envolvimento cada vez mais nítido do ajudante de ordens Mauro Cid no caso das joias, além de outros possíveis malfeitos, a operação de “livramento” se intensifica, ainda mais com o envolvimento de um general, o pai do ex-auxiliar de Bolsonaro. Uma possível delação de Cid, aliás, pode servir ao propósito de tratar o ex-presidente como quase um corpo externo, uma espécie de tropeço na jornada da instituição.
Em umaentrevista à BBC, em 2020, o antropólogo, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e pesquisador da área militar, Piero Leirner, definia de forma precisa a relação entre o então presidente e as casernas: “não é uma questão de se os militares aprovam ou não o governo: eles são o governo e Bolsonaro é o projeto deles”. Inclusive, quando questionado sobre “como os militares embarcaram no governo Bolsonaro?”, ele responde que “a pergunta poderia ser invertida: ‘Como Bolsonaro embarcou no governo dos militares?’.”
Para evitar falsificações, é preciso resgatar o histórico recente, como fez Leirner, lembrando que o lançamento de fato da candidatura do ex-presidente para 2018 foi realizado em 2014, pouco depois da realização do segundo turno da eleição presidencial vencida por Dilma Rousseff, na Academia Militar das Agulhas Negras. “Saiu de lá aclamado como ‘líder!’. Esse tipo de ato só é possível se houver autorização do comandante da Academia. E, como Bolsonaro repetiu a visita em 2015, 2016, 2017 e 2018, posso afirmar que ele contou com o conhecimento do comandante do Exército e com o descaso dos ministros da Defesa e dos presidentes da República”, ressaltou o antropólogo.
Figuras importantes do meio militar travaram conversas com o então vice-presidente Michel Temer em meio ao processo que resultou no impeachment sem crimes de responsabilidade de Dilma, segundo ele mesmo admitiu em livro. Embora tente dar um ar de institucionalidade nas diversas ocasiões em que se encontrou com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, mantido no cargo em seu governo, e o chefe do Estado-Maior da Força, general Sérgio Etchegoyen, depois escalado como chefe do recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Temer naturaliza (e não é só ele que faz isso) a participação de integrantes do Exército na vida político-partidária.
Temer e os militares
No livroDano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública, a jornalista Natalia Vianaaponta que um dos objetivos admitidos pelo próprio Etchegoyenao assumir o GSI (que havia sido extinto no governo Dilma) era “trazer de volta os militares a fóruns de onde eles tinham saído”, mencionando, por exemplo, a inclusão de integrantes das Forças Armadas em discussões sobre tratados internacionais, como se esta fosse uma tarefa castrense.
Etchegoyen foi um dos mentores da intervenção federal no Rio de Janeiro, promovida no governo Temer, também com o objetivo de conferir maior legitimidade às forças na atuação em uma área problemática como a segurança pública, rendendo dividendos políticos junto à sociedade. Lembrando que o responsável pela operação foi o general Walter Braga Netto, mais tarde ministro e candidato a vice-presidente na tentativa de reeleição de Bolsonaro.
Também foi na gestão Temer que, pela primeira vez desde sua criação, o Ministério da Defesa passou a ter como titular um militar, ogeneral da reserva do Exército Joaquim Silva e Luna,mais adiante nomeado para a presidência da Petrobrás e posteriormente diretor-geral de Itaipu, por Bolsonaro. O fato teve sua importância diminuída e pouco foi debatido pela mídia tradicional, parte dela à época em lua de mel com o presidente de turno. Mas é fundamental lembrar que a criação da pasta, prevista na Constituição de 1988, faz parte do rearranjo democrático para efetivar a supremacia do poder civil sobre o militar.
Na ocasião, conversei com a doutoranda em Sociologia Política Anaís Medeiros Passos, que foi taxativa em relação à nomeaçãonaRBA: “A nomeação de um militar para essa pasta torna precária essa divisão. Dependendo da duração de tal gestão, pode significar uma politização das Forças Armadas, que gera riscos para a sua organização – como a história mostra.” O que aconteceu na sequência confirmou a avaliação.
A conta para as Forças Armadas
Nesse contexto em que os militares passaram a atuar de modo explícito no coração do poder político, não se pode esquecer de 3 de abril de 2018, quando havia a expectativa de julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Supremo Tribunal Federal no dia seguinte.
Comandante das Forças Armadas à época, o general Eduardo Villas Bôas, publicou em sua conta no Twitter a seguinte mensagem: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, seguida de outra publicação: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
A ameaça ao Supremo, conforme revelou o próprio general em livro, foi elaborada em conjunto com o Alto Comando da instituição. E na cerimônia de posse do primeiro ministro da Defesa da gestão Bolsonaro, o general Fernando Azevedo e Silva, o então presidente se dirigiu a ele, dizendo: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
Todas as digitais e os próprios integrantes da cúpula do Exército não negam como estiveram, desde o governo Temer, como parte fundamental do comando do Executivo brasileiro, com relações efetivas ainda nos outros Poderes. Não é possível dissociar o governo Bolsonaro de um projeto gestado por eles, e não deixa de ser simbólico que Mauro Cid tenha ido à CPI do 8 de janeiro fardado, enquanto ocoronel do Exército Jean Lawand Junior, na mesma comissão, tenha participado de terno e gravata. A ligação com o topo da hierarquia militar de um e de outro é patente.
Uma declaração do hoje senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão dada em abril de 2019, transformada em vírgula sonora/meme peloMedo e Delírio em Brasília, é ilustrativa dasituação das Forças Armadas hoje. “Se o nosso governo falhar, errar demais, porque todo mundo erra, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas. Daí a nossa extrema preocupação.” A gestão Bolsonaro/militares foi muito além do mero erro. E a conta está na mesa.